TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
RUDIRAN MESSIAS
Tabus, perversões e outras catarses
Porto Alegre, 2005
Copyright © 2005 by Rudiran Messias Capa e projeto gráfico: Rudiran Messias, a partir de obras de Leonilson Impressão e acabamento: Organizações Nova Prova Coordenação: Simone Possani Schottfeldt Retrato do autor: Fernando Pires Revisão: Ana Marson e Gabriel Dall`Agnol As personagens e situações desta obra são meramente ficcionais; não se referem a pessoas ou fatos concretos, e sobre eles não emitem opinião. Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência.
Ficha Catalográfica M585t
Messias, Rudiran Tabus, perversões e outras catarses / Rudiran Messias. – Porto Alegre: Nova Prova, 2005. 178 p.; 14 x 21 cm. ISBN 85-89344-57-6 Vencedor do Primeiro Concurso Charles Kiefer de Livro de Contos, 2005. 1. Literatura brasileira – contos. I. Título. CDU 869.0(81)-34 CIP – Catalogação na fonte: Paula Pêgas de Lima CRB 10/1229
2005 Todos os direitos desta edição reservados à NOVA PROVA EDITORA e ao autor da obra. É proibida a reprodução total ou parcial sem prévia autorização.
Conseho Editorial Vilmar Schlottfeldt, Charles Kiefer, Flávio Possani e Marilene Conte Rua Santos Dumont, 1186 - CEP 90230-240 - Porto Alegre - RS Fone/Fax (51) 3346-5454 novaprova@nova prova.com.br
Prefácio
por Charles Kiefer
Idealizei este concurso, que resultou na vitória de Tabus, perversões e outras catarses, para valorizar o trabalho de meus inúmeros alunos e ex-alunos de oficinas literárias e, também, para colaborar na consolidação desse gênero tão esquivo e multifacetado que é o conto, mas não participei do julgamento. Deixei a tarefa, a mais difícil e espinhosa de todas, a uma escritora renomada, a um poeta e crítico literário dos maiores que já pisaram este solo e a um editor inquieto e criativo. Pela ordem, Valesca de Assis, Volnyr Santos e Roberto Schmitt-Prym. Aos três, a minha gratidão. Desde sempre, dediquei-me à história curta, por considerá-la a melhor representação simbólica da modernidade. Cada época gera a sua imago mundi — a poesia épica, a comédia e a tragédia na Antiguidade Clássica; o romance em prosa, o folhetim e o conto na Idade Moderna. Da literatura em prosa, o conto me parece o objeto literário que melhor radiografa o frenesi das máquinas, a rapidez dos transportes, as neuroses do homem atual. Se o Zeitgeist
existe, como o queriam os idealistas alemães, o conto é a impressão digital desse espírito do tempo. Nele podemos ler a pressa, a ansiedade, a patologia, a diversidade, a beleza e a feiúra dos tempos que correm. Já no título, Rudiran Messias confessa que não escreve para agradar às academias, ao bom-mocismo estético, à sociedade de moral ilibada. Pelo contrário, o autor, com toda a veemência de juventude, com toda a iconoclastia e cinismo da geração pós-moderna, escreve para chocar. Se os formalistas russos estavam certos, ao afirmar que um dos elementos de literariedade é a ostronenie, o estranhamento, Rudiran Messias fez um livro que perdurará, provando que toda boa literatura é transgressora. Embora não inove na forma, seus temas, num ambiente cultural pouco arejado como o nosso, darão o que falar, gerarão um saudável espanto. De certo modo, Rudiran continua o trabalho iniciado por Lízia Pessin Adam, com seu Alfonso e eu. Sobre ela pesa, em nosso meio social, um silêncio revelador. Mas o que se cala, o que se faz calar, é o que grita mais alto depois, em todas as épocas e lugares. A seu tempo, Nelson Rodrigues foi mal lido, mal compreendido, mas hoje é considerado o melhor intérprete da hipocrisia social da classe média brasileira. Rudiran, com talento e sinceridade, expõe os nossos tabus e transgressões, e gera a catarse inevitável, a purgação possível, a redenção purificadora. Nós não somos assim, suspiramos ao final da leitura, acacianamente. Charles Kiefer
“ Muitas vezes, enquanto trabalhava, tinha a sensação de ser o médium, não o criador: a sensação de um poder superior trabalhando através dele. Nunca fora um homem religioso e tentava afastar essa sensação, racionalizando; mas ela persistia, teimosamente. Um propósito estava se realizando através dele. Não podia dar-lhe um nome, mas seus limites eram muito mais amplos que os seus próprios.” Salman Rushdie
A primeira letra – peça de encaixe. E as letras seguintes. Uma a uma emendando-se, pondo-se em ordem caoticamente. Por tentativa e erro; movidas pela intuição; guiadas por um demônio vadio. Com a caligrafia miúda, o escriba compõe palavras, com elas cria frases e com as frases inventa histórias. Forma-se, assim, o grande quadro: uma visão parcial, emoldurada pela janela de seu apartamento no vigésimo quinto andar. Enquanto a vida quebra-cabeça segue seu curso lá embaixo. Automóveis rosnam diante do semáforo fechado. Buzinas apitam e berram alto, qual trombetas de um apocalipse iminente, somando-se ao uivo contínuo das sirenes. Motocicletas roncam, avançando o sinal vermelho. Ambulâncias e viaturas policiais tumultuam ainda mais o trânsito, que se engarrafa na avenida principal, lento e intermitente. Faróis de carros e motos acendem-se em um esforço coletivo para vencer a escuridão da noite, impedindo o dia de chegar a termo. Placas de trânsito e de publicidade se impõem, reflexivas e iluminadas, entre postes e prédios altos de todas as formas e tons de
cinza. Canos de descarga emitem a fumaça fétida e escura, o gás sulfuroso que preenche os espaços vazios, tornando o mundo um lugar ainda mais sufocante e opressivo. A hora do rush é um inferno dentro do inferno, onde a poluição – sonora, visual, aérea – se infunde sobre a metrópole em todos os sentidos, como entidade ubíqua. A imundície, o fedor e o barulho são o canto de um demônio pós-moderno sobre as almas de seus habitantes anônimos e invisíveis. Eis aqui os insanos e adaptados; os imigrantes e autóctones; os escravos e forros de um mundo repleto de tabus, perversões e outras catarses. Eis aqui o escritor marginal acima de tudo – o poeta dos excluídos; o porta-voz dos desesperados; o profeta das aflições humanas. A quem foi dado o nome de Mustaphá M. e a missão de registrar tudo do alto de seus domínios. Deste ponto em diante, não há escapatória – não existe saída possível além do papel em branco onde, armado de uma caneta esferográfica, ele escreve por sua liberdade e assina sua própria sentença. Depois de acender um cigarro; depois do primeiro gole de cachaça; depois de fechar os olhos e injetar na veia o veneno das ruas, ele dá início a seu trabalho. Preenche páginas com as histórias que se lêem nos rostos pálidos e nos corpos desconhecidos que se esbarram, alheios, tentando abrir seu caminho no meio da multidão. Enquanto ele continua a exercer seu ofício. Quem sabe para, um dia, unir essas folhas manchadas com o sangue viscoso que corre por suas veias, criando para si as asas de um Ícaro decadente. Ou de uma gárgula, talvez – asas que possam levá-lo, enfim, para além de seus limites.
Histórias de família e casamento Culpa l 15 Chama violeta ao meio-dia no quintal de minha casa Júnior l 27 Entre nós l 35 Noite de Natal l 39
l 21
Histórias de pregação e fé Êxodo XXI l 51 Borboletas pretas l 59 Segredos de confessionário, confissões de sacristia Urubus l 75 Sucubus ex machina l 81
Histórias de sexo e perversão Baunilha l 91 Complexo de Ripley l 99 Amor cachorro l 113 Ronda l 121 Te amo mais que a morte l
127
Histórias de vingança e morte O porco l 133 Extrema-unção l 139 Cabeça feita l 153 Inventário de madame K. l 159 Auto-retrato em sangüínea e carvão
l 167
l 69
Histórias de família e casamento Culpa Chama violeta ao meio-dia no quintal de minha casa Júnior Entre nós Noite de Natal
Culpa
Se alguém, porventura, perguntasse: “Quem é que tu amas mais? Teu marido ou tua filha?”, estaria ali uma mulher dividida, que amor de mãe e de esposa é devotado, transbordante, de explodir o coração em pedaços. “Uma pergunta dessas não tem resposta”, diria, aflita e ofegante, ao final de uma rua sem saída. Toda mulher que tem a força para criar um filho merece um marido que a ame. Que a faça mulher quando todo o seu corpo e alma dizem, no espelho, que ela é mãe: espírito abnegado; devotado a um amor dolorosamente puro; árvore condenada a defender seu fruto, sangrando de sua própria seiva quando preciso – pensa sozinha. Mas não diz nada. Não seria correto colocar as coisas dessa forma. O amor carnal não repõe ou justifica o amor de mãe, que esse não tem paga e não se esgota. Mas saberse amada por um homem é algo que lhe dá forças, põe algum sentido na sua vida. E a questão inexorável, obsedante? Diante do impasse inevitável, como uma bifurcação na estrada, ela tomaria TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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o caminho direito ou o esquerdo? O do braço ou o do peito? Talvez paralisasse diante da intimidação implícita: “Afinal, querida, você prefere ficar com seu seio ou com seu sexo? Escolha rápido, que a vida vai lhe atorar uma parte fora. Pense bem, heim... Os anos passam!” Realmente, passam rápido. E acontece que a vida, teia de possibilidades que se entrecruzam, resolveu tramarse assim, irônica. Tecendo as histórias de um homem, de uma mulher e de uma criança, toscamente, com nós e emendas, formando o impasse. Questão de vida ou morte diante dessa mulher, a quem a vida tinha ensinado a não ficar parada, a seguir sempre em frente. Maria Inês foi uma das pessoas mais doces que se poderia conhecer. Ingênua em sua essência. Dizia viver por teimosia, entre um riso e outro, depois de ter passado por diversas privações. Mania de persistir, fazendo faxina, tentando limpar o mundo obstinadamente, até que um dia ele parasse de girar e a acertasse em seu devido lugar. Um dia haveria de parar e perceber que já havia se firmado. Não haveria mais contas a pagar na venda ou carnês de lojas de eletrodomésticos. Ao longo dos anos, foi comprando tijolos, sacos de cimento, telhas, lajotas de cerâmica, uma a uma, que acumulou em um terreno invadido. Também acumulou filhos. O maior, já contando uns doze anos, era fruto do descuido, da ingenuidade de seu primeiro amor. Já a menina menor, ainda bebê, tinha sido feita de propósito: ela tinha achado justo gerar o filho do homem a quem mais amava – e que era casado. Na impossibilidade de tê-lo para si, teria dele um fruto. No outono de um ano que havia sido feliz, chegou a hora de assentar os tijolos. A comunidade se reuniu em 16 l RUDIRAN MESSIAS
mutirão para ajudar. Porque onde há pobreza, existe também a solidariedade. Vieram homens, mulheres e crianças para terminar o serviço, no meio de uma grande festa. E veio também alguém especial. Ele era pedreiro e era bonito, pois como diz a sabedoria popular, “Quem ama o feio, bonito lhe parece.” E não veio apenas com as ferramentas, mas também com a força do corpo e o apetite do sexo. Acabou ficando mais do que uma noite. Trouxe um filho de outro casamento e assumiu a paternidade dos outros pequenos, os quais tratava como se fossem seus. Levava o menino para passear, dava banho na menor, ajudava a trocar as fraldas. Durante algum tempo, tudo parecia certo. Dias iguais, um atrás do outro. Quando se vive para trabalhar, sem descanso, a vida parece uma longa caminhada em linha reta. Nas horas livres, povoaram ainda mais aquele pedaço de chão, por amor e por entretenimento: duas bocas a mais, ultrapassando os limites de suas posses. Mas, de uma forma geral, seguiam felizes. Até aquela tarde de sábado, quando a vida dobrou a esquina. De repente veio o revés, como um rasgo no calendário. Foi durante um temporal, com o quintal alagado, que o simples presságio a fez espiar pela fresta na porta do banheiro. O que, afinal, fazia com que ele sempre trancasse a porta para dar banho na menina? Agachou-se com dificuldade e pôde ver os dois, sem roupas, debaixo do chuveiro. Assim, de repente, via-se paralisada, diante de dois caminhos distintos, com o peso de uma casa a esmigalhar seu corpo, cada um dos tijolos a lhe soterrar. Para onde ir? O marido insistindo. Insistindo. “Vamos lá, chupa!” TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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Entre o corpo e a alma, o que uma pessoa deve escolher, quando quer sobreviver? A menina suplicando. “Eu não quero!” Um corpo sem alma é o quê? A garganta seca, muda. O homem insistindo mais, segurando a cabeça da criança entre suas mãos. Uma alma sem corpo, solta, livre. E um grito rouco, súbito. Murros desesperados na porta – aquilo não estava certo. Tempestade também dentro de casa – aquilo tinha que acabar. Mas Maria Inês não poderia escolher entre o marido e a filha. Ficar viva seria a aventura de abrir um novo caminho entre duas estradas antagônicas. Uma picada aberta a facão, ferindo a flora nativa. Caminho arriscado: só o tempo para dizer onde daria. Assim passaram meses e anos, todos iguais, sem descanso, até que o episódio ficasse no esquecimento. Era preciso entender, afinal. Os homens são assim mesmo, fracos para a carne. E ele havia prometido que não tentaria novamente sua filha. Um dia, porém, o velho pavio seria reaceso. Expulso de um emprego, o marido chegaria em casa com o olho roxo, depois de ter apertado os peitinhos da filha do patrão. Uma menina de quatorze anos. E tudo ficaria claro: o ciúme doentio que ele sempre demonstrava pela enteada, os conflitos que provocava ao proibi-la de sair, chamando a menina de prostituta, de dama da noite, de vadia, de vagabunda. Ela era apenas uma criança, pelo amor de Deus! Aquela tara que ele tinha. Aquela loucura por teti18 l RUDIRAN MESSIAS
nhas de menina, por pequenas vulvas sem pêlo. Seria culpa dela? Do corpo gordo e disforme no qual havia se transformado ao longo daqueles anos? De repente, o olhar do marido não era o mesmo. Onde estava aquele fogo? O olhar da filha também não era o mesmo. Era amargo e opaco, como o seu. Olhos de gente envelhecida pelo sofrimento, que se deleitavam ao ver o olho roxo do padrasto, cheios de uma alegria vingativa. Foi com esse mesmo olhar que, um dia, ela apareceu em casa com o namorado. E Maria Inês estremeceu, sentiu as pernas bambas. Mais um daqueles pressentimentos. O rapaz era conhecido na comunidade. Tinha a casa no ponto mais alto do morro, para onde subiam carros e motos de gente da cidade. Tonhão-pé-de-cabra, 26 anos, que havia assassinado o pastor e levava os meninos para o crime: “Pode deixar, madame, que a tua filha tá em boa mão. A gente se gosta, né, preciosa?” Ficou encarando desafiadoramente, enquanto Maria Inês se segurava com as mãos na pia para não cair. Com o coração apertado dentro do peito, a respiração presa. Agora não havia mais saída. Sua filha, criada com sacrifício, estava nas mãos daquele bandido. Antes tivesse conhecido outra pessoa. Podia até ser um zé-ninguém, que a levasse para bem longe, para muito longe, onde ela pudesse ser feliz. Todos poderiam ser felizes, assim. Mas não. Não havia saída possível. Já podia ver o fim do caminho que tinha aberto a facão. O fio estava cego. E Maria Inês, envelhecida, gorda, exausta, se via sozinha. Longe demais do marido ou da filha. Foi assim que aconteceu. Um dia, ao chegar do trabalho, viu Tonhão com uma arma apontada para seu marido. Sua filha estava atrás do TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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traficante, gritando: “Mata esse filho da puta. Acaba com a raça dele!” O bandido conduzindo seu marido para o final da rua, onde havia um muro de concreto, chutando e cutucando com o cano da submetralhadora. Gritando coisas horríveis. Largou as sacolas e correu para evitar o pior. Colocou-se diante da arma, protegendo o marido. Pedindo, gritando, implorando. Foi quando Tonhão perguntou, com a voz alterada: “Quem é que tu amas mais? Teu marido ou tua filha?” E diante do silêncio de Maria Inês, o assassino ficava mais exaltado: “Quem é que tu amas mais? Quem? Responde!” Maria Inês olhava para sua filha, para toda a família diante dela, enquanto servia de escudo para o marido. Então foi atingida pela saraivada de balas, que amor de mãe e de esposa é devotado, transbordante, de explodir o coração em pedaços.
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Chama violeta ao meio-dia no quintal de minha casa
“EU SOU a Chama Violeta que atua em mim e reluz EU SOU a Chama Violeta, só me submeto à Luz EU SOU a Chama Violeta, Poder Cósmico, farol EU SOU a Chama Violeta, radiante como um sol EU SOU a Luz de Deus a toda hora brilhando EU SOU o poder de Deus que a todos vai libertando.”
Desde o primeiro instante em que vi a Sacerdotisa Aline, percebi algo estranho em seu olhar. Algo que não se encaixava naquela forma excessivamente fervorosa de declamar as orações-decreto da Grande Fraternidade Branca. Lá estava ela, na sala iluminada, cercada de pôsteres enquadrados nos quais os Mestres Ascensos se pareciam com duendes ou elfos de alguma história em quadrinhos. Vestindo um manto violeta, ela se ofertava à chama que envolvia Jesus Cristo e Saint-Germain na figura à sua frente. E nos convidava a fazer o mesmo, repetindo com fervor: “Radiante espiral de Chama Violeta, Desce e brilha em mim agora! Radiante espiral de Chama Violeta, Liberta, liberta nesta hora!”
Egresso de diversas igrejas e filosofias iniciáticas, eu era um homem só e confuso, procurando desesperadamente por uma pessoa na qual pudesse me escorar, com meus TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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medos e inseguranças. Buscava um sentido maior para a vida, algo que respondesse minimamente aos meus questionamentos existenciais, àquele medo do futuro. Havia aprendido que, no novo aeon, muitos seriam os chamados, mas poucos os escolhidos. Jesus mesmo o disse. Pois foi justamente no seio daquela mulher que acabei encontrando a solução para minhas inquietações. Aline era do tipo que seduzia por esporte. Dessas que vira a cabeça dos homens à sua volta, capaz de ronronar feito gatinha para ter sucesso no seu jogo de gato-e-rato. Seu fogo ardente havia chamado a todos, mas escolhia apenas a mim. Fato que, para um homem da minha idade, era uma revelação teo-filosófica por si só. Ela se revelaria para mim única, se entregaria inteira – isso eu já sabia pelo olhar. Dessa forma, renunciei a todas as minhas convicções religiosas. Encaminhei um pedido de apostasia para a Arquidiocese, esqueci os ensinamentos de Allan Kardek e nunca mais fui aos encontros da Seicho-no-ie. Abri mão até mesmo dos ensinamentos do Rajneesh e das crenças holísticas para me submeter ao jugo daquela horda de lunáticos. Passei a rezar em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo e da Grande Mãe Eterna. Tudo para poder me ajoelhar no íntimo altar da cama de Aline – uma mulher de se comer de joelhos, verdade seja dita. Alguns meses depois de nos conhecermos, ela se mudou para minha casa na Zona Sul. Fez com que eu me livrasse do cachorro, que rosnava insistentemente sempre que ela se aproximava da casa. Pintou as paredes da sala de violeta, trocou minhas litografias e pinturas a óleo por imagens dos Mestres Ascensos. Mandou embora a faxineira que trabalhava para mim havia anos. Usou de sua persuasão para convencer-me a parar de comer carne, de beber 22 l RUDIRAN MESSIAS
e de fumar. Dominou-me com seu ciúme doentio, ao me privar do contato com os amigos. Mas eu estava feliz. Compartilhamos nossa vida e crenças durante quatro anos e oito meses, ao final dos quais algo terrível nos separaria. Ao longo daqueles anos, seu fervor religioso havia crescido até ultrapassar os limites do fanatismo. Até transcender seus próprios limites físicos e mentais. E os de minha paciência: com o aumento de sua fé, diminuía o fervor sexual. Primeiro ela deixou de permitir que completássemos o coito, depois rejeitou qualquer tipo de interação sexual e, por fim, me negava até o ósculo. Passamos a dormir em quartos separados, devido a seus sonhos intranqüilos. Acordou-me em uma noite sacudindo meu corpo de maneira violenta, depois de receber uma revelação do arcanjo Gabriel. “Eu devo me guardar para Saint-Germain” – dizia com um ar de pureza e lágrimas nos olhos. “Darei à luz o próximo messias.” Enviamos uma carta registrada para a Summit Lighthouse, no estado norte-americano de Montana, informando sobre a revelação. Mesmo sem receber resposta, Aline não esmoreceu em sua fé. Mandou pintar labaredas por todos os cantos da casa. Tingiu os cabelos de violeta e comprou lentes de contato da mesma cor, que exibia ostensivamente com os olhos arregalados. Achei melhor não contrariar. Os meses foram passando sem que ela ficasse grávida. Seu estado mental se deteriorava a olhos vistos, sem que eu soubesse como ajudá-la. Aquela situação toda me incomodava. Não apenas pela abstinência sexual – isso eu resolvia com as prostitutas e outras amantes –, mas pelo fato de ela estar se preparando para ter um filho com Saint-Germain, tendo sempre negado minha semente. Alegava não querer colocar filhos em um mundo “inexoravelmente condenaTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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do ao apocalipse”. Cheguei a considerar a separação – até mesmo José rejeitou Maria, certa vez. Se não o fiz, foi por temer as conseqüências kármicas de tal ato. Quem era eu para renegar a mãe do novo profeta? E se ela atentasse contra a própria vida? Um dia, porém, as preces de Aline foram atendidas – não da maneira que ela esperava, diga-se de passagem. Imagino eu, não sei. Era um sábado de manhã e eu resolvera assar um churrasco, mais com o intuito de agredi-la do que para saciar o meu instinto carnívoro reprimido. Pois, justo naquela manhã, Aline resolveu dar cabo de um formigueiro que havia no terreno dos fundos. Tomou emprestada a vasilha com querosene que eu havia usado para acender a brasa e, minutos depois, ouvi os gritos bestiais de sua garganta em desespero. Corri para acudi-la, mas cheguei tarde demais. Seu corpo estava todo queimado, contorcendo-se involuntariamente no fogo invisível do combustível sob o sol a pino. Os médicos dizem que ela morreu antes da ambulância chegar. Mas eu sei que isso não é verdade. Tenho tido sonhos perturbadores ultimamente. Neles, o corpo queimado de Aline volta à nossa casa para indagar sobre a cor da chama que a consumiu. Terrificado, respondo que era violeta. “Sim, meu amor. Era a Chama Violeta!” Minto para deixá-la feliz. E de seus olhos brotam espontaneamente algumas lágrimas cristalinas, enquanto a vejo declarar os versos: “EU SOU a Chama Violeta que atua em mim e reluz EU SOU a Chama Violeta, só me submeto à Luz EU SOU a Chama Violeta, Poder Cósmico, farol EU SOU a Chama Violeta, radiante como um sol EU SOU a Luz de Deus a toda hora brilhando EU SOU o poder de Deus que a todos vai libertando.”
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Acordo atormentado, com o eco da oração-decreto gelando minha alma. E lembrando-me de todas as vezes nas quais repeti em coro, como Aline fazia, com o fervor de um desejo: “Radiante espiral de Chama Violeta, Desce e brilha em mim agora! Radiante espiral de Chama Violeta, Liberta, liberta nesta hora!”
