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Silene e o valor da vida
Era uma menina linda, de cabelos ruivos, uns olhos da cor do céu e um rosto catita sarapintado, recheado de sardas vincadas pelo sol. A viver os seus cinco frágeis aninhos, o toque diferente do seu rosto pequeno e arredondado chamava a atenção de todos os que a rodeavam.
Sempre tão destemida e irrequieta, passava agora por uma fase estranha da sua vida, sempre com um porquê na ponta da língua pronto a disparar para quem quer que fosse.
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Havia algo que incomodava o seu inconsciente desde aquele dia estranho em que a avó Clementina e o Avó António partiram e não mais voltaram. Desde aí, passava o tempo com interrogações.
- Paizinho, porque razão os avós nunca aparecem para almoçar? Sinto tantas saudades suas!
- Que saudades, avozinha, De ti também, Francisquinho, Vivo agora tão sozinha! Porque não vêm, paizinho?
- Marron, vem, meu bichinho, Não te faças de papão! Lembras-te do avozinho? Não, certamente, já não!
- Filhinha, presta atenção Ao que te digo, querida, Quando não há solução, Há que enfrentar esta vida.
- De casa não vou sair Porque as férias já chegaram.
- Vá, quero-te a sorrir, Os “Covids” acabaram.
- E o que faço da saudade Que tanto aperta meu peito? Já não sinto liberdade Em meu viver imperfeito.
- Mãezinha, porque razão o tio Rodrigo, a tia Maria das Dores e o Francisquinho não nos podem vir visitar? – perguntava curiosa - Sinto tantas saudades da Mafalda e da Ritinha! Ligalhes e convida-os a virem cá, gostava tanto de brincar com as priminhas! Tenho saudades do padrinho Leopoldo e da madrinha Celeste –repetia com uma lagrimita a deslizar pela sua face sardenta.
- Vem aqui, Silene. - chamou o pai, colocando o Jornal que estava a ler em cima do tampo da mesa da salinha de estar.
Silene levantou-se da pequenina cadeira cor de rosa fúcsia e foi ao encontro do pai. Marron, a peluda gatinha persa e Lady, a cadelinha Yorkshire terrier, acompanharam-na.
- Senta aqui ao meu lado Silene - disse-lhe, acomodando-a na ponta do sofá, do lado esquerdo - Vamos ver se consigo fazer com que que entendas o que te quero transmitir. Tu já sabes que anda por aí um bichinho com maus intentos a vaguear por entre as pessoas, filhinha, verdade?
- Sim, paizinho, tu e a Mãezinha têm-me explicado muito bem. Só não consigo perceber a razão porque os médicos não dão cabo dele! A avó Clementina sempre me dizia que há sempre um remédio para tudo, quando às vezes sentia dores na barriga. E na verdade, ela fazia um chazinho com plantas que ela conhecia e que adocicava com mel, e essas maleitas desapareciam.
- Pois é, Silene, mas nem tudo passa com os chazinhos da avó. – explicava com a maior paciência do mundo –Mesmo assim, presta atenção ao que te vou dizer, antes que mãezinha nos ouça. Eu bem sei que ela gostava muito da avó Clementina e do avô António e que está a sofrer muito com a sua partida recente. Afinal, eram os seus pais e é natural que lhe custe viver sem eles.
- Mas, paizinho, faltam poucos dias para o Natal. Prometo que vou pedir ao Menino Jesus que traga os avozinhos de volta. Ele pode tudo.
- Ai, filhinha, se isso fosse possível, todos os avozinhos regressavam do seu longo repouso, mas não é assim que as coisas funcionam.
- Oh!, que pena! Mas mesmo assim, vou pedir-lhe. Pode ser Ele me queira ouvir.
- Está bem, filhinha, pede, então. Mas escuta com atenção. Tenho uma surpresa para ti. Daqui a alguns dias, os teus primos vão chegar e finalmente poderás brincar de novo com eles. Mas há que tomar algumas precauções. É verdade que eles só vêm se os resultados dos testes ao tal vírus forem negativos, se derem positivos, têm que ficar isolados na sua casa durante alguns dias. Entendes isso?
- Fiquei confusa. Testes? Eles têm que passar por testes?
- Sim, uma espécie de exame para se aperceberem que o tal bichinho mau não anda por aí a tramá-las.
- Esse bichinho mau é o Papão de que falava a avó?
- Bem, digamos que sim – respondeu.
– Está bem, paizinho, acho que entendi. Danado do bicho mau!
