Arquitetura Escolar

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ESCOLA PÚBLICA INTEGRAL NO

MONTE CRISTO FLORIANÓPOLIS EM


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aluno: Rovy Pinheiro Pessoa Ferreira orientadora: Maria Inês Sugai UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO TECNOLÓGICO DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO Trabalho de Conclusão de Curso 1 – 2012 3


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SUMÁRIO

7 9 13 21 25 27 31 32 34 39 41 42 46 49 52 58 61 67 68 72 75 84

OBJETIVO INTRODUÇÃO RELAÇÃO ENTRE PEDAGOGIA E ARQUITETURA CORRENTES PEDAGÓGICAS E ARQUITETURA ESCOLAR Educação Tradicional O ambiente escolar tradicional Educação Técnico Científica Educação como experiência Educação e Inclusão no Ciclo produtivo O ambiente escolar Técnico-científico Educação Libertadora A escola como reprodutora de desigualdade Educação e Mudança Educação como prática de liberdade Educação formal, não formal e informal Escola Libertadora EDUCAÇÃO INTEGRAL ÁREA DE INTERVENÇÃO Quadro da Educação em Florianópolis Educação Integral no Município Escolha da Área REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 5


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OBJETIVO O objetivo deste trabalho é desenvolver o projeto arquitetônico de uma escola de turno integral de ensino fundamental, para a rede pública em Florianópolis.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Criar uma arquitetura escolar coerente com uma pedagogia libertadora, voltada para a construção de cidadania e o desenvolvimento integral da criança. Integrar as atividades formais e extra-curriculares através de uma organização espacial voltada para a permanência dos alunos.

Integrar a escola ao contexto urbano, social e cultural no qual esta implantada.

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INTRODUÇÃO

A rede pública de educação no Brasil sofre de uma importante

falta de investimento e de planejamento. Cria-se uma situação em que os cidadãos que tem condição financeira de matricular seus filhos em escolas particulares evitam os estabelecimentos públicos de ensino. Paralelamente, a população de baixa renda dificilmente consegue arcar com os custos da educação privada, além de enfrentar problemas de locomoção. As desigualdades se reproduzem diante das diferenças de acesso à educação.

Pensar o sistema público de ensino não pode ser visto como

uma forma de beneficiar uma determinada parte da população, de forma assistencialista. Trata-se de uma concepção democrática de sociedade, em que a educação se configura como um direito fundamental independente de classe, etnia ou gênero, e como o principal caminho de acesso à cidadania. A educação, para ser acessível a todos, precisa por definição ser pública, gratuita e de qualidade. Dentro dessa perspectiva, e ao estabelecer princípios de acesso universal a educação, é preciso se questionar sobre o papel da instituição escolar na sociedade e a relação entre arquitetura e pedagogia.

Uma das questões fundamentais no que diz respeito à quali-

dade do ensino e ao papel social da escola é o do tempo de permanência das crianças na escola. Vivemos numa sociedade em que a competição e a empregabilidade são valores determinantes nas relações sociais e no cotidiano das pessoas, que são obrigadas a levar jornadas de trabalho

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intensas para manter condições mínimas de existência. Mas o que acontece com as crianças quando os pais trabalham o dia inteiro? Não se pode conceber a educação como algo restrito ao que acontece dentro da escola, no horário de aula. O contexto social, cultural e também econômico dos alunos influi de forma preponderante na educação de cada criança, e a escola não pode permanecer hermética ao que acontece fora dela. Oferecer uma educação de qualidade passa por levar em consideração a realidade dos alunos, e não se desresponsabilizar pelos acontecimentos “extramuros”.

Neste sentido, pensar o contraturno de forma integrada ao

currículo escolar pode representar um enriquecimento da vivência e do aprendizado dos alunos. Para que isso ocorra, é fundamental que não se considere a educação integral como uma medida assistencialista destinada a somente alguns alunos com dificuldades de aprendizagem ou em situação de vulnerabilidade social, para não reforçar a estigmatização quando se deve promover igualdade.

Trata-se de criar um ambiente de inclusão e de diálogo, que

considere os mais diversos aspectos da aprendizagem. É preciso abrir espaço para a experiência, o debate, o afeto, para a expressão dos alunos, para que a experiência do ensino seja vivida de forma plena, e não somente ocupando tempo ocioso. A educação é aqui vista como prática de liberdade, elemento fundamental de acesso à cidadania e emancipação dos alunos.

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O papel da arquitetura é fundamental para compor este quadro

em que as diversas atividades ocorrem de forma integrada, relacionando aspectos da educação formal e não formal com coerência. Tanto a pedagogia quanto a arquitetura não podem ser vistas como estáticas, monolíticas, e devem ter a capacidade de se adaptar às transformações constantes da rede de relações humanas que compõem a escola.

A escola não deve se configurar como uma bolha, tanto espa-

cial quanto intelectual e culturalmente, e deve interagir com o entorno em cada um desses aspectos. Deve se assumir enquanto referencia espacial e cultural, reforçando a identidade da comunidade na qual está inserida.

A famosa frase do Paulo Freire: “Se a educação sozinha não

transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.”, que indica uma relação recíproca e dialética entre sociedade e educação, é válida também no que diz respeito à relação entre espaço e prática social, entre arquitetura e pedagogia.

Desta forma, se a arquitetura sozinha não transforma a

educação, sem ela tampouco a educação muda.

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RELAÇÃO ENTRE PEDAGOGIA E ARQUITETURA 13


Enquanto produção humana, a arquitetura é inevitavelmente

impregnada dos valores éticos e estéticos de sua época. A correlação entre forma e conteúdo ocorre tanto no nível simbólico quanto no nível material, prático. A aparência, a imagem veiculada pelos edifícios pode ser lida e interpretada para encontrar elementos de discurso na gramática arquitetônica. Da mesma forma, a disposição dos ambientes induz a um determinado percurso, e a presença ou ausência de certos elementos programáticos fazem com que o edifício seja a materialização de uma dinâmica, de uma sociedade com suas relações hierárquicas, seus costumes e seus ritmos. O espaço construído não pode ser visto como algo fixo e monolítico, e sim como um processo. Nele estão presentes os elementos de um discurso e de uma estrutura social, que se configura a partir da interação dos diferentes atores na produção desta arquitetura.

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L’architecture ne peut se concevoir que comme une pratique sociale figurant avec d’autres (par exemple la médecine) dans l’ensemble pratique qui porte et que supporte la société actuelle (le mode de production). (LEFEBVRE, 1972, p.13)

Essa relação de duas vias evidencia o papel ativo da arquitetura

na significação e no conjunto de práticas sociais que configuram o espaço. Ao mesmo tempo em que surge do modo de produção, passa a reafirmar a legitimidade do modelo que a gerou num processo de reprodução ativa da ordem social vigente. A arquitetura não é somente produto, é também produtora de uma determinada realidade. Enquanto codificação, o desenho arquitetônico produz sentido, além de incorporar conteúdos sociais. A seleção de determinados elementos da dinâmica social para compor o programa arquitetônico ou o “estilo arquitetônico” empregado enquanto parâmetro estético se configura como um recorte da realidade, em que alguns comportamentos ou processos são considerados mais relevantes do que outros. É então possível e necessário descodificar o espaço construído para extrair os significados sociais ali presentes. O espaço reproduz a totalidade social na medida em que essas transformações são determinadas por necessidades sociais, econômicas e políticas. Assim, o espaço reproduz-se, ele mesmo, no interior da totalidade, quando evolui em função do modo de produção e de seus momentos sucessivos. Mas o espaço influencia também a evolução de outras estruturas e, por isso, torna-se um componente fundamental da totalidade social e de seus movimentos. (SANTOS, 2008, p.33)

A arquitetura apresenta uma dimensão semântica intrínseca,

mas que não se deve sobrepor ao aspecto funcional, como ocorreu no movimento pós moderno a partir da década de 70. A crítica pós-moderna ao funcionalismo se baseia essencialmente no diagnóstico da falha 15


da arquitetura moderna em criar significados socialmente coerentes. Mas o papel ativo da arquitetura na reprodução da ordem social não depende somente da semiótica do edifício. A priorização do significado e a busca de domínio da sintática da arquitetura levou a um tratamento literal dos signos e significados, com uma ênfase na aparência do espaço construído. Essa abordagem figurativa pode ser considerada superficial e incompleta quando limitada à imagem do edifício, sem que sejam incluídos aspectos concretos da arquitetura como a experiência do usuário e a materialidade da obra.

