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28 A conversão de Marrocos
from 1808
americano” por ter feito o casamento sem avisá-lo ou pedir sua autorização, comportamento que considera “vil e incivil”. A irmã o critica de ter se casado “de noite e às escuras, como se o povo fosse surdo e cego”.1 O segundo enigma diz respeito a um aparente mal-entendido na troca de cartas no período que precede o casamento. Marrocos rebate as críticas da família dizendo que havia, sim, avisado com antecedência que pretendia se casar. Sustenta que teria tratado do assunto em duas cartas, uma para o pai e outra para a irmã, escritas no dia 23 de dezembro de 1813, nove meses antes da cerimônia. A família afirma que essa correspondência nunca chegou a Lisboa. Em novembro de 1815, Marrocos se defende, dizendo que não era sua culpa se as cartas haviam se extraviado. Curiosamente, nos arquivos da Biblioteca da Ajuda essas são as duas únicas cartas, de um total de 186, que não estão no original. São apenas cópias. Não se conhece o paradeiro dos textos originais. Se a alegação da família estiver correta, ou seja, que nem pai nem irmã foram avisados previamente do casamento, o [pág. 348] que teria levado Marrocos e Anna a se unirem quase em segredo, sem obedecer ao protocolo que exigia comunicação prévia a respeito de suas intenções? O aparecimento das certidões de nascimento e batismo de Joaquinna sugere que o matrimônio provavelmente foi decidido às pressas, devido a uma gravidez inesperada. O estremecimento de relações com a família coincide com a data do nascimento de Joaquinna. O terceiro enigma, que reforça o primeiro e o segundo, está ligado a uma carta de novembro de 1814, data em que, a julgar pelas informações do banco de dados dos mórmons, a suposta filha já teria quatro meses. Nessa correspondência, Marrocos alerta a irmã para não dar crédito às fofocas e rumores que estão espalhando sobre ele no Rio de Janeiro e que podem chegar a Lisboa. “Estou rindo com a cegueira desta gente tola, condoendo-me do empenho com que à-toa
pretendem penetrar no meu segredo, não dando satisfação a ninguém”, escreve.2 Que fofocas poderia inspirar um homem de 33 anos, arquivista e burocrata do rei, conservador até a raiz do cabelo, no Rio de Janeiro de 1814? A explicação novamente pareceu estar em Joaquinna, o bebê nascido em junho daquele ano. Naquela época, uma gravidez fora do casamento era motivo de escândalo. Isso explicaria a expressão “como se o povo fosse surdo e cego”, usada pela irmã de Marrocos na troca de correspondência. Surdo e cego de quê? As evidências contidas na troca de cartas indicam que a família, em Lisboa, poderia estar sabendo, por outras pessoas, de informações que Marrocos tentou esconder deliberadamente nas cartas. O que teria acontecido com Joaquinna, o misterioso bebê de 1814? Além de suas certidões de nascimento e batismo, [pág. 349] não há no banco de dados dos mórmons qualquer outra referência ao seu destino. Não se tem notícia se ela foi abandonada, morreu, sobreviveu, casou ou teve filhos. A chave da resposta está nos próprios documentos arquivados em Salt Lake City. O microfilme com as informações sobre Joaquinna dos Santos Marrocos faz parte de um conjunto documental denominado batch número C032065 do International Genealogical Index. É composto pelos nomes de 1855 meninas nascidas no Rio de Janeiro entre 1812 e 1816, com algumas poucas exceções do final do século XVIII. A maioria dessas crianças aparece listada apenas com o primeiro nome. São centenas de Justinas, Honoratas, Inocências, Jezuinas, sem nenhuma referência de parentesco ou sobrenome familiar. Outras são registradas com sobrenomes genéricos, associados a datas, eventos e irmandades religiosas, como “do Espírito Santo”, “da Conceição”, “do Rosário” ou ”do Evangelho”. O único ponto em comum entre elas é que todas foram batizadas no Santíssimo Sacramento da Sé — e isso explica todo o mistério.