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Júnior
Já estava virando o quinto ou sexto martelinho de cachaça. Dessas bem baratas, que se vende em garrafa de plástico. Bebia para esquecer – coisa que sempre funcionava. Precisava esquecer das humilhações que lhe dirigiam os outros peões, chamando-lhe de corno. Esquecer do filho retardado, que cagava nas calças com aquele sorriso abobalhado, sujando de merda o chão de terra do casebre onde moravam. Esquecer as outras crianças, a mulher, a vida pobre que levavam, com muito trabalho e pouca felicidade. Se pudesse, deixava tudo para trás, fugia sem destino e sem saudades. Mas não conseguia fazê-lo. Havia algo dentro dele que o impedia. Medo, talvez. Então, a única coisa a fazer era entrar no bar, beber mais uma dose. E mais outra. Deixar-se amansar pelo álcool, vendo tudo girar ao seu redor, como mágica. Depois do primeiro copo, tudo em volta já parecia pequeno e sem importância. Com a cabeça zonza, sentia-se grande e forte, ao contrário do idiota que costumava ser, andando pelas ruas de cabeça baixa, sempre cordato e servil, a mando do patrão. Ficava calmo, sim. TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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Desde que o deixassem em paz. Uma voz estridente invadiu o bar, gritando por seu nome: “Josias!” A mulher se aproximou, enquanto tentava focalizá-la, reconhecê-la. “Que merda, Josias! Bêbado de novo. Seu pé-de-cana, ordinário! E a tua mulher em casa, parindo sozinha. Se eu não chegasse bem na hora, nem sei.” A irmã de Laura falava rápido demais. Quando abria a boca, parecia que nunca mais iria parar: “Pinguço! Manguaça! Cachaceiro!” Tentava articular as palavras, dar uma resposta para aquela gorda cretina. Afinal, quem ela pensava ser, berrando daquele jeito, puxando-o pelo braço? “Levanta, frouxo! Age feito homem! Vai conhecer o teu filho!” Saiu do bar aos empurrões, sentindo-se humilhado. Até os homens em volta da mesa de sinuca pararam para rir às suas custas. Mandou que enfiassem os tacos no cu, falando arrastado, de forma quase incompreensível, como costumam fazer os bêbados. Só conseguiu provocar mais risadas, enquanto era enxotado porta afora por aquela mulher enorme. A família de Josias vivia nas terras de um grande estancieiro. Era a seu mando que ele cuidava da boiada, dos cavalos, da estrebaria, de tudo, enquanto a mulher fazia todo o serviço doméstico na casa dos patrões, lavando, passando, cozinhando, esfregando o assoalho e as privadas em troca de um prato feito. Quando chegava a época, todos ajudavam no plantio e na colheita do trigo, com a foice em punho. Até as crianças ajudavam. Tudo para poderem continuar naquele pedaço de chão. Não conheciam outra forma de vida. Existir era levar adiante do jeito que dava, sem nunca pensar no futuro ou no que poderia ter sido. Voltou para casa cambaleando. A cunhada a empurrar-lhe ao longo dos trilhos do trem. “Caminha, filho da 28 l RUDIRAN MESSIAS
puta! E olha bem pra frente, que se o trem passar eu não te seguro.” Seus intestinos se revolvendo, como se fossem dar um nó ou explodir. “Nunca vi isso! Deixa o pastor ficar sabendo. Vou te entregar para ele. Ah, tu vai ver só!” Agachou-se sobre os trilhos para vomitar, em golfadas intermitentes, uma gosma pálida e sem consistência. “Vomita, filho do demo! Bota os buchos pra fora!” Sua vontade era de encher a mão na cara dela. Só não lhe dava o que merecia porque apanharia muito mais. Com seu tamanho e força, ela podia acabar com ele em uma só patada. Chegaram em casa ao anoitecer. Ela o arrastou até o tanque, que ficava do lado de fora, para lavar-lhe a cara com a água gelada da bica e sabão em barra. “Pena que não enchi essa merda para poder te segurar pelos cabelos e te afogar aqui mesmo.” Sua cabeça latejava. Sentia-se cansado, a ponto de não conseguir falar. Ela ainda berrava: “Pára de resmungar, senão eu pego aquele gato ali e bato na tua cabeça até ele parar de miar! Demônio.” Entrou na casa segurando-se para não cair. Fazia força para ficar de pé. Chegou até o quarto com os passos arrastados para ver Laura deitada na cama, com a criança nos braços e os pequenos em volta, olhando para o irmãozinho. “Vem ver o teu filho, Josias. Olha só pra ele. É menino-homem, que nem os outros.” Sentou-se na beirada da cama para olhar o bebê. Não saberia dizer o que sentiu naquele momento. “Vou dar o teu nome pra ele, Josias.” Olhava para ela e para o menino. Esse tinha saído diferente dos outros – a pele clara demais. “Quer pegar ele no colo?” Levantou-se da cama olhando para a mulher com desprezo. Parou na soleira da porta, olhando para ela mais uma vez. Depois saiu de casa. Precisava pensar, respirar um pouco. A gorda não esTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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tava mais em casa. Tinha saído, dizendo que iria chamar um médico. Percebendo que o caminho estava livre, resolveu sair também. Vagou sozinho pelas ruas desertas da Várzea, sem destino certo, lembrando de um dia em que ela chegara em casa tarde. Tinha sido um dia duro. Depois de amansar um tordilho, tinha carneado um boi para o churrasco na casa do patrão. Em dias assim, costumava ir até o bolicho para beber até cair, como agora. Já tinha avisado para ela chegar cedo. Não era certo mulher casada ficar na rua até tarde, como ela vinha fazendo. Dizia que havia muito trabalho na casa grande, que a senhora a segurava até tarde. Mas foi naquele dia que começaram a chamá-lo de corno. Estava com o orgulho ferido, cheio de desconfianças. Não acreditava mais nas desculpas da mulher. Desafivelava o cinto, gritando com ela. As crianças em volta, chorando, abraçando a mãe. E ela jurando, com lágrimas nos olhos, que nunca tinha se deitado com outro homem. Quanto mais ela jurava, menos ele podia acreditar. “Tu está fora de si, homem! Te acalma, pelo amor de Deus.” Disse a ela que não falasse em Deus, que ela era uma vadia. Por isso os outros peões o chamavam de corno manso. Mas ele não era manso, não. Estava ali com o cinto, pronto para bater nela até cansar. Acertou-lhe um golpe no lombo, atingindo um dos meninos que estava ao lado da mãe. Quando levantava a mão para dar o segundo golpe, ela se ajoelhou, implorando. “Não me bate, Josias, que eu tô de barriga. Tem um filho teu aqui dentro.” Então ele parou por um momento, comovido ao ver a mulher soluçando aos seus pés. As crianças, chorando alto. Cansado, olhava para todos eles, pensando que não queria mais uma boca em casa, para comer e chorar. Resolveu pegar o menino maior para descontar toda a sua fúria, e bateu no 30 l RUDIRAN MESSIAS
pobrezinho até que ele ficasse com o traseiro roxo. Tudo isso aconteceu tempos atrás, antes de ele saber da criança que iria nascer. Agora já havia nascido, mesmo. Mas ele duvidava que fosse filho seu. Era nele que Josias pensava quando caiu e adormeceu, encostado no mourão do cercado, e foi com ele que sonhou durante aquela noite aflita. O corpinho de boneco do menino, de pé diante dele, mandando-o carnear mais um boi, preparar a lavagem para os porcos. “Faça isso, faça aquilo”, mandava-lhe o menino com a voz de mando do patrão. No outro dia, já no meio da manhã, encontraram Josias na beira da estrada. O patrão estava a sua procura, reclamando de seu atraso. E, mesmo em péssimo estado, teve que acompanhá-lo até a cidade, dirigindo o jipe enquanto ouvia seus sermões e permanecia calado, com aquela história toda a lhe atormentar. Não tinha vontade de voltar para casa. Sabia que a história seria a mesma. Ele queria bater em Laura até marcar sua pele. Quem sabe, até que ela morresse. Mas aquela desgraçada não entregava os pontos. Seu corpo frágil suportava os mais graves castigos. Depois, seria a vez dele de apanhar, quando a cunhada ficasse sabendo. Da última vez, tinha apanhado também do delegado. Estava fichado na polícia. Estacionou em frente ao banco, para esperar que o patrão tratasse de seus negócios, e por mais de uma vez virou a ignição. Bastava engatar a marcha e pisar no acelerador. Depois ele deixaria o veículo nos arredores de algum povoado e estaria livre. Mas foi o medo, de novo, que fez com que ele desistisse. Josias trabalhou o dia inteiro, carregando o jipe com mantimentos para encher a despensa dos patrões. Foram até um povoado mais distante, para buscar algumas encomendas. Almoçaram em um restaurante na beira da estrada, o TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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patrão na mesa, aproveitando o espeto-corrido, enquanto ele comia um prato de arroz com feijão e matambre no pátio dos fundos, junto com outros peões. Era a vida voltando ao seu normal. Não tinha o que fazer. Apenas se acostumar com isso também: mais uma boca para dar de comer. Uma boca de branco, com o mesmo nome que o seu. Já era noite fechada quando deixou o patrão em casa. Descarregou todos os mantimentos e se despediu, voltando para casa a pé. Estava acostumado a andar sozinho por aqueles caminhos sem iluminação, guiado apenas pela claridade da lua. Cortou caminho pelo pasto, o que só era possível para quem conhecesse bem as terras. Alguns lugares deveriam ser contornados, para evitar cães raivosos, montes de merda de vaca, ninhos de quero-queros. Era uma noite limpa e fria, de modo que chegou em casa o mais rápido que pôde. O gato, que estava na soleira da porta, eriçou os pêlos emitindo um ruído de garganta, e ele teve que enxotar o bicho para poder abrir a porta. As crianças já estavam dormindo, e a mulher lhe esperava na cama, com o filho dormindo ao lado. Tentou fazer assunto, perguntando como tinha sido o dia. Ele a mandou dormir. No dia seguinte, ela deveria voltar ao trabalho, levando a criança junto. Ela fez que concordou. Depois, foi até a cozinha para lhe servir um prato de comida. De barriga cheia, Josias também deitou na cama, com a mulher e o bebê. Ficou ali, olhando para os dois, observando a respiração de um e de outro. Sentia-se confuso diante daquela criança mais branca do que a mãe e muito mais branca do que ele. Na sua cabeça, ecoavam as vozes dos homens no bar, seus risos debochados, chamando-o de corno. Corno. Corno. E Josias ali, deitado, pensando que só tinha sua honra 32 l RUDIRAN MESSIAS
a zelar. Mais nada. Por isso, nunca amaria aquela criança que levava seu nome. Ele era a prova da traição de Laura. Mais um motivo para que fosse apontado na rua. Para que dissessem que sua mulher havia se deitado com outro, fora de casa. Corno. Corno. Corno. Então, em um único gesto, ele trancou a respiração de Josias, fechando-lhe o nariz e a boca com toda a força, até que parasse de chorar. Com o barulho, Laura se acordou, mas era tarde demais para fazer alguma coisa além de chorar também, segurando a barriga vazia e perguntando, entre um soluço e outro: “Por quê? Por quê? Por quê?”
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Entre nós
A gente nunca chega a conhecer alguém completamente. Disso eu sempre soube. Ainda assim, tenho me surpreendido com Mônica. Nos últimos tempos, minha mulher começou a se revelar uma completa desconhecida. Chega a ser assustador e, diante de algo assim, sei que costumo agir inesperadamente. Feito animal acuado, que tem uma fração de segundo para decidir se foge ou ataca para se defender. É assim que me sinto agora. Tenho percebido sua forma diferente de agir, que se manifesta nos pequenos gestos do dia-a-dia. Um sorriso sem naturalidade, um olhar vazio, misterioso, o passo mais leve que o de costume e uma cortesia postiça no lugar do fervor sexual. Quando estou sozinho em algum lugar da casa, sinto calafrios ao intuir sua presença sorrateira. Lembro de quando, ainda criança, parecia haver alguém me observando enquanto brincava. Quando olhava melhor, não havia nada ali. Com Mônica é diferente. Minha esposa se tornou uma assombração sempre visível e desafiadora. Um fanTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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tasma com o qual construí essa casa onde moramos, com quem compartilhei toda uma vida. Eu sei quando isso tudo começou. Essa forma estranha de agir – como se aquele corpo fosse, agora, apenas um invólucro ocupado por outra alma – nasceu junto com nosso filho, algumas semanas atrás. No princípio, pensei que fosse coisa natural da maternidade. Quando o primeiro filho nasce, elas parecem deixar de ser esposas para se tornarem mães. E isso você já intui no final da gravidez quando, ao beijar um seio, percebe as gotas do leite que dele transbordam. Mas não. Não era apenas isso. Seu olhar de paisagem guardava muito mais mistérios além do horizonte. Sua forma de balançar o bebê, como uma autista com um pedaço de carne no colo, e suas respostas vagas para qualquer pergunta, assustavam e me faziam sentir só. Durante a noite, seguidamente percebia sua ausência entre os lençóis, apesar de nunca ter sido acordado pelo choro do menino. Sobre ele, me dói sobremaneira falar. Aquele bebê, tão esperado, nasceu numa madrugada de agosto, com cabelos claros e grandes olhos verdes. E Mônica, que é morena como eu, com olhos e cabelos negros, não se preocupou em fornecer alguma explicação. Outra coisa me incomodou na criança: a cabeça, reparei logo, era desproporcional, tinha um formato esquisito. “Vai ser inteligente”, respondeu o médico quando lhe indaguei a respeito. Sua saúde era perfeita. Tudo normal no trabalho de parto, apesar do estranho fato de a criança não ter ao menos chorado ao nascer. A equipe de médicos e enfermeiros ouviu apenas o ronco aflito de quem emerge pela primeira vez para respirar acima da superfície, no preciso momento em que o cordão umbilical foi rompido. Então, por um momento, todos ficaram 36 l RUDIRAN MESSIAS
em estado de alerta, conferindo os sinais vitais da criança. Depois verificaram que estava tudo normal. Uma criança sadia, afirmou o obstetra. Mas eu não tinha tanta certeza disso. Ainda estou confuso, não sei. Hoje saí mais cedo do trabalho e, antes de chegar em casa, passei numa banca de revistas. Precisava de uma leitura para me distrair no silêncio daquela casa. Foi quando, ao ver uma revista de ufologia, tudo pareceu explicado para mim. Ao chegar em casa, me acomodei no sofá e liguei a televisão. Comecei a ler a matéria de capa, sobre a sagrada família, na qual o autor defendia a idéia de que Maria, após ser abduzida, dera à luz um ser de outro planeta: então Jesus Cristo era um alienígena – fazia muito sentido. De repente, vi Maria, digo, Mônica, parada na sala com o bebê no colo. Não sei há quanto tempo me observava, mas, quando a vi, seu nariz começou a sangrar sem que ela percebesse. Lembrei da noite, alguns meses antes, quando acordei suando, com falta de ar, no quarto fechado. Tateei entre as cobertas e ela não estava ao meu lado. Então levantei da cama e tentei acionar o interruptor de luz. A lâmpada não acendeu. Devia estar queimada. Tentei abrir a porta e, como se a fechadura estivesse trancada, precisei girar o trinco e forçá-la diversas vezes antes de conseguir abrir. Assim que saí, comecei a descer as escadas para procurar minha esposa. Hesitei por alguns instantes, entre os degraus, quando uma forte luz invadiu a casa. Uma luminosidade forte e fria, que me fez sentir paralisado por alguns instantes. Alguns minutos depois, essa luz apagou ou foi embora, e pude descer até a sala-de-estar, onde estava minha mulher, neste mesmo sofá onde sentei para ler a revista. Seu nariz, como agora, também estava sangrando. E me olhava com os mesmos olhos vazios. Respondia por TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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monossílabos. Perguntei o que tinha ocorrido, mas Mônica não lembrava de nada. Eu estava preocupado, pois algo parecia ter acontecido a ela. Alguma coisa que não podíamos explicar. Dias depois, porém, ela já estava de volta ao seu normal, com bom senso de humor, temperamento leve, falante. Bem diferente dessa, que me encara enquanto leio uma revista. Na medida em que avançava a gestação, minha esposa começou a agir cada vez mais estranhamente. E quanto mais alheia ela ficava, mais medo eu tinha. Um medo e uma insegurança que foram crescendo e tomando conta de mim. Eu me parava a observá-la atentamente, até não reconhecê-la mais. Agora havia apenas a mulher diante de mim, com uma criança no colo, para justificar a razão de meus medos. Os sentimentos cresciam em mim até virarem puro pavor. Mais do que isso: ódio. Por ela e pelo bebê maldito. Perguntei o que estava acontecendo. “Você não sente o nariz sangrando?”; ela parada feito estátua de carne-e-osso. “O que houve? Fala alguma coisa!”; ela muda. Sorrindo cinicamente. “Quem é você, afinal?”; ela imóvel, com o rosto sério, me encarando. E eu aqui, como um bicho assustado. Odiando a mulher que um dia tanto amei. Odiando esse “fruto do nosso amor”. Sinto-me tonto, entorpecido. Se tivesse uma faca, colocava um fim nessa situação desesperadora. Talvez eu precise apenas de uma noite de sono. Amanhã tudo parecerá melhor. Mas talvez não. De qualquer forma, me vejo caminhando rapidamente até a cozinha. Deus queira que ela não venha atrás. 38 l RUDIRAN MESSIAS
Noite de Natal
Pois lhe digo que tenho dois meninos. E a essas alturas eles devem estar andando pelas ruas à minha procura. E nem imagino de onde devem ter tirado o que de comer. Porque ensinei a eles que quando a gente tem fome, a gente pede e não rouba. Embora a mãe deles fosse uma mulher assim, muito à toa. Mas foi desse jeito que o meu pai ensinou também a mim: meu filho, se você não tiver o que comer, peça a alguém que tenha de sobra, porque tipos como nós, que não tem o que por na mesa, são os que eles gostam de trancafiar na cadeia. E eu sempre procurei seguir esse conselho, porque meu pai era um homem que sabia das coisas e também gostava de mim. Assim como eu gosto dos meus guris. Mas tu sabe e eu também sei que a vida, às vezes, nos ensina a roubar. A vida, às vezes, é bem feia, sim. Então a gente entende que nem mesmo o nosso pai está sempre certo. Existem situações em que o certo parece errado e então o errado vira certo. Como eu, aqui, com este prato de comida, sem saber o que meus filhos estão tendo que fazer para encher a barriga. Logo hoje, que é TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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noite de Natal. Hoje também foi o dia do meu aniversário eu só queria ficar com eles. Assim que amanheceu, acordei os dois. O que já foi uma peleia braba. A gente já foi guri e sabe como é: fica acordado até altas horas e depois quer dormir a manhã inteira. Mas debaixo da ponte, que é onde a gente vive, tem que dormir com um olho aberto e outro fechado. A qualquer hora podem vir bichos querendo arrancar pedaço do nosso corpo às dentadas. Ratos, por exemplo. Ou pessoas, o que é bem pior. As pessoas querem sempre tirar alguma coisa de nós, mesmo que não tenhamos quase nada. Elas são capazes de te empurrar pra dentro do arroio enquanto tu dorme, pra tomar o teu lugar. Então é preciso ter o sono muito leve, senão já era. Ainda mais em dias como o de hoje, que amanhecem fechados. O tempo ruim, depois de ter chovido a noite inteira. O céu fica como se fosse de chumbo derretido, e o nível da água vai subindo, subindo. Então a gente ouve o piado dos pássaros e o barulho dos carros e sabe que já devia estar claro. Hoje não era para ter barulho de carro, porque no sábado as pessoas não têm que trabalhar e ficam em casa. Mas os pássaros não, os pássaros são como a gente de rua. Quando amanhece eles abrem as asas para vaguear por aí. Foi isso o que pensei, quando decidi que tínhamos que deixar a ponte. Também, porque a água ia subindo e era preciso tirar nossos trapos dali para procurar uma marquise, senão a água levava tudo embora. Agarrei um pedaço de pau que estava ali no canto, cutuquei eles umas duas ou três vezes e dali a pouco estavam de pé, a muito custo, esfregando os olhos. O menor, limpando o ranho do nariz com as costas da mão, já querendo saber o que a gente ia comer. Nem lembrou do meu aniversário. Mas eu entendo, porque a gente mora na rua e mendigo 40 l RUDIRAN MESSIAS
não tem calendário. O maior, tenho para mim que se lembrou, sim. Pois ele veio e me deu um abraço. Não disse nada e mal me olhou, mas me apertou como se eu fosse a mãe dele e eu fiquei sem saber o que fazer. Eu não deixei que ele visse, disfarcei muito bem, mas acho que estava com os olhos bem molhados. E pude sentir um grande nó na minha goela, como se a carne que tinha comido no dia anterior estivesse subindo pela minha garganta, para que eu tivesse o que dar a eles de comer. Mas não tinha tempo para aquilo, então engoli a seco e os tirei de lá, de onde até os ratos já tinham ido embora. Enchemos nossas garrafas de plástico e a lata com a água da torneira, na frente de um prédio bacana que fica logo ali na esquina, e ficamos debaixo da marquise, sentados com nossas sacolas e aproveitando o abrigo, já que ainda era muito cedo e as lojas ainda não tinham aberto. Estávamos os três ali, bem encolhidos, sem dizer palavra, porque aquela marquise era bem estreita e a gente não podia ficar andando para lá e para cá, senão se molhava muito. Ficamos os três pensando e olhando para a chuva pingando na lata d`água, fazendo aquele barulho de gota, até que o chuvisco foi amainando e os carros começaram a andar pela rua. Daí eu me virei para eles e disse que era hora de conseguir um dinheiro pra gente comer alguma coisa. Então fomos para o cruzamento, para pedir. Pedir foi a única coisa que meu pai pôde me ensinar. Porque no interior, onde nós morávamos, não havia nenhuma escola por perto onde eu pudesse ir. Ele também não tinha ido para a escola, que ficava muito longe. Muito longe, mesmo. Então, se eu fosse estudar, não dava tempo para ajudar meu pai e minha mãe a colher as laranjas. E se a gente não colhesse bastante laranjas, o coronel mandava TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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a gente embora do barraco, meu pai disse. Também disse que a escola era para os filhos dos ricos. Não aceitavam negros por lá. Devia ser por isso que minha mãe sempre pedia a ele que fôssemos embora. Ela dizia que aquilo não era vida e não era mesmo. Dizia que queria mais para nós todos. Mas meu pai ficava bravo, dizia que aquela era a única vida que podia nos dar e batia nela. Isso acontecia sempre, até uma noite em que ela pegou minha irmã menor pelo braço e se foi. E meu pai ficou sem entender. Eu também não entendi, porque existiam ali muitas famílias que viviam como nós. As outras mulheres não iam embora, mas ficavam com seus maridos e com seus filhos colhendo laranjas. Mas hoje eu entendo. Agora, que eu estou aqui, posso entender minha mãe. Ela se sentia como eu me sinto agora, e só queria ganhar a estrada para tentar achar uma coisa melhor. Mas não sei se ela conseguiu, porque nunca mais a vi. Nem à minha irmã. Meu pai tentou ir atrás delas, mas já era tarde. Então ele voltou, dois dias depois, com uma garrafa vazia na mão. E com muita raiva. Eu e meus dois irmãos ficamos muito tristes, porque ele disse que nunca mais veríamos elas. Tristes, porque a mãe não havia nos levado, também. Mas meus irmãos e eu fomos aprendendo a viver com a tristeza sem chorar. Porque a gente só chora por aquilo que se vai, nunca por aquilo que fica conosco. E a tristeza tinha ficado com a gente para sempre, embora nossa mãe tivesse ido embora. A tristeza tomara o lugar de nossa mãe e, aos poucos, íamos esquecendo do rosto dela, de sua voz. Meu pai não deve ter esquecido, porque não conseguia viver com a tristeza e, por isso, bebia. Eu acho que a bebida era o jeito que ele tinha de chorar. Tinham ensinado a ele que homem não chora. Isso ele também me ensinou e eu ensinei a meus filhos. Mas tu sabe e eu tam42 l RUDIRAN MESSIAS
bém sei que a vida, às vezes, nos ensina a chorar. A vida, às vezes, é bem feia, sim. Então a gente entende que nem mesmo o nosso pai está sempre certo. Existem situações em que o certo parece errado e então o errado vira certo. Como meu pai, chorando feito criança. Abrindo o berreiro, feito um de nós, quando o coronel nos mandou embora do barraco. Porque o meu pai não colhia mais as laranjas. E a gente não podia juntar tantas que fossem o bastante. As que a gente conseguia colher, o coronel disse que o pai bebia todas elas. Naquele dia em que fomos expulsos chovia como hoje pela manhã. E nossas lágrimas escorriam pelo rosto como as gotas da chuva. Tanta água molhando a cara, tudo misturado e se revolvendo dentro da gente. Até hoje eu acho que, quando a chuva vem, fica tudo muito misturado por dentro. Como se até aquele nó que a gente tem na garganta pudesse se derreter – como se ele fosse feito de açúcar. Então eu aproveito que está chovendo e choro também. Assim meus filhos não percebem que eu estou me lamentando. Ninguém percebe, pois eu choro sem soluçar. E continuo lavando o vidro dos carros na sinaleira. Continuo pedindo dinheiro, que é para dar o que de comer para os meus filhos. Ou para comprar uma garrafa e chorar nela, quando sobra algum trocado. Como meu pai chorava. Meus filhos também choram. Também pedem dinheiro no sinal. Mas não anda nada fácil. O maior aprendeu a fazer malabarismos com o homem que vendia laranjas. Ele parava aqui no sinal e as vendia para as pessoas dos carros. Assim, conseguia juntar um bom dinheiro. Ele tinha de onde colher laranjas e eu não via uma laranjeira fazia muito tempo. Então não tinha o que vender e me via obrigado a pedir, como fazia meu pai, depois que foi expulTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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so das terras do coronel. O menor também pede e, às vezes até junta mais do que eu, porque as pessoas têm pena das crianças e não têm pena de nós. Mas se enganam, pois na rua não há crianças, apenas gente triste. Só a mãe deles que não era triste. Mas isso porque ela era louca. Era tinhosa que só vendo e andava por aí soltando gargalhadas sem que a vida desse nenhum motivo. Maltrapilha como eu, bêbada como eu e também morava na rua, mas ainda achava jeito de rir feito louca que era. E foi por isso que eu gostei daquela danada assim que eu a vi. Ela ria e isso fazia a gente achar graça também. Até quando ela me avistou da primeira vez, começou a se divertir às minhas custas. Parecia que ia se mijar, de tanto debochar da minha cara. Daí por diante, era só me ver para começar a se chacoalhar toda, de tanto que ria. Dali a pouco ficava distraída em pensamentos e, passado algum tempo, olhava de novo para mim e não conseguia se conter: explodia em uma risada novinha. E ria, ria, ria. Assim foi, que eu acabei me encantando cada vez mais por aquela negrinha. E uma noite agarrei ela de jeito, no meio da calçada. Eu joguei ela no chão e deitei por cima, até que parasse de espernear. Então embuchei ela à força. Mas ela gostou, porque onde quer que eu fosse ela ia atrás. Foi daí que veio meu filho maior. O menor já nem sei se é mesmo meu. Sei que é irmão do outro, porque saiu de dentro da mesma mulher e eu estava lá para segurar a cabeça dele. Então acho que Deus foi quem colocou ele na minha mão. Mesmo sendo mais clarinho. Mesmo sabendo que a mãe deles se deitava com outros. Boceta de rua é mesmo assim, meio pública. Chega quem quer e come à força, como eu fiz, quando conheci ela. Então, mesmo que não seja meu, já é como se fosse. 44 l RUDIRAN MESSIAS
Até porque a mãe dele foi embora, como a minha. E ele ficaria sem ninguém para olhar por ele. A negrinha foi embora sem motivo ou, quem sabe, tinha se cansado da gente. Eu acho que foi isso, pois ela já não andava rindo tanto quanto costumava rir. E foi embora para bem longe, pois eu andei muito por todas aquelas ruas atrás dela e não a encontrei mais. E ninguém sabia dela. Como eu já disse, ela era uma mulher, assim, muito à toa. Por isso se mandou, deixando os filhos para trás. Deixando a mim. Nós ficamos sozinhos, pedindo no sinal para ter o que de comer. Mas não anda nada fácil. Porque as pessoas não querem nem saber de nos ouvir pedindo. As pessoas querem que as deixem em paz e muitas vezes nem sequer abrem o vidro do carro para que eu explique que o dinheiro é para comprar comida. Elas não querem que eu suje o vidro delas, pois pensam que eu uso água do arroio dentro do meu balde. Mas a água não é do arroio, eu explico para elas, quando me deixam falar. Eu digo que podia estar roubando, que podia estar matando. Mas eu só quero dar o que de comer para os meus guris. E comprar uma garrafa onde possa chorar dentro, quando sobra dinheiro. Mas hoje não deu nem para o pão. As pessoas diziam, pelo amor de Deus, me deixa em paz pelo menos hoje, que é véspera de Natal. Muito pouca gente se prestava a dar umas moedinhas, embora eu pudesse ver que estavam com o carro cheio de sacolas do supermercado. Tanta comida sobrando e meus guris vesgos de fome. E a gente não conseguindo muito dinheiro. Uma mulher passou em um carro bem grande e disse, eu pago impostos demais para ter que ajudar a vocês. Mas se ela paga imposto, não é para mim que ela paga. Foi o que pensei, porque estava morrendo de fome, como meus guris. Mas eu não disse nada, apenas me afastei, olhando TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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para eles, lá do outro lado da rua, tentando ganhar algumas moedas. O maior fazendo macaquices com uma calota de carro. Então o sinal abria e os carros passavam zunindo, como se fossem nos atropelar. Eu levantei os olhos e olhei para a cara deles, onde escorria a chuva. E as lágrimas. E a lama. Percebi que eles choravam por dentro, quietinhos, e chorei como eles, disfarçando mal e mal, como eles conseguiam disfarçar. Como se eu fosse um deles ao invés do pai. E pensei que mais um ano chegava ao fim, mais uma manhã sem comida chegava ao fim, e eu estava cansado de tudo. Até de pedir eu já tinha me cansado. E, desesperado, precisava resolver a situação. Porque achei que eles não mereciam passar fome. Mesmo sendo meus filhos; mesmo sendo pretos; mesmo não sendo crianças como os filhos dos ricos. Eu disse a eles, o pai vai tentar conseguir um pouco de comida e já volta. Caminhei até o supermercado onde sempre compro alguma coisinha, assim que consigo dinheiro que chegue. Passei pelas grades de ferro, pelos seguranças e fiquei assim, parado na porta, pensando no que fazer. Eu sabia que, dar, eles não davam nada. Nem mesmo em véspera de Natal. Porque se eles dessem alguma coisa, só ia haver gente pedindo. Ninguém ia comprar nada. Nem os ricos que saíam de lá com as sacolas cheias. Uma hora percebi que havia pouca gente, e o guarda estava um pouco distante, olhando os carros que estavam estacionados do lado de lá. Foi quando passou uma senhora com duas sacolas e vi que tinha bastante coisa boa de comer ali. Alguns pães e frutas, pelo menos, eu pude ver que tinha naquela sacola. Eu acho que era uma senhora boa, porque essa me olhou bem nos olhos. E pessoas ruins não olham na cara da gente, pois têm nojo por sermos sujos e porque 46 l RUDIRAN MESSIAS
temos cheiro ruim. Quem sabe se eu pedisse para ela, teria ganhado uns trocados. Mas até de pedir eu já tinha me cansado. E trocados não eram mais o bastante. Agora eu precisava de comida para dar aos meus filhos, que estavam com muita fome no cruzamento. Então eu fui bem rápido e arranquei a sacola das mãos dela. Arranquei dela aquelas compras, decidido, como se estivesse colhendo uma laranja do pé. E saí correndo dali o mais rápido que podia, esperando que nenhum dos guardas me visse, porque senão eles não me deixavam mais entrar ali nem que eu tivesse dinheiro para comprar. Eu estava a meio-caminho das grades quando ela começou a gritar, gritar, gritar. Como gritava, aquela velha. Pega ladrão, pega ladrão! E eu correndo mais e mais, pensando nos meus filhos, que não estavam ali para aprender que o pai era ladrão. Pega ladrão, pega ladrão! E um dos seguranças correu, correu e me pegou. Pois agora estou aqui, preso nesta gaiola. E a essas alturas nem imagino de onde eles tiraram o que de comer. Porque ensinei a eles que quando a gente tem fome, a gente pede e não rouba. Por isso eles não devem nem saber onde estou. E isso é melhor do que me encontrar aqui. Porque se eles me achassem, iriam aprender que quem rouba vem parar dentro dessa jaula com esse prato de comida. Feito animal de zoológico. Mas tu sabe e eu também sei que a vida, às vezes, nos ensina a ficar presos. A vida, às vezes, é bem feia, sim. Então a gente entende que nem mesmo o nosso pai está sempre certo. Existem situações em que o certo parece errado e então o errado vira certo. Como eu, nessa cadeia, na noite de Natal. É só neles que eu penso, aqui. E fico com pena. Eu só queria que eles não se esquecessem do meu rosto, da minha voz. Como já devem ter esquecido da mãe. Ela era uma negrinha muito da safada. TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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Prefiro pensar que, a essas alturas, eles devem estar andando pelas ruas à minha procura, esperando me encontrar em um banco de praça, deitado na sombra de uma árvore. Porque gente de rua é como pássaro. Gente de rua é feita para vaguear por ai, não para ficar presa em uma gaiola. Ainda mais hoje, que é noite de Natal. Hoje também foi o dia do meu aniversário eu só queria ficar com eles.