É necessário ir além do simples significado enquanto elemento

gerador na arquitetura e considerar questões como os processos construtivos e a dinâmica social envolvida na produção do espaço, assim como as características práticas do edifício. Por outro lado, a questão da função da arquitetura não deve ser tratada de forma caricatural. O moderno na arquitetura não pode se limitar ao industrial e ao ângulo reto, com um mesmo tratamento independente do local. É necessário incluir os aspectos culturais e as particularidades de cada localidade para definir a conformação do espaço e a materialidade do projeto. 16


A arquitetura reflete o momento histórico durante o qual ela

surge, mesmo não sendo de forma intencional. As edificações escolares se adaptam às mudanças de valores na educação, e as escolas à evolução do ensino. No entanto não há uma tradução literal, uma relação direta entre a conformação espacial e a prática pedagógica. Não se pode reconhecer de forma clara quais princípios pedagógicos foram aplicados em determinada conformação do espaço escolar, já que não há integração entre os projetos arquitetônicos e pedagógicos. A complexidade dos fatores que determinam a relação entre espaço e prática social dificulta ainda mais a identificação da dinâmica que gera e é gerada pela arquitetura. As mudanças de visão do ensino, de uso ou de conformação do espaço interno de um edifício ao longo do tempo impedem a imobilização determinista das características de um projeto. É possível ter uma prática formal de ensino em um espaço inadaptado para tal atividade, sem cadeiras, sem quadro negro, sem sala de aula., assim como é possível exercer práticas não formais de ensino em espaços tradicionalmente reservado ao ensino formal. 17


Mas já que o espaço é um componente indissociável de qualquer

prática social e exerce um papel ativo na definição desta prática, o ambiente escolar se configura como um quadro que de fato influencia a prática pedagógica. Esta influência é recíproca e se dá em diversos níveis, que devem ser identificados para poder propor um ambiente escolar que se alinhe intencionalmente com um determinado projeto pedagógico.

Portanto, é impossível analisar os sistemas de ensino sem passar

por uma análise dos espaços dedicados à educação, e vice-versa. Não se pode pensar o ambiente escolar sem pensar ao mesmo tempo pedagogia. A relação entre esses dois campos é indissociável no projeto de uma escola, já que as implicações são recíprocas. Mas essa relação não é evidente, e sua subjetividade faz com que ela seja muitas vezes ignorada em ambos os campos. São poucos os arquitetos que projetam escolas conscientes do impacto que o edifício terá sobre a aprendizagem das crianças, assim como são raros os pedagogos que pensam o espaço como elemento chave do processo de aprendizagem.

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Neste trabalho serão estudadas as relações entre pedagogia e

arquitetura escolar, para caminhar no sentido de sistematizar os elementos arquitetônicos que intervêm no ensino. Serão analisados quatro níveis diferentes da influência da arquitetura na pedagogia. De um ponto de vista simbólico o edifício escolar possui um significado forte, devido à importância do papel institucional. Esta dimensão inclui mas não se limita à questão da imagem que o edifício transmite. O conjunto de símbolos evocados pela escola provêm tanto do estilo e da aparência da escola quanto do nível mais pragmático da inserção urbana e da morfologia do conjunto. Trata-se de analisar o impacto simbólico da escola como ele é percebido pelos alunos, pelo corpo docente e pela comunidade. De um ponto de vista prático, ou da experiência, efetua-se uma análise morfológica na escala urbana, identificando as relações que conformam e são conformadas pelo edifício escolas. Já na escala do edifício é analisada a implantação do edifício e a morfologia arquitetônica, considerando a relação entre os diversos espaços. O ambiente escolar é definidor de ritmos e relações espaciais, incentivando ou reprimindo determinados tipos de encontros e de fluxos, facilitando ou dificultando determinadas dinâmicas pedagógicas. Analisa-se finalmente o espaço do ensino em uma escala mais próxima do aluno, decifrando as relações dentro da sala de aula. 19


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CORRENTES PEDAGÓGICAS E ARQUITETURA ESCOLAR 21


Antes da revolução industrial, não existia escola pública da

forma como conhecemos hoje. A ideia de acesso universal e gratuito a educação, subsidiado pelo estado, foi de fato uma grande revolução, que se desenvolveu paralelamente à ideia de cidadania. A restrição do acesso à educação contribuía para a manutenção da hierarquia social da época. No Brasil, foi durante a primeira República que se fortaleceu a ideia de um sistema educacional desvinculado da igreja. Antes desta época eram as instituições religiosas que se encarregavam de alfabetizar e educar uma pequena parcela da população. Mas esta ampliação do acesso não significou necessariamente uma abertura da prática pedagógica e uma flexibilização das práticas de ensino: o saber continuou sendo tratado como algo monolítico e inabalável, exterior ao aluno. Ainda hoje esta visão permeia as instituições de ensino, não só na prática pedagógica como também na própria disposição do espaço escolar.

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Para analisar a evolução da arquitetura escolar é necessário

estabelecer uma correspondência com a visão de educação dominante na época em que determinada escola foi construída. Entretanto existem inúmeras correntes pedagógicas, cada uma com suas particularidades e seus métodos, que implicariam em conformações do espaço diferentes. Mas, se tratando de educação pública, é necessário frisar que a institucionalização do ensino pressupõe um tratamento universalizante da educação. Existe um currículo comum a ser seguido por todas as escolas da rede pública de educação, limitando as experiências pedagógicas divergentes. Há necessidade de se pensar o projeto pedagógico da escola, sem que este entre em conflito com as diretrizes gerais estabelecidas pelas instituições públicas encarregadas da gestão do sistema educacional. Essas diretrizes apresentam tanto um caráter pedagógico quanto político, na medida em que a educação pública se configura como um instrumento sob responsabilidade do estado. Desta forma, é importante considerar todo o contexto social e econômico da sociedade na época em que foram formuladas as diretrizes analisadas, para entender os valores contidos tanto na linha pedagógica dominante quanto na arquitetura escolar.

São diferenciados três momentos do pensamento pedagógico,

tanto brasileiro quanto mundial, para em seguida fazer o paralelo com tipologias arquitetônicas e características espaciais que reforçam este pensamento. Este recorte não retrata a diversidade de correntes educacionais, procurando sintetizá-las em categorias que exerceram uma influência significativa na arquitetura escolar. Apesar de existir uma ordem cronológica de surgimento destas correntes, não existe precisamente um final na vigência de cada uma, como veremos a seguir. É possível hoje 23


evidenciar cada uma dessas linhas na educação brasileira, misturando-se, influenciando uma a outra. O mesmo ocorre com o espaço que surge dessas visões da educação, com edifícios que não pertencem claramente a uma determinada época ou corrente. Mas é possível, através da seleção de elementos dominantes e estruturadores do espaço, reconhecer a lógica geradora desses ambientes.

Começa-se com a educação tradicional, que corresponde aos

primórdios da educação pública e a uma visão redutora de educação. Não há de fato um pensamento elaborado sobre o processo de aprendizagem, que se torna fundamentalmente repressor. A educação Técnico-científica traz como avanço a aplicação da ideia de cidadania ao ensino, dando mais espaço para um desenvolvimento integral da criança. Este projeto educacional se baseia numa visão positivista e na premissa da sociedade da época de que é necessário modernizar o país, e que a educação tem um papel ativo na transformação da sociedade. Enquanto processo de formação de mão de obra, é então necessário dar uma formação de qualidade. Já a educação como prática libertadora é centrada na visão da criança enquanto sujeito de sua realidade, indo além de uma visão individualizante de educação, e obrando para a emancipação dos alunos.

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EDUCAÇÃO TRADICIONAL 25


Quando se fala em educação tradicional, refere-se a uma deter-

minada forma de ensino que ocorreu em diversos lugares, em diversos momentos da história. De fato, pode-se considerar que ainda hoje muitas escolas mantém aspectos e características deste tipo de educação, tanto no currículo e na relação aluno-professor quanto no espaço físico da escola.