E, virando-se para os seus amiguinhos de todas as horas:
- Marron, Lady, vamos brincar.
Já na companhia dos amigos, Silene abandona a salinha com a cabecinha olhando o chão e cheia de perguntas para si mesma, o que deixou o pai um tanto apreensivo.
A seguir, a menina entrou no seu quartinho com ar pensativo. Parecia que algo a perturbava, não entendia porque razão o bicho papão os andava a importunar sem encontrar qualquer razão aparente.
Além do mais, atacava toda a gente, fossem crescidos ou não.
-
Marron, diz-me, ó amiguinha,
O que está a acontecer?
O avô e a avozinha
Nunca mais os irei ver!
Danado, o bicho papão
Que faz mal a toda a gente, Parece que a solução
Não nos chega, infelizmente
Deixemos, vamos brincar, Correr, saltar no jardim
E quem sabe, visitar
O ramalhal de alecrim.
Afinal de tudo, era bom poder contar com a companhia desses amiguinhos tão queridos, poder brincar com eles e usufruir da sua companhia. Depois de algumas brincadeiras e correrias, Silene lançou-se para cima dum monte de folhagem que se foi acumulando no relvado do jardim, logo seguida por Marron e Lady. Era vê-los a rebolar, felizes, sobre o monte improvisado de folhagem multicolor, quando de repente ouviram uma voz com ar de irritada que, confrontando-os, lhes disse:
- Que raio estão a fazer?
Pensam que me vão matar? Sou novo, quero viver, E não vos posso aturar.
Deixem-me só, por favor, Saiam já deste lugar
Este aconchego de amor Que não desejo deixar.
- Mas este é o meu jardim!Disse Silene, zangadaVá mostra-te para mim, Senão, fico chateada!
Lady a cauda abanava. Farejava um buraquito
E, confundida, ladrava, Quando viu Marron aflito
E Silene, circunspecta, Entre as folhinhas mexia
Já cheia daquela treta
E do bicho que não via.
Mas, de repente, sob o amontoado de folhas a seus pés, sentiu mexer-se um pequenino ratinho de cor tão invulgar. Assustada, mas numa reação imediata, virou-se para o pequeno roedor e questionou:
- Mas o que vem a ser isto? Um monte de folhas que mexe para esconder um rato? Já me parecia que isto não era apenas o vento!
De cócoras no chão, mexe e remexe, ávida de reunir as folhas agora mais espalhadas. Não fora a ajuda da gatinha Marrom e de Lady, a cadelinha, e lá se ia o seu montinho de folhas multicolor.
Foi então que entre aquele emaranhado, descobriu por fim o pequeno roedor. De olhos esbugalhados e de boca aberta, não conseguiu conter um grito de espanto.
Com olhar esbugalhado, Sem crer naquilo que via, Eis que o ratinho safado Por todo o lado fugia.
- Que graça! O que vejo eu!
As folhinhas a voar
E um rato apareceu
Para nos dar que pensar!
Como te chamas, ratinho?
- O meu nome é Penacor. Não digas, engraçadinho, Pensas ter senso de humor?
Tu és um monte de folhas Que parecem não ter fim.
- Eu faço as minhas escolhas, Disfarço-me no jardim.
Não sou um rato qualquer, Desses que andam por aí. Gosto de saltar, correr.
- … E resmungar, eu já vi!
- Claro que não me viste, Como poderias ver?
Ver-me aqui, só conseguiste Porque assim o quis fazer.
De qualquer modo, criança, Pareces especial, Não sei se de confiança, Não me vais levar a mal!
- Lá no fim, até que te acho engraçado.
E virando-se para o gatinho
- Marron, vê como é giro este ratinho feito de folhas das nossas árvores do jardim
– dizia Silene – chamando para perto de si os amigos.
Marron saltitava contente, rebolava e dava voltas e mais voltas, enquanto Lady, a cadelinha latia feliz, como que a dar asboasvindasao seu novo amigo, o ratinho Penacor. Durante alguns minutos permaneceram naquela brincadeira, até que a dado momento, o ratinho Penacor Parecia se despedir dos amigos.
- Depressa que se fez tarde, Já chegou a minha hora!E sem causar mais alarde –Vai, vai que vou embora!
- Até um dia, amiguinhos, É hora de regressar, Entrar nos meus buraquinhos E regressar ao meu lar
- Gostei de te conhecer, De te ter por nosso amigo…E o rato parte a correr
- … Deixas-me a falar comigo!
Mas quando Silene olhou, Viu o ratinho que aflitoO vento as folhas levou –E respondeu ao seu grito.