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Histórias de pregação e fé Êxodo XXI Borboletas pretas Segredos de confessionário, confissões de sacristia Urubus Sucubus ex machina
Êxodo XXI
No dia em que deu o primeiro passo, Salustiano nem imaginava onde iria parar. Depois de receber o soldo, comprou um litro de cachaça. Bebeu um gole e saiu sem rumo, sem planos, sem juízo. Deixava para trás a esposa, três filhos e uma vida de servidão. E nada nem ninguém o faria olhar para trás. Tinham sido seis anos de trabalho, plantando, colhendo, abatendo animais e se sacrificando como sacrificavam a eles. Sem sonhos ou objetivos maiores, sem tempo para vislumbrar o horizonte ou além dele. Agora estava na estrada que descia a serra, com um nó na garganta. A cachaça sorvida a largos goles queimava-lhe a goela, o esôfago, o estômago, purificando-o por completo, embriagandolhe os pensamentos que se reorganizavam. Agora ele era outro homem, livre e com o objetivo claro de chegar ao seu destino. Qual destino? Mais goles da cachaça e continuar andando. Andando pé ante pé, sem passado. Talvez sem futuro. O presente da vida era continuar seu caminho, trilhando aquelas veredas que desciam a serra. Seu dom era o TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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continuar, o permanecer, o existir, até que... Bem, estava ele passando pela estrada, à beira de uma grande plantação de trigo, quando avistou uma fogueira queimando em plena luz do dia. Nenhuma viva alma à vista. Apenas aquele fogo fixo, concentrado. Chegou mais perto, franzindo o cenho, fixando seu olhar para ver que ela nada consumia. Emergia da terra lisa, pura, como por encantamento. Olhou para todos os lados, como se procurasse por alguém, mas o mundo todo parecia desabitado. Ao chegar perto, não sentiu calor algum, mas ela estava ali, distinta, brilhante, com suas chamas de cor violeta. E não podia deixar de olhar para elas fixamente, mesmo ao sentir que os olhos quase cegavam. Foi quando, de dentro da fogueira, surgiu um pequeno homem. Não tinha mais de um metro de altura, era magro e vestia uma túnica branca rebordada de prata. Saído de dentro da fogueira, o anãozinho lhe acenou com um gesto comedido, e com a mesma mão lhe mostrou as chamas, como se aquela fosse sua casa e ele o convidasse a entrar. Estavam agora frente a frente, e Salustiano pôde observar que ele tinha orelhas pontiagudas, olhos de gato. Nesse momento sentiu a garganta ainda mais apertada, como se estivesse inchada. E já estava a ponto de sufocar quando viu o pequeno homem fazer um gesto com a cabeça, como se assentisse, com os lábios num meio-sorriso enigmático. De súbito, foi acometido de ânsias intermitentes, os intestinos a se revolver. E todos os seus músculos pareceram trabalhar em conjunto, espremendo-o inteiro, até que Salustiano vomitasse uma enorme maçã. Depois outra e mais outra, e assim por diante, até que houvesse quarenta maçãs no chão. Não podia entender de onde haviam surgido, e de como podia tê-las guardado no bucho, assim, inteiras. Mas ali estavam elas, 52 l RUDIRAN MESSIAS
junto com tudo o que tinha dentro de si. Aquele muco gosmento cobrindo-as, entre ele e o anão, que o olhava passivamente, sem dizer palavra. Estava exausto e caiu pela primeira vez. Tão cansado que não podia sequer mover-se da posição fetal que havia tomado, e assim se deixou ficar até o anoitecer. Apenas fechou os olhos enquanto via a chama violeta movendo-se por sobre todas aquelas maçãs e consumindo-as por completo. Quando o dia raiou, o duende ainda estava lá, olhando-o fixamente enquanto fumava um cigarro de palha. Sentia a cabeça doendo, mas pôde arrastar-se até sua garrafa, com a qual matou sua fome e sua sede. Dirigiu-se ao pequeno homem e lhe perguntou quem era. Esse olhou-o gravemente e depois começou a rir com uma voz esganiçada. E foi entre risos e tosses que lhe devolveu a pergunta em tom irônico: “Quem eu sou? Ora, ora! Quem será que eu sou?” E tomado subitamente de uma expressão colérica, disse: “Pois que eu sou aquele a quem os homens deveriam temer pronunciar o nome. Aquele que come por três e vomita sobre a raça humana sem piedade. O TodoPoderoso, que julga e condena e fere e espezinha esse povo triste e imundo.” Dito isso, observou que o homem o temia e se enterneceu. De suas costas surgiram grandes asas de borboleta e, com elas, ele apagou a chama. E, voando ao seu redor, continuou a falar: “Eu sou o Pai. E de meus colhões reais surgiu tudo quanto há na terra e nos céus. E tu és um viajante. Nada mais. Agora, tornei-te puro e ordeno que prossigas tua viagem. Estarei contigo e sobre ti, e agora te tomo por meu filho. Bebe de tua garrafa até que seque, pois hei de enchê-la de novo, e anda sobre essas patas que te dei, que o teu caminho já é traçado e está seguro. Vai-te sem olhar para trás, desce desta montanha, que eu estarei guiando teus passos sobre o chão, e te soprarei ao ouvido TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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quando chegar tua hora.” Olhou para baixo e viu que tinha patas de carneiro no lugar de suas pernas. Desequilibrou-se sobre seus cascos, mas logo continuou a caminhar, e assim se passaram seis noites e seis dias. Passou por plantações de milho e soja e algodão, cruzando com trabalhadores e viajantes sem parar, até que suas pernas estivessem frouxas. Achou-se em um recanto com uma fonte e reconheceu que aquele era seu descanso. Então tombou novamente, de modo que a garrafa entornasse com ele e se esvaziasse de seu conteúdo. Antes de apagar por completo, pôde ver um hermafrodita emergindo das águas, coberto de véus coloridos e semitransparentes que deixavam à mostra seus seios enormes e o pênis ereto. Ele caminhou em sua direção e deitou-se ao seu lado, para passar com ele a noite. Em seus sonhos, Salustiano conheceu aquele ser. Primeiro levantou o véu que fazia as vezes de saia, depois seus corpos se entregaram e deles jorrou o sal da terra em forma de suor, saliva, lágrimas, sangue, esperma, excrementos. Todos os humores se juntaram em uma grande papa com a qual se saciaram, matando a fome e a sede. Depois se acordou e viu que estava nu, ao lado daquele ser andrógino. Então, pegou sua garrafa e a encheu na fonte. Uma vez que ela já estava cheia novamente, tomou dela um gole e sentiu que era cachaça. Foi quando o ser acordou, e Salustiano perguntou-lhe quem era. Ele riu com uma voz grave. Depois se sentou, e com uma gilete e um espelho recém-tirados de dentro da própria garganta, preparou uma pequena carreira de pó branco que aspirou, e falando com uma voz em falsete, lhe disse: “Não lhe direi meu nome, pois sabes muito bem quem sou. Sou aquele que come por três e regurgita sobre tua raça suja. Eis que sou aquele e sou aquela a quem não 54 l RUDIRAN MESSIAS
se deve pronunciar o nome, que está cagando e andando para a tua sina e a tua sanha, que debocha de ti enquanto tentas realizar teu destino pobre.” E dito isso, abriu suas asas de pombo e alçou vôo ao redor dele, proferindo ordens: “Eu sou o Filho, e te ordeno que sigas em frente, pois o dia é limpo e tua trilha está aberta. Foste fecundado pela minha palavra e pelo meu corpo, e deves partir. Adiante, encontrarás tua terra prometida, teu chão sagrado. E nele serás feliz seguindo minhas leis. Bebe desta garrafa, pois ela é meu sangue e minha carne. Embebido nela estarás protegido, e não haverá vilã ou vilão que possa com teus chifres. Segue sem olhar para trás, pois estou contigo e ao teu lado permanecerei.” Tateou sua cabeça e percebeu que do alto de sua testa haviam brotado dois enormes chifres de veado. Assim foi que, sem ter mais o que fazer, o homem tomou novamente seu rumo em direção ao sopé da montanha, numa jornada que durou mais seis dias e seis noites. Seguiu pela beira da estrada, encontrando ciclistas e carros e animais esmagados no asfalto. Suas pernas já estavam exaustas quando viu de longe a grande cidade, com prédios altos e chaminés, de onde saíam a fumaça negra e as almas de pessoas gritando por socorro. Foi quando Salustiano caiu pela terceira vez, e ao seu lado, emborcou a garrafa. Antes de fechar os olhos, pôde ver de contra-luz a silhueta de um motoqueiro de dois metros de altura, que dele se aproximava em roupas de couro preto do Hell’s Angels, para lhe dar um chute no meio do rosto. Ao se acordar, viu que o homem ainda estava ao seu lado, injetando-se no braço um líquido fervente, com os olhos revirados. Estancou com a camisa o sangue que lhe escorria do nariz, e pensou em lhe perguntar quem era. Mas antes mesmo que ele abrisse a boca, o outro começou TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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a falar: “Olha aqui, mané otário! Fica na tua e continua andando, seu veadinho.” Então abriu suas asas de morcego e voou ao redor dele, enquanto continuava falando: “Acho melhor tu chispar daqui sem abrir o bico, senão eu arranco esse teu rabo fora e te esfolo com meu soco inglês. Pega tua garrafa, que eu já enchi, e segue miudinho até o centro da cidade, que eu tô na tua cola. E não te atrevas a olhar para trás, pois eu sou a porra do Espírito Santo, e posso furar teus olhos com minhas próprias mãos.” Então Salustiano colocou uma mão sobre a base de sua coluna e viu que saía dali um enorme rabo liso, que se movia de um lado para outro involuntariamente, como a cauda de um cachorro feliz. Em sua ponta havia uma seta pontiaguda, e sem ter o que fazer ele seguiu seu caminho, ouvindo o som dos próprios cascos batendo no asfalto. Chegou na cidade e ficou perambulando pelas ruas por mais seis dias e seis noites até chegar ao centro. Escurecia quando ele avistou, em uma esquina da rua comercial, o anão no colo do travesti, rodeados pelo homem na motocicleta. Naquele instante teve a certeza de que tinha chegado ao seu destino final. Suas pernas estavam fracas e ele tombou, rodeado pelos três, enquanto os comerciantes fechavam suas lojas. A garrafa se quebrou ao seu lado, encharcando-o de cachaça, e assim dormiu, com o ruído das vozes dissonantes lhe ditando leis e normas e compromissos e maldições. Ao acordar, viu que a cidade estava novamente cheia. Ninguém parecia reparar em sua aparência animalesca. Ele estava de ressaca, com a cabeça e os olhos doloridos, mas nem por isso teve um instante de paz. Ao seu redor, os três ordenavam que ele começasse a falar, rodeando-o, perturbando-o, pressionando-o até que abrisse a boca e cuspisse tudo, aos berros: 56 l RUDIRAN MESSIAS
“Eia, Irmãos! Ouví, pois essas são as palavras do Senhor, e esses foram os estatutos que nos foram propostos: Se comprares um escravo, seis anos servirá; mas no sétimo sairá forro, e de graça. Quem amaldiçoar a seu pai ou sua mãe, certamente será morto. Se alguém furtar um boi ou uma ovelha, e os matar ou vender, por um boi pagará com cinco bois e por uma ovelha pagará com cinco ovelhas. Se alguém seduzir uma virgem que não for desposada, e se deitar com ela, certamente pagará por ela o dote e a terá por mulher. Não levantarás falso boato, e não pactuarás com o ímpio, para seres testemunha injusta. Seis anos semearás tua terra, e recolherás os seus frutos; mas no sétimo a deixarás descansar e ficar em pousio, para que os pobres do teu povo possam comer, e do que estes deixarem comam os animais do campo. Assim farás com a tua vinha e com o teu olival. Três vezes por ano me celebrarás festa. Eis que eu envio um anjo adiante de ti, para guardar-te pelo caminho, e conduzir-te ao lugar que te tenho preparado.”
Ao seu redor estavam os office-boys com suas pastas de documentos, vendedoras de lixa e de bilhetes de loteria com seus produtos, homens-sanduíche com panfletos de compro-e-vendo ouro, propagandistas com seus folhetos de financeiras de crédito pessoal e empreendimentos imobiliários, secretárias, policiais, camelôs, prostitutas, guardadores de carro, desempregados. Todos fazendo graça, como se ele fosse um circense, rindo, cutucando-se com os cotovelos diante de sua figura demente. Estariam eles vendo seus chifres, seus cascos, seu rabo? Ou mesmo os três seres que lhe sopravam aquelas palavras, forçando-o a dizer tudo aquilo? Não sabia dizer, apenas continuava falando: “’Eia! É chegada a hora da cobrança! Em verdade vos digo! Eis que vossa parte não foi cumprida, e por ela pagareis agora. Anjos virão do céu arremessando bolas de fogo, e da terra surgirão os demônios para defendê-los, pois é chegada a hora da TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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batalha. Mas de nada adiantará, contra a ira divina. Não adianta buscar abrigo ou proteção, pois que vossas almas estão rotas e encomendadas. Dez pragas enviarei para vos dizimar, e delas padecereis até que seja consumido o último homem e a última mulher. Depois acabarão pelo fogo, pela água e pelo ar. Pois é chegada a hora e exijo de vós a minha paga.”
Depois de pregar, tombou. E antes de fechar os olhos pôde ver que cada homem e mulher morriam aos poucos, suas almas saindo dos corpos impuros e decrépitos. Mas ainda pôde reunir forças para um último apelo, e o fez: “Perdoai-os, Pai, pois eles só sabem o que fazem!”
Então Salustiano caiu morto. Após sua morte, teve o corpo chutado à exaustão pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo, até que sua alma saísse e fosse reabsorvida pelo chão de pedra. Depois, seus despojos foram recolhidos pela guarda municipal e enviados para o morgue da universidade federal. Seu corpo foi mergulhado em formol e levado para o laboratório de anatomia. E quando fizeram a primeira incisão para estudar o seu corpo, puderam ver algo realmente espantoso. Espremidos entre suas vísceras havia uma profusão de furúnculos purulentos, e entre eles milhares de girinos, incontáveis larvas de moscas e gafanhotos, também enrijecidos pelo formol. Enquanto isso, no alto da serra, sua esposa e seus filhos continuaram trabalhando na fazenda, e esperando em vão por um homem que nunca mais regressaria.