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Santíssimo Sacramento era o nome de uma das irmandades religiosas mais antigas do Brasil colônia. Mantida por leigos de alta distinção social, tinha entre suas responsabilidades abrigar e dar assistência a crianças órfãs de mães solteiras de famílias abastadas. Era exatamente esse o caso da noiva de Marrocos. Anna Maria de São Thiago Souza pertencia a uma família rica, de legítima ascendência portuguesa e socialmente bem relacionada. A conclusão óbvia é que, surpreendidos pela gravidez, Luiz Joaquim e Anna Maria preferiram entregar a criança recém-nascida aos cuidados de uma irmandade religiosa do que assumir a paternidade e se expor ao inevitável escândalo [pág. 350] na corte. No Brasil de 2007, o nascimento de crianças fora do casamento é um fenômeno normal da vida, aceito e tolerado pela sociedade. A gravidez antes do casamento há muito tempo deixou de ser motivo de escândalo ou preocupação para as famílias envolvidas. Duzentos anos atrás era bem diferente. Na corte de D. João VI, a notícia de um filho gerado fora do casamento seria inaceitável. Para os pais, era sempre melhor escondê-lo e entregá-lo para adoção do que comprometer a reputação da família. A entrega de crianças não desejadas para adoção era um hábito amplamente disseminado no Rio de Janeiro. Os orfanatos e alguns conventos tinham a chamada “roda dos enjeitados”, instituição importada de Portugal, na qual era possível depositar um recémnascido sem que a pessoa responsável por esse ato fosse identificada. Em 1823, a viajante inglesa Maria Graham visitou um asilo no Rio de Janeiro, cuja roda dos enjeitados havia recebido 10000 crianças órfãs num período de nove anos. A maioria tinha morrido antes de encontrar um lar que as acolhesse.3 No caso de Joaquinna dos Santos Marrocos, é curioso observar que, apesar de todos os riscos envolvidos, os pais tenham registrado a filha não desejada com seu próprio sobrenome. Identificada com o
numero 587 no batch C032065 dos mórmons, Joaquinna é uma das raras crianças desse conjunto documental que aparecem com nome e sobrenome da família. É como se fosse uma pista silenciosa do seu segredo plantada para a posteridade.4 [pág. 351]
NOTAS
Introdução
1. Nessa categoria, de livro de fácil leitura e linguagem coloquial, merece crédito também A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil, da historiadora Lilia Moritz Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo. 2. J. M. Pereira da Silva, História da fundação do império brasileiro, 1864, tomo 1, p. 5. 3. Nos treze anos em que a corte portuguesa permaneceu no Brasil, o valor da libra esterlina, a moeda padrão do comércio internacional na época, oscilou entre 3000 e 5000 réis, segundo informação do embaixador Joaquim de Souza Leão Filho, tradutor e autor das notas do livro de Ernst Ebel, O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824, 1972, p. 14. Com base nessa referência é possível ter uma noção aproximada do valor de compra das moedas nesse período. O Parlamento britânico oferece pela Internet um serviço de atualização monetária da libra com base no seu poder de compra nos últimos três séculos. Por esse cálculo, o valor de uma libra esterlina em 1808 equivaleria hoje ao de 56 libras. Significa que uma mercadoria vendida no Rio de Janeiro nessa época por 4000 réis (aproximadamente uma libra), valeria hoje [pág. 352] cerca de
220 reais ou 100 dólares americanos (em equivalência de poder de compra). O Economic History Service é um serviço gratuito de conversão de moedas antigas pela Internet criado por dois professores de Economia das universidades de Miami e de Illinois. Pode ser consultado em http://measuringworth.com/. O www.globalfinancialdata.com oferece informação semelhante e mais detalhada, mas é pago (e muito caro). Para atualização do valor da libra esterlina, ver Robert Twigger, Inflation: the value of the pound 1750-1998, House of Commons Library, no site do Parlamento britânico em http://www. parliament.uk/commons/lib/research/rp99/rp99-020.pdf.