O que se entende neste trabalho por escola tradicional é na

verdade uma proposta pedagógica e um espaço educacional que reforça os valores ali contidos, indo além de um momento histórico específico. Trata-se de uma visão conteudista e bancária de educação, na qual o saber é considerado hermético. O professor seria como um guardião deste saber, encarregado de fazer os alunos entrarem em contato com os conteúdos. O processo de aprendizagem é essencialmente passivo e repressor, já que os alunos precisam aceitar o conteúdo inquestionável dos programas de ensino. Busca-se na escola tradicional formatar os alunos, padronizando o ensino e evitando comportamento subversivos. A escola tradicional é por essência repressiva e reprodutora de desigualdade, comprometida com a elitização dos alunos.

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O AMBIENTE ESCOLAR TRADICIONAL

O espaço da educação tradicional apresenta uma rigidez

comparável ao próprio sistema educativo que a gera. As edificações retratam o papel que a escola desempenha na sociedade, espacializando as relações que ali ocorrem. Durante os primórdios da escola enquanto instituição socialmente relevante e sustentada pelo estado, a arquitetura escolar adota traços monumentais característicos dos edifícios oficiais do início do século. A arquitetura neoclássica se impõe nos projetos educacionais, manifestando a vontade de afirmação da escola enquanto instituição importante e transmissora de valores. A escola como formadora de cidadãos se torna paralelamente conformadora do espaço urbano, e se configura como um marco na cidade.

A sociedade excludente do início do século produz edifícios

escolares que se diferenciam e afirmam sua superioridade sobre o entorno, mantendo-se herméticos e fechados. O edifício se impõe e não admite nenhuma permeabilidade aos fluxos do bairro, se configurando como um objeto na e não com a cidade. A escola se coloca como um espaço diferente, desvinculado do urbano, visando criar um ambiente institucional descomprometido com as particularidades de cada local. Há nesse sentido uma negação do entorno, evidenciada pela presença impositiva da edificação escolar. Esta não se deixa conformar pelas relações da malha urbana na qual se insere, gerando um espaço desconectado da cidade. Cria-se um “bolha”, um ambiente artificialmente cortado de sua realidade espacial.

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A adoção deste partido reflete um tipo de visão da escola enquanto

instituição. Não há dentro desta perspectiva possibilidade de mudança, de adaptação da prática educacional. A repressão da escola tradicional se expressa no caráter impositivo da inserção urbana das escolas, que continua sendo até hoje uma característica marcante das escolas públicas. A maioria é separada do entorno por muros altos, tirando qualquer visão externa, e uma conformação de espaço que não dialoga com o resto da cidade. Este ambiente de reclusão limita a implicação da escola no espaço urbano enquanto elemento transformador, e traduz a negação do papel sociabilizador da escola, que deixa de ser um espaço público.

A disposição das salas de aula, em fileiras

repetitivas ordenadas por longos corredores, muitas vezes ao redor de um pátio central que constitui o único espaço livre, apresenta uma correlação marcante com o espaço carcerário ou militar. A unifuncionalidade dos ambientes é característica desta visão de educação que vê o exercício intelectual como essência do processo pedagógico, e que deve consequentemente ser separado de atividades que atrapalhariam este processo. Forma-se uma polaridade entre o espaço de sala de aula e do recreio, causada por uma atribuição indevida de funções para cada um desses ambientes.

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O que deveria estruturar o espaço escolar tem como efeito a frag-

mentação do processo de aprendizagem, impedindo que atividade lúdicas reforçam o processo formal de ensino. Não há espaço para brincadeira na sala de aula nem de recolhimento no pátio do recreio, e a criança é forçada a obedecer a um ritmo mecânico de aprendizagem, como se fosse possível e desejável controlar os alunos sem envolvê-los no processo. A rigidez da disposição do espaço provém do caráter repressor da escola. A questão da supervisão dos alunos era (e ainda é) um aspecto visto como fundamental pelo corpo docente. Nesta perspectiva é fundamental manter o controle dos movimentos dos alunos, evitando brincadeiras e atividades que fujam do olhar dos professores.

As salas de aula traduzem uma relação não dialógica entre

aluno e docente, com os alunos sentados lado a lado, de frente para um professor que dá as costas para o quadro negro. Esta disposição não deixa espaço para dinâmicas diferenciadas e fortalecem a posição hierárquica do professor e o caráter unilateral da transmissão do conhecimento, configurando a típica visão de “educação bancária” citada por Freire. A ausência de outro tipo de espaço de aprendizado, como laboratórios, teatro ou outro tipo de sala, revela uma concepção redutora do ensino. O ensino não convencional, que vai além do aspecto meramente intelectual, irá enfrentar problemas de adequação ao espaço escolar.

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Em muitos aspectos, pode-se dizer que a maioria dos ambientes

escolares atuais se alinha com esta visão de educação. Escolas mais antigas que não foram modificadas ou projetos novos sem qualidade oferecem um espaço que dificilmente se adapta a mudanças de currículo e a acréscimos no programa do edifício.

Ilustração de Villemard de 1910, retratando sua visão do que seria educação no ano 2000: o conhecimento absorvido mecanicamente pelos alunos, sem nenhum esforço, nenhum trabalho cognitivo.

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EDUCAÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA 31


EDUCAÇÃO COMO EXPERIÊNCIA

A partir do final do século XIX, a revolução industrial traz grandes

transformações que vêm se anunciando desde a época do iluminismo. A razão começa a se impor como forma hegemônica de interpretar e atuar sobre a realidade. O processo de modernização se acelera de forma exponencial com o advento da era da máquina e da larga escala. O grande entusiasmo com a indústria enquanto solução para os mais diversos problemas da sociedade transforma a mudança de modo de produção em um paradigma de civilização. O pensamento científico e o positivismo se tornam fundamentos das ciências exatas e humanas, e influenciam de forma marcada a arquitetura. Nasce paralelamente a ideia do acesso público e gratuito à educação. A escola se coloca como uma instituição neutra responsável pela ascensão social dos cidadãos, independente da origem de classe (NOGUEIRA, 2002).

Entre as diversas correntes que podem ser consideradas

“modernas”, algumas tiveram um cuidado especial na concepção dos ambientes de ensino, como o movimento da Escola Nova. Influenciado pelo pensamento do norte americano John Dewey, que no início do século XX estabeleceu as bases para uma educação progressista e pragmática, baseada em ideias positivistas. Segundo Dewey, a educação corresponderia à “reconstrução da experiência”, e não ocorreria separada das experiências sociais reais. A escola é vista não como parte da sociedade, mas como uma sociedade em si na qual estariam presentes todas as relações do mundo externo (CAMPOS e SHIROMA, 1999). Transformar a escola levaria, 32


segundo esta visão, a uma transformação da sociedade, ideia presente ainda hoje em muitos discursos sobre educação. “Afinal, as crianças não estão, num dado momento, sendo preparadas para a vida e, em outro, vivendo” (DEWEY, apud Ramalho, 2003)

Na Escola Nova, o processo de aprendizado ocorre no diálogo

entre teoria e prática, em que as ideias precisam ser comprovadas para realmente serem incorporadas. Confrontar as crianças com situações reais proporciona um aprendizado mais rico e completo, nascendo a preocupação com o desenvolvimento integral da criança. O crescimento precisa ser visto sob diversos aspectos, e não só o intelectual. Crítico do ensino tradicional, Dewey preconiza uma educação que integre diversas atividades para promover um crescimento tanto intelectual quanto físico e emocional. A problematização está no centro de sua pedagogia, na medida em que a busca de soluções para determinadas situações levaria ao despertar do interesse da criança e de suas capacidades de enfrentar problemas reais. Esses estudos representam um grande avanço em relação à educação tradicional, dando mais liberdade para a criança desenvolver seu próprio ritmo e enriquecendo o processo de aprendizagem com o contato com a prática e com o mundo, e irão embasar as teorias de educação como prática de liberdade.

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EDUCAÇÃO E INCLUSÃO NO CICLO PRODUTIVO

No Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova , escrito no Brasil

em 1932 por diversos educadores e liderado por Anísio Teixeira (aluno de Dewey), aparece uma visão semelhante da educação. Acrescentam-se importantes premissas de cunho social, adaptando o discurso à realidade brasileira de então. Em um contexto de modernização do país, a educação aparece como forma de inclusão da população na máquina produtiva. Critica-se a escola tradicional não só em função de métodos pedagógicos ultrapassados, mas também por causa do seu caráter excludente. O acesso universal à educação se torna um dos eixos do movimento, que confere a escola uma missão civilizatória. Procura-se, através da democratização do acesso ao ensino, formar cidadãos capacitados para ingressar numa sociedade que se industrializa.

