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XIX. Sardou e Kawakami

XIX

Sardou e Kawakami

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Quem é o autor das peças em que Sada Yacco atua? – perguntou-me um dia um amigo escritor. - Kawakami 110 , seu marido. - Verdade? Então ele devia fazer parte da Sociedade dos Autores 111 . E apresentamos a sua candidatura. No dia marcado, levei-o para a Sociedade dos Autores. Fiquei muito surpresa, e Kawakami não poderia ter ficado mais orgulhoso de ver que todos os membros da comissão haviam comparecido para recebê-lo. Fomos levados à sala do comitê, onde os senhores nos aguardavam, sentados ao redor de uma grande mesa. Sardou 112 , que a presidia, recebeu-nos com um discurso notável. Ele viu em Kawakami o primeiro artífice da união literária entre a França e o Japão. Felicitou calorosamente Kawakami por ser o primeiro diretor teatral que teve a coragem de trazer uma companhia para um país tão distante de sua terra natal e onde ninguém entendia uma palavra de japonês. Sardou fez uma salva de elogios a Kawakami, e acabou por chamá-lo de “caro colega”.

110 Otojirõ Kawakami (1864-1911). Ator japonês. 111 Société des Auteurs et Compositeurs Dramatiques: em português, Sociedade dos Autores e Compositores Dramáticos. 112 Victorien Sardou (1831-1908). Dramaturgo prolífico, suas peças foram encenadas em vários teatros: no Vaudeville, no Gymnase, no Porte Saint-Martin, no Gaieté e no Comédie-Française; ele escreveu Fédora, Théodora, La Tosca e La Sorcière para Sarah Bernhardt. Foi eleito para a Academia Francesa em 1877.

Depois disso, ele se sentou. Fez-se silêncio. Percebi que esperavam uma resposta de Kawakami. Mas ele não parecia de modo algum suspeitar que fora o tema para o discurso que acabava de terminar. Permaneceu tranquilamente sentado, e examinou, uma por uma, as pessoas ao redor. Percebi a necessidade de uma ação imediata. Alguém tinha que fazer algo. Nesse caso, não tinha escolha: eu é que devia intervir. Virando-me para Kawakami, perguntei, com mímicas: - Você entendeu? Ele balançou a cabeça de forma negativa. Então o sr. Sardou acrescentou: - Traduza para ele, senhorita Fuller, o que acaba de ser dito. Para eu traduzir? Bom, já que era preciso, com muita boa vontade expliquei, em poucas palavras e em inglês, a Kawakami – que, aliás, também não compreendia nada de inglês – que o discurso do sr. Sardou fora feito especialmente para ele, porque ele era um autor japonês, e os franceses ficaram muito satisfeitos com o fato de ele ter trazido a própria companhia japonesa para Paris, e que a Sociedade dos Autores tinha o enorme prazer de acolhê-lo entre os seus. Por último, expliquei a Kawakami, com a ajuda indispensável da mímica apropriada, que aquele era o momento para que ele se levantasse e dissesse algumas palavras em japonês. O essencial não era que aqueles senhores acreditassem que as palavras do sr. Sardou tivessem sido transmitidas? Kawakami levantou-se no mesmo instante e fez um discurso que parecia ter sido cuidadosamente arquitetado. A julgar pelo aspecto grave do orador e pela extensão da arenga, Kawakami deve ser um grande orador político. Quando terminou, voltou a sentar-se, ao passo que todos ali, de queixos caídos, olhavam para ele, admirados. Contudo, ninguém havia compreendido uma única palavra do que ele acabara de dizer. Nem eu, é claro. Seguiu-se um instante de silêncio desconfortável, quebrado pelo sr. Sardou: - O que foi que ele disse, senhorita Loïe? Ah, isso foi o cúmulo! Pois não havia motivo nenhum para que eu entendesse melhor a língua japonesa do que os senhores ali presentes.

Todavia, como me sentia um pouco responsável pelo que ocorria, e

para não causar qualquer decepção, enchi-me de coragem, levantei-me e comecei a fazer um discurso. Aqueles que me conhecem podem imaginar

como foi esse discurso! Foi em francês, mas garanto que era tão difícil de entender como o japonês de Kawakami. No entanto, consegui realçar as palavras: japonês, reconhecimento e orgulho; e fiz do meu melhor para

descrever a alegria de Kawakami em ter estabelecido uma ligação entre o mundo teatral dos dois países.

O meu discurso não passava de um pastiche ruim do que o sr.