- Que chatice, mas que ideia! –Desabafou PenacorLá se foi minha colmeia Tão bela, com tanta cor.
E ali ficaram a contemplar o voo daquelas folhas e com eles os pequenos orifícios onde se ocultava o pequenino rato. Por mais que desenvolvesse esforços, numa correria louca, Penacor não conseguia alcançar o montículo de folhas para poder entrar de novo naquele emaranhado de folhagem. Até que, cansado, ali ficou desconsolado a choramingar, por não poder voltar para casa. Silene olhava-o triste e pensava em tudo o que acabava de presenciar e a desventura do seu pequeno amiguinho Penacor. Refletiu e pensou que o poderia ajudar. Com a ajuda dos amigos, resolveu juntar um novo montículo de folhas que logo o vento tentava contrariar.
- Quem és tu, menina insolente, que tentas desafiar a minha força? Vou dar-te o que mereces, irei transformar-te a ti nesse amontoado de folhas que tanto desejas reunir e empurrar-te comigo até aos confins da terra! Logo, Marron, a gatinha, e Lady, a cadelinha, agarradas ao ratinho Penacor, alcançam a saia de Silene e, logo o vento, num louco corrupio, os arrastou no meio da folhagem e os fez voar pelas alturas. Quando a ventania amaina, veem-se a cair desamparados num manto de belas folhas, num lugar desconhecido, enquanto os ténues vestígios de vento se vão dissolvendo lentamente.
- Senhor vento, por favor, Não nos abandone aqui!
Já sofremos tanta dor E a vida não nos sorri.
- Leve-nos para o jardim Que é nosso por tradição, Cheio de rosas, jasmim, E tão cheio de ilusão.
Nesse manto colorido
Silene se levantou
E ao ver o acontecido, Seus amiguinhos, chamou:
- Lady, Marron estão bem?
- Que será que se passou? Não sei, acho que ninguém. O Sabe. – E o rato lhes falou.
- Cá estamos no meu mundo Sempre tão imprevisível, Onde o saber mais profundo Renasce do impossível.
- Vamos p’ra casa voltar! Marron, Lady, venham cá?
Vamos solução achar, Temos Natal amanhã!
Não perdendo mais tempo, Silene dirige-se à gatinha Marron, à cadelinha Lady e ao ratinho Penacor e disse-lhes:
_ Temos de encontrar uma saída. Vamos procurar qualquer porta ou seja o que for. Tu, Penacor, terás que regressar ao teu espaço mas nós temos de encontrar o modo de sair daqui. Acaso a minha mãe se aperceba da minha ausência, vai certamente ficar muito preocupada.
Silene perscrutava por todos os lados na tentativa de encontrar uma saída. Olhava, olhava, mas por mais que procurasse, apenas via folhas e nada mais. Olhou o céu viuo carregado de nuvens, ora avermelhadas, ora esbranquiçadas, cinzentas ou amarelas, parecia um enorme Arco-Íris.
Num momento, enquanto elas se deslocavam, viram abrir-se uma nesga que deu lugar ao aparecimento duma branca nuvem. Quando se apercebeu, Silene gritou de modo a que ela ouvisse:
- Nuvenzinha, nuvenzinha, Desce daí, por favor, Vem nos dar uma ajudinha Neste sítio assustador.
- Precisamos de encontrar Uma porta p’ra abrir
Para casa regressar Felizes e a sorrir.
Logo, essa nuvem desceu Nesse promissor porvir.
- Mas que foi que aconteceu?
- Queremos daqui sair!
E eis que a branca nuvem se começou a movimentar e a transformar-se nas figuras de pequenos animaizinhos, de tamanho tal que conseguissem passar pela pequena fresta aberta entre a folhagem.
- Depressa! - gritava Silene - As folhas estão-se a mexer e o espaço a diminuir, Lady, Marron, Penacor, segurem-se bem a mim. - e virando-se para a branca nuvem;
- Vá, desce depressa, amiguinha, precisamos de ti!
Esta sentia-se sufocada no exíguo espaço, as folhas bailavam numa dança angelical. Penacor ansiava e suplicava por calma, mas as folhas pareciam fazer ouvidos de mercador.
- Escutem-me, por favor, Ela é minha amiguinha, Acabem com este horror Porque a culpa é toda minha.
Não consegui resistir Quando no jardim entrei
E ao procurar fugir, Já nem a porta encontrei.
As folhas rodopiavam
À volta da pequenina
E quase, quase a levavam
Se não fora a nuvenzinha.