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A questão da empregabilidade e da inclusão dos cidadãos no

ciclo produtivo é um objetivo central, e melhorar o acesso e a qualidade da escola pública é uma forma de modernizar o país. A educação nova procura formar cidadãos que participem ativamente da sociedade industrial, contribuindo espontaneamente ao bem estar coletivo independente da origem de classe. A sociedade maquinista é aceita como paradigma civilizatório, o que marca um alinhamento ao pensamento hegemônico da época. Para ingressar na modernidade é preciso adotar uma postura positivista, definir a noção de progresso como meta e alinhar o projeto de educação nacional a esta perspectiva, como aparece de forma clara no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova: A escola socializada, reconstituída sobre a base da atividade e da produção, em que se considera o trabalho como a melhor maneira de estudar a realidade em geral (aquisição ativa da cultura) e a melhor maneira de estudar o trabalho em si mesmo, como fundamento da sociedade humana, se organizou para remontar a corrente e restabelecer, entre os homens, o espírito de disciplina, solidariedade e cooperação, por uma profunda obra social que ultrapassa largamente o quadro estreito dos interesses de classes. (Manifesto dos pioneiros da educação nova, 1932)

O mérito tem um papel importante, considerado legítimo definidor

da posição hierárquica de cada indivíduo. A ideia é que, com uma educação acessível para todos seja possível caminhar na direção de uma ordem social igualitária. A escola adquire um papel redentor, onde se formariam cidadãos moralmente, culturalmente e socialmente mais preparados. O trabalho é visto não só como meio da educação (educa-se pelo trabalho), mas também como fim (educa-se para o trabalho). Nesta perspectiva, a educação integral oferece um quadro muito mais completo de aprendizado do que a educação tradicional. Através do contato com atividades práticas, 35


a criança seria capaz de desenvolver a iniciativa e o interesse desejáveis na sua futura vida profissional. A escola está inserida numa relação recíproca com a sociedade: de um lado, as premissas educativas são definidas pelo contexto de industrialização, e de outro a educação alimenta o ciclo produtivo. Pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estágio da educação brasileira representa uma retomada dos ideais dos manifestos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o tempo presente. (Fernando Haddad, atual ministro da educação)

O sistema educacional brasileiro atual se alinha com a visão escol-

anovista, como reconhece o atual ministro da educação. Mas é essencial identificar os pontos que precisam ser atualizados e revistos, para poder dar respostas concretas a problemas atuais.

O entusiasmo com a industrialização e o progresso científico

precisa hoje ser considerado sob outro prisma. Diante de um quadro cada vez mais ameaçador de instabilidade ambiental, com catástrofes periódicas e de amplitude mundial, é fundamental rever o modelo atual de desenvolvimento, admitindo suas falhas e limitações. O problema da inviabilidade ambiental da civilização ocidental, cada vez mais evidente, gera uma necessidade urgente de rever os princípios geradores do atual modo de produção. Nesse sentido é vital rever os valores contidos na escola de hoje e nas políticas educacionais vigentes, principalmente quando essas se espelham em visões de outra época que contribuíram com a situação atual de relação conflituosa entre homem e natureza. No Manifesto dos Pioneiros da Educação encontram-se passagens que traduzem a fé na ciência e o papel da natureza na sociedade: 36


Todo o sistema educacional, lançado em bases científicas, se organizou aí, para alargar e fortificar tanto o espírito do trabalho em comum, de colaboração e solidariedade social, como o domínio sobre a vida e sobre a natureza, pelo desenvolvimento do espírito experimental e da disciplina científica, com que o homem, criando e desenvolvendo “o meio artificial”, consegue dominar com ele, “o mundo natural”, que lhe é hostil, subordinando-o às suas necessidades e aspirações. (Manifesto dos pioneiros da educação nova, 1932, p. 27)

A ideia de dominação da natureza está relacionada principal-

mente com um determinado modelo de desenvolvimento, que a escola reproduz. O alinhamento da técnica e da ciência com um projeto de sociedade industrial transforma a educação em um instrumento valioso para o sistema, um vetor de desenvolvimento que qualifica a população para a produção. Considerando a atual necessidade de diminuição do impacto ambiental da sociedade como um todo e de encontrar novas soluções para problemas gerados por uma determinada mentalidade, é preciso rever o papel da educação na sociedade e do espaço escolar. De fato, se a civilização romper um dia, na imensidade de nosso território e da natureza tropical, em que tanto as distâncias, como “os sóis ardentes, as chuvas torrenciais, as vegetações excessivas e a fauna pululante” são antes inimigos que aliados, não será senão com a aplicação incessante e sistemática das descobertas da ciência e da técnica, que, aumentando a eficiência humana e permitindo a utilização cada vez maior das energias naturais, dilatam constantemente a perspectiva de suas possibilidades. (Manifesto dos pioneiros da educação nova, 1932,p. 27)

Considerando a crescente instabilidade econômico-financeira e

ecológica global, é no mínimo temerário educar para inserir neste mesmo sistema. O argumento da empregabilidade se torna frágil diante da volatilidade da economia mundial, como atesta o aumento do desemprego entre os cidadãos mais qualificados. A atual situação de crise do sistema 37


financeiro mundial reforça o sentimento de insegurança e enfraquece o discurso desenvolvimentista que reinou durante o século XX. Até que ponto é possível pensar em respeitar o meio ambiente e formar para o trabalho tomando como ponto de partida o modelo industrial de produção, responsável por diversos desequilíbrios? É preciso educar no sentido de formar cidadãos capazes de encontrar soluções pertinentes para a sociedade, e não impor modelos predefinidos que já acusam suas limitações.

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O AMBIENTE ESCOLAR TÉCNICO-CIENTÍFICO

A pedagogia escolanovista manteve uma estreita relação com

a arquitetura moderna, principalmente no Brasil. Na Escola Parque em Salvador, Anísio Teixeira percebeu a importância de relacionar os dois campos. Observa-se uma convergência entre os valores do pensamento pedagógico da época com a arquitetura moderna, preocupada em explorar as possibilidades construtivas das novas tecnologias industriais. Um dos grandes avanços em termos de arquitetura escolar é a inclusão de novos espaços dedicados à outros tipos de atividades. A visão pragmatista de educação integral, não limitada ao aspecto intelectual, ressalta a importância de ambientes dedicados ao esporte, às artes, ao trabalho, marcando um enorme avanço na concepção arquitetônica de escolas como o CIEPs (Centro Integrado de Educação Pública) no Rio de Janeiro e os CEUs (Centro Educacional Unificado) em São Paulo.

Do ponto de vista simbólico, esses edifícios se inserem no bairro

como marcos referenciais importantes que se destacam na paisagem urbana. A imponência e monumentalidade é interpretada por alguns como estratégia política, facilitando a associação do empreendimento com determinado governo.

A importância da prática e do trabalho na pedagogia escolano-

vista leva ao questionamento da sala de aula como ambiente único de aprendizagem. Já que não se pode limitar o ensino à atividade simplesmente intelectual, também não se pode limitar o espaço de ensino à sala

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de aula, ambiente por excelência da pedagogia formal. Surge então naturalmente a demanda por espaços diferenciados, mais amplos, que possam se adequar a atividades que não sejam aulas tradicionais. O despertar do interesse da criança é diretamente influenciado pela experiência espacial da escola. Pensar de forma coerente o ensino integral implica em acrescentar novos equipamentos que possibilitem outras atividades, extra-curriculares, em torno de um aprendizado não mais unicamente intelectual.

A presença de piscinas, de quadras cobertas, de bibliotecas e

espaços de estar qualificados acrescentam uma dimensão mais humana à escola, reforçando uma proposta pedagógica mais completa. Entretanto, a visão tecnicista da educação ainda não consegue romper com a fragmentação do espaço escolar. Ainda persiste a polaridade entre o espaço da atividade intelectual formal e as atividades não formais, dificultando a apropriação do complexo escolar pelos alunos.