Sardou havia dito e do que eu havia vagamente deduzido das intenções de Kawakami.

Tentei dizer o que Kawakami teria dito em meu lugar, e, com entu

siasmo e palavras sinceras, cheguei ao fim. Antes de sentar, afirmei: - Bem, senhores, isso foi o que ele disse.

O meu papel de intérprete que desconhece a língua tinha terminado.

Houve uma salva de aplausos, e a atmosfera um tanto tensa foi dis

sipada. A conversa tornou-se geral, e a sessão terminou com um grande êxito para Kawakami. O resultado dessa sessão foi que Kawakami encenou Pátria 113 , de

Sardou, no Japão. A peça fez um sucesso tão grande quanto os dramas de Shakespeare, cuja introdução no arquipélago japonês se deveu tam

bém a Kawakami. E, seja dito de passagem, ele encarna os personagens shakespearianos com tanta verdade que é conhecido no seu país como o “Antoine 114 japonês”.

Ele também introduziu nos teatros do seu país algumas modificações que resultaram em mudanças radicais na forma de interpretar. É costume no Japão começar uma peça às nove ou dez horas da manhã e fazê-la durar pelo menos até meia-noite. Almoça-se e janta-se no teatro mesmo durante os intervalos, que, é desnecessário dizer, são intermináveis.

113 Drama histórico em cinco atos e oito quadros escrito em 1869. A primeira apresentação ocorreu em 18 de março de 1869, em Paris, no teatro Porte Saint-Martin. 114 André Antoine (1858-1943). Ator, diretor, administrador e fundador do teatro Libre (1887-1894), realizador e crítico.

Kawakami mudou esse estado de coisas: as peças passaram a come

çar às seis e meia ou sete horas da noite e a terminar antes da meia-noite.

E como vocês acham que ele conseguiu impedir que as pessoas comessem nos intervalos? Essa foi a inovação mais exigente. Ele transformou os entreatos tão curtos que as pessoas não tinham tempo para ir até o buffet.

Foi uma maneira realmente inteligente para forçar o público a abrir

mão de seus hábitos. Em vez de apelar à razão das pessoas, Kawakami sim

plesmente tornou impossível para elas continuarem a fazer como antes.

Atualmente estão sendo construídos teatros europeus no Japão, a

fim de que os atores da Europa possam encenar suas peças ali. O público

nipônico está pronto para recebê-los com entusiasmo.

Isso tudo se deve a Kawakami e à simpática acolhida que recebeu

na Sociedade dos Autores. E não posso deixar de congratular-me, porque, afinal de contas, fui eu quem “traduziu” os discursos, selando assim, em

palavras, esse cordial entendimento.

Isso me fez lembrar de uma pequena história.

Foi no teatro Athénée, em 1893. Ensaiávamos Salomé, de Armand

Silvestre 115 e Gabriel Pierné 116 . Nos bastidores, encontrei um dia um ho

mem magro, com um enorme cachecol dando várias voltas em torno do pescoço e com uma cartola enterrada até as orelhas. Conversei com ele no meu francês impreciso de costume, e sem saber quem ele era. Durante a conversa, notei um buraco em seu sapato. Acho que ele percebeu a minha descoberta, pois disse: - Fiz esse buraco de propósito. Prefiro um buraco nos sapatos a uma dor no pé. Esse homem era Victorien Sardou.

Só mais uma palavrinha sobre os meus amigos japoneses. Kawakami tem um filho que tinha cinco anos quando o vi pela primeira vez. Ele

115 Armand Silvestre (1837-1901). Poeta, escritor e libretista francês. 116 Gabriel Pierné (1863-1937). Compositor, organista e maestro francês. De 1910 a 1932, dirigiu a Orquestra Colonne, fundada em 1873.

passava o tempo todo desenhando tudo o que estava ao seu redor. Notei em seus desenhos infantis a forma muito peculiar que ele tinha em representar os olhos das pessoas. Eram como bolas de bilhar esbugalhadas no rosto. Perguntei a Kawakami: - Você não acha que é uma maneira esquisita de desenhar os olhos? - Mas é que o olho do europeu é como o olho do peixe – respondeu o pai. Isso despertou em mim o desejo de conhecer um pouco mais as suas impressões sobre a nossa raça, e perguntei-lhe como pareciam, para o japonês, os europeus. - Todos os europeus – disse ele – se parecem com porcos. Alguns deles têm a aparência de porcos sujos, outros de porcos limpos. Mas todos se parecem com porcos. Eu nunca disse nada disso para o sr. Sardou...

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