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Borboletas pretas
Borboletas pretas. Muitas delas. Pelo átrio, pela nave central, pelo altar e em todos os oratórios. Nuvens de borboletas rodeando cruzes, velas, imagens de santos. No corpo de Cristo, no cálice de vinho, no relicário. Borboletas do teto ao chão, voando caoticamente, enegrecendo os vitrais. Vivas ou mortas, acumuladas pelos cantos da Catedral Metropolitana. Entrei na igreja sem fazer o sinal da cruz. Forcei a porta e caminhei firme na direção do altar, pisando sobre o carpete de asas negras, fofo e resvaladiço. Minhas passadas não soavam como antes – aquele som seco dos saltos batendo no mármore, ecoando pelo salão. Parei por um instante, voltando-me na direção do confessionário. E lembrei do reverendo Breno. Havia algo de asqueroso naquele velho. Uma sujeira no olhar. Ou, talvez, fossem seus dentes pequenos, levemente pontiagudos. Eu costumava observá-lo à distância, catequizando os garotos, rezando a missa dominical, tomando a confissão dos fiéis no sábado à tarde. Desta última TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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atividade, ele parecia tirar o maior prazer. Sua expressão, ao sair do confessionário, era de satisfação. Esboçava um meio-sorriso, debochado. Depois sumia, para só voltar no domingo. A maioria das beatas procurava evitá-lo, buscando o alívio de suas dores com outro padre, ou mesmo com o capelão. Eu, ao contrário, estava sempre atenta a seus passos, embora à distância, desde seu primeiro dia na paróquia. Havia sido enviado pela arquidiocese para liderar os projetos comunitários. Disseram que sua atuação em outras paróquias havia sido exemplar, baixando os níveis de criminalidade e aumentando o número de fiéis aliciados. Num final de tarde, quando me aproximava da igreja, vi que saía para uma de suas andanças. Resolvi segui-lo. Caminhei atrás dele por mais de uma hora, tomando cuidado para não ser percebida. Cruzamos a praça, caminhamos até o fim da rua principal, passamos pelo pórtico da cidade e seguimos adiante, até nos perdermos pelos becos da Vila dos Remédios. Um lugar pobre, com estradinhas labirínticas de chão batido e casebres de madeira, emendados aqui e ali com latas de óleo de cozinha. Anoitecia, o que deixava o ambiente ainda mais soturno. As casas eram iluminadas por lampiões a gás e velas. Nas ruas, a lua era a única a guiar nossos passos, a ponto de eu quase perdê-lo de vista. Parou subitamente, como se intuísse minha presença. Olhou para trás, para os lados. Não me viu. Dirigiu-se para um casebre pequeno. Olhou de novo para um lado e para outro e bateu à porta. Após alguns instantes, uma moça veio atendê-lo, já trajada para recolher-se. Ao reconhecer o padre, tentou bater-lhe a porta na cara. Mas o reverendo Breno forçou a entrada, fechando-se com ela na casa. Um frio me descia 60 l RUDIRAN MESSIAS
pela espinha, revolvendo-se no estômago. Sentia-me excitada: estava perto de descobrir seu segredo. Esgueirei-me até uma das janelas da frente para tentar escutar alguma coisa. Ouvi apenas alguns sons desconexos, que cessaram subitamente. Então, contornei a maloca – eles deviam ter ido para os fundos. O chão estava repleto de folhas secas, e meus passos faziam algum ruído, por mais que eu tentasse evitar. Cheguei aos fundos e tentei virar o trinco da porta da cozinha, lentamente. Não abriu. Continuei andando, até encontrar uma janela aberta, do outro lado. Cheguei perto, agachada, muito sorrateira, e fiquei ali por um tempo, escutando a mulher: “Ahhhh, Padre! Uh! Deus seja louvado... DEUS seja lou-va-do!” Depois, gemidos baixinhos. Pequenos urros de prazer e alívio. Foi quando decidi espiar. Levantei a cabeça devagar, para vê-la nua sobre a cama. O padre, com a cabeça entre suas pernas, lambendo sua vagina com devoção, em movimentos ritmados. Ele esfregava e sacudia a cabeça naquela xoxota, cheirando-a fortemente. De quando em quando, chupava com mais intensidade, como se fosse arrancar um pedaço, o que produzia na moça um reflexo imediato, uma pequena convulsão de prazer. O padre começou a lamber e mordiscar todo o corpo dela. Devo confessar que, neste momento, já estava úmida, sentindo aquele cheiro acre de sexo. Foi quando ele se levantou para abrir a batina, botão por botão, sem pressa. Ao desprender o último, já podia ver seu pênis ereto, grosso e vermelho. Ele olhou para cima e soltou um urro, enquanto abria a batina. Foi quando saiu de seu corpo branco e atarracado uma nuvem de borboletas pretas, como estas que, agora, infestam a igreja. Cobriram as paredes e o corpo da mulher, que parecia anestesiada, imóvel. O paTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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dre subiu na cama e deu uma grande e feroz mordida em sua barriga, enquanto ela, com um gemidinho horripilante, despedia-se deste mundo como se estivesse hipnotizada. Depois de abocanhar seu ventre, ele mastigou e engoliu. Continuou comendo, fartando-se de carne e sangue, aos nacos e goles. Foi neste ponto que decidi voltar correndo para casa. No dia seguinte, fui mais cedo para a igreja. Antes da missa, entrei no confessionário. Falei: Padre, me perdoe, pois eu pequei. Eu testemunhei um assassinato e fiquei calada. Não chamei a polícia. Nem a Deus eu pedi socorro. Ele deu uma de suas risadinhas debochadas. Disse: “Eu sei, minha filha.” E ficamos calados por algum tempo. Foi ele quem retomou a palavra: “Minha filha, ninguém compreende os desígnios de Deus. Nosso senhor escreve certo por linhas tortas.” Perguntei: Como assim? Ele não respondeu. Disse, apenas, para que eu olhasse em volta. Foi como se eu saísse de um transe, e ele não estava mais do outro lado. O confessionário estava cheio de lagartas, casulos e borboletas pretas que saíam deles, para pousar sobre minhas roupas, sobre minha pele, subindo por minhas pernas por debaixo da saia. Tentei pedir ajuda, enquanto me sacudia. Mas a igreja estava vazia. Fui até minha casa e entrei debaixo do chuveiro. Sentia-me suja, perturbada. No caminho, fui atacada por elas, que saíam das árvores e vinham pousar em meu corpo. Não adiantava que eu me sacudisse, que passasse as mãos pelo corpo. Elas eram mais espertas, mais rápidas. Voltavam sempre a pousar em mim, com suas asas negras e inquietas. Quando ia para debaixo do jato d`água, elas saíam. Mas tão logo eu desligasse a torneira, elas voltavam em revoada, deixando-me louca. Se ao menos fossem co62 l RUDIRAN MESSIAS
loridas! Mas eram retintas, como as que eu vira saindo do corpo do padre tarado! Dali para frente, decidi que não poderia mais sair de casa. Não queria que me vissem com aqueles bichos me rodeando. De vez em quando elas até me entravam boca adentro. E com o tempo, não haveria mais remédio senão mastigá-las para depois engolir. Elas têm um gosto amargo, as borboletas. Suas asas recobertas de um pó que entra pelas narinas, colore a língua e o céu da boca como se eu tivesse bochechado tintura de lula. Odeio frutos do mar. E elas estavam por toda parte, infernizando-me, em forma de larvas, de crisálidas, de borboletas, enfim. Podres, podres! Um dia, ao acordar, abri as cortinas da janela do quarto e enregelei de susto ao ver o reverendo Breno do lado de fora. Podia vê-lo ali, tão perto, como se eu fosse um produto exposto na vitrine. Apenas um vidro transparente a nos separar. Então ele abriu a batina e mais borboletas começaram se desprender de seu corpo nu, voando na minha direção. A maioria estalava de encontro ao vidro, deixando marcas vermelhas e amarelas, que eram as marcas das suas mortes. Mas havia uma ou outra mais esperta, evitando a morte prematura e tentando entrar pelas frinchas da esquadria para me infernizar. Enquanto ele gargalhava, gargalhava. Estava tão perto que pude ver seus dentes podres. Não fosse o vidro, sentiria também o bafo. Fechei a cortina. Minha sorte é que todas as entradas estavam trancadas. Mas o padre ainda tinha a esperança de que eu tivesse esquecido de passar a chave em alguma porta, por isso começou a rodear a casa, forçando todas elas. Eu acompanhava seus movimentos, escondendo-me pelas sombras, sem ousar abrir uma fresta que fosse, pois sabia que o encontraria do outro lado. Assim vi passar o dia. Não importava a hora TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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– mesmo quando os sinos da igreja tocavam, anunciando a missa, ele permanecia lá, à espreita, de modo que eu tinha que tomar muito cuidado para que meus movimentos não fossem notados. Mas de nada adiantava. Ele não saía de meu pátio, como um cérbero pronto a me devorar. Passei os dias seguintes a varrer a casa, tentando mantê-la limpa. Fazendo o que podia para preservar o pouco de dignidade que me restava. Acumulando aquelas pequenas morceguinhas mortas pelos cantos, até que se formassem montes delas, desabando umas sobre as outras e emporcalhando o chão. Até que não valesse mais a pena varrê-las. Comecei a alucinar. Não, não eram alucinações! Eram pressentimentos! Podia vê-las tomando conta da casa toda, sufocando-me, às toneladas. As paredes cedendo ao peso de milhares, milhões delas. Tão leves em seu valor individual, tão pesadas agora que daria para recolhê-las aos baldes, às baciadas. Ainda mais assim como estavam, repisadas, compactadas, úmidas. Então fui obrigada a sair. Decidi isso por puro desespero, após me servir da última colherada de café que havia no armário. Mas não me resolvi assim, tão fácil. Deu tempo para preparar o café e beber calmamente uns dois ou três goles. Depois me virei para sentar à mesa e percebi que ele estava lá, sentado do lado oposto. Ou era uma alucinação. Talvez mais do que isso: um pressentimento. Deixei cair a xícara no chão, queimando meus pés paralisados. Queria gritar, mas não conseguia. De minha garganta, saía apenas um assobio abafado. Ansiava por fugir, mas minhas pernas estavam duras e plantadas no chão, como troncos de árvores. Duras e presas pela base, como o pau do padre, que estava sentado na cadeira de minha cozinha com a batina aberta, tocando uma punheta, revirando os olhos até que 64 l RUDIRAN MESSIAS
parecessem brancos. Até gozar um líquido preto que emporcalhou toda a minha mesa, escorrendo em quantidade até o chão azulejado. Eu continuava olhando. Não podia evitar. Coloquei a mão em minha vagina e a senti molhada daquela gosma escura. Como pudera o jato chegar tão longe? Como atravessara a seda de minha camisola? A gosma se misturava à minha lubrificação e, juntos, os humores escorreram pernas abaixo, de tão caudalosos e abundantes. Meu Deus, eu tive prazer! E de repente ele não estava mais lá. Saí desarvorada pela casa, vendo sua imagem fugidia por todos os cantos. Ele estava na poltrona, sentado, nu. Depois o encontrei dentro de minha banheira, que estava cheia – não de água, mas daquelas diabinhas pretas. Novamente, em baixo dos meus lençóis. Então, lembrei daquela pobre coitada, que eu vira sendo estripada por ele. Foi quando saí correndo, desesperada, confusa. Vagando pelas ruas desertas em estado catatônico. Até hoje não sei se fugia dele ou se o procurava. Mas sei que se passaram muitos dias até que eu fosse recolhida por uma Kombi do sanatório municipal. Os homens de branco me seguraram à força, tentando conter minha fúria. Depois, me levaram para o manicômio, onde passei os últimos dois anos, sendo tratada com tranqüilizantes e choques elétricos. Aos poucos, as borboletas começaram a ir embora. Aos poucos, pude ver as paredes brancas do sanatório, enquanto meu corpo era estuprado e sofria abortos decorrentes dos maus tratos e da medicação pesada. Via o reverendo Breno cada vez menos. Suas visitas começaram a rarear. Isso sempre acontece quando se passa por uma internação. Aos poucos os parentes e amigos começam a visitar menos, até esquecerem que você existe. TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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Mas me curei. Hoje sou uma mulher renascida. Hosana nas alturas! Cá estou, dentro da mesma igreja, a mesma paróquia onde encontrei o reverendo Breno pela primeira vez. Venho aqui para me reconciliar comigo mesma, para expurgar minha fé. Agora há pouco, ouvi os sinos tocarem, chamando os fiéis para a missa. Volto-me para o altar e vejo um padre preparando a prataria para o ritual, acompanhado pelo coroinha. Não há mais borboletas aqui, apenas alguns fiéis que vieram consumir o corpo e o sangue de Cristo. O padre mudou. Agora é um menino magrelinho, de olhos verdes. Nem sombra do reverendo Breno. Caminho a passos firmes na sua direção e pergunto sobre o homem que um dia me levou à loucura. Ele diz que eu devo estar enganada. Que nunca houve na paróquia um sacerdote com aquele nome. Eu insisto, digo que não sou louca nem nada. Sei do que estou falando. Ele que vá conferir nos documentos da sacristia. Conheço essa igreja há muito mais tempo do que ele. O jovem e tenro clérigo me trata com paciência, tenta me acalmar. Convida-me a acompanhá-lo até a sacristia e, chegando lá, abre um livro enorme, antigo, que começa a folhear de trás para frente. Surpreende-se ao chegar na primeira página e se deparar com um verbete – a prova de que eu estava certa: houve, realmente, um padre naquela paróquia com o nome de Breno. O mesmo padre que havia construído a igreja em 1810. Depois de ver o registro, ele me fita com ar de espanto. Aquele espanto de olhos claros, nos quais eu vejo um brilho suspeito. Um brilho sujo, cobiçoso, que quer me correr da igreja. 66 l RUDIRAN MESSIAS
Atravesso a nave central em direção à saída e as vejo de novo. As borboletas, com suas asas pretas. Muitas delas. Pelo átrio, pela nave central, pelo altar e em todos os oratórios.
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Segredos de confessionário, confissões de sacristia
Dentro do palácio frio, o confessionário de madeira aguardava ansiosamente por um pecador, com a cortina aberta. Passos arrastados atravessaram o piso de figuras geométricas em branco e preto, vindos da sacristia. As passadas rompiam o silêncio, produzindo um som áspero. Pararam por um instante. Tornaram a caminhar em direção ao confessionário. A cortina se fechou: nada pode ser feito quando os demônios da Igreja querem se alimentar da luxúria de seus seguidores e sacerdotes. Após um período de silêncio agoniante, alguns pecados começaram a ser sussurrados através da janela de treliça: “Perdoai-me, Reverendo, pois eu pequei. Não me confesso há cerca de dois meses e venho agora me redimir.” “Pode falar, filho. Qual foi o teu pecado?” – perguntou a voz rouca e grave. Depois tossiu algumas vezes, exalando um hálito de bebida alcoólica barata. “Continue, continue...”, apressou-se em dizer, assim que passou o surto de tosse. E o pecador continuou: TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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“Eu, grande pecador, Padre Armando Nazaré, capelão desta paróquia de Nossa Senhora dos Prazeres, confesso ao Senhor meu Deus, Jesus Cristo e a ti, Reverendo, todos os pecados que cometi em todos os dias de minha vida, por ação, palavras ou pensamentos, por vontade ou contra a vontade. Primeiro eu pequei pela falta de agradecimento ao Senhor meu Deus pela grande misericórdia que Ele tem comigo em me dar todo o necessário para a minha vida, sem que eu o mereça. Depois pequei pela avareza, a ganância, o amor ao dinheiro, pelo excesso de comida e bebida e pela inabstinência da carne. E, finalmente, pequei pelos maus pensamentos, com a vista, ouvido, olfato, paladar, tato e com todos os demais sentidos.” “Seja mais específico, meu filho”, solicitou o confessor enquanto acendia um charuto. “Me conte em detalhes ...”, pediu, antes de começar a soltar as primeiras baforadas. “O meu maior pecado eu comecei a praticar durante minhas visitas semanais aos conventos da região, onde eu era solicitado para ministrar a Eucaristia para as irmãs. Em um desses retiros, havia uma freira que estava sempre pronta a sucumbir aos instintos mais perversos da carne, me levando a cometer atos nada cristãos dentro de sua cela. Nós praticávamos o sexo antes e depois da celebração da santa missa. No início de maneira mais convencional, o que aos poucos foi evoluindo para formas cada vez mais selvagens, incluindo também sexo oral e anal. Algum tempo depois, tínhamos que lançar mão de métodos um pouco mais picantes para chegar ao orgasmo. Os fetiches e perversões incluíam a sodomia, o sadomasoquismo, com autoflagelação, genuflexões sobre milho e tampinhas de garrafa enquanto praticávamos a cópula. Ela sussurrava algumas 70 l RUDIRAN MESSIAS
coisas perturbadoras em meus ouvidos, que durante o sexo eram muito estimulantes. Ela dizia coisas do tipo ‘Estamos no céu, meu padre garanhão!’, ou ‘Come a xoxota da tua sóror sagrada!’ e ‘Faz jorrar dentro de mim o leite de Jesus Cristo!’ Fazia-me crer que o orgasmo era uma forma de se chegar a Deus.” Neste momento, o padre foi interrompido por um risinho do confessor, que era feito só de ar saindo pelas narinas. O ambiente estava impregnado com a fumaça do charuto ainda aceso, a ponto de fazer o padre lacrimejar. Mas ele continuou. “Eu teria largado minha batina por ela, mas nossa fé era muito grande para que a gente se distanciasse da vocação. Mas talvez fosse outra coisa o que nos impedia de sermos felizes. O fato é que a irmã abriu para mim, naquela época um padre iniciante, as portas do sexo. Eu havia me tornado um tarado insaciável, encontrando parcerias sexuais também em beatas e fiéis da paróquia, incluindo mulheres casadas e mães de família. Depois de alguns anos, na medida em que minhas perversões iam se agravando e se tornando mais sofisticadas, as mulheres deixavam de representar um estímulo sexual. Aos poucos eu dirigia o foco da minha libido para os seminaristas e para os coroinhas da igreja. Na verdade eu sempre gostei de garotos, e era neles que eu pensava sempre que pecava com uma mulher. Eu passei a querer, cada vez mais intensamente, a coisa real. E quanto mais jovens eles fossem, melhor seria. Acho que minha obsessão por meninos tem a ver com a pele macia, o rosto imberbe, o buço leve que a gente sente como uma pluma quando vai beijar a boquinha deles. O que mais me encanta é aquilo que eles têm e que nem mesmo uma mulher pode oferecer: uma inocente sedução que começa com TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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o sorriso encantador de quem ainda não deixou totalmente de ser criança, de uma sensualidade natural, espontânea e inconsciente com o único objetivo de nos levar à loucura. Mantive com muitos deles uma relação de cumplicidade e sexo. Algumas vezes oferecia doces ou trocava santinhos e rosários por um favor erótico e pelo silêncio deles.” O padre percebeu que a respiração do seu interlocutor estava acelerada. “Algum problema, Reverendo?” “Continue.... Continue...”, solicitou o confessor ofegante. Ainda segurava o charuto fedido em uma das mãos. “Os meninos são muito fáceis de seduzir. Crianças que fazem a catequese já vêm de casa ensinadas a adorar o padre da paróquia. Então, era só oferecer um santinho aqui, uma balinha ali, um rosário de plástico... e observar quais deles tinham aquele olhar um pouco diferente, um jeitinho mais brejeiro. Esses eu convidava para fazer um ‘curso’ de coroinha. Era um curso que eu fazia juntando as crianças de duas em duas para não levantar suspeitas. Nos encontrávamos duas vezes por semana, em aulas que duravam cerca de três horas e meia. Às vezes, eu deixava um dos meninos com uma tarefa na igreja, como polir a prataria do altar, e levava o outro para uma atividade mais íntima. Era quando eu tinha que ser mais cuidadoso. No início os garotos ficavam com medo de mim, quando eu os levava para uma sala fechada. Mas eu sabia ir chegando aos poucos, aproveitando-me da inclinação que eles tinham para a vida religiosa. Dizia tudo o que eles tinham que fazer para se tornarem padres um dia, e minhas instruções começavam a surtir efeito. Eles começavam a me tocar por baixo da batina e aí é como se aqueles momentos fossem sagrados. Como se meu corpo fosse sagrado, igual ao de 72 l RUDIRAN MESSIAS
Cristo. É assim que eu me sinto quando um garoto me proporciona prazer. Mas eu não preciso forçar nada, pois eles se entregam instintivamente.” O Reverendo soltou um gemido baixinho enquanto apagava o charuto. “Você se arrepende de seus pecados, meu filho?” O padre Armando hesitou em responder, mas declarou que não: “De nada me arrependo, apesar de me declarar culpado perante o Senhor meu Deus. Sei que cometi e cometo ainda o pecado da carne, mas nunca em minha vida eu pequei contra o Espírito Santo. Sempre reconheci o poder que atua por meio de Jesus e sei que, se estou vivo e sou assim, é por pura obra e graça de Deus. Mas não posso dizer que pretenda parar de cometer esses pecados.”. “Então você não se arrepende?”, perguntou o Reverendo com uma mal-disfarçada empolgação em seu tom de voz. A brasa do charuto, caída entre seus pés, ainda queimava no chão de madeira do confessionário. “Apenas peço perdão a Deus e a vós, Reverendo. E se porventura esqueci de confessar algum pecado, também peço a Deus perdão. Abençoa-me, perdoa-me e ora por mim pecador.” Foi neste ponto que o confessor, tendo chegado sua hora de proferir a penitência, começou a gargalhar incontrolavelmente. Estava deliciando-se com seu poder de julgar e de condenar dentro daquele templo. Uma luz vermelha se acendeu sobre sua cabeça, revelando ao padre sua real identidade. O confessor abriu a portinha de seu lado do confessionário e o padre pôde ouvir os passos em sua direção, ruidosos e secos como cascos de cavalo batendo em um chão de pedra. Pelo vão que existia entre a cortina e o piso, ele pôde ver o Reverendo aproximar-se, com seus pés TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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de bode e seu rabo pontudo à mostra. Quando ele abriu a cortina, o padre já estava paralisado de medo, que aumentou quando ele viu o rosto deformado do Reverendo, um tanto animalesco, com chifres no alto da cabeça e olhos vermelhos como a luz que havia dentro do confessionário. A batina de seu confessor e algoz estava esticada por uma grande e potente ereção, que não parava de crescer, a ponto de quase rasgar o tecido. A penitência foi proferida, enquanto o Reverendo agarrava o padre Armando pelo pescoço, com uma voz que parecia estar multiplicada. E foi pronunciada lentamente, em alto e bom som, como se fosse para prolongar um prazer maligno: “A sua pena é passar o resto da sua existência no meu inferno particular, rezando no altar do meu falo.” Então ele arrastou o padre, que se agitava inutilmente, até o porão da igreja. Lá embaixo, seu corpo foi encontrado, algumas horas depois, pelos bombeiros que haviam chegado para apagar o incêndio iniciado no confessionário e que havia se alastrado por toda a igreja. A polícia suspeitou de um incêndio criminoso, mas não pode encontrar nenhuma prova concreta no local onde estava o cadáver. De nada adiantou a longa investigação. Nenhuma pista, nenhuma impressão digital, nenhuma arma do crime apareceu. De todo o incidente, restara apenas um cadáver em uma batina, com uma perfuração cirúrgica no pescoço e nenhuma gota de sangue. Duas semanas depois da restauração da igreja, um novo padre foi ordenado para aquela paróquia. Um padre jovem, que já começava sua vida eclesiástica com a agenda lotada. Teria que se acostumar com sua rotina, entre a igreja e as visitas aos conventos da região. 74 l RUDIRAN MESSIAS
Urubus
Padre Luisinho costumava sair da igreja bem cedo aos sábados, para rezar suas missas nas aldeias circunvizinhas. Era uma boa desculpa, pois, no fim das contas, até Deus parecia ter esquecido das pequenas localidades que ficavam no interior do interior. Pegava a velha Belina e rodava uns 18 quilômetros pela estrada de terra batida até a cidade mais próxima, fosse o tempo quente ou frio, de chuva ou de sol, para voltar apenas no final do dia. Aliás, de todos os seus compromissos, aquele era o mais sagrado. Um bom sacerdote, como ele considerava a si próprio, também merecia seu quinhão de recompensas nesse mundo material. E as visitas que ele fazia, por ocasião das viagens, eram pequenas indulgências às quais se dava ao direito, não importando o que houvesse prometido, forçosamente, na hora de sua ordenação. Naquela manhã, porém, ele se atrasaria bastante, deixando beatas e outros fiéis na porta das casas, na frente das igrejas, a esperar. O motivo não era nenhuma surpresa: o calhambeque dos infernos havia estragado novamente. BeTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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bia quase tanto óleo quanto gasolina, e agora um problema na bateria. O jeito era caminhar até a oficina de seu compadre, que ficava no caminho, a cerca de 2 quilômetros da saída do município. Se ele não tivesse uma bateria-reserva, certamente não se incomodaria de emprestar a Kombi por um dia. Voltou até a sacristia para pegar seu chapéu de aba larga, preparando-se para o sol forte de um dia limpo de verão. Antes de pegar a estrada, arrancou duas mexericas do pé, colocando-as no bolso da batina. E ainda uma terceira, que saiu descascando. Tinha o costume de morder os gomos cítricos para disfarçar o mau hálito e o odor das mãos, deixando atrás de si um rastro de cascas e sementes cuspidas. Quando saiu da cidade, a maioria das casas ainda estava com as janelas fechadas – o que era muito bom, porque gostava de ser discreto. Caminhou a passos largos, pois tinha um longo e deserto caminho pela frente. Atravessou a Vila dos Remédios, para além do cemitério, passou pelo caminho dos morros, pela fonte dos amantes e a capelinha de Nossa Senhora do Socorro. O sol, cada vez mais intenso, fazia-o torrar dentro da batina. Continuou caminhando até alcançar um descampado, onde a estrada seguia em linha reta quase a perder de vista. Um caminho silencioso, povoado por insetos pequenos, como carrapatos, formigas e cupins, além de aranhas, cobras e lagartos grandes. Caminhou durante uns quinze minutos, e já sentia os miolos cozinhando por debaixo do chapéu. Por ali não havia nenhuma sombra de árvore ou regaço de água limpa, apenas capim seco e a poeira fina do chão entrando-lhe pelas narinas. Não restava nada além de caminhar, olhando para sua própria sombra no chão. 76 l RUDIRAN MESSIAS
De repente, percebeu que tinha uma companhia inesperada. Uma sombra que rodeava a sua, em largos e perfeitos círculos. Não fosse pela mancha no chão, não teria percebido o parceiro de viagem – que ele era astuto e sorrateiro. Olhou para cima, com a mão a proteger os olhos, como se estivesse confirmando a envergadura das asas que pressentira. O urubu era grande e preto – muito grande e muito preto. Até demais, para dizer a verdade. E isso equivale a dizer que ele era realmente assustador. “Estranho um bicho desses rodear gente viva” – pensou o padre, enquanto levantava o braço para testar o fedor das axilas – “Normalmente, rodeiam carniça.” E ele ainda estava vivo, muito vivo, sim, senhor, apesar da tontura e do calor sufocante. O urubu continuava rodeando, com insistência, como se discordasse silenciosamente. A cada volta, diminuindo o raio do seu círculo de vôo, gradualmente, sem pressa. Quando criança, no caminho da escola, costumava ser atacado por quero-queros, que davam vôos rasantes sobre sua cabeça. Mas bastava tirar a camisa e sacudir no vento para espantá-los, evitando seus afiados esporões. E eram menores, elegantes e ruidosos. Queriam apenas defender os ninhos. Um urubu não. Um urubu é sempre feio, traiçoeiro, ruim mesmo. Um bicho do diabo, como as cobras, os morcegos, os gatos, as aranhas e os escorpiões. A sua simples presença já traz mau agouro. Padre Luisinho apressou ainda mais o passo, e se não correu foi para não atiçar mais o bicho. Quando olhou para cima novamente, percebeu que já eram dois. Esses bichos nunca atacam sozinhos. Ficou mais nervoso, aumentando o suor e o mau-cheiro de sua pele, o que o deixava mais nervoso, aumentando ainda mais o suor e o mau-cheiro de sua pele. Em um ato desesperado, tirou uma das bergaTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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motas do bolso, cujos gomos espremeu pelo pescoço, pelas axilas, pelo sexo e pela região perianal. Se fosse o cheiro que os estava atraindo, isso iria resolver tudo. Ele também sentia o cheiro dos urubus, podia até imaginar o brilho nos olhos das aves, como se eles estivessem animados diante de uma carniça macia e temperada. Como um delicioso pato com molho de laranja. Ou uma vitela daquelas que se desmancham na boca. Ou o fígado ainda quente dum cordeiro recém-abatido. “Meu Deus não haverá de me abandonar em uma hora dessas” – disse o padre com as mãos em oração, fingindo ignorar todas as vezes em que havia esfregado o nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em vão, pelo assoalho da igreja. Por dinheiro, por sexo, por amor ao clero, por ordem da Diocese. Enquanto eles, agora em três, voavam cada vez mais baixo, em círculos menores. O sol ficando mais quente. O sumo ácido da bergamota a lhe arder nas mucosas. A queimar a pele exposta. Fez o sinal da cruz nervosamente, com a força e a raiva de Judas Escariotes, como se estivesse crucificando, novamente, Jesus Cristo. Havia acreditado em um Deus antropomórfico, maniqueísta, mau e vingativo, que agora o condenava sumariamente. Seria isso mesmo? Mais um cordeiro de Deus a tirar os pecados do mundo? “Não. Isso é coisa do Diabo.” – gritou com toda a força dos pulmões. Tremia, ofegante, com o pulso acelerado. Olhou mais uma vez para cima e viu quatro urubus, voando cada vez mais baixo, cada vez mais perto. Tirou o chapéu e começou a rodeá-lo no ar, freneticamente, sem efeito que não fosse o de aproximar cada vez mais as aves de rapina. Então, em pleno desespero, resolveu tirar a batina para tentar, com ela, acertá-los em pleno vôo. Dessa forma, deixou 78 l RUDIRAN MESSIAS
ao ar livre suas partes íntimas, azedas pela falta de asseio e o sumo das mexericas. Os corvos, mais acostumados ao calor e ao rechaço, muito mais vivazes do que o padre, começaram a atacar no momento exato, arrancando-lhe um olho. Depois um testículo. Um pedaço tenro do abdome. Um naco de seu pescoço, fazendo esguichar o sangue. Até que o finado Luisinho tombasse feito pião mal-lançado, agonizando até se esvaziar por completo, dando a eles de comer e beber em abundância. Dele não ficou nada que prestasse nesse mundo de viventes, apenas o resto de uma carcaça disforme e irreconhecível, recoberta de moscas varejeiras. As pessoas da paróquia, de modo geral, resignaramse rapidamente com o fato. Naquele domingo não houve missa, e os fiéis viveram três semanas de liberdade religiosa, espiritual, mística; sem dogmas, ritos e penitências; sem pecados que não fossem veniais; sem dizer amém; sem abocanhar o corpo de Cristo; sem crucificá-lo ao passar pela porta da igreja; sem rezar o terço ou freqüentar o confessionário. Apenas algumas senhoras passariam a vestir preto, a chorar nas longas tardes, sempre que os maridos saíssem para trabalhar.