As salas de aula são dispostas em filas, ocupando vários andares

por conta da grande dimensão dessas escolas, que atesta da visão massificadora de educação. Há uma semelhança significativa do edifício escolar técnico científico com a arquitetura industrial, não só pela tecnologia empregada como pela organização do espaço, repetitivo, à imagem de uma linha de produção. A universalização do ensino como forma de inclusão de mão de obra no ciclo produtivo é perceptível não só na proposta pedagógica escolanovista, mas também nos edifícios que o movimento criou.

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EDUCAÇÃO LIBERTADORA 41


A ESCOLA COMO REPRODUTORA DE DESIGUALDADE

Como vimos, a ideia de ensino público e gratuito nasce não só de

uma ideia universalizante, mas também da necessidade de produzir mão de obra para o sistema produtivo em expansão. Seria possível para os alunos, independente de suas origens de classe, competir em pé de igualdade para acessar às posições socialmente mais elevadas. Entretanto, analisando com mais atenção os resultados deste sistema, constata-se que o que ocorre na realidade é radicalmente diferente. Em A reprodução, escrito por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron e publicado em 1970, os autores desvendam o funcionamento de um sistema de ensino reprodutor de desigualdade.

A escola, ao invés de facilitar a ascensão social em função da

única capacidade dos alunos, fortalece a desigualdade ao reforçar as diferenças. Para Bourdieu, educação é dominação simbólica, e a escola é uma instituição de reprodução da hierarquia social. Os valores ensinados correspondem aos da cultura dominante, o que gera um processo de exclusão dos alunos que não atendem a esses requisitos.

Os hábitos e comportamentos incentivados na escola corre-

spondem a um determinado perfil de aluno, dócil e obediente. A relação entre aluno e professor se dá mais no campo da coerção e do controle, reforçando a estrutura hierárquica na sala de aula. Essa relação unilateral, “bancária” e dominadora, corresponde a um processo de internalização da estrutura social no aluno. O sucesso escolar depende na verdade do alinha-

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mento com os valores da escola mais do que com a capacidade do aluno, criando um ambiente de fortalecimento da ordem social vigente. Cria-se um pacto implícito entre o sistema de ensino e as classes dominantes, que conferem a este mesmo sistema a capacidade de validar determinados valores e legitimar seus privilégios. Si l’école détient à la fois une fonction technique de production et d’attestation des capacités et une fonction sociale de conservation et de consécration du pouvoir et des privilèges, on comprend que les sociétés modernes fournissent au système d’enseignement des occasions multipliées d’exercer son pouvoir de transmuer des avantages sociaux en avantages scolaires, eux-mêmes reconvertibles en avantages sociaux. (BOURDIEU, La Reproduction, p. 204)

A cultura não hegemônica dificilmente penetra na escola, que

define seu currículo e seus critérios de avaliação em função de parâmetros exógenos e culturalmente tendenciosos. A cultura popular e a realidade dos alunos mais desfavorecidos acaba tendo um papel secundário ou inexistente no cotidiano escolar. Quando se define o que é “saber”, o que é “cultura”, o que é valor, em função de modelos que não correspondem à realidade e à vida dos alunos, trata-se na verdade de um processo de reprodução da dominação simbólica que exclui visões de mundo diferentes da visão hegemônica. A teoria de Freire converge com a de Bourdieu no diagnóstico do sistema educacional enquanto reprodutor de desigualdade. Na verdade, o que pretendem os opressores “é transformar a mentalidade dos oprimidos e não a situação que os oprime”, e isto para que, melhor adaptando-os a esta situação, melhor os dominem. (FREIRE, Pedagogia do Oprimido, p.69)

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É importante lembrar que Bourdieu fala a partir da análise do

sistema educacional Francês, de escolas públicas e gratuitas nas quais estudam tanto os filhos dos operários quanto dos donos das empresas. Apesar deste quadro de igualdade, o processo de exclusão se perpetua dentro da própria sala de aula. Esta situação não foi alcançada no Brasil, na medida em que o projeto moderno de acesso universal à escola não foi atingido. Tem-se, no caso brasileiro, uma escola pública dedicada à educação das classes subalternas enquanto as classes dominantes beneficiam de acesso à educação particular, reforçando drasticamente o processo de exclusão.

O processo de segregação que Bourdieu observa dentro da sala

de aula ocorre no Brasil em outra escala, com escolas inteiras dedicadas à manutenção da ordem social. A função de mobilidade social da escola não chegou a se estabelecer de forma ampla no país. A escola pública no Brasil não é tanto uma instituição que esconde as relações de classe, como na França, mas que explicita as desigualdades. A reconhecida falta de investimento e a baixa qualidade do ensino público são uma forma de restringir ativamente e abertamente a ascensão social das camadas mais pobres da população. Entretanto, a escola se configura em ambos os casos como terreno de conflito social, o que deve ser considerado na análise do sistema educacional e na elaboração de alternativas.

A visão do ensino como instrumento de mobilidade social deve

ser ultrapassada, sendo a escola uma instituição inserida numa lógica maior. Uma sociedade não cria propositalmente sua própria negação, criando pelo contrário instrumentos de fortalecimento da lógica vigente. A escola não 44


é, por si só, geradora de mudança social. É impossível pensar na reformulação do sistema educacional sem considerar uma transformação social mais ampla, que modificasse qualitativamente a função do ensino para a sociedade.

A visão escolanovista de formação para o ciclo produtivo incen-

tiva o despertar de uma autonomia limitada, em que o aluno não é convidado a questionar sua própria realidade. Não há ruptura com a lógica produtivista centrada na acumulação de capital, que cria a exclusão que a escola pública e gratuita supostamente combate. O sistema de ensino retoma hoje a ideia moderna de universalização de uma visão quantitativa e produtivista da educação. Existe nesta concepção um claro avanço no sentido de universalizar a educação, valor ausente da visão tradicional do ensino, excludente e não-dialógico. Porém falta dar mais um passo, no sentido de incentivar uma educação crítica e problematizadora, comprometida com a emancipação dos alunos e não com a reprodução da sociedade.

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EDUCAÇÃO E MUDANÇA

Pensar uma educação libertadora implica na reconsideração

tanto do papel social ativo da escola quanto do passivo, indo além da visão limitada de escola como agente de mudança e também da escola como instrumento de projetos de reprodução da ordem social. A escola, enquanto terreno de conflito, também se configura como espaço de diálogo e de transitoriedade, um espaço onde pode ser construída uma alternativa. Educar é então uma ação política, que possibilita a explicitação das contradições da sociedade. Limitar às margens corretivas interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou não, o objetivo de uma transformação qualitativa. Do mesmo modo, contudo, procurar margens de reforma sistêmica na própria estrutura do sistema do capital é uma contradição em termos. É por isso que é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente. (MÉSZAROS, 2005, p.35)

Esta visão de educação é fundamentada em um princípio

contrário aos interesses da escola enquanto reprodutora de desigualdade, que é a ideia de transformação. Porém diante da instabilidade crescente da sociedade, este é um conceito de grande valor e com um potencial real de reorganização da realidade. A ideia de mudança é geralmente afastada, acusada de afetar a pretensa neutralidade do conhecimento, e explicita justamente o processo por trás da construção do discurso científico. Mas a conscientização da população possibilita na verdade uma reestruturação da ordem social, impulsionada pelo questionamento da hierarquia estabelecida e apontando para uma organização mais igualitária da sociedade. Essa 46


visão de educação se estende para além dos muros da escola, envolvendo a população como um todo.