Capítulo 1 — A fuga
1. Para informações mais detalhadas sobre o poder do rei no regime absolutista, ver Albert Sorel, Europe under the old regime: power, politics, and diplomacy in the eighteenth century, 2004; e Geoffrey Bruun, The Enlightened Despots, 2005. 2. Na época em que D. José morreu, a vacina contra a varíola já era aplicada em vários países europeus. A rainha Maria I, porém, não autorizou que o filho mais velho e herdeiro do trono fosse vacinado, “por escrúpulos religiosos”, segundo o historiador Pedro Calmon, em O rei do Brasil, vida de D. João VI, 1943, p. 34. Mais tarde, já sob a regência de D. João, toda a família real receberia a vacina. 3. Para uma descrição do Palácio de Mafra, ver Lilia Moritz Schwarcz, A longa viagem da biblioteca dos reis, p. 62, e Tobias Monteiro, História do Império: a elaboração da Independência, p. 168. 4. A BBC, rede de comunicações mantida pelo governo britânico, organizou um bom site de Internet — British History: Empire and Sea Power — para comemorar os duzentos anos da Batalha de Trafalgar, em 2005. Pode ser consultado em www.bbc.co.uk. Para uma análise aprofundada das conseqüências da vitória de Lord
Nelson sobre a esquadra francesa e espanhola, ver Nam Rodger, Trafalgar: the long-term impact, no mesmo site. [pág. 353] 5. Tobias Monteiro, História do Império, p. 20-1. 6. Ibidem, p. 55.
Capítulo 2 — Os reis enlouquecidos
1. Para mais informações sobre a doença e o comportamento dos reis George III e Maria I, ver Christopher Hibbert, George III: a personal history; Marcus Cheke, Carlota Joaquina, queen of Portugal; e Vivian Green, A loucura dos reis. 2. Patrick Wilcken, Empire adrift: the portuguese court in Rio de Janeiro, 1808-1821, p. 57. A atualização monetária foi feita com base no estudo Inflation: the value of the pound..., de Robert Twigger. 3. “A rainha D. Maria I que, de há muito, vinha dando indícios de doença psíquica, foi acometida subitamente dum formal ataque de loucura quando assistia a um espetáculo no teatro do Paço de Salvaterra no dia 2 de fevereiro de 1792”, escreve o historiador Ângelo Pereira, em D João VI príncipe e rei, p. 57. 4. Citado em H. A. L. Fisher, Napoleon. 5. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, p. 49. 6. A informação sobre o tamanho da dívida francesa após o governo de Luís XIV e o número de pessoas na corte de Versailles é de Winston Churchill, The age of revolution: a history of the English speaking people. 7. O número de livros sobre Napoleão são de Alistair Horne, no audiobook The age of Napoleon. Cameron Reilly em Napoleon 101, programa em podcast no site http://napoleon.thepodcastnetwork.com/, afirma que são 300000 os livros em que Napoleão é o assunto principal. 8. Para uma análise detalhada sobre a estratégia militar de Napoleão e a capacidade de mobilização de tropas na França
revolucionária, ver Gunther E. Rothenberg, The Napoleonic wars, p. 18-47. 9. Alexandre Dumas, Napoleão: uma biografia literária, p. 37. 10. Alistair Horne, The age of Napoleon (audiobook). [pág. 354]
Capítulo 3 — O plano
1. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, p. 43. 2. J. M. Pereira da Silva, em História da fundação do império brasileiro, p. 79-80, diz que, em 1806, Portugal importava do Brasil 14.153:752$891 e exportava para a colônia apenas 8.426:097$899, 3. Thomas E. Skidmore, Uma história do Brasil, p. 51. 4. O número do total de navios empregados no comércio com o Brasil e comentário de Costigan são citados por Kenneth Maxwell em A devassa da devassa — a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal (1750-1808), p. 24. 5. Em 1640, um grupo de conselheiros reais preocupado com as constantes ameaças à autonomia de Portugal, incluindo o padre jesuíta Antonio Vieira, propôs a criação de um império nas Américas, para onde seria transferida a sede da monarquia. Vieira tinha uma visão messiânica do tema. Portugal, segundo ele, estava destinado a recriar na América o “Quinto Império”, um reino bíblico previsto pelo profeta Daniel no Velho Testamento. Por defender essas idéias, foi investigado pela Inquisição e, mais tarde, censurado pelo papa. Para mais detalhes, ver Kirsten Schultz, Tropical Versailles, p. 17. 6. Citado por Kenneth Maxwell, A devassa da devassa, p. 19. 7. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, p. 45. 8. Carta ao príncipe regente, de 16 de agosto de 1803, reproduzida em Ângelo Pereira, D. João VI príncipe e rei, p. 127-36. 9. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, p. 16. 10. Em 1807, o Conselho de Estado era integrado por D. Antonio de Araújo de Azevedo, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, D.
