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XXIII O Valor de um Nome
from Loie Fuller
XXIII
O Valor de um Nome
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Quando, no outono de 1892, apareci pela primeira vez no Folies-Bergère, eu não conhecia ninguém, absolutamente ninguém em Paris. Imaginem então a minha surpresa ao receber, numa noite, um cartão de visita de um dos espectadores, com estas palavras escritas a lápis: “Pois é, menina, estou tremendamente contente de ver que você acertou em cheio. Está todo mundo aqui, somos um bando – dois camarotes cheios –, e gostaríamos que você se juntasse a nós depois do espetáculo. Seu velho Pal.” O cartão levava um nome desconhecido para mim. Devia ser alguma brincadeira, ou então o mensageiro enganou-se de pessoa. Sem pensar mais no assunto, continuei a tirar a maquiagem. De repente, um homem irrompe no camarim. - Então, Mollie, por que você não responde à mensagem de um velho amigo? Mas, vendo-me sem maquiagem e com roupas normais, ele parou e exclamou: - Mas quem é você? Eu pensei que fosse a Mollie Fuller 127 ! Percebi enfim que ele me tomava por uma de suas velhas amigas. - Eu sei de quem você está falando – respondi –, mas não sou Mollie Fuller. Mollie Fuller é muito conhecida na América, onde ela imita as mi
127 Molly Fuller (1865?-1933), cujo verdadeiro nome é Polly Madden. Atriz e cantora norte-americana, ela tornou-se conhecida sobretudo com Peck’s bad boy (1884), The Twentieth Century Girl (1885), The Gold Bug (1896) e Aunt Hannah (1900). Ela tornou-se cega em 1917.
nhas danças. Nos confundem sempre, mas você pode ter certeza de que
não somos a mesma pessoa.
O homem era barbudo, alto, forte, de pele escura, elegante, com
algo estranho em um de seus olhos.
Jamais esquecerei do seu rosto quando ele me pediu desculpas.
Sem me convidar novamente a juntar-me ao seu “bando”, desapareceu
mais rápido do que havia entrado.
Encontrei-o muitas vezes depois disso, e ele sempre me cumpri
mentou com muito respeito. Certa vez, em um hotel em Londres, da mi
nha janela, que dava para o pátio, cheguei a assistir a um jantar – jantar como eu nunca havia visto antes – dado por esse mesmo senhor. Caruso 128
cantava. O pátio foi transformado em um lago, e o anfitrião e seus convidados jantaram em gôndolas. Da minha janela, eu observava a festa, e pensei naquela outra ceia para a qual havia sido involuntariamente convidada. O mundo é tão pequeno.
Não me tornei a Loïe Fuller sem ter passado, como dá para ima
ginar, por algumas pequenas aventuras. Eu interpretava o papel de Jack Sheppard na peça homônima 129 . Nossa companhia parou na Filadélfia.
Meu pai e minha mãe estavam comigo, e tomamos nossas refeições em uma pensão muito modesta. Anos mais tarde voltei como dançarina para a mesma cidade, e fui para um dos principais hotéis da cidade, só que se recusaram a receberme. Sem me dar realmente ao trabalho de saber a razão disso, fui para outro lugar. Mas voltei a pensar naquela deplorável recepção, e como não conseguia entender o motivo, resolvi ir até o hotel em questão e pedi para falar com o diretor. Ao me ver, ele ficou espantado:
128 Enrico Caruso (1873-1921). Tenor italiano. 129 Romance do escritor inglês William Harrison Ainsworth (1805-1882), publicado inicialmente em folhetim de 1839 a 1840 antes de ser um romance completo (em 1840); Jack Sheppard, um romance teve várias adaptações teatrais.