Os indivíduos deixam de ser vistos enquanto entidades indepen-

dentes e competidoras, e passam a ser considerados como parte de uma rede que ganha força e coesão quando trabalhada no seu conjunto. A superação da opressão é um passo necessário ao diálogo e à criação de uma sociedade mais equilibrada, garantindo condições para que todos sejam atores da realidade, com poder de decisão e autoridade semelhantes. A divisão da sociedade em classes pressupõe que um grande contingente populacional seja mantido em condições de precariedade, o que leva a reconsiderar a definição de exclusão. Pode-se chamar de falsa marginalidade o processo que mantém em situação de carência populações que na verdade participam ativamente do processo produtivo, ocupando posições subalternas. Esta segregação garante a manutenção de uma ordem social exclusivista e centralizada, e é necessário pensar paralelamente uma reestruturação desta organização para mudar o papel da educação na sociedade. Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os transforma em “seres para o outro”. Sua solução, pois, não está em “integrar-se”, em “incorporar-se” a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se “seres para si”. (FREIRE, Pedagogia do Oprimido, p.70)

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O papel da educação é então permitir a leitura do mundo, trans-

formando seres humanos em sujeitos de sua própria realidade concreta. Não se trata mais de incluir no sistema produtivo, reforçando a lógica estabelecida, e sim em permitir que se construa outra realidade. É fundamental reconhecer as limitações da sociedade contemporânea e a incapacidade dos decisores de propor soluções voltadas para o interesse geral, necessitando então apontar para caminhos que incluam a população nos processos de decisão e de definição dos eixos gerais de organização social. 48


EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DE LIBERDADE

Ver a educação sob uma ótica mais libertária passa inevitavel-

mente pela crítica ao engessamento da prática pedagógica. Evitam-se as prescrições e os métodos predefinidos, buscando entrar em contato com o mundo do aluno. Partindo do princípio que é fundamental romper com uma concepção “bancária” de educação, em que o processo de ensinoaprendizagem ocorre de forma unilateral, adota-se o diálogo como ponto de partida da prática do ensino. Não há possibilidade de construção do sujeito em um ambiente de aprendizagem que nega a diversidade e recusa o diferente. Não há diálogo quando as aulas se desvinculam do cotidiano e da realidade dos alunos, tornando-se abstratas e sem interesse.

A teoria elaborada por Dewey de educação como experiência influ-

enciou diversos pensadores da educação libertadora como Célestin Freinet ou Paulo Freire. Ambos partem de uma visão pragmatista da educação, vinculando a aprendizagem à realidade e à experiência. O educador deixa de ser um veiculo do conhecimento e o principal ator do ensino, assim como o aluno não é visto simplesmente como o centro da educação. É a mediação entre os atores, a construção simultânea e recíproca do conhecimento que garante uma educação emancipadora. Não há fixação de um conteúdo e sim diálogo entre visões de mundo, fortalecendo o pensamento crítico através do incentivo à problematização.

Tanto o aluno quanto o professor são levados a estabelecer

terrenos de investigação e de mediação, cada um contribuindo com sua

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posição e sua herança cultural na reconstrução de uma realidade na escala do grupo. Não há demarcação de um limite entre o espaço de aprendizagem e o mundo real, e o ensino não se restringe à sala de aula, evidenciando a influencia do pensamento pragmatista na educação libertadora.

O trabalho exerce um papel pedagógico fundamental, princi-

palmente na visão de Dewey e de Freinet, não no sentido de direcionar para o mercado de trabalho mas enquanto atividade de socialização e de construção da autonomia. Os atores do processo são convidados a expandir a rede de ensino à suas vidas, seus cotidianos, trazendo questões pertinentes na escala local e fazendo leituras próprias de estruturas globais, de forma prática e com aplicação concreta de soluções.

As particularidades dos alunos e as realidades sócio-culturais

diversas nas quais se insere a escola não podem ser contempladas com uma única visão e prescrições a priori. O projeto de nivelamento dos alunos e de uniformização do sistema de ensino se tornaria desta forma opressivo e redutor. Mas se tratando de educação pública, com a ideia de universalização do acesso ao ensino, é necessário pensar em denominadores comuns e no diálogo não só dentro da sala de aula ou da própria escola e sim no estabelecimento de uma rede maior, em nível nacional e até além das fronteiras do país. As diretrizes nacionais de educação devem servir de base e não de restrição à prático do ensino nas escolas, possibilitando experiências sintonizadas com o espírito de cada lugar. A elaboração do currículo e a formação dos professores devem considerar tanto a totalidade quanto o local, se adaptando às particularidades de cada escola e comunidade. 50


O desafio de evitar sistematizações redutoras e de, ao mesmo

tempo, oferecer soluções pertinentes e universais para a educação não é pequeno. Um dos riscos da preocupação com o particular é o de cair em um relativismo que ofusca o projeto maior de construção de uma totalidade igualitária. A educação libertadora deve assumir o compromisso de descodificar a realidade como um todo, focando na transformação dos seres humanos em um sentido amplo.

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EDUCAÇÃO FORMAL, NÃO FORMAL E INFORMAL

Para ser emancipadora, a educação não pode se limitar ao

ensino formal e ao seu espaço tradicional. Não há possibilidade, por mais libertador que seja o método empregado, de envolver os alunos em um processo realmente problematizador se o formato das aulas e o espaço físico em que elas ocorrem não forem transformados. Envolver o aluno implica necessariamente em considerar sua realidade como um todo, evitando a fragmentação que caracteriza a escola de hoje. Tanto do ponto de vista pedagógico quanto do ponto de vista espacial, há uma desintegração do cotidiano do aluno, que é levado a assimilar conteúdos diversos não relacionados entre si em um ritmo frenético.

Estruturar o aprender passa pela integração das diversas formas

de assimilação de conhecimento. A educação não formal e a educação informal devem ser consideradas como formas pertinentes de ensino, não se limitando à práticas tradicionais. A visão de escola como bastião da educação formal precisa ser superada, para poder incluir outras formas de aprendizagem no ambiente escolar.

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A educação formal corresponde aos conteúdos programáticos básicos passados na escola. Como vimos anteriormente, limitar a prática do ensino a este aspecto da educação tem um efeito redutor e alienante, separando a criança de sua realidade concreta. A sala de aula tradicional é o espaço da educação formal por excelência.

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A educação não formal representa a aprendizagem que ocorre em ambientes com uma estrutura de ensino já elaborada e de forma intencional, fora da escola. Existe uma flexibilidade tanto no conteúdo transmitido quanto no formato e no espaço educacional, dependendo do grupo através do qual ocorre a aprendizagem (GOHN, 2006). A educação não formal ocorre no trabalho, em entidades comunitárias, nos partidos políticos, na transmissão da cultura popular, que oferecem um acesso ao conhecimento em formatos diferentes da educação formal. Os espaços onde ocorrem essas atividades são diversos e flexíveis, podem ser abertos ou fechados, construídos ou não construídos, em função das necessidades de cada atividade e do caráter de cada organização. Essa liberdade permite uma grande adaptabilidade do processo de aprendizagem, que se molda à situação e adquire características inseparáveis do local.

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A educação informal prescinde do elemento de intencionalidade que caracteriza a educação não formal. Trata-se neste caso da transmissão natural e espontânea de conhecimento, resultante do contato entre o ensinante e o aprendiz, sem que haja sistematização ou mesmo consciência do processo. A família, o meio social, o trabalho, o coletivo são vetores deste tipo de educação, mais abrangente do que as outras modalidades por ocorrer de forma constante, dificilmente controlável, durante os processos de socialização em geral (GOHN, 2006). É desta forma que a maioria dos códigos sociais e culturais são transmitidos, inclusive nos espaços de educação formal e não formal. Não há neste caso um espaço específico para este tipo de aprendizagem, já que é a rede social que estabelece o quadro de educação informal. Entretanto, o contato com determinados grupos sociais ocorre em espaços específicos na sociedade. Os espaços de reunião da família, dos amigos ou dos colegas de trabalho apresentam características diferentes que correspondem a relações de caráter diversos. Não há uma relação tão determinante entre o ensino informal e o ambiente quanto no caso da educação formal e não formal, nas quais a dimensão espacial é diretamente solicitada na conformação das dinâmicas sociais. São os encontros que potencializam o processo de aprendizagem informal, e esses encontros são mediados pelo espaço

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Integrar essas formas de aprender significa projetar espaços

dedicados a cada uma delas, sem no entanto compartimentar o ambiente escolar. Uma das premissas do projeto é criar uma articulação coerente entre diversos tipos de aprendizagem, e entre os diferentes elementos do programa. O desafio reside em garantir a multiplicidade dos espaços e ao mesmo tempo a unicidade do ambiente escolar, evitando a fragmentação do espaço e consequentemente do processo de aprendizagem. A organização do ambiente escolar em torno da inclusão de diversos tipos de educação cria uma dinâmica recíproca de fortalecimento da proposta, tanto arquitetônica quanto pedagógica.