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Succubus ex machina
Que Deus me perdoe. Mas todo grande amor, quando verdadeiro, é capaz de colocar em xeque a fé, as crenças, os princípios de um homem. Descobri isso numa época em que tudo parecia desmoronar à minha volta. A vida que eu havia construído, ao longo de tantos anos perdidos, era como um vitral de igreja, belo e vulnerável, que então se estilhaçava sobre minha cabeça. E eu mesmo não passava de uma ilusão. Uma mentira religiosamente inventada dentro do seminário. Urdida durante missas, retiros, comunhões. Engendrada no confessionário, no refeitório, no catecismo, nos banheiros e dormitórios coletivos. E lançada aos fiéis para pregar as verdades cristãs. O sacerdócio me absorvia. Além dos sacramentos, cumpria uma rotina de atividades, atendendo a todos os suplicantes e desesperados, administrando a igreja. Além de eventos beneficentes e celebrações de dias santos. No tempo que sobrava, concentrava-me no terço, na leitura da Bíblia Sagrada, na flagelação do corpo, tudo para evitar pensamentos impuros, manter distante a voz familiar que TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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tentava minha carne. A voz de Jezebel. Com o tempo, passei a dormir e acordar cada vez mais cedo. Sobrecarregueime de atividades, as mais diversas: construí um viveiro de pássaros no fundo da igreja, criei um grupo de jovens na paróquia, comecei a celebrar a missa em casas de repouso e orfanatos. Todas às terças e quintas-feiras, às quinze para as quatro da tarde, comparecia ao Asilo de Mendicidade, que funcionava no prédio de um seminário desativado, contíguo a um convento de irmãs beneditinas, onde rezava a missa em uma pequena capela para idosos, irmãs de fé e algumas mulheres que desenvolviam trabalho voluntário no lugar. Foi lá que a conheci, moça ainda. Devia ter uns vinte e cinco anos, mais ou menos. Sentava-se sempre perto, ouvindo cada uma de minhas palavras com ardor, olhandome fixamente, com devoção, de uma forma tão intensa que chegava a me entorpecer os pensamentos. No momento da Comunhão, era a primeira da fila, abrindo a boca com languidez para receber a hóstia, movendo-se delicadamente, de maneira intencional, para que seus lábios tocassem meus dedos, deixando uma marca rosada de batom. Acabado o culto, sempre dava um jeito de puxar conversa, fazer assunto, comentar meu sermão. Sempre sedutora, com um olhar que sugeria pensamentos impuros e me levavam a ajoelhar em tampinhas de garrafa, macular as costas com uma tira de couro cru enquanto rezava diante do crucifixo. Tudo para me livrar da imagem daquele corpo de mulher, seu cheiro, sua volúpia. Eu pedia, eu implorava ao Cristo nu que afastasse de mim aquele cálice. Mas ele me fitava mudo, com suas chagas, o corpo mais castigado que o meu. Seu olhar, cada vez mais, me parecia lânguido e saciado, ao invés de sugerir sofrimento. 82 l RUDIRAN MESSIAS
Um dia, quando começava a celebrar o culto dominical em minha paróquia, surpreendi-me ao vê-la na primeira fila, sentada entre minhas fiéis beatas. Meus olhos foram atraídos pelos seus, em um momento que parecia mágico. Terminada a missa, veio a mim pedir conselhos. Dizia estar deprimida, ansiosa. Queria confessar-se. Atordoado, orientei-lhe sobre os dias e horários de confissão, que voltasse no dia seguinte, antes da missa das seis. Depois me retirei para rezar o rosário. Recolhi-me aos meus aposentos mais cedo, sem jantar, e fiquei ajoelhado, rezando mecanicamente e me castigando até sentir o corpo exausto. Caí em sono profundo, para novamente ver Jezebel em meus sonhos intranqüilos. Jezebel tratando das feridas em minhas costas; Jezebel lambendo as chagas em meus pulsos; Jezebel pregando-me na cruz e introduzindo os dedos na vagina, estimulando o clitóris enquanto me via sangrar. Eu pregado na cruz, pleno de vontade, nada podia fazer, vendo-a arder diante de mim, nua. Minha paixão por ela era como a de Cristo, crucificando-me, martirizando-me até que eu acordasse suado e fremente em minha cela vazia. Na tarde seguinte, apareceu no confessionário, dizendo-se apaixonada por “um padre”. Falou do seu sentimento de culpa, do impulso de se declarar, do medo de ser rejeitada, dos seus desejos impuros e da carne fraca. Foi com o coração partido que a desencorajei, falando da vida monástica, do voto de castidade, do pecado da luxúria. Mandei que rezasse muito. Duas novenas como penitência. Sentia uma parte de mim morrendo enquanto a via partir, através da janelinha de treliça. Duas semanas se passaram sem que a visse, tanto no asilo quanto na igreja. Duas semanas sem vê-la, mas nem por isso estava livre de suas lembranças, de seu olhar e da TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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voz que me sugeria pensamentos torpes. Até que um dia o pároco me chamou para atender o telefone, logo após a missa. Era a mesma voz, chorosa, dizendo que havia tentado tudo, que queria devotar-me seu amor, seu corpo e alma, ou então morrer. E que fosse por suas próprias mãos, que ainda era melhor do que fenecer aos poucos, como uma flor murcha, carente de água e terra para se manter viva. Chantageou-me emocionalmente até que atendesse seu pedido e fosse socorrê-la. Fui até lá com o coração agitado, ora apertado de remorso, ora explodindo de emoção, sucessivamente, quase saindo pela boca. Dirigi a Variant até a Baixa, com as pernas bambas e a mente atordoada. Estacionei em frente ao prédio de Jezebel e toquei o interfone. Identifiquei-me, recebendo como resposta apenas o zumbido contínuo que destrancava a fechadura. Subi as escadas até o quarto andar e encontrei a porta de seu apartamento encostada. Bati levemente com os nós de meus dedos na madeira, avisando que chegava, que estava entrando. A luz da sala estava desligada – apenas um abajur irradiava as paredes de âmbar. Fechei a porta e chamei por seu nome. Então seu rosto surgiu, por trás de uma poltrona de encosto alto que ficava de costas para a porta. Dei alguns passos e fui tomado de sobressalto quando percebi que ela estava completamente nua, como em meus sonhos. Levantou e se dependurou em meu pescoço, chorando de emoção e fazendo juras de amor. E mesmo que minha consciência me conduzisse a chamá-la à realidade – que se vestisse, que não fizesse aquilo, que era pecado –, meu corpo reagia pedindo o oposto. Minhas mãos trêmulas percorriam sua pele por instinto, aninhando-se em seu cangote, segurando firmemente seus glúteos, comprimindo seu corpo de encontro ao meu, apertando meu pênis ereto. 84 l RUDIRAN MESSIAS
Nossos corpos se encontraram quentes, sedentos, insanos, até que explodíssemos em puro êxtase, saciados, úmidos, abençoados por Deus. Em nosso orgasmo não havia culpa, ou remorso, apenas carinho, paixão, amor. Como se emanássemos uma vibração de desejo e beleza para além daquela sala, daquele prédio, muito além da cidade, nutrindo o mundo todo, o sistema solar, a galáxia. Éramos apenas nós e o universo inabitado. A culpa só veio depois, quando já estávamos separados, e todos os crucifixos, todas as imagens de santos pareciam me reprovar, inquisidores. Intensifiquei as rezas e os castigos corporais, buscando purificação. Mas já era tarde. Daquela noite em diante, percebi que, por trás de minha batina, ainda havia um homem. Ao vê-la, esse homem que eu ainda era ansiava por seu corpo nu e generoso. Com o passar do tempo, de padre me tornei um padreador, encontrando-me com Jezebel às escondidas para satisfazer os instintos do corpo, com freqüência cada vez maior. Ela, cada vez mais insaciável, revelava-se pouco ortodoxa em relação ao sexo. Uma vez, após a missa no Asilo, conseguiu despistar a todos e me levar a um quarto desocupado, trancando-se comigo lá dentro para um sexo rápido. Em outra ocasião, roubou um hábito completo e me esperou em seu apartamento como se fosse freira. Depois quis transar usando minha batina e não tardou para que invertesse o jogo, trazendo um hábito do meu tamanho. Também pediu que eu trouxesse hóstias, muitas delas, para fazer uma festinha com vinho tinto. Perturbado, tinha a mente invadida por imagens sacrílegas, de Jesus copulando com Maria Madalena, abençoando Virgem Maria com um cunnilingus, dedicando-se a uma felação em Pôncio Pilatos. Na medida em que Jezebel se sentia mais à vontaTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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de, meus sentimentos religiosos de culpa minguavam, relegados a um segundo plano, até desaparecerem por completo. Isso aconteceu quando, numa noite, após amarrar meus braços e pernas na cama, Jezebel vestiu-se de couro e me puniu com um relho, fazendo-me escravo de seu prazer, tornando-me submisso e chamando-me carinhosamente de “coroinha”. Pedindo que eu repetisse que era só dela, de mais ninguém. Encontramos, então, nossa forma perfeita de relacionamento. Ela descarregando sua fúria sexual insana enquanto eu, na mesma medida em que me excitava saciando-a, recebia o castigo que merecia. Com ela aprendi o que era o amor em toda a sua intensidade. Ela era a minha religião e eu não precisava mais da Igreja. Também não conseguia suportar uma vida dupla. Sentia-me impuro para a liturgia e decidi deixar a Igreja, enfrentando um processo lento e doloroso para mim. Quanto a isso, não sofri nenhuma pressão de Jezebel. Ela nunca exigiu nada a esse respeito, nunca falou de casamento. Foi, inclusive, muito reticente nas ocasiões em que abordei o assunto. Repleta de idéias heréticas, pedia que não me preocupasse, que relaxasse. O importante é que ninguém soubesse, que um amor como o nosso não poderia ser algo reprovável por Deus. Os homens, sim, poderiam não entender, mas eles que fossem cuidar de suas vidas, ajoelhassem no próprio milho. Para ela, tudo podia ficar tal qual estava. Mesmo assim, encaminhei o processo burocrático na Igreja, passando por várias entrevistas, nas quais explanava meus motivos para abandonar o sacerdócio. Foram poucos meses até receber a carta de alforria, libertando-me das amarras do catolicismo. Enchi uma pequena sacola com meus objetos de uso pessoal e parti para a casa de Jeze86 l RUDIRAN MESSIAS
bel. Vivemos alguns meses de sexo e fé a sós. Comecei a dar aulas de educação religiosa em um colégio lassalista, para ajudar nas despesas da casa. Quando estávamos juntos, transávamos loucamente, líamos a bíblia, transávamos mais um pouco. Felizes por algum tempo. No correr da barca, sentia seu distanciamento gradual, seu fervor na cama se esvaindo, a adoção de uma postura fraterna. Pouco a pouco, acabava-se o amor, o encanto, o tesão. Tudo aquilo corria pelo ralo. Também isso aprendi com Jezebel. Hoje sei que aquilo que chamam de amor não consiste de um sentimento nobre, mas apenas de uma necessidade fisiológica, corpórea. Pois, mesmo quando a razão nega, o coração insiste. É o corpo que exige a presença da pessoa amada, a satisfação dos desejos, a busca incansável pela plenitude. Jezebel saiu de minha vida para seguir a carreira eclesiástica, internando-se em um convento tempos depois. Tive que aprender a satisfazer minhas necessidades com outros corpos, outras pessoas. Depois dela vieram muitos outros, me ensinando novas práticas sexuais que fui acumulando em meu repertório. Ao longo dos anos percebi que todos eles, assim como Jezebel não buscavam por mim, pessoa, mas pelo padre – homem e objeto – que os conduziu por seus descaminhos e neles se perdeu, para dar lugar a um homem quarentão, integral e tarado. Deus é amor.
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Histórias de sexo e perversão Baunilha Complexo de Ripley Amor cachorro Ronda Te amo mais que a morte
Baunilha
Como se não bastasse toda a confusão montada pelo pessoal da ouvidoria. Todos aqueles interrogatórios, motivados por um telefonema anônimo e um envelope com provas irrefutáveis, que ligavam o pessoal da DP a uma possível cooperação com o tráfico de entorpecentes. Algum traidor havia feito a delação, tomando o cuidado de resguardar a própria identidade, e agora todos os oficiais eram questionados em detalhes sobre isso ou aquilo, até que aparecessem contradições nos depoimentos, para desmascarar os cabeças da operação. À agente Carvalho, única mulher da central, foi delegada a tarefa de encaminhar o público externo para as unidades mais próximas. Ordens diretas do Peçanha, o investigador mais truculento da central, temido por todos pela sua perspicácia e coragem para desbaratar esquemas de corrupção. Carvalho, ao contrário de seus colegas, não tinha nada a temer. Estava positivamente decidida a não delatar ninguém, para sua própria segurança – esse havia sido o conselho de seu namorado, que trabalhava na ouvidoria como o Peçanha e sabia dos lances. Era TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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só ficar de bico fechado e não haveria provas contra ela – isso era certo. Mas, enfim: o dia estava sendo atípico e seu nervosismo – potencializado pela tensão pré-menstrual – só aumentava na medida em que precisava lidar com a irritação das pessoas que chegavam à delegacia. Pois bem. Como se não bastasse tudo aquilo, o telefone também tocava incessantemente. O Alemão, que até então atendia às chamadas, havia sido levado para a sala do Alcides para fornecer explicações. Então Carvalho precisou sair de seu posto, emputecida, para atender aquela merda, antes que perdesse as estribeiras e desse um tiro no maldito aparelho. Tirou o fone do gancho: “Sétima DP, polícia total, boa tarde.” Do outro lado da linha, uma voz modificada por sintetizador pronunciou apenas uma palavra: “.” Confusa, ela solicitou que o interlocutor se identificasse, mas a voz metálica se limitou a repetir: “Baunilha. Essa é sua palavrinha mágica. Baunilha. Não se esqueça.” E desligou em sua cara. Carvalho achou aquilo tudo muito estranho. E preocupante, porque os telefones podiam estar com grampo. De alguma forma, aquele telefonema poderia lançar suspeitas sobre ela: a sujeita atende o telefone e alguém simplesmente passa um código – como um investigador da ouvidoria poderia interpretar isso? E quem diabos havia ligado, deixando-lhe a senha absurda? Foi logo no início da tarde, e aquela voz lhe acompanharia pelo resto do expediente, atormentando-lhe ainda mais. Em torno das quatorze horas, foi chamada à sala de interrogatório e respondeu algumas perguntas padronizadas. Pelo jeito, seu nome não fora citado por nenhum dos colegas. Perguntaram como estava o atendimento no guichê, se algo estranho ou suspeito tinha ocorrido até aquela hora. Resolvera não mencionar nada. Se perguntassem algo mais específi92 l RUDIRAN MESSIAS
co sobre a ligação telefônica, diria que era, provavelmente, um trote. Para todos os efeitos, ela não achava nada de estranho naquilo. Sabe como é. O gato morreu pela língua – pensava consigo mesma. Mas seu turno acabaria logo. Mais uma sexta-feira chegava ao fim, o que lhe parecia inacreditável. Então Reinaldo viria lhe buscar para jantarem juntos. Depois sairiam para dançar e acabariam a noite no apartamento dele. O script era sempre o mesmo: chegariam em casa e ele prepararia um uísque com guaraná. Relaxariam no sofá da sala e por ali começariam os arretos. Ele a puxaria pelo braço até a cama e colocaria no vídeo cassete um filme erótico. Então começaria a roçar a perna cabeluda na sua e transariam até a manhã do dia seguinte. Era tudo o que ela precisava para desopilar. Carvalho se excitava só de imaginar os pêlos de Reinaldo sobre sua coxa, pois sabia que aquele seria o prenúncio de uma maratona sexual. Naldo sempre tinha sido tão criativo na cama, e suas artimanhas cada vez mais ousadas lhe levavam à loucura. Sem contar a “pegada” dele. A agente já não podia nem imaginar onde aquilo tudo iria parar, pois a tara do namorado não tinha limites. Já havia usado com ela suas algemas incontáveis vezes, prendendo-a no espaldar da cama. Sem contar o chicote e o vibrador negro com o qual a presenteara durante a última visita deles ao motel. Às cinco para as sete Carvalho pegou sua jaqueta, sua bolsa e bateu o cartão-ponto. Quando saiu, avistou a viatura de Naldo do outro lado da rua. Pontual como sempre, ele lhe deu um aceno breve, colocando a mão para o lado de fora. Então ela caminhou em sua direção. Foi quando uma van se atravessou entre os dois, saída do nada, cantando pneus e parando muito rente ao meio fio, antes mesmo que TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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a agente pudesse descer da calçada. De dentro dela saíram dois homens de preto, que usavam meias de nylon para cobrir o rosto. Colocaram-na para dentro e taparam sua boca com uma espécie de mordaça – uma bola que obstruía totalmente sua boca, atravessada por um cordão de couro que se amarrava na nuca. Então cobriram sua cabeça com um saco, enquanto ela sentia o carro arrancando aos trancos. Atrás deles, ouvia o som de uma sirene. Provavelmente da viatura de Naldo. A van começou a acelerar em curvas e guinadas bruscas, a ponto de tirar-lhe a noção de onde estava ou para onde iria, deixando a sirene para trás. Ouvia barulhos de buzina e de freadas, os sinos do trem que passava. Depois o silêncio. Na certa estaria sendo levada para um local afastado da cidade. Nem sabia o motivo pelo qual a seqüestravam. Afinal, ela não tinha dito nada do que sabia. Procurou reagir esperneando, distribuindo coices a esmo como uma epilética. Tentou desesperadamente pedir por socorro, chegando ao ponto de quase sufocar com a própria saliva. Mesmo com aquele saco na cabeça, mesmo sem a menor possibilidade de fuga. Então eles a agarraram com força e ela sentiu um forte cheiro de clorofórmio, antes de apagar. Acordou em um galpão abandonado do cais do porto, com a cabeça zonza. As idéias meio soltas na mente, confusas. Tinham lhe prendido pelos pulsos a uma corda que pendia do teto. Ela levantou a cabeça e lá estavam os mesmos homens com as meias na cabeça. Apertou os olhos para focalizar a imagem. Então um deles lhe jogou um balde de água gelada no rosto. O outro perguntou-lhe, com um sorriso sardônico: “Então, Bela Adormecida, já acordou?” E gargalhou malignamente, antes de começar com a pressão psicológica: “Olha aqui, mocinha. Acho melhor 94 l RUDIRAN MESSIAS
tu abrires o bico e falares o que sabes. É com peixe grande que tu estás te metendo. E eu sou experiente nisso. Se não abrir o biquinho por bem, vai ser por mal.” Deu ordens para que o outro trouxesse o carrinho – um carro metálico de rodinhas, que ele pegou detrás de um biombo improvisado. Tinha duas bandejas paralelas, apinhadas de instrumentos de tortura que ele apresentava com um contido gesto da mão: o conjunto de bisturis e alicates; as palmatórias de diversos formatos; um soco inglês; um conjunto de relhos; um pequeno aparelho de choques – desses usados para defesa pessoal; um reanimador cardíaco de bolso, acoplado a uma bateria, além de outras coisas que ela nem ao menos conseguia distinguir, que ainda hoje não se poderia descrever em detalhes. O torturador falou claramente, com muita calma: “Quero os nomes. Podes começar a mexer a queixada. Quanto antes tu disseres, melhor para ti.”. Carvalho perguntava: “Que nomes? Do quê tu estás falando?”. Então o homem moveu o carrinho para o lado e lhe acertou um soco no estômago. “Vais falar ou não vais? Querendo brincar um pouco, antes de abrir o bico?” Acertou-lhe outro soco na barriga, mais forte. Carvalho sentiu o gosto de seu próprio sangue na boca. “Tu tens duas saídas daqui: uma é com vida – para isso tu tens que entregar teus camaradinhas, dizer quem está por dentro do lance; a outra é indo pro saco – daí é só não dizeres nada e um dia eu te encontro na terra dos pés-juntos. Vais falar ou não vais?” Carvalho jurou que não sabia de nada. Que não tinha nada a ver com aquele esquema. Então o torturador mandou o outro homem tirar-lhe a camisa. Pegou um dos relhos e bateu com força embaixo de seu braço. Ela sentiu o couro se dobrando por suas costelas, lanhando a pele. As aparas de couro tocando seu seio, do outro lado. O algoz TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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berrou: “É claro que tu não tens nada a ver com o esquema, idiota! Estás te fazendo de otária? O que eu quero é saber do telefonema anônimo, do envelope com as provas. Foste tu? Quem mandou, filha da puta? Heim, cagüeta de merda? Ou foram os outros? HEIM? FALA!” Ela fingiu que não entendia, que não sabia de nada. Foi quando o homem escolheu um chicote maior, decorado com rebites metálicos que atravessavam as tiras de ponta a ponta. Naquele momento, Carvalho pôde distinguir um homem de sobretudo que saía de trás do biombo. Seguramente estivera observando o jogo de tortura o tempo todo. Usando máscara de vinil preta, avisou aos berros que continuaria dali por diante: “Agora é minha vez de brincar, seus macacos incompetentes.” Então tirou o longo casaco e deixou à mostra sua roupa de vinil preta, colante, que parecia ter sido costurada sobre o corpo. Sua constituição física era forte, como a de Reinaldo. Não fosse aquela situação toda, as dores que sentia pelo corpo, o medo que despertava nela o carrinho das torturas, teria achado o homem sexualmente excitante. Chegou a ter uma sensação próxima da excitação quando ele mandou que os cabeçasde-meia lhe tirassem o restante de suas roupas, enquanto pegava um objeto comprido, ligado por um fio à bateria, e lhe analisava com um olhar sádico através da máscara. Disse que era ela mesma quem tinha escolhido sofrer. Que podia ter falado tudo para seus homens, mas decidira calar. Com ele a coisa seria muito pior. “Tu que sabes, neném! Agora, quando tu decidires falar, é só abrires a boca que eu paro de fazer carinho.” Naquela voz do torturador havia algo de familiar. Ele espremia as cordas vocais em uma voz excessivamente grave, gritava demais, esganiçava-se. Ainda assim, havia algo de conhecido no timbre. Mas ela estava 96 l RUDIRAN MESSIAS
muito atordoada para raciocinar. Agora mesmo ele aproximava a ponta do instrumento de seu mamilo direito e lhe dava um choque elétrico. Fez o mesmo do outro lado e Carvalho pôde sentir seu próprio mijo correndo pelas pernas. Continuava brincando, fazendo desenhos com aquele negócio em sua barriga até que ela soltasse os intestinos. Depois aplicou um eletrochoque em seu clitóris, fazendo-a emitir um gemido forte. Seu riso cínico e moderado sugeria que era experiente no que fazia. Que aquilo poderia durar para sempre. Perguntou se Carvalho não tinha mudado de idéia. Ela ainda dizia que não sabia de nada, tentando parecer o mais convincente possível, sem ver credulidade nenhuma no rosto do torturador. Apenas sinais claros de que ele perdia a paciência. Talvez fosse apenas tesão. Ordenou aos homens que levantassem as pernas dela, e eles assim fizeram. Cada um erguendo uma delas para o alto, separando-as bem uma da outra. Carvalho, já no limite de suas forças, viu que um dos cabeças-de-meia espremia uma bisnaga de lubrificante no seu ânus, enquanto o homem de vinil se aproximava com aquele comprido aparelho de eletrochoques, provocando-a: “Tu gostas, né? Tu gooooostas!” Foi quando uma voz metálica ecoou dentro de sua cabeça, soprada pelo anjo da guarda de seus delírios no purgatório. Uma voz vinda de longe, com o mesmo timbre e a mesma distorção da que ouvira ao telefone. dizendo a palavra: “Baunilha.” Precisou juntar todas as suas forças para repetir aquela senha: “Baunilha.” Assim que ela acabou de falar, o torturador ordenou aos homens: “Soltem-na e deixem o galpão.” Eles atravessaram a porta de correr e a fecharam, produzindo um ruído metálico. Agora estavam os dois a sós: homem e mulher. TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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Então ele a pôs de bruços e deitou-se sobre seu corpo. Segurando-a pelos cabelos, penetrou-a por trás, arregaçandoa bem suas pernas. Seguiu em uma coreografia de filme erótico, levantando suas cadeiras e arregaçando-a bem, enquanto a cabeça da mulher continuava caída ao solo. Batia em seu traseiro e a penetrava intercaladamente na vagina e no ânus, até sentir seu sexo arrefecer de todo o fervor sexual. Até gozar. Até perceber que o corpo sob ele também estava frio. Virou-a de barriga para cima e viu que seus olhos estavam abertos, vítreos. Pressionou os dedos em seu pescoço, tentando detectar-lhe a pulsação. Depois tentou uma respiração boca a boca, alguns golpes com as mãos entrelaçadas logo abaixo do peito. Aplicou-lhe alguns choques com o reanimador cardíaco. Mas o corpo de Carvalho permanecia inerte. Não havia mais nada a fazer, além de dizer adeus. Então Reinaldo retirou sua máscara de vinil em desespero.