- Mas você não é Loïe Fuller! Assegurei-lhe que eu era, sem sombra de dúvidas, Loïe Fuller, e perguntei por que ele havia se recusado a me receber em seu hotel. Ele me contou a seguinte história: - Quando você interpretava Jack Sheppard, uma das senhoras do elenco hospedou-se aqui com o sr. Z. Um dia eles tiveram uma discussão tão forte que fui obrigado a lhes pedir para deixar o hotel. Essa senhora registrara-se com o nome de Loïe Fuller. Eu não tinha ideia de quem poderia ser, e tentava descobrir quando, no teatro, me trouxeram um cartão de um senhor que desejava me ver. O nome era completamente desconhecido para mim. Mas esse homem talvez tivesse sido enviado por um amigo, e por isso eu o recebi. Um homem alto entrou, e, muito surpreso, repetiu a afirmação do homem do hotel: - Mas você não é Loïe Fuller! Assegurei-lhe que sim. Ele havia conhecido a mesma Loïe Fuller do hotel; ela cantava no coro de Jack Sheppard, a peça em que eu interpretava o papel principal. Ele deseja vê-la na sua nova encarnação e reatar os laços de amizade. Quando lhe demonstrei o seu engano, ele mostrou-me a foto da pseudo Fuller. E, de fato, quando estávamos maquiadas para entrar em cena, havia uma ligeira semelhança.
Certa vez, fomos fazer algumas apresentações em Lyon. Ao chegar ao teatro, um dos meus eletricistas me disse: - A proprietária do hotel onde estou hospedado com meus colegas anda muito chateada. Ela disse que você ficou no hotel dela durante a sua última viagem a Lyon. Você ficou muito satisfeita ali e prometeu que voltaria, mas não foi o caso. Ela disse que não é nada simpático da sua parte mostrar-se tão arrogante sob o pretexto de que agora você se tornou famosa. Quem me conhece sabe que uma conduta assim não condiz comigo. Por isso fiquei muito surpresa. Eu era incapaz de me lembrar se já havia ficado no hotel que o eletricista mencionou. Pedi-lhe então para perguntar
em que período eu havia estado no hotel dessa senhora cujas reclamações ele acabara de me transmitir. No dia seguinte, ele me disse a data. Ora, naquela ocasião eu estava em Bucareste. Fiquei ainda mais perplexa. Pedi então ao eletricista para que continuasse a sua investigação e fizesse o seu melhor para levá-la a cabo. - A dona – disse-me depois – está certa de que era você. Ela viu você no teatro; é a mesma dança, e ela me pediu para lhe dizer mais uma vez que ela está “muito surpresa com a conduta da senhorita Fuller”. Você estava tão satisfeita em seu hotel, e também o cavalheiro que acompanhou você. Resolvi ir ao hotel para mostrar à proprietária que ela estava enganada. Ela então me mostrou a foto dessa “Loïe Fuller”: tratava-se da ex-mulher de um dos meus irmãos, que imita tudo o que faço, sempre à espreita de todas as minhas criações e me segue por toda parte, seja em Londres, Nova York, Paris ou Berlim.
Além desses raros equívocos que vieram ao meu conhecimento, quantos outros existem que desconheço? Nunca chego em uma cidade sem que Loïe Fuller não tenha estado lá antes de mim, e até mesmo em Paris – na feira de Neuilly! – vi anunciarem, em letras flamejantes: “Loïe Fuller – Danças luminosas.” E pude ver “a Loïe Fuller” dançar diante dos meus próprios olhos! Quando fui para a América do Sul, descobri que Loïe Fuller também tinha chegado lá antes de mim. O que muitas vezes me pergunto é que tipo de “imitações” podem fazer da minha vida privada essas senhoras tão desprovidas de escrúpulos. É por essa razão que, creiam-me, não sou eu a mulher que mais aprecia o valor de um nome. Só para lembrar, acrescento que a corista norte-americana de que falei há pouco veio a Paris, e que um belo dia o seu amante largou-a, deixando-a desamparada. Sozinha, sem amigos, sem um centavo e doente, ela procurou-me pedindo ajuda. Ajudei-a? Receio que sim!
Quando vemos na rua um cão morrendo de fome, damos-lhe comida, e o motivo não é para que ele não nos morda, ou para que ele nos seja grato; damos-lhe comida porque ele está com fome.