Incentivar a educação formal, não formal e informal de forma

articulada se traduz por:

Inserir socialmente a escola na comunidade, dialogando com a dinâmica local e oferecendo um espaço de cidadania voltado para a comunidade. A multi-funcionalidade e a flexibilidade dos ambientes deve permear o projeto como um todo, agregando ambientes dedicados a interação entre os alunos e o coletivo, através de atividades comunitárias e culturais (cursos profissionalizantes para pais de alunos, EJA) Articular essas atividades entre si em torno de um espaço escolar integrado que reforce a coerência do conjunto, apoiado por um projeto pedagógico elaborado de forma comunitária. As conexões e os percursos evitam a fragmentação do ambiente escolar e possibilitam um processo de aprendizagem integral. 56


Possibilitar a edição e a transformação dos espaços pelos usuários, tanto alunos quanto professores, incentivando a identificação com o local e a adequação do espaço à dinâmica social.

A rede educacional e de socialização se expande a toda a comu-

nidade, com a possibilidade de articular atividades com outras entidades e associações, sem que isso seja uma forma de desarticular o espaço da escola e desresponsabilizar a escola pelo atendimento à crianças.

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ESCOLA LIBERTADORA

O sucesso da proposta pedagógica não depende somente da

arquitetura escolar, mas esta constitui um componente essencial. Um espaço voltado para uma educação libertadora deve então apresentar características que se alinhem com os princípios desta educação, contendo no DNA arquitetônico seus valores e princípios.

De um ponto de vista urbano, a escola deve incluir variáveis

externas, deixando o contexto moldar relações espaciais do edifício. Acessos, áreas abertas, quadras de esporte devem ser localizadas em pontos estratégicos para servir não só aos alunos como também à comunidade (programa Escola Aberta). A volumetria deve surgir das relações do entorno, e ao mesmo tempo conformar o espaço urbano ao seu redor. Sob o aspecto simbólico, a escola mantém sua importância e seu papel de referência urbana para a comunidade. No entanto não há mais a opressão e imposição da monumentalidade do edifício, e sim uma integração dialógica que busca a identificação com o entorno. A implantação e a distribuição dos ambientes deve se articular em torno da diversidade das atividades. Percursos não uniformes e caminhos múltiplos levam a criança a se apropriar do lugar e se constituir enquanto sujeito, sem inviabilizar a prática do ensino e a organização das turmas. A diferença está na nova relação possível entre o espaço, o professor e os alunos, que têm a possibilidade de diversificar as atividades num mesmo ambiente sem desarticular a coerência pedagógica. Os espaços de estar e lazer (recreio, 58


ginásio) oferecem a possibilidade de recolhimento, lazer, estar e até ensino. A integração com o ambiente natural não é somente retórica, aproveitando-se as propriedades de melhoria do impacto ambiental (sombreamento, umidificação) e o potencial pedagógico de árvores, plantas, hortas. A sala de aula deixa de ser o espaço exclusivo da educação formal e do saber puramente intelectual. A integração das atividades atinge a escala do aluno, levando à implementação de ambientes com caráter diversos dentro da própria sala, facilitando-se o contato com o exterior. É necessário pensar o mobiliário e o layout no sentido de garantir espaços adaptados as necessidade do aluno de descanso, estar, lazer, estudo dentro do ambiente de aula, sem no entanto dificultar o trabalho do educador. Pelo contrário, um ambiente que possa suprir as necessidades das crianças pode se tornar mais fácil de gerenciar e oferecer oportunidades de inovação na prática do ensino, com uma organização flexível e adaptável que facilite a apropriação do ambiente pelos alunos e professores.

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60


EDUCAÇÃO INTEGRAL 61


Atualmente, os planos de educação elaborados tanto pelo governo

federal, estadual e municipal quanto por organizações internacionais como a UNESCO retomam alguns valores da escola nova. A questão da universalização do ensino básico e da educação integral estão no centro da pauta, vinculado ao conceito de empregabilidade. A ideia é ampliar a rede de atendimento do sistema educacional e incluir a população no ciclo produtivo, ideia já presente no debate educacional do início do século. Essas metas estão explicitadas no Plano Nacional de Educação 2011-2020, que estabelece como diretrizes: I - erradicação do analfabetismo; II - universalização do atendimento escolar; III - superação das desigualdades educacionais; IV - melhoria da qualidade do ensino; V - formação para o trabalho; VI - promoção da sustentabilidade sócio-ambiental; VII - promoção humanística, científica e tecnológica do País; VIII - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto; IX - valorização dos profissionais da educação; e

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X - difusão dos princípios da equidade, do respeito à diversidade e a gestão democrática da educação (Plano Nacional de Educação, 2010)

A questão da educação integral é central principalmente nos itens

2, 3 e 4, que dizem respeito à universalização do atendimento escolar, à superação das desigualdades educacionais e à melhoria da qualidade do ensino. O PNE é mais enfático ainda em relação ao tema específico da educação integral na meta nº6: Oferecer educação em tempo integral em 50% das escolas públicas de educação básica. (Plano Nacional de Educação, 2010)

A educação integral se configura como um objetivo concreto

a ser atingido pelas políticas educacionais, pertinente para a melhoria do sistema de ensino.

Dentro desta perspectiva, a educação integral aparece como

uma medida sócio-educativa que, na prática, não se estende a maioria da população. Ao pressupor a adesão de somente uma parcela dos alunos à programas de educação integral, é preciso estabelecer critérios de seleção, tanto dos alunos quanto das escolas. Esses critérios são, a exemplo do programa “mais educação” de incentivo ao ensino integral:

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A vulnerabilidade social do aluno A dificuldade de aprendizagem O baixo IDEB da escola A presença de espaços físicos existentes A parceria com Entidade Conveniadas A vontade política do corpo docente

A definição de educação integral ainda está em debate, e oscila

entre visões nem sempre conciliáveis. De um lado, alguns veem o ensino integral como mero contraturno, como um programa assistencialista para ocupar crianças em situação de vulnerabilidade social. A perspectiva adotada neste trabalho é de uma educação integral em tempo integral, que leva em consideração as múltiplas dimensões do processo de ensino e aprendizagem. É preciso ir além da concepção bancária de educação, em que somente é valorizado o desenvolvimento cognitivo dos alunos. É fundamental considerar o papel dos processos emocionais e sociais na educação das crianças, e diversas formas de ensino levando em consideração a multiplicidade das áreas envolvidas neste processo. Para superar a fragmentação do ensino é preciso atuar nas diversas esferas da educação. A integração precisa ser feita tanto do ponto de vista cognitivo quanto emocional e social, e para isso acontecer não se pode deixar de lado a dimensão espacial. 64


Do ponto de vista cognitivo: acabar com aulas muito curtas e desconexas entre si, promover um ensino que relacione as matérias entre si. Do ponto de vista emocional: identificação e familiarização com o ambiente escolar. Diminuir a distância que se cria entre o ambiente familiar e a escola, estreitar laços entre criança e escola. Do ponto de vista social: Favorecer a interação entre alunos de forma saudável, dando espaço preponderante para a colaboração, os trabalhos em grupo, a expressão de individualidades inseridas no coletivo mais amplo. Fortalecer a conscientização dos alunos enquanto sujeitos.

ESSAS RELAÇÕES SE DÃO NO ESPAÇO.

Existem diversas abordagens para a questão do espaço na

educação integral. A primeira, mais óbvia, é a constatação de que é necessário ampliar o espaço físico tradicional da escola para abrigar novas atividades, indo além das aulas convencionais e implementando dinâmicas mais ricas. Espaços dedicados à arte e à cultura (ateliers, bibliotecas, teatros, salas multimídias), espaços dedicados ao esporte (ginásios, quadras cobertas, piscinas, salas para dança ou luta), ao lazer (brinquedotecas, áreas de jogos) e a descoberta (laboratórios, salas de informática). Outra abordagem seria ir além da simples adição de novos ambientes, focando na coerência geral da proposta e não na justaposição de novos elementos. 65


Além da dimensão pedagógica existe um aspecto fundamental da educação integral em tempo integral, que é o da universalidade da educação pública. Não se trata aqui de promover uma visão assistencialista da educação integral. Ao contrário das políticas atuais, a educação integral não deve ser vista como ação afirmativa ou compensatória, e sim como uma medida universal e igualitária. Só assim será possível garantir o acesso democrático à uma educação de qualidade, independente de classe social de origem das crianças.