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Complexo de Ripley
Sempre quis ser outra pessoa. Penso que foi precisamente isso o que me impulsionou para a carreira de ator: a possibilidade de assumir outra personalidade, outra história, outra condição enquanto ser humano. Mesmo que isso se configurasse em uma situação provisória. Bastava que eu fosse capaz de convencer a mim mesmo e fazer com que as outras pessoas acreditassem naquela realidade sem qualquer sombra de dúvida por algum tempo. Para mim, era como viver mais de uma vida dentro da mesma, o que me fazia sentir como se vivesse uma aventura extremamente excitante. Assim, quando me formei na escola, não tive nenhuma espécie de dúvida sobre qual carreira gostaria de seguir. Ao me inscrever para o concurso vestibular, decidi optar pela faculdade de artes cênicas. E passei em primeira chamada, ingressando no mundo artístico pela porta da academia. Foram anos nos quais aprendi muito; e ao longo dos quais também me diverti nas horas vagas, acompanhado de amigos de péssima influência. Artistas são seres destinados à danação e à loucura, por natureza. A arte é risco e fascínio. E os atores em formação, principalmente aqueles tipinhos TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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meio hippongas, são seres fadados a aprender na vida por tentativa e erro. A arte é imprecisa, e ao redor dela existe um mundo repleto de drogas, de álcool e de sexo desenfreado, desprevenido. Eu me entreguei a tudo isso sem culpa: ao sexo sem preconceitos, sem limitações de qualquer espécie. Fosse com homens ou mulheres – sexo em casa, na rua, em audições para seleção de atores; a dois, a três ou em grupo; convencional ou pervertido. Cada amante era uma oportunidade de me descobrir um novo homem, me satisfazendo nas necessidades mais básicas do ser humano, que proporcionava prazer a mim e a todos com os quais eu me relacionava. Na época, eu ainda era um corpo que valia a pena, uma espécie de promessa para o futuro. Desses garotos que se vê andando pela rua e dos quais se pensa: esse vai longe. Como resultado, não foi nada difícil conseguir papéis de coadjuvante em diversas montagens teatrais. Lá pelo meio da faculdade eu já era um ator de sucesso no teatro local, participando de festas, de sarrinhos culturais e encenando peças dos diretores mais badalados, que dispunham de reconhecimento de público e de crítica nos meios de cultura marginal. No início, conseguia apenas papéis em peças de vanguarda, no estilo Teatro Alternativo, encarnando personagens de Gean Genet. Após alguns anos, tendo conquistado uns poucos prêmios e me sentindo no domínio pleno da técnica da representação, eu ganhava cada vez mais convites para estrelar como ator principal. Até o dia em que fui escalado para integrar o elenco de uma novela televisiva, no horário nobre da maior emissora de televisão do Brasil. O que seria o sonho de qualquer ator na minha condição, depois de viver tantos anos à míngua financeira – sem salário fixo, em despoupança, com muito trabalho e parcas gratificações. Vivendo às expensas de 100 l RUDIRAN MESSIAS
familiares. Mas eu não estava feliz, e aquela oportunidade não me dizia nada. Não parecia que fosse resolver meus problemas mais profundos. Talvez fossem as drogas, aquele estado perene de loucura que me travava a mandíbula e puxava minha alma para a sarjeta. Sim, talvez fosse isso o que me impedia de ver a oportunidade que estava à minha frente, aquele cavalo branco que só passa uma vez na vida. Quando ele aparece, ou se pega o garanhão pela crina, ou babaus! Já era! Mas havia sempre a sensação de que faltava algo em minha vida. Algum sentimento, alguma emoção mais forte que se apagara dentro de mim. E não tive o tutano para não me deixar levar por aquela sensação terrível. Passado ao largo o cavalo branco, foi justamente isso o que aconteceu com minha vida: babaus! Logo eu, que me espremia emocionalmente, envolvendo-me de corpo e alma com minhas personagens, agora me via árido de sentimentos. Sorrateiramente, a verdade dos palcos vazava para minha vida real, envolvendo-me em mentiras reais. Nem ao menos o sexo me satisfazia, tão vazio de sentidos. Como se os corpos fundidos um dentro do outro fossem duas cascas ocas, dois porongos que se encontrassem ao acaso, interseccionando-se e se enchendo ainda mais de um vazio doloroso. Inúteis, qual frutas sem polpa. Continuei levando a vida naquela rotina irresponsável. O que, bem no fundo, me custava a saúde física e emocional. Mas havia algo bem lá no fundo de mim que se mantinha preservado, como uma compota. E era esse algo que me levava ao divã do psiquiatra uma vez por semana. Um dia, durante minha sessão terapêutica, tive o insight de que o fingimento e a representação não eram mais suficientes para nutrir meu funcionamento interno. Eu havia lido todos os livros de Patricia Highsmith, e tudo fazia tanto TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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sentido. Será que a terapeuta tinha lido algum dos livros de Ripley? Eu ficava ali, sentado na poltrona, imaginando que se eu dissesse tudo o que pensava e vivia, tudo o que planejava viver, ela poderia ter um insight também, e diagnosticar que eu sofria de complexo de Ripley ou algo do gênero. Acho que ela não gostava de literatura contemporânea. É. Levava jeito de gostar dos clássicos. Mas e quanto a mim? Quanto tempo havia se passado desde que eu assumira tantas personalidades impunemente, sem arcar com as conseqüências por ser desse ou daquele jeito? Eu sabia, no meu íntimo, que todo mundo paga o preço por ser aquilo que é. Então chegara ao ponto no qual precisava descobrir, novamente, minha verdade. Talvez vivendo outra vida. Dando-me uma nova chance. Para isso eu precisava morrer e nascer novamente – o que, obviamente, seria impossível. Ou tomar o lugar de outra pessoa de verdade – o que, eu tinha certeza, estaria ao alcance de minhas possibilidades – apesar de parecer a idéia mais insana do mundo. Afinal, eu já não era mais eu. Não conseguiria mais atingir aquele estado no qual se está no pleno conhecimento do que se é. Tampouco aceitaria viver o fútil faz-de-conta do dia-adia. Eu desejava muito, com todas as forças, que uma nova oportunidade me fosse dada por Deus para me reencontrar. E teria que ser fora do palco, por um tempo indeterminado. Ou pelo menos até que eu conseguisse ajeitar as coisas. Precisava compensar os anos e anos ao longo dos quais eu tinha traçado para minha vida um caminho errado. Eu tinha andado a esmo e agora precisava fazer o percurso de volta, encontrar novamente a velha encruzilhada, fazer uma nova escolha. Foi no resgate de uma vida desperdiçada e na busca por uma outra, que me havia sido subtraída ao longo da estrada, que eu pus em prática um plano bas102 l RUDIRAN MESSIAS
tante elaborado. Era preciso pensar em tudo, nos mínimos detalhes. Afinal, é da sabedoria popular que a mentira tem pernas curtas. E o caminho que eu estava traçando haveria de ser bastante longo, onde cada passo seria a oportunidade de um tropeço. Com minha estratégia em mente, comecei a freqüentar salas de bate-papo na internet, dando preferência para os grupos destinados a encontros homossexuais em outras cidades, em outros estados. Ao me logar escolhia sempre um nome diferente, instigante. Um dia eu era o Punk25SP, 1,80m, 75kg, olhos e cabelos castanhos, à procura de um parceiro na área do grande ABC paulista. No outro, era simplesmente Miguel, moreno alto, 1,75m, 70kg, publicitário, em busca de caras descolados para possível relacionamento a dois. Ou SexoJáSP, 20cm, 1,70m, 65kg, moreno paulistano em busca de aventura sexual. Escolher um nome interessante é de essencial valia para que outras pessoas aceitem teclar com você. Algo que pode ser considerado por muitos como uma verdadeira arte: em uma sala repleta de pessoas em busca de uma noite de sexo, ou um par romântico, quem sabe até uma simples troca de fotografias de nu, conseguir entabular uma conversação séria pode ser uma tarefa árdua. Mas para mim isso era muito, muito fácil. Nesta área dos fingimentos e dissimulações, eu conseguia ser coerente no mais das vezes, não deixando nem ao menos sombra de dúvida em relação ao que eu fosse ou dissesse ser. Bem, analisando friamente, hoje, penso que alguém com um pouquinho de inteligência poderia até pegar uma coisa que eu tivesse dito aqui, outra ali, e talvez até sacasse tudo. Mas o início das conversas era sempre algo vago: bastava que eu me desmentisse, ou que dissesse que o outro tinha se enganado, e estaria tudo na estaca zero noTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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vamente. Ao que me parecia, era mais fácil mentir do que encontrar alguém com o mínimo de malícia para me pegar no contrapé. O que acontece na vida real é que muitas vezes as pessoas são burras mesmo. E, muitas vezes, elas têm uma pré-disposição ao auto-engano – e assim vivem felizes. Pessoas são como atores no palco, em uma grande comédia de época: aqui está o bufão, ali o galã, a donzela, o vilão. Todos mascarando o fingimento, acreditando piamente no que vivem, enquanto desfiam suas alegrias e tristezas a uma platéia vazia. No mundo virtual tudo me parecia diferente. O mundo real era um simulacro desta realidade que as pessoas buscavam – e continuam sempre a buscar – a sedimentação de uma outra forma de vida. Como eu, que estava ali para ser o que desejava. Mas eu queria mais – eu queria tudo. E queria que fosse para valer. Em uma madrugada de quarta para quinta-feira, quando eu já estava quase desconectando, comecei a teclar com um surfistinha do Guarujá, no litoral paulista. Ficamos algum tempo conversando e ele mandou uma foto. Bem interessante, o guri: saradinho, pele bronzeada, cabelo descolorido. Tinha um estilo de vida totalmente diferente do meu, mas com um perfil similar o bastante para que eu me interessasse por ele. Fisicamente, parecia muito comigo. Bastaria que eu me puxasse nos exercícios, deixasse o cabelo crescer desalinhado, investisse em umas seções de bronzeamento artificial, e ficaria parecido com ele até mesmo na fisionomia. Havia, ainda, outras vantagens: ele morava sozinho, dizia ter poucos amigos e era novo o bastante. Teclamos a noite toda e logo já estávamos combinando encontros futuros. Eu disse para ele que era engenheiro, vivia na capital e que me dispunha a visitá-lo. Sugeri que passássemos um final de semana juntos. Mas eu 104 l RUDIRAN MESSIAS
precisava ganhar tempo, fazer mais exercícios, quem sabe investir algum dinheiro em bioplastia estético-facial para intensificar nossas semelhanças. Mas nada que eu não pudesse fazer às minhas próprias custas. Nada que não tivesse sido necessário no caso de eu ter aceitado aquele papel para a novela das oito. Bastava que eu vendesse o carro e pedisse algum dinheiro a meus pais, com a desculpa de que faria um curso de formação de atores para televisão – estrategicamente, eu havia sonegado a informação sobre o convite para atuar na novela. Agora era a hora de lançar mão de todos os recursos. Dali em diante seria o tudo-ounada. Enrolei o moleque por algum tempo, alegando compromissos profissionais, programas em família, viagens de última hora, até que me sentisse pronto para encontrá-lo definitivamente. Era preciso jogar com o tempo, com os focos de ação, com as variáveis e os objetos cênicos. Aos leigos do teatro eu anuncio que, para representar, é preciso um tanto de improvisação. E ao longo daquele espaço de tempo, minha vida já ganhava um salto de qualidade. Com aquele novo regime e o novo modo de vida, eu ficava mais forte, mais saudável. Sentia-me bem, mesmo. Como um engenheiro. Até minha psiquiatra começava a ver minha mudança com bons olhos. Avaliava meu progresso terapêutico e me retirava algumas medicações que eu vinha tomando para moderar o humor. Foi uns três meses depois de nosso primeiro contato, que me dei conta de que a hora estava próxima. Ao chegar da academia, fui lavar o suor do corpo. Tinha feito um programa de pernas e glúteos e pensara muito nele – nas vezes em que me masturbei durante a noite, olhando para sua foto na tela do computador. Então, estava cheio de tesão e potência. E sentia o jato do chuveiro em minha pele exciTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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tada. Uma loucurinha destas que só passa depois de tocar uma bem gostosa, com direito a uns dois ou três dedos no traseiro. Após sair do banho, mais cansado do que quando entrara e amolecido pelo gozo, pela vasodilatação da água quente, adormeci por algumas horas. Depois acordei, já noite fechada, e me conectei para conversar com meu amiguinho. Disse que estava entrando de férias e chegara, finalmente, a hora de nosso encontro. Já nos conhecíamos tão bem, e o garoto se sentia tão envolvido, que me convidou para passar o mês hospedado em sua casa. Aceitei. Afinal, depois de tanto tempo e esforço, tudo parecia ter valido a pena. Agora teríamos um pouco mais de tempo para nos conhecermos pessoalmente; para estreitamos o relacionamento. Para mim, era a oportunidade de um laboratório intensivo; de um mergulho no personagem em seu hábitat natural. Marquei a viagem para dali a uma semana, e se seguiram os preparativos: arrumar a sacola de viagem, comprar uma passagem aérea com tarifa reduzida – coisas práticas. Envolvido daquela forma, senti a semana passar rapidamente. Quando chegou o dia, peguei um vôo para Congonhas e, chegando lá, aluguei um carro para tomar meu rumo ao litoral. Eu estava em direção ao mar, à borda, ao limite – para navegar em busca de um novo mundo, um novo continente, uma nova margem. E estava orgulhoso de mim mesmo, do meu senso de direção. Nunca havia estado lá, mas bastou imprimir uma meia dúzia de mapas pesquisados na internet e já conseguia guiar com certa desenvoltura da capital até o Guarujá. Chegando na cidade, consegui encontrar o endereço também com certa facilidade, pedindo orientações aos pedestres. Ele morava em um apartamento simples, quarto e sala, com vista para a 106 l RUDIRAN MESSIAS
praia. As paredes eram nuas e brancas. Na sala, uma estante com poucos livros: alguns manuais de auto-ajuda; uns dois ou três do Paulo Coelho; livros da faculdade; um dicionário inglês-português; e um volume encadernado das obras completas de Poe, numa edição inglesa bastante antiga e pesada, que me chamou a atenção. Fui extremamente bem-recebido pelo rapaz, que se mostrava impressionado por nossa semelhança física. Éramos mesmo muito parecidos, apesar de nos vestirmos de maneira muito diferente. Ele usava uma bermuda vermelha estampada com folhas e flores grandes, com comprimento até o joelho, e uma camiseta branca, que tinha a ilustração de surfista pegando onda na frente, acima da palavra Hawaii. Eu estava com uma calça preta de sarja e uma camiseta azul-marinho, sem estampas. Roupas que logo despimos para o reconhecimento dos corpos. Ele também estava de férias da faculdade de administração, de modo que pudemos curtir muito tempo juntos durante aquelas semanas. Pegávamos um cinema, transávamos, caminhávamos na praia, transávamos, jantávamos fora, transávamos, conversávamos, transávamos, dormíamos, transávamos. Ele não tinha amigos, ou não fazia questão de apresentá-los. Um dia perguntei por que era tão sozinho, e ele desconversou. Disse que os mais chegados estavam de férias, como nós, viajando. Vez por outra, ele manifestava interesse em conhecer meu apartamento em São Paulo, meus amigos, as boates gays da capital. Eu dizia que não freqüentava tais lugares. Preferia ser mais discreto. E como já havia dito em nossas mensagens, eu morava com meus pais, o que impossibilitava que eu o levasse daquela forma até minha casa. Evitando ao máximo o momento eu que eu pudesse ser desmascarado, fui o companheiro perTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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feito ao longo daquelas semanas. Perverti minha natureza com toda a espécie de agrados e atitudes voluntariosas. Eu cozinhava e lavava a louça. Fazia compras no supermercado, ajudava a manter a casa limpa. Era simplesmente perfeito, desempenhando bem o meu papel de amante, com desculpas muito bem-amarradas. Meu plano estava dando certo e aquilo tudo me deixava feliz. Enquanto isso, prestava atenção nos mínimos detalhes a respeito de seu comportamento, seu jeito, seus gostos e hábitos – o modo de caminhar, os gestos característicos, o jeito descontraído. Eu precisava conhecê-lo muito bem. Ele era tão jovem, tão saudável, tão sexualmente fervoroso como um dia eu fora. Tão sadio, sobre aquela prancha de surfe. Enquanto ele pegava ondas, eu ficava na beira da praia, lendo o volume de Poe, que eu levava sempre comigo para minha diversão literária – e também pela inspiração que me dava. Era uma leitura instrutiva, como a dos livros de Ripley. Logo nos primeiros dias tomando sol, fiquei com queimaduras na pele. Então precisava ficar em casa esperando por ele. Aproveitava o tempo para treinar sua assinatura, experimentar suas roupas, procurar por fotos e correspondências pessoais e para usar sua casa como se fosse minha. Aos poucos minha pele descascava. E eu, como uma cobra, saía de mim mesmo para me tornar algo novo. Um outro alguém – era questão de tempo. Lá pela terceira semana, nosso caso ganhava maiores proporções. Tudo ficando mais sério. Ele, insistindo para que eu o levasse até minha casa, que o apresentasse para meus amigos. Decerto pensava em namoro, o tonto. E, aos poucos, surgia ali uma espécie de tensão, uma série de cobranças deixando tudo mais complicado. Eu começava a achá-lo tão bobinho e ingênuo, tão pouco complexo e 108 l RUDIRAN MESSIAS
sem profundidade em sua juventude. Quanto mais parecido com ele eu ficava, maior era o menosprezo que vinha substituir a atração que havia sentido um dia. E até já me julgava, então, melhor do que ele – mais vivo, mais vivido, mais esperto. Como se ele fosse algo que não tivesse mais o direito de ser. Algo que, dali em diante, pertencia à minha esfera. Pouco a pouco, efetivamente trocávamos de lugar: ele se tornava o imitador, o arremedo. Eu, o modelo. Ao mesmo tempo, aquela brincadeira já ficava cara demais. E o tempo estava se esgotando. Sentia que minha máscara, assim como minha pele, parecia estar prestes a cair de vez. Tudo apontava para um desfecho. Eu teria simplesmente feito as malas e ido embora se não tivesse algo nele que ainda me interessasse. Não só me interessava, como também me pertencia por direito. No fundo, eu continuava confiando em minha capacidade de improvisação e raciocínio para conseguir o que queria, mas um dia tudo se precipitou. Foi quando tivemos nossa primeira discussão, que seria também a última. Eu lia calmamente o volume encadernado das obras completas de Poe, deitado na cama, quando ele saiu do banho para começar a briga. Ele insistia, perguntava, dizia querer algo mais sério. Talvez se mudar para São Paulo a fim de morarmos juntos. Eu tentava contemporizar. Garantia que estaríamos juntos para sempre, mas que as coisas não poderiam ser daquele jeito. Não poderiam ser tão rápidas. Mas ele não se contentava com a situação – simplesmente não se contentava. Preferia pressionar, pressionar, pressionar. O que me irritava, irritava, irritava. Até me oferecer o ultimato: ou ficaríamos juntos de vez, ou eu deveria ir embora. Eram três da manhã, e eu disse que não seria nem uma coisa nem outra: eu não ficaria com ele daquele jeito. E também não iria embora TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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– não àquela hora. Porque não havia São Paulo, ou amigos em São Paulo. Eu nem ao menos conhecia aquela cidade. Da mesma forma que ele não conhecia a mim. Foi isso o que eu lhe disse, naquele momento de descontrole. Então, depois de desmanchar sua expressão de perplexidade diante da revelação, ele reagiu com cólera. Eu podia ver nele a fúria que nascia do medo, enquanto ele tirava minhas roupas do armário, dizendo que iria me expulsar do apartamento. Eu tentava manter a calma, ele ficava mais nervoso; eu sentia o peso de Poe sobre minhas mãos, ele agitava os braços com a leveza de minhas vestes, jogando-as sobre a mala aberta; eu mantinha o tom de voz, ele forçava as cordas vocais. Então fiquei sem alternativa. No calor do momento, a situação precipitava todas as minhas atitudes. Meu instinto se fazia valer. Foi assim que, num ato reflexo, levantei-me da cama e, de um só golpe, acertei sua nuca com a lombada do livro, fazendo-o cair ao chão. Depois montei sobre ele e continuei a acertá-lo com a capa dura do volume, com toda a força, até que os gritos dessem lugar a um único gemido seco. Continuei batendo, batendo, batendo. Perdi a conta de quantas vezes sentei o livro na cabeça dele, até perder as forças e perceber que sua face já estava irreconhecível. Seu rosto era uma massa amorfa, que só de olhar provocava asco. Seria o peso de Poe a castigar seu corpo? Ou apenas minha ira assassina a expulsar sua alma para sempre, desprovendo os restos mortais de sua identidade? A mesma ira que se esvaia aos poucos, como sua alma abandonando o cadáver que arrefecia? Não importava mais. Demorei para me acalmar. O assassinato havia me colocado em um transe de excitação – algo comparado a um orgasmo, no qual chega-se a perder o senso de identi110 l RUDIRAN MESSIAS
dade por uma fração de segundos. Um longo e profundo orgasmo: era isso o que experimentava então. Aos poucos, abandonava o nirvana e voltava a meu estado normal, consciente o bastante para raciocinar e decidir o que faria com o corpo. Lembrei-me da capa onde ele guardava uma prancha de surfe long board. Coloquei ali seu corpo e fechei o zíper. Depois arrastei o pacote até o carro, aproveitando que ainda era madrugada. Voltei ao apartamento para limpar o sangue e retirar de lá todos os vestígios de minha presença. Enchi muitas malas, levando também as roupas do garoto, seus documentos e o livro de Poe. O plano parecia perfeito, dividido objetivamente em passos: bastava deixar as malas em um hotel, dirigir até uma praia deserta, vestir o cadáver com minhas roupas, colocar no bolso minha carteira e documentos e posicioná-lo estrategicamente no banco do motorista. Tudo pareceria um assalto para a polícia local, que dificilmente teria a competência para levar adiante qualquer investigação. Os patos comprariam as aparências da cena do crime, enquanto eu, com minha nova identidade e cartões de crédito, teria um longo caminho até a cidade. Até a velha encruzilhada, de onde compraria minha passagem para um novo destino. Um novo personagem. Uma nova vida. Para isso eu precisaria apenas de meu talento. E de uma outra pessoa. Minha carreira havia, finalmente, deslanchado.