João de Almeida de Mello e Castro, José Egydio Alves de Almeida (encarregado do Gabinete), João Diogo de Barros (secretário do Infantado), Thomaz Antônio Villa Nova Portugal (fiscal do Erário), Manuel Vieira da Silva (médico particular de D. João e autor do primeiro tratado de Medicina publicado no Brasil, em 1808), e os irmãos Francisco José e Matias Antônio de Sousa Lobato (guardaroupas e assessores pessoais do [pág. 355] príncipe). Para mais detalhes, ver Lilia Schwarcz, A longa viagem da biblioteca dos reis, p. 65.
11. Lilia Schwarcz, A longa viagem da biblioteca dos reis, p.
199.
12. Tobias Monteiro, História do Império, p. 23. 13. Lilia Schwarcz, A longa viagem da biblioteca dos reis, p.
204.
14. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, p. 47. 15. Alexandre José de Melo Moraes, História da transladação da corte portuguesa para o Brasil em 1807, p. 50. 16. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, p. 51-2. 17. Ibidem,p. 37. 18. Ibidem,p. 40. 19. Conforme René Chartrand, Vimeiro 1808: Wellesley’s first victory in the Peninsular War, p. 17. 20. Para uma descrição dos erros e o estado de indigência do Exército francês na invasão de Portugal, ver René Chartrand, Vimeiro 1808; Charles Esdaile, The Peninsular War, general Maximilien Sébastien Foy, Junot’s invasion of Portugal (1807-1808); David Gates, The Spanish ulcer: a history of the Peninsular War; Sir Charles Oman, A history of the Peninsular War; e Gunther E. Rothenberg, The Napoleonic wars. 21. General Maximilien Sébastien Foy, Junot’s invasion of Portugal, p.57. 22. Sir Charles Oman, A history of the Peninsular War, p. 28.
23. Citado em Tobias Monteiro, História do Império, p. 59. 24. Sir Charles Oman, A history of the Peninsular War, p. 27. 25. Alan K. Manchester, Presença inglesa no Brasil, p. 72. 26. Sir Charles Oman, A history of the Peninsular War, p. 26.
Capítulo 4 — O império decadente
1. Júlio Bandeira, O barroco de açúcar e de ouro, na introdução de Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender, p. 15. 2. Kenneth H. Light, “Com os pés no mar”, entrevista à Revista de História, da Biblioteca Nacional, nº 14, de novembro de 2006, p. 48-53. [pág. 356] 3. Joaquim Pedro de Oliveira Martins, História de Portugal, p.
519.
4. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, p. 25. 5. Atualizado pela inflação nos últimos duzentos anos, um franco de 1808 valeria hoje 4,07 euros, segundo o www.globalfinancialdata.com. 6. Os dados são de Marcus Cheke, Carlota Joaquina, queen of Portugal. Pereira da Silva, em História da fundação do império brasileiro, p. 77, afirma, com base nas estatísticas de 1801, que a população de Portugal era de 2 951 930 habitantes, incluindo 30000 bispos, padres, freiras e seminaristas, enclausurados em 393 conventos. 7. Pedro Calmon, O rei do Brasil, vida de D. João VI, p. 34. 8. Maria Antonia Lopes, Mulheres, espaço e sociabilidade, 1989, citada em Francisca L. Nogueira de Azevedo, Carlota Joaquina na corte do Brasil, p. 54. 9. Citado em Luiz Edmundo, Recordações do Rio antigo, p. 68. 10. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, p. 23. 11. Lilia Schwarcz, A longa viagem da biblioteca dos reis, p. 86. 12. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, p. 49.