Além da dimensão pedagógica existe um aspecto fundamental

da educação integral em tempo integral, que é o da universalidade da educação pública. Para que a proposta funcione, é preciso repensar o papel da educação na sociedade e a rede educacional como um todo. Uma proposta pontual não têm o alcance necessário para atingir todas as variáveis envolvidas no processo de aprendizagem do alunos, que incluem o contexto familiar, sócio-cultural e econômico no qual estão inseridas. É necessário planejar integradamente a rede de serviços públicos para garantir um atendimento de qualidade que se sustente e cumpra sua função.

Não se trata aqui de promover uma visão assistencialista da

educação integral. Ao contrário das políticas atuais, a educação integral não deve ser considerada uma ação afirmativa ou compensatória. A perspectiva aqui adotada se alinha com os ideais que fundaram a escola pública: o acesso gratuito, de qualidade, laico, universal e democrático à educação. Este trabalho defende a ideia de escola integral como parte de uma rede maior de transformação social, um espaço de igualdade e diálogo no qual os alunos e a comunidade poderão se constituir como sujeitos de sua realidade. 66


ÁREA DE INTERVENÇÃO 67


QUADRO DA EDUCAÇÃO EM FLORIANÓPOLIS

A rede pública de ensino fundamental em Florianópolis atende

55.932 crianças, distribuídas em escolas municipais e estaduais. São 18.797 crianças na rede municipal, 33.937 na rede estadual e 3.198 na rede federal. Existe no entanto um projeto de municipalização do ensino fundamental, hoje sob principal responsabilidade do governo estadual, que explica o abandono e até fechamento de diversas escolas estaduais de ensino básico como as escolas fundamentais Otília Cruz na Coloninha e Celso Ramos no centro.

A municipalização do ensino infantil e fundamental no Brasil,

prevista pela LDB, nasce de um projeto descentralizador já evocado por Anísio Teixeira. A intenção é transferir a gestão para uma esfera mais próxima das escolas, responsabilizando as prefeituras pela educação até o ensino médio. Existem muitas críticas a esse processo de municipalização, por diversos motivos. A maioria não questiona os fundamentos desta diretriz definida há décadas, e sim sua efetivação e suas consequências práticas.

A municipalização do ensino público em Florianópolis ocorre de

fato em um contexto de desresponsabilização tanto por parte do governo do estado quanto da prefeitura municipal. Escolas sem manutenção são abandonadas pelo governo estadual sem que haja repasse de verba para o município. O governo municipal recusa então assumir a gestão dessas escolas, que necessitariam de grandes reformas, preferindo criar NEIs (Núcleos de Educação Infantil) a escolas de ensino fundamental. Além

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das duas escolas citadas anteriormente, que foram fechadas, existe um contexto de precarização de toda a rede estadual de ensino básico, consequência de uma política mal gerenciada e descomprometida com os interesses da população.

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Baía Norte

Oceano Atlântico

Baía Sul

Escola Municipal Escola Estadual

N

Escala Gráfica (km) 1

70

0

1

2

4


Baía Norte

Oceano Atlântico

Baía Sul

Entidade Conveniada

N

Escala Gráfica (km) 1

0

1

2

4

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EDUCAÇÃO INTEGRAL NO MUNICIPIO

Hoje a educação em tempo integral envolve cerca 4000 alunos em

Florianópolis, e funciona na escolas com atividades complementares sob a forma de projetos específicos: Bombeiro Mirim, Esporte na Escola, Nossa Rede Encanta, Educação Complementar. Existem no entanto diversas entidades conveniadas que complementam a atuação do estado. Essas entidades são em geral ONGs ou CECs (Centros de Educação Complementar), e apresentam princípios pedagógicos variáveis.

Muitas ONGs são vinculadas a instituições religiosas, e não

podem por definição se adequar aos princípios de laicidade da educação pública. Já os CECs surgem no início da década de 90, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Trata-se na verdade da reformulação do modelo de atendimento assistencialista e correcional das CEBEMs (Centro de Bem Estar do Menor), em que as crianças eram tratadas como potenciais infratores. Os CECs são implantados em áreas de carência sócio-econômica, mantendo a perspectiva preventiva das CEBEMs.

A existência dessas entidades e o repasse de dinheiro público

destinado à educação comprova a necessidade de atendimento em tempo integral dos alunos. O estado deveria, dentro de uma visão democrática, laica e universal de educação, se responsabilizar por esta demanda para garantir a qualidade e a coerência do conteúdo e do atendimento. O que se configura é um quadro de carência e de abandono da educação pública, que pode ser observado na distribuição espacial da rede de educação em

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Florianópolis. Enquanto a distribuição de escolas públicas de ensino fundamental segue a distribuição da população da cidade, espalhada pela ilha e com uma maior concentração na área central, a distribuição da entidades de contraturno é mais desigual.

Quantidade de Crianças por Setor Censitário de 0 a 70 de 71 a 150 de 151 a 441

Distribuição da população por Renda de 0 a 6 salários mínimos de 6 a 20 salários mínimos acima de 20 salários mínimos

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Analisando a situação da área central do município, nota-se que

a localização das entidades conveniadas se concentra nas proximidades de assentamentos informais. Essas regiões são também, segundo os dados do censo 2010, as áreas com maior concentração de crianças na faixa de 6 a 14 anos (faixa etária de atendimento do ensino fundamental). Ao invés de priorizar o atendimento e a qualidade da educação nessas áreas, o que se manifesta é o descaso.

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ESCOLHA DA AREA

Diante deste quadro de desresponsabilização e considerando a

necessidade de mudança na lógica do sistema educacional do país, escolhe-se uma área de intervenção em que um equipamento público de grande porte faria diferença. O complexo do Monte Cristo apresenta:

uma das maiores relação criança/vaga do município

situação de carência socioeconômica

forte presença de entidades conveniadas (11 no total, 4 vincu-

ladas a instituições religiosas e 1 CEC)

O complexo abriga 12.707 residentes, divididos em 9 comuni-

dades: Nossa Senhora da Glória, Santa Terezinha I e II, Monte Cristo, Chico Mendes, Promorar, Conjunto Habitacional Panorama, Novo Horizonte, e Nova Esperança. Cada uma dessas comunidades possui seus próprios representantes e associação de moradores, fundadas no início da década de 90, menos a do Monte Cristo, fundada em 1986. Em 2001 é fundada a CARMOCRIS (Conselho das Associações de Moradores da Região do Monte Cristo), que possibilita a articulação conjunta das associações em uma única entidade comunitária. (NUERNBERG, 2009)

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76


77


A comunidade Chico Mendes, parte do Complexo Monte Cristo, com a tipologia facilmente reconhecĂ­vel de suas unidades habitacionais

78


3

4 5

2

5

1

6

2

3

1.CARMOCRIS 2. Escola Pública 3. Creche 4.22° batalhão da P.M. 5.ONG 3. Posto de Saúde

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As comunidades são delimitadas de forma clara, principalmente

por causa dos relevos acidentados e das barreiras topográficas que se criam no bairro. Essa fragmentação do espaço urbano reduz a mobilidade e as conexões dentro do bairro, reforçando a divisão entre comunidades.

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O lar fabiano de CRisto é uma das principais entidades conveniadas do bairro, acolhendo 150 crianças durante o contraturno. Esta ONG é vinculada a um centro espírita e acolhe os filhos dos membros. Nota-se uma grande falta de infraestrutura para atividades educativas.

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A área apresenta também um histórico de violência relacionado

ao narcotráfico, criando-se um situação de conflito intensificada pela separação física das comunidades. À essa violência real se acrescenta a violência simbólica da presença dominadora do 22o batalhão da polícia militar, situado na cota mais alta da comunidade e dominando visualmente o Monte Cristo.

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A área de intervenção escolhida é o terreno do batalhão da

polícia militar, que será relocalizado ao lado. A escolha do terreno se dá principalmente pela sua localização no centro geográfico do complexo do Monte Cristo, possibilitando desta forma uma ampla integração de todas as comunidades. A escola pública integral substituirá a escola de ensino fundamental Pero Vaz de Caminha, situada ao lado. O aumento do espaço físico e da capacidade de acolhimento de alunos permitirá a melhoria da qualidade do ensino. A transposição das barreiras topográficas será uma das principais premissas do projeto, visando a criação de um espaço de referência para todas as comunidades do Monte Cristo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 84


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