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Amor cachorro
Ai, quanta raiva ela sentia! Quase a não caber em seu peito de mulher. Porque de dia ela era a mulher-invisível. A dona-decasa padrão, que sempre acordava mais cedo e cuidava para que tudo corresse bem. Então ele se sentava à mesa, engolia um pão com manteiga e um café-com-leite antes de ir para o trabalho, sem ao menos um olhar de gratidão. Ele vivia sua vida fora de casa, enquanto ela lavava, secava, passava; aspirava, varria, esfregava; temperava, cozinhava, servia. Até que chegasse a noite e ele voltasse com seus olhos de cachorro faminto. Então se tornava a mulher carnal – corpo sobre o qual ele salivava, com seu arranjo de dentes e língua a lhe devorar por antecipação, antes mesmo de despertar nela qualquer sentimento. Com aquele mesmo frêmito, a respiração arfante que ele tinha agora, enquanto se aproximava de seu corpo na cama. Mas tudo amanhecera mudado naquele dia, e a noite também haveria de ser diferente. Sempre chega o dia em que tudo muda e a gente consegue, enfim, dormir. Naquela TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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manhã, aconteceu de ele bater a porta, sem ao menos um até logo, abandonando-a sentada na cadeira da cozinha. Deixando-a ali, largada, olhando para a xícara de café-comleite pela metade, para o prato coberto de farelos de pão, até que ela fosse subitamente tomada por uma sensação de isolamento que nunca havia experimentado com tamanha intensidade. Era um vácuo dentro do estômago, como um buraco negro que estivesse prestes a sugá-la para dentro de si mesma, até que ela se transformasse num ponto muito pequeno e insignificante. Um ponto escuro, para onde até sua luz própria fosse sugada. Foi justamente dessa sua pequenez que explodiu a ânsia. Uma angústia que ela não sabia sequer explicar. Como um big-bang em seu peito. Então largou tudo como estava e explodiu rua afora, vagando como sonâmbula pela cidade. Caminhou até chegar na Praça da República, onde sentiu os pés cansados de toda uma vida. Quando deu por si, estava sentada em um banco, à sombra de uma jaqueira. Ali, deixou-se ficar por muito tempo, observando mães que fofocavam entre si e crianças que brincavam na areia. Entretendo-se com os movimentos do pipoqueiro, rodeado por pombos que vinham ciscar do seu milho; do vendedor de algodão doce; do velho que vendia churros recheados com doce de leite – ela adorava aqueles churros fritos, crocantes, recheados, bem quentinhos e cobertos de açúcar. Ah, sim! Como gostava! Só de pensar, chegava a salivar de puro deleite gastronômico. Movida por essa gula, como se um simples churros pudesse preencher o vazio que trazia no peito, o oco que sentia no plexo solar, levantou-se de súbito e comprou um. Depois sentou novamente e o mordeu com voracidade. Uma grande e generosa dentada, que encheu sua boca 114 l RUDIRAN MESSIAS
de massa e recheio. Chegou a se lambuzar, deixando cair sobre a saia uma quantidade razoável do doce. Mas logo depois, enquanto ainda mastigava, se achou ridícula, em plena praça, sozinha, lambuzada de churros como uma criança. Ai, que contra-senso! Como se não tivesse mais o que fazer da vida. Levantou os olhos timidamente para ver se a observavam, enquanto perdia-se em pensamentos e engolia o bocado, já sem fome ou vontade. Ninguém a via. Ninguém ao menos olhava para ela, sentada naquele banco de praça. Por muito tempo ficou ali, sentada, sozinha, segurando um churros frio e sentindo o sol a viajar em arco sobre sua cabeça. Até que as mães levassem as crianças embora; até que os ambulantes empurrassem seus carrinhos de volta para casa; até que os pombos voassem e começasse o anoitecer. De repente, enquanto observava o horizonte multicolorido, sentiu-se observada, como há muito tempo não acontecia. Quem, nesse mundo, diante de um pôr-de-sol, olharia justamente para ela, tão parada e desinteressante entre seus pensamentos perdidos? Pois estavam bem ali, aqueles olhos redondos e sem malícia, a olhar diretamente para os seus, de forma que ela não conseguisse fingir que não os via. Os dois olhos de um cachorro perdido. Tão sozinho e carente de tudo, como os olhos de um homem. Homens e cães eram uma mesma coisa, afinal. Ou pelo menos era assim que ela pensava, porque todos os que conhecera até então a viam com interesse e dependiam dela para tudo. Como o cachorro a farejar o churros que estava em sua mão, a lhe dirigir aquele olhar pidão. De início tinham aquela expressão abandonada, meio movida pela fome e pelo apetite. E com o passar dos anos, sentiam-se cada vez mais donos do lar. Donos da cadela. Eram aniTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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mais territoriais, possessivos, feitos de puro instinto. Mas no começo pareciam com aquele cãozinho: bastava oferecer um pedaço de carne, um afago, que eles vinham prontamente, abanando o rabo. Como ele fazia naquele momento: olhando-a com interesse, virando a cabecinha de lado, olhando um pouco mais, até criar confiança o bastante para tentar uma aproximação. Quando chegou mais perto, ela o examinou com cuidado, de cima a baixo. Assim, como se ele fosse um produto no supermercado. Assim, como nunca tinha examinado um homem na vida. Então percebeu que o cachorro era mansinho e tinha medo, como ela. Um tanto de coragem, lhe tinha custado a aproximação. Agora ele tocava sua mão com o focinho, a pedir que o acarinhasse. Então ela se enterneceu, porque ele não a olhava como a uma cadela no cio, mas como a uma mãe, talvez, a quem retribuía o afago da maneira que sabia, a lamber-lhe a mão que segurava o churros. Foi movida por essa ternura que ela lhe ofereceu o que restava do doce, colocando-o delicadamente na boca do cão, que o comeu com modos próprios de um bicho abandonado, afobando-se e salivando enquanto o churros lhe sobejava à boca e se esfarelava, sujando ainda mais sua saia. Já não importava que tivesse as roupas encardidas de barro ou baba, ou mesmo que o marido sentisse nela o cheiro de outro bicho. Importava, apenas, que ele fosse um ser vivo. E que ela fosse um ser humano. Era assim que ela se sentia, de repente: a um só tempo, tão humana, mãe e mulher. Com o útero novamente pulsando dentro de seu ventre seco, exalando um perfume fresco e irresistível, enquanto o cachorro lambia sua saia para degustar os farelos da massa doce e o recheio derramado. Foi quando ele sentiu, com seu faro aguçado de ca116 l RUDIRAN MESSIAS
chorro de rua, o ardor e o desejo que emanavam de sua feminilidade. Uma pulsão que nem o marido conseguia mais suscitar em seu corpo. Que a fazia levantar a saia para se oferecer ao paladar do cão, às lambidas devotadas que correspondiam ao seu desejo secreto e limpavam dela seu recheio de mulher, como se o churros tivesse sido apenas a entrada, e ela estivesse a fazer as vezes de prato principal, dando-se ao cão que a lambia, lambia, lambia. Era uma língua áspera e comprida, que logo a fez explodir de prazer, enquanto apertava com as coxas a cabeça do cachorro e sentia sua pele eriçando, desde os dedos do pé até o último fio de cabelo. Exalando ainda mais do seu perfume e dando a ele ainda mais do que lamber. Um grande orgasmo, era isso que ela experimentava agora. Um grande gozo, como nunca tivera na cama do marido. Ele, sempre apressado para amassar seu corpo contra o colchão e fazer suas coisas até ficar satisfeito. O cachorro, não. O cachorro ficara a lamber-lhe com gosto e paciência, até que ela ficasse satisfeita. Apenas depois disso ele agia em deleite próprio, fazendo valer seu instinto de macho, respondendo ao cio da fêmea que ela era. Primeiro veio o tremor e o inchaço de algo crescendo entre suas patas traseiras. Depois, como em um ato reflexo, ele começou a roçar aquele volume grande e intumescente nas pernas da mulher espantada. E, por fim, encadeou um vaie-vem instintivo, que nunca ninguém precisou ensinar a um ser vivente. Perplexa, ela olhava para os lados, tentando certificar-se de que não havia ninguém observando. O que as pessoas pensariam ao vê-los assim, em pleno parque, dando-se àqueles luxos? Mas a praça estava deserta. Por isso ela superou seus próprios melindres e o deixou montado em TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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sua perna, continuando naquele movimento cadencioso até que se sentisse saciado. Em seu peito de fêmea crescia uma pequena ânsia, mas também algum deleite secreto que nunca havia provado, até molhar sua perna com um jorro abundante. Agora se dava conta do adiantado da hora. Já era quase noite fechada e ela continuava ali, distante de casa. Com o agravante de que, à noite, as praças costumavam servir de reduto a drogados e outros delinqüentes. E havia algo ainda mais grave: àquela hora, o marido estaria chegando do trabalho e não haveria jantar na mesa. Nem ao menos um prato feito no fogão. Teria que se apressar, pois ele certamente ficaria furioso. Até que seria bom: quem sabe assim ele pudesse ao menos sentir a sua falta, uma noite que fosse. Tentaria, talvez, telefonar para alguns amigos e parentes mais próximos, procurando por ela. Ou pensaria em ligar para a polícia. E sua noite seria como um enredo de novela ou um capítulo de romance barato. Ele, que não gostava de novela. Ele, que não gostava de romances. É. Uma noite, ao menos. Para que ele pudesse sentir sua falta. Até que seria bom. Porém, decidida a dar um rumo em sua vida, ela acariciou a cabeça do cão e seguiu com pressa até a parada de ônibus. Não sabia o que a fazia correr, pois sua única vontade era a de não ver o marido. E o cachorro, tendo como única vontade a companhia dela, seguia seus passos com o rabinho a balançar. No momento da despedida, tentou até mesmo embarcar com ela, sendo espantado com violência pelo cobrador. De dentro do ônibus ela pôde vê-lo no meio da rua, choroso, novamente largado no mundo, depois de correr inutilmente por alguns metros na tentativa de alcançá-la. E novamente sentia aquele ponto que a sugava intei118 l RUDIRAN MESSIAS
ra para dentro de seu peito, como um buraco negro. Cerca de uma hora depois, ela chegava em casa e virava a chave, para encontrar do outro lado da porta o marido zangado, que a olhava dos pés à cabeça perguntando, aos berros, o que diabos tinha acontecido? Onde estava o jantar? Que cheiro de cachorro ela tinha! E o que era aquela meleca ressecada em sua perna direita? Diante da televisão, ele havia comido com as mãos – e com toda calma e delícia do mundo – uma pizza de tele-entrega, enquanto acompanhava o noticiário local. E agora cobrava satisfações, como se fosse seu dono. Dono do pedaço. Dono da cadela. E não tendo mais o que explicar, ela disse simplesmente que tinha passado o dia andando por aí. Não era essa a explicação que ele se dignava a dar toda vez que chegava em casa tarde da noite? Depois de sair com os amigos? E ela sabia muito bem qual espécie de programa ele costumava fazer com aqueles ordinários todos. Bem sabia ela de suas predileções noturnas e não se orgulhava nem um pouco delas. Mas ele era o homem da casa. Merecia satisfações. Por isso ficava tão injuriado com a atitude da mulher querendo sair pela tangente. Foi então que ele começou com suas violências, suas agressões de animal. Batendo com o punho na mesa, virando a embalagem da pizza no carpete, chutando o sofá e a parede. Fazendo uma bagunça infernal cuja limpeza estaria a cargo dela no dia seguinte. Por isso ela já sentia a fúria crescendo dentro de si, tomando conta de seus órgãos internos como um câncer. Queria apenas ficar só. Então bateu a porta do quarto e se despiu, antes de deitar sobre a cama de casal. Sabia que precisava de um banho, mas a simples lembrança da água escorrendo por seu corpo já lhe enraivecia até os ossos. A própria roupa, da qual se despojara, parecia irritar TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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cada pêlo de seu corpo. E a simples perspectiva de dividir seu espaço com o marido lhe fazia trincar os dentes de puro ódio. Queria apenas ficar só. Antes mesmo que ele se deitasse ao seu lado, ela já havia conseguido conciliar o sono. Mesmo com tanto ódio, imaginava que o dia seguinte pudesse ser diferente. Sempre chega a noite em que tudo muda e a gente consegue, enfim, viver. Mas no meio de seu sonho pôde distinguir o cheiro forte do animal que se aproximava, com seu arranjo de dentes e língua a querer devorar-lhe em um sexo de reconciliação. A verdade era que ele precisava de seu corpo, antes mesmo de despertar nela qualquer sentimento. Por isso se aproximava com aquele mesmo frêmito, a respiração arfante – porque ela era como uma parte da cama, destinada a satisfazer suas necessidades fisiológicas de sexo e de sono. Mas com tanto ódio crescendo dentro de si, ela não podia mais. Não podia mais com aquela pata de cachorro sobre seu corpo. Foi quando toda a raiva muda que guardara até então emergiu subitamente, cobrindo sua boca de uma espuma grossa, amarga. De repente ela acordou e, em um só gesto, virou-se contra ele e o mordeu com todas as suas forças. Até sentir os dentes amolecendo. Até sentir o gosto do sangue escorrendo e se misturando à sua baba viscosa. Até que sobrasse apenas a vontade de ir embora. De ficar sozinha no mundo, vagando como animal feroz. Feito uma cadela de rua, que era nisso que os homens a haviam transformado. Ai, quanta raiva ela sentia! Quase a não caber em seu peito de mulher.
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Ronda
Estávamos em greve havia uma semana, o que só fez aumentar os índices de criminalidade e prostituição nas ruas da Baixa. Meu parceiro e eu conhecíamos bem aquela parte da cidade. Em nossas rondas pelo bairro, fazíamos questão de passar com a viatura diversas vezes pela rua do parque, onde se enfileiravam michês e putas em busca de clientes. O lugar era conhecido, ironicamente, como “autorama”, onde os carros faziam o circuito em busca do grande prêmio da noite. Confesso que gosto disso: ligar a sirene pra dar uma incerta no puteiro público sempre foi algo hilariamente estimulante. Basta virarmos a esquina pra ver os carros acelerando a marcha; os veados botando a pingola pra dentro das calças e correndo pra se esconder no parque, num salve-se quem puder; as quengas andando displicentemente, fingindo que estão chegando em casa, acendendo um cigarrinho; os travestis se esgueirando pelos cantos, assobiando e olhando pros lados, para cima, para o relógio de pulso. Mas, como já disse, naquele dia estávamos em greve. TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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Não haveria ronda, de modo que eu poderia ficar em casa assistindo à sessão coruja, lendo um livro, tomando um trago, fumando um maço de cigarros. Enfim: preenchendo a insônia. Mas estava com um puta tesão. Vontade de foder alguém. Sentia como se meu pau duro me conduzisse para fora de casa, com a chave do carro em punho para fazer uma daquelas visitas às quais estava tão habituado. Foi assim que me surpreendi virando aquela mesma esquina, com meu carro particular, guiando no mesmo ritmo dos outros clientes. Sentia como se estivesse na feira livre ou no supermercado: um simples civil em seu carrinho, olhando os produtos em exposição. Mas estava ali apenas para olhar, mais nada. A maioria eu já conhecia de vista e, de alguns deles, já tinha levantado a ficha corrida. Muitos cidadãos saem de casa com trinta reais no bolso e o objetivo de se divertir, e acabam lá na DP, prestando queixa contra um desses putos. Mas havia uma oferta totalmente nova e diversa. Uma nova leva deles. Enquanto dirigia, tentava imaginar: o que, na vida, levava um homem a sair de casa, deixar esposa e filhos, para dar a bunda em um lugar como esse? Era algo que nem eu mesmo, que sempre fui um liberal enrustido, tendo ido para a cama com mulheres maravilhosas e homens de tirar o fôlego, poderia alcançar com a razão. Nada ali parecia especialmente excitante. Pelo menos, foi isso o que pensei até encontrar Penélope. Ah, Penélope! Loura! Cabelo crespo! Suas curvas misteriosas, seu olhar enigmático, seu porte atlético. E as roupas de uma sensualidade óbvia – grosseira, até. Vestia microssaia preta, de vinil, supercurta, com meia-arrastão, uma frente-única de lantejoulas e, para arrematar, um boá de plumas cor-de-rosa, que combinava com a cor das polai122 l RUDIRAN MESSIAS
nas de tricô. Eu não via polainas desde a década de oitenta, quando minhas irmãs as usavam para fazer aeróbica e dançar jazz na academia de ginástica. Após duas ou três voltas de observação, encostei o carro ao seu lado, abri o vidro e me entorpeci com seu perfume doce – acho que de lavanda com almíscar – desses que entranham na pele. Fazia a linha misteriosa, sem dúvida. E eu, que sempre gostei de mulheres misteriosas, já estava hipnotizado por Penélope. Por sua voz lânguida e anasalada: “E aí, gato? Vamos fazer uma função?” Combinamos o preço e as regras do jogo, que não eram muitas. Ela se declarava disposta a tudo, apesar de cobrar caro: “Pagamento adiantado.” Aceitei. Dez minutos depois, estávamos em minha casa. Eu, fumando um cigarro mentolado, enquanto ela fazia um strip tease com a voz de Eartha Kitt ao fundo, em My Discarted Men. Deixando-me louco, até que eu perdesse a cabeça definitivamente e a colocasse de quatro. Ali ficamos durante horas, naquele vaivém, eu dirigindo aquele corpo enorme e generoso. Prendendo-a na guarda da cama com minhas algemas, batendo em sua bunda com meu cassetete. Completamente nus, exceto pelas minhas botinas e os sapatos de salto agulha que ela usava para treparmos. Passamos, assim, todo o final de semana, como se fosse o último de nossas vidas. Como se fôssemos um só, sentindo a mesma fome e a mesma sede. O mesmo frio na barriga e a embriaguez do gozo. A mesma vontade de nos consumirmos, até que o mundo todo explodisse. Uma vez iniciada a semana seguinte, como levar tal situação adiante? Como explicar aquela excentricidade para a família, para os amigos? O que seria de minha reputação? E, principalmente, o que diriam os colegas de TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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trabalho? Penélope era isso: uma grande interrogação na minha frente. Então ficou decidido: não nos veríamos mais. No fundo, sabíamos, seria o melhor para ambos. Mas, passadas algumas semanas, a saudade – o desejo – se fez maior, colocando o bom senso de lado e nossos corpos frente a frente, mais uma vez. Fui procurá-la em uma boate onde fazia performances. Um lugarzinho abafado, escuro, fedendo a Gudan-Garam e a caralho gozado, com garçons desfilando de cueca e avental. No centro da pista de dança, algumas bichas suadas dançavam na boquinha da garrafa, usando sumárias tangas atochadas na bunda. O show estava por começar. No fundo da danceteria, em um palco pequeno e improvisado, dois homens musculosos se reboleteavam em fantasias de gladiador, retesando os bíceps e jogando a pélvis para a frente e para trás com violência. De repente, todas as luzes se acenderam e, do meio deles, surgia Penélope, morena, com os cabelos lisos e curtos, no melhor estilo Lisa Minelli, em um vestido preto rebordado de strass e saltos plataforma, altíssimos, dublando I Will Survive com gesticulações exageradas e desconexas da boca – Penélope não sabia falar inglês. Quando a música chegou ao fim, ela improvisou algumas interações com o público, fazendo várias piadas de baixo calão, todas ligadas ao mundo gay, ao estilo de vida homossexual – sobre quartinhos escuros, saunas, chats na internet, entregadores de pizza a domicílio. Ela se esfregava nos dançarinos, convidava os habitués da casa a subirem no palco para fazerem o mesmo, pegando no pau dos go-go-boys, gritava e berrava, ria, dava pulinhos frenéticos, balançando os peitos e a bunda, jogava a perna para cima, arrumava os cabelos, esfregava os peitos dentro do espartilho. Após 124 l RUDIRAN MESSIAS
seu número de dublagem, fui encontrá-la, em uma salinha atrás do palco, arrumada à moda de um pequeno camarim improvisado. Assim que nos vimos, ela começou a chorar de emoção. Dependurou-se em meu pescoço, disse que não tinha me visto – eu tinha assistido ao show de um canto mais escuro e escondido da boate. Começamos a nos beijar freneticamente, batendo a porta da salinha para começarmos a foder ali mesmo. Naquele dia, cheguei até a dar para Penélope, coisa que nunca tive o hábito de fazer. Mas foi bom. Muito bom. Naquela noite eu dei a bunda para a Lisa Minelli, em uma boate da Baixa, com música eletrônica tocando ao fundo. Uma experiência lisérgica, para dizer o mínimo. Depois lhe dei uma carona até a entrada da favela e fui para casa tomar um banho, dormir. No dia seguinte, teria que trabalhar. A essas alturas do campeonato, a força policial já havia abandonado a greve, por ordem do sindicado, após um acordo nada vantajoso para nós. Acordei às três e meia da tarde, com o rabo arreganhado e um sorriso nos lábios. Bebi um café preto e fumei um cigarro com filtro amarelo. Tomei uma vitamina C e uma cápsula de alho. Então, após um banho gelado, vesti a farda e saí para trabalhar. De dentro do carro, quando a garagem abriu, pensei ter visto Penélope entrando no meu prédio. Mas tive que deixar para lá, pois já estava atrasado – precisava, mesmo, deixar para lá. Esquecer que Penélope havia existido. Que tinha baixado as calças para ela e que tinha gostado. Deixar para trás essa vida de vícios anticonvencionais. Sempre que tenho uma dessas recaídas, fico um tempo cismado, evitando saunas e prostíbulos. Então, só resta esperar a janela de três meses para fazer um exame de HIV, esperar pelo resultado e constatar, com sorte, que ainda não foi dessa vez. TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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Ao longo daquela semana, vi Penélope em todos os lugares: na frente do meu prédio, do outro lado da calçada, na esquina de minha rua, nas redondezas da delegacia, na loja de conveniências onde costumo fazer minhas compras. Para onde quer que olhasse, lá estava ela: loura, morena, ruiva; com vestidos de noite ou com roupas masculinas; com maquiagem brilhante ou com a cara lavada; em forma de homem ou de mulher; através de bilhetes colocados por baixo de minha porta ou em recados deixados na secretária eletrônica. Tornei-me sempre indisponível, inacessível. Ignorando-a, mesmo quando a encontrei na porta da delegacia, com roupas de garoto, jeito de bicha, o olhar lúbrico e desafiador. Cumprimentando-me sem receber resposta. Durante nossas rondas noturnas, tenho aparecido menos pelo autorama. E, quando passo por lá, não diminuo mais a marcha. Mais um esforço para não dar de cara com Penélope. Meu parceiro, acostumado como eu a se divertir às custas da fauna local, estranha meu comportamento. Pede que eu reduza a velocidade, rindo e apontando para os michês e prostitutas, esperando que eu ache a mesma graça. Um dia desses, depois de indagado a respeito, respondi com mau humor que já não via graça naquela putaria toda. Bom mesmo seria se a gente pudesse jogar uma bomba H ali, varrendo a terra desses diabos. Ele disse que não precisava. Que era só a gente deixar os veadinhos se foderem recebendo os clientes, morrendo de Aids. Eu concordei. Mas a verdade é que ainda morro de saudades de Penélope.
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Te amo mais que a morte
Eu sempre te amei tanto, tanto! Às vezes acontece de a gente ter um sentimento tão grande que não cabe em nós. Então transborda. Por isso vim derramar essas lágrimas sobre teu corpo. Nunca pensei que tivesse a coragem, mas aqui estou. Aprendi isso vivendo contigo: que algumas coisas transcendem. Vícios e fobias, por exemplo. E essa obsessão insana por tudo o que vem de ti, qualquer rastro, qualquer migalha, um gesto distraído de carinho, as roupas no teu armário ou um objeto largado ao acaso, que nunca mais irei mover. Sei que tu sentiste o mesmo por mim. Era essa mesma expressão de ternura que eu via, ao confessar meu tesão quase insano, quando tirava minha cabeça do meio de tuas pernas para respirar. Queria mergulhar em teu sexo, te ver por dentro. Sei que tu também sentias aquilo, porque ainda podias te contorcer, e não estavas tão pálida como agora. O teu cheiro, lembro-me bem dele. Era acre, úmido e generoso – e era só teu. Não como o cheiro doce e nauseante da morte, que é mais óbvio e vulgar, sempre misturaTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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do ao das flores murchas. Eu vou tirar esses pedacinhos de algodão de tuas narinas para sentires melhor. Estás vendo? Bem melhor assim. O algodão não combina com a morte, que é mais dura e fria do que ele. Só está aí para impedir que o resto de vida em ti transborde, caudalosa e abundante. Calma, meu amorzinho, eu estou aqui pra te esquentar. Vou ficar assim, abraçado, até o dia amanhecer. Ninguém vai nos incomodar, é só a gente ficar bem quietinho, se amando como se fosse em segredo, que assim é mais gostoso. Queres um beijo? Eu beijo teus lábios, minha querida, até que o amor os aqueça. Posso esfregar tua pele com delicadeza e carinho até esquecer que ela está fria. Esqueço até esses roxos na tua barriga, sua safadinha. Mesmo sabendo que não fui eu quem fez. O importante é que agora estamos só tu e eu. Vou tirar minha roupa para nos sentirmos melhor, pele com pele. Ah, que gostoso! Sempre gostei de sentir esses teus pelinhos entre os meus dedos. Colocá-los dentro de sua intimidade, onde agora tem um outro chumaço de algodão. Tu nunca havias te preparado assim antes. Gostosa! Tens cada idéia louca para me tirar do sério! Fica assim, paradinha, enquanto eu faço seus mamilos. Vou morder bem forte se eu quiser. Quem sabe arrancar um pedaço. Queres que eu te coma? Heim? Queres sim, posso ver na tua cara. Ordinária! Morreu feliz. Garanto que estavas trepando fora de casa. Se tivesse mais espaço aqui, eu te colocava de quatro para te comer que nem uma cadela. Abre as pernas, sua vagabunda. Abre bem, que eu vou te comer pela última vez, e vai ser a melhor de todas. Quanto tempo eu esperei por essa trepada! Olha como meu pau tá duro. Vai entrar 128 l RUDIRAN MESSIAS
rasgando. E fica quietinha, não quero ouvir um puto pio. Ah, que bom. Que bom! Eu poderia ficar assim para sempre. Te sentindo. Sua vadia! Estou te comendo gostoso, heim? Aproveita, que essa é a última vez. Que gostoso! É tão bom que dói! Tu estás sentindo, cadela? Ou eu vou ter que bater na tua cara? Toma sua bagaceira! Toma mais. Quer que eu te sufoque um pouquinho? Pra você gozar melhor? Prostituta! Assim! Assim! Me deixa louco! Ah! Tô quase. Tô quase gozando. Quer que eu goze na tua cara? Quer? Toma, meu amor! Toma todo o meu prazer! Toma! É só para ti! Só pra ti! Olha o meu amor transbordando! Meu amorzinho! Minha última homenagem a ti. Eu sempre te amei tanto, tanto!
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Histórias de vingança e morte O porco Extrema-unção Cabeça feita Inventário de madame K. Auto-retrato em sangüínea e carvão
O porco
Ele era gordinho, rosado, e já estava no ponto. Animal de fazenda a gente abate cedo, antes que dê tempo para criar afeição. Além disso, a carne fica mais tenra, mais suculenta. Chamei o Aldo, agregado nosso, e mandei que matasse o bicho. Só de olhar para o leitãozinho, eu já salivava, imaginando-o em pedaços na minha feijoada. O lombo defumado em um sanduíche aberto. Costeleta assada, lingüicinha, paio, salsicha, bacon, presunto cru, presunto gordo, presunto magro, e por aí vai. Até as orelhas, a pele, as patinhas são aproveitadas. Mesmo a banha, pode-se usar de mil maneiras na cozinha: para frituras, na massa de um bolo, untando a forma de pão. Melhor do que isso, só se o porco sapateasse e fizesse um show de fantoches antes de morrer, para distrair as crianças. Ou se ele tratasse dos interesses da fazenda, lidando com fornecedores e advogados, nos deixando de férias – mais ou menos como n’A Revolução dos Bichos, de Orwell. Exceto pelo fato de que, no livro, os suínos tomavam conta de tudo, colocando os seres humanos para fora da fazenda. Mas aquele porquinho não TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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era personagem de livro algum. Era apenas um porco. Nós éramos os seres humanos, fato que o relegava ao status de comida. Ficou chateado, o Aldo. Não queria fazer aquilo. E não era por pena, que fique bem claro. Por ele, o bicho já estava espetado, dentro da churrasqueira. Desde pequeno se acostumara a matar animais. Quando sua mãe pedia, ele escolhia uma galinha gordinha nos fundos da casa e a segurava pela cabeça, girando-a no ar até que parasse de se debater, com o pescoço estirado. Na próxima refeição, lá estaria ela outra vez, sem as penas e ao molho pardo. Mais tarde, aprendera com o pai a carnear bois, comendo-lhes o fígado ainda quente do próprio calor do animal. Aprendera também a sacrificar carneiros, sem dar ouvidos aos seus choros de criança. E sempre aproveitava para comer colhões, quando castravam a boiada. Não se importava com o sangue que o banhava. Tinha até um certo prazer naquilo, achava relaxante. Se se compadeceu de alguém, portanto, foi de seu próprio filho, um alemãozinho de doze anos, podre de safado, que eu já surpreendera currando uma ovelha certa vez. O guri havia pedido para o pai que não matasse o porco. Havia se afeiçoado ao bichinho, dandolhe o curioso nome de Toucinho. Não gostei nada daquilo. Porco, para mim, era porco: criado por Deus para alimentar os homens. Fiquei contrariado mesmo. Porque não poderia negar-lhe a benevolência de poupar a vida de Toucinho. Assim foi que, dali em diante, o porco passou a andar livremente pelo pátio de minha casa, acompanhado pelos meus cães, como se fosse um deles. Um porco, por incrível que pareça, pode ser mais inteligente e afetuoso que alguns cães. São ótimos animais de estimação e me atrevo a dizer que as pessoas 134 l RUDIRAN MESSIAS
teriam mais porcos se não gostassem tanto de comê-los. Eu mesmo, com o tempo, comecei a gostar de Toucinho, apesar de continuar saboreando todas as comidas que ele poderia nos deixar de herança. Mas estava decidido, não o mataria mais. O tempo foi passando e, à medida que o porco ia crescendo, ganhava a afeição de cada um dos integrantes da família. Apenas minha esposa não conseguia devotar a ele o carinho que se espera investido em um animal de estimação. Quando chegava a data de meu aniversário, Jandira sugeriu que o sacrificássemos. Insistiu até. Disse que estava farta de andar pelo quintal desviando das merdas de porco. Aquele bicho fedia, e ela tinha medo das doenças que eles pudessem transmitir para os São Bernardo, que tínhamos há tanto tempo. Expliquei-lhe que não poderíamos fazer aquilo. Era o porco do guri, filho do Aldo. E sabe-se lá o que o garoto não fazia com ele às escondidas. Preferia nem pensar, que me dava até pena do pobre diabo. Jandira não se conformou facilmente. Sempre que estávamos na cozinha, almoçando ou tomando o café, no fim de tarde, quando ela ouvia o guinchar do porco, cravava a ponta da faca no tampo da mesa repetidas vezes, lentamente, mas com força, dizendo que um dia acabava matando o porco. “Eu mato esse porco” – repetia, empunhando a faca de serrinha. Uma vez, quando planejávamos as festividades dos meus 60 anos, resolvi pedir a Aldo para carnear dois bois. Meus filhos e netos viriam, além de uma porção de amigos, para almoçar comigo no domingo. Jandira decidiu que colocaria algumas mesas do lado de fora da casa. Fez a lista de convidados e ligou para todos. Para terminar, me pediu que recomendasse a Aldo que trancasse o porco em algum TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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lugar. Dei-me conta de que o nome dele e dos familiares não estavam na lista. Ela riu, mais por deboche do que por achar graça. Disse que eu deveria dar uma folga para eles naquele dia. “Imagina só aquela família de casca grossa comendo na mesma mesa que o Clóvis ou a Nininha!” Concordei. Não podia entender como meu filho mais novo tinha saído tão diferente de mim, cheio de trique-triques. Minha nora, então, era toda chique, grã-fina de alta sociedade, freqüente nas colunas sociais dos jornais da capital. Meus outros filhos trariam os netos pequenos. Sempre adorei aquela gurizada. Chegou o dia da festa e lá estavam eles. Tinham trazido um amigo que tocava violão e sabia as músicas do Nelson Gonçalves de cor. Também conhecia o repertório da Berenice Azambuja e tocava até musica sertaneja. Ele cantava e meus filhos cuidavam do churrasco. Nem tive que fazer nada. Só sentei na cabeceira da mesa para conversar com todos, vendo meus filhos e noras estimulando os netos a interagirem conosco. Jandira parecia uma débil mental, falando com as crianças como se tivesse, ela mesma, uns sete anos de idade. Queixava-se ao ouvir o porco, que estava preso em um pequeno chiqueiro improvisado por Aldo ao pé de um grande eucalipto que ficava ao lado de nossa casa. Ela parava de falar com as crianças, subitamente, e empunhava no ar a faca mais próxima, como se fosse uma espada, decretando solenemente que mataria o porco, o que provocava risos em todos. “Preparem outro espeto, que vai ter carne de porco neste churrasco!” – gritava em tom jocoso, já regada por largos goles de caipirinha. Depois de servirem os pratos de salada de maionese, quando já havíamos aperitivado os salsichões com farinha de mandioca, os pães com alho, começaram a trazer os 136 l RUDIRAN MESSIAS
coraçõezinhos de galinha e as carnes. Foi quando começávamos a comer, e o violonista havia parado de cantar, que as pessoas da mesa pararam de conversar, interrompidas pelo guinchar desesperado do porco, desta vez mais alto e insistente, como se estivesse morrendo. Procurei por Jandira com os olhos, achando que ela tivesse feito uma loucura. Mas ela estava sentada ao lado de Nininha, com uma das crianças no colo. De súbito, surge no pátio o porco, correndo desesperadamente, com uma faca de açougueiro cravada no lombo, o sangue lhe escorrendo por um lado do corpo. Toucinho corria desesperado, sem rumo. Bateu de cabeça em uma parede, depois veio na direção da mesa, quase atropelando os convidados, que tinham que sair do seu caminho para não serem atingidos. As crianças choravam. Nininha gritava, nervosa, tendo que se retirar da mesa para vomitar. Atrás de Toucinho vinha Aldo, com uma machadinha enferrujada na mão direita. Correu até o porco, que, a estas alturas, já estava a uns 10 metros da mesa, e conseguiu atingi-lo em cheio na cabeça, partindo-a ao meio. Atrás de Aldo vinha seu filho, chorando, gritando. E todos nós petrificados, em silêncio absoluto por alguns segundos. Apenas quando ele desferiu o golpe derradeiro as outras crianças pareceram entender o que havia acontecido. Algumas das mulheres gritavam, histéricas, tomadas por nojo e medo. Alguns de meus filhos homens riram, achando a cena divertidíssima. Mas eu permaneci sério, encarando-os. Pedi que todos entrassem e chamei Aldo para falar comigo. O almoço estava acabado. Todos haviam perdido o apetite. Eu não entendia, e ainda não consigo entender o porquê daquilo tudo. O homem tinha alimentado o porco com suas próprias mãos, durante mais de um ano, tratanTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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do-o pelo nome, passando a mão em sua cabeça, dando banhos de mangueirada, para depois lhe afundar um machado na cabeça, daquela forma cruel, raivosa, catártica. Logo ele, que era tão acostumado a carnear bois e ovelhas. Tinha até uma técnica própria, um método eficaz para fazer o serviço de forma limpa e rápida. Disse que tinha direito de fazer aquilo. O porco era dele, era ele quem cuidava. E além do mais, não tinha sido convidado para o churrasco. Decidira fazer o seu próprio. Proibi que consumissem a carne do porco. Ordenei que ele enterrasse o bicho, com lápide e tudo, cavando a cova com suas próprias mãos. Era como se eu tivesse recebido uma facada em minhas costas, uma machadada em minha própria cabeça. Aquela agressividade toda em Aldo me apavorava. A expressão calma e medonha de um psicopata, com o corpo coberto de sangue e um machado em punho, defendendo-se, como se não tivesse feito nada de errado. Sim, criei um porco em minha fazenda. E não foi apenas por um ano. Mas por toda a vida. Um porco alto e magro e cinzento e frio, que andava sobre as duas patas traseiras. Um porco com mulher e filhos, e a carne dura demais para que se pudesse comê-la. Animal de fazenda a gente abate cedo.
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Extrema-unção “Que era eu, Senhor, no meio de meus vícios, e fora de vossa graça, senão um cão morto, coberto das moscas dos demônios, que em minha podridão se cevavam. Vistes minha miséria, e vos apiedastes. Destes-me vida e misericórdia. Oh, bendito seja tal amor!”
Jaculatória de Padre Manuel Bernardes (1644-1710) Excerto da obra “Luz e Calor”, Opúsculo V, década I
Não foi propriamente naquela noite que perdi a fé em Deus. Talvez a tenha perdido ao longo de todo o caminho que me levou até ali – como um pastor distraído, de cujo rebanho as ovelhas vão se desgarrando aos poucos: um dia ele cai em si e percebe que não restou nem ao menos um carneirinho para ser guiado. Até mesmo o cão, que ajudava a manter o rebanho unido, já se foi para latir em outras vizinhanças, deixando-o só. E, perdido no meio do cenário, ele caminha com dificuldade em direção ao precipício, sem saber de seu destino inexorável, apoiando-se em um bordão para aliviar os pés mortificados. *** Acabara de rezar a missa do final de tarde quando uma senhora de trajes negros veio ter comigo para se apresentar e solicitar minha presença em sua residência. Relatou que o marido vivia os últimos dias de uma doença terminal e que solicitara, pela vontade própria que ainda lhe restava, a presença de um padre que lhe ministrasse os santíssimos TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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sacramentos. Era a sua primeira missa em nossa paróquia e se justificou informando que a família se mudara para a cidade naquela mesma semana, como se desejasse convencer-me de seu fervor católico e da fé inabalável de seu companheiro. De fato, eu ouvira falar da recente ocupação do sobrado vizinho à Farmácia Central, onde antes morava uma família de judeus. Mas tal justificativa era pouco ou nada relevante para o fato de não conhecê-los, tal era a quantidade de evangélicos, de católicos não-praticantes ou mesmo de outros judeus, que vinham invadindo a cidade nos últimos anos. Bastou o tempo de atender alguns fiéis que vieram cumprimentar-me pelo sermão, pegar o material que necessitava na sacristia e aprontar-me devidamente para atender o moribundo. Logo estávamos partindo rumo ao velho sobrado, para que eu pudesse receber sua confissão e lhe prestar as derradeiras bênçãos. Caminhamos em silêncio pelas ruas da cidade, enquanto o sol começava a se pôr, sentindo a brisa quente e úmida que anunciava chuva para os próximos dias. Àquela hora, os pássaros revoavam em bando para as copas das árvores, que ficavam apinhadas e enegrecidas, dando um ar soturno ao povoado. Nas casas de bem, os moradores fechavam as venezianas e se recolhiam para assistir à novela, preparar a janta e dormir cedo. Eu fazia planos de aproveitar minha visita para abençoar todos os cômodos da casa, inventariando discretamente a mobília e demais pertences, para julgar a posteriori se suas contribuições à nossa paróquia seriam condizentes com seu conforto e suas posses. Demoraria o máximo possível, de modo a deixá-la sem alternativa senão a de me oferecer um lugar na mesa da ceia. Atravessamos a praça, caminhamos por mais três qua140 l RUDIRAN MESSIAS
dras e já estávamos diante da porta. Minha presença atiçava a curiosidade de alguns vizinhos, que espiavam temerosos entre as cortinas ou abriam uma fresta nas janelas que davam para a calçada. O estado de saúde do homem era do conhecimento de todos, fazendo de minha batina – como a túnica da morte personificada – a confirmação do esperado: a hora inevitável chegara, enfim, para aquele homem. Destrancando a fechadura, convidou-me a entrar na casa ampla e silenciosa. A luz parca do entardecer aumentava a sensação de tristeza e abandono que marcavam precocemente os tempos de luto. Sem acionar o interruptor, pediu que a seguisse e me conduziu pelas escadas até o quarto do casal. Na subida, não pude deixar de sentir seu perfume doce, um cheirinho de intimidade que emanava de seu corpo e se evaporava para além dos limites de sua saia. Usava meias de nylon pretas, que realçavam suas formas e a deixavam ainda mais atraente. Foi então que comecei a desconfiar de suas intenções. Afinal, se era bem verdade que se tratava de uma senhora distinta, com o marido em seu leito de morte, também era certo que a doença do mesmo a colocava em situação de carência carnal. Não seria a primeira vez que uma respeitável dama confundiria o ardor religioso com o corporal, nos dias mais faceiros de seu calendário de tristezas, e me convidaria para conhecer seus íntimos encantos usando dos subterfúgios mais grosseiros que se fizessem necessários. Desde os tempos do seminário eu já conhecia este lado obscuro que existe dentro de todo ser humano. Já no primeiro ano pude aprender que nenhuma fé supera as pulsões sexuais, cuja natureza orgânica se apresenta sempre mais emergente. Segui a mulher por um corredor estreito, ouvindo nossos passos a estalar sobre as ripas do assoalho. Depois TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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escutei o ranger da porta sendo aberta, seguido de uma tosse insistente e engasgada que vinha do lado de dentro do aposento. Ali estava ele, sobre a cama, mergulhado no odor fétido de fralda geriátrica – um misto de fezes e urina que entranham no ambiente – que não deixavam sombra de dúvida em relação a seu estado precário. Aparentava vários anos a mais em relação à esposa, que agora segurava sua mão aflitivamente, em um esforço vão para mantê-lo por mais alguns instantes junto de si. Vão, pois no fim da linha não há desejo humano que supere a vontade divina de que a existência tenha um ponto final. Quando cheguei aos pés da cama, vi em seus olhos algo que me desagradava. Alguma coisa me incomodava intimamente e eu não sabia definir ao certo o que fosse. De início pensei na morte, com seu hálito frio, que nos percorre a espinha quando o cordeiro está marcado para o abate. Aproximei-me e sentei ao seu lado, pedindo à esposa que se retirasse. Antes de receber a bênção, era preciso que ele se confessasse. E assim ele faria, não fosse o medo crescente que o paralisava, refletindo-se em seus olhos gelatinosos e embaçados pela catarata. Assim que a porta se fechou, percebi sua expressão alterando-se. E não era medo de morrer, como pensei – para isso ele já estava pronto e me chamara de livre e espontânea vontade. Seu temor era mais presente e concreto. Ainda assim, era medo. Talvez o último e maior deles, que o acompanharia para além das fronteiras do mundo físico, deixando-o preso no limiar entre essências puras e opostas: bem e mal, céu e inferno, prazer e dor, sexo e perversidades. Um limbo onde pudesse expiar seus atos pecaminosos; onde a gravidade seria sempre mais forte do que sua força para subir ao reino dos céus. Isso eu entendi no momento em que ele tentou falar. 142 l RUDIRAN MESSIAS
Havia passado alguns instantes tentando reconfortá-lo, até que ele emitiu o primeiro som. Um ronco sofrido, seguido por um gemido gutural. Apenas um balbucio breve – ou menos do que isso: um arrulho – e já estava tudo claro para mim. O incômodo entre nós se revelava subitamente, como uma foto amarelada que se revelasse bem diante de nossos olhos, mergulhada em fluidos de um passado longínquo. Era ele: o homem que havia roubado toda a inocência e a pureza que eu pretendia ofertar a Jesus por todos os dias de minha vida eclesiástica; que roubara minha alma, para usar meu corpo durante tantos anos como invólucro de seus desejos. Até o dia em que partira, abandonando a vida religiosa e me deixando com toda a carga de culpa para carregar pelo resto da vida. Assim que soube, corri pelos salões ao seu encontro e o odiei. Ele ainda tentou me abraçar, explicando que abandonava o estado sacerdotal para constituir família. Então o odiei ainda mais. Juntei toda a minha raiva, até sentir o ácido na garganta, para amaldiçoá-lo. Para jurar que o arrastaria até o inferno, e que rezaria todos os dias para que o ventre de sua esposa fosse seco. No dia de sua partida, vi o medo em sua face. Era um homem diferente daquele que eu reencontrava, com mais músculos e menos gordura. Não era tão feio e doente. E não tinha tantos fios de cabelo branco. Seu rosto, sobretudo, era diferente do que eu via ali, cavado pelas rugas que o sofrimento e o remorso haviam gravado em sua pele ao longo dos anos. Mas o medo não. O medo era o mesmo em sua essência. Talvez um pouco mais intenso, agora que eu era o mais forte e estava mais perto de Deus do que ele jamais estivera, tendo em minhas mãos o poder da salvação, do perdão, o óleo doce de oliveira da bênção final. O homem que estava diante de mim, paralisado de TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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terror, não era mais digno de pena do que uma ovelha consagrada em sacrifício – aquela que chora como criança diante da lâmina de algoz a lhe cortar o pescoço, banhando o chão do templo com o calor de seu sangue, enquanto a vida continua seu curso. Era apenas um homem morrendo. Um homem que havia me ensinado que os sacrifícios eram inúteis – porque Deus não estava, mesmo, olhando. Deus não estava nem aí. Mas se isso fosse verdade, o que justificaria seu sacrifício iminente? O que o teria motivado a pedir que eu o levasse ao divino altar da Paixão através de minha bênção? Sua respiração tornava-se cada vez mais dificultada. Seu medo, cada vez maior. Enquanto eu, olhando-o naquele estado lastimável, já estava quase a ponto de o perdoar em sua desgraça. Estava claro que não conseguiria se confessar. Tampouco sua confissão faria alguma diferença, tal era a gravidade de suas faltas. Nem mesmo um confiteor completo, encenado na nave central da mais bela igreja, teria o poder de o redimir. Mas, como ia dizendo, àquelas alturas eu já estava prestes a sentir dó daquele pobre diabo. Dessa feita, tomei da algibeira de minha batina o vaso sagrado que guardava o óleo dos enfermos – o óleo que havia sido consagrado pelo bispo em pessoa na missa crismal da última Quinta-Feira Santa – e me preparei para libertar aquela alma, começando a reza para a qual havia sido chamado: “Por esta santa unção e por sua grande misericórdia, Deus te perdoe de tudo o que fizeste de mal pela vista.” Olhei para o pequeno frasco. Depois para o velho, cujos olhos estavam um pouco mais tranqüilos. Guardavam quase a mesma doçura de nosso primeiro dia em sua cela, durante um retiro de verão. Justamente na hora em que todos se dedicavam ao lazer, ele me interrompeu na roda de 144 l RUDIRAN MESSIAS
violão pedindo que o acompanhasse. Em minha ingenuidade, segui-o mesmo sem saber para onde me levaria. Até que chegamos na ala onde ficavam os aposentos dos clérigos. A maioria de nós desconhecia aquela parte do retiro onde, para minha surpresa, os dormitórios eram individuais – apesar de extremamente pequenos. Em sua cela havia apenas a cama e uma modesta mesinha de madeira, sobre a qual estavam uma Bíblia e o livro “Luz e Calor”, que terminavam com as famosas jaculatórias do Padre Manuel Bernardes, que ele tanto elogiava. Assim que entrei, convidou-me a sentar, enquanto tirava debaixo do colchão uma revista de fotos bem fininha, onde homens nus exibiam-se uns sobre os outros com seus enormes falos. Ofereceu para que eu a examinasse, e, ao folheá-la, pude vê-los fazendo coisas com as quais nem sonhava, tanto a sós quanto aos pares. Até mesmo em trio ou em grupo, invariavelmente nus e sorridentes. Algumas vezes com uma expressão de arrebatamento quase religioso, como a dos padres em seus sermões – um riso bobo misturado a um olhar distraído de quem teve uma revelação. E ao voltar dessas memórias, experimentei a mesma sensação das noites em claro, nas quais invocava o demônio para arrancar os olhos de minhas órbitas e comê-los. Pois eles estavam eternamente conspurcados. Como os olhos daquele velho, que não mereciam receber o óleo sagrado em suas pálpebras. Fechei novamente o frasco, mas continuei com o sacramento, uma vez que já o tinha iniciado: “Por esta santa unção e por sua grande misericórdia, Deus te perdoe de tudo o que fizeste de mal pelo olfato.” Comecei a desenroscar o frasco, quando o cheiro do velho me trouxe à lembrança seus outros odores, que eu conhecia tão bem. O de suas mãos, quando me tocavam; o de TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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suas axilas, quando me abraçava, o de seu sexo, quando levantava a batina. Ele também gostava de me cheirar. Às vezes se dedicava a isto por horas a fio, fungando com força e dizendo que adorava meus vapores de menino. Encostava o nariz no meu cangote, no meu peito, e ia descendo até chegar em meu sexo impubescente, onde se detinha sem pressa. Depois me virava de costas para esfregar seu rosto entre meus glúteos, sussurrando interjeições de prazer, até ficar tonto e deitar na cama, me convidando a fazer o mesmo. E assim ficávamos, por horas. Ele, de barriga para cima, com a respiração forte e ruidosa. Eu, percorrendo seu corpo, sentindo na ponta de meu nariz os seus pêlos fartos e oleosos. Seu cheiro entranhava em minhas narinas e eu saía de lá constrangido, esgueirando-me pelas sombras para que ninguém sentisse seu cheiro em mim. Mas agora só havia urina e fezes para aspirar, e não era preciso tirar suas roupas ou me aproximar dele para sentir. Num longo suspiro, voltei daquele tempo com o mesmo ar desprotegido da criança que um dia fui, que fungava escondida no banheiro para que ninguém desconfiasse de seu choro. Eram lágrimas de remorso. Como a lágrima solitária que corria de seu olho esquerdo, deixando um rastro em seu nariz até desaparecer em sua narina, onde eu jamais poderia consagrar aquele azeite bendito. Rosqueei novamente a tampa, antes de seguir a oração: “Por esta santa unção e por sua grande misericórdia, Deus te perdoe de tudo o que fizeste de mal pelo ouvido.” Mais uma vez segurei a tampinha do pequeno vaso. Consegui abri-la totalmente, percebendo sua agonia ao tentar comunicar-se. Seus pequenos grunhidos, como os sons que costumavam anunciar o final de nossos encontros. Os urros e ais que tantas vezes me ensurdeceram para as palavras do 146 l RUDIRAN MESSIAS
Senhor. Nas primeiras vezes em seu quarto, eu era apenas um menino acanhado, desajeitado, que não queria brincar e pedia ao adulto que parasse. Mas ele insistia, soprando em meu ouvido as regras do jogo. Instruindo-me. Desafiando-me a gritar, a tentar fugir. Perguntava, irônico, a quem eu acharia que os outros padres haveriam de escutar. Também me ensinou a grunhir, gemer, urrar. Primeiro de dor, depois de prazer. Às vezes tapava minha boca para que ninguém mais ouvisse. E pouco a pouco eu saía daquela passividade de menino indefeso para fazer dele meu brinquedo, meu instrumento, tirando de seu corpo a música erótica dos uis e ais, como ele fazia comigo. Agora ele também gemia, despertando-me das ruínas de nosso passado. Quantas vezes, com o rosário na mão, desejei ter a coragem de socar a pequena cruz em meu ouvido até ensurdecer? Quantas vezes não desejei deixá-lo surdo também? Cortar fora suas orelhas, para que nunca mais tivesse o prazer de me ouvir gozar. Para que eu não tivesse que untá-las, como tinha que fazer agora. Não, eu não poderia untar sua orelha indigna com algo tão sagrado. Continuei com a reza sem fazê-lo: “Por esta santa unção e por sua grande misericórdia, Deus te perdoe de tudo o que fizeste de mal pelo gosto e palavras.” Molhei a ponta de meus dedos no óleo e lembrei de meu choro copioso, que encharcava meu rosto e minhas mãos nas horas que eu passava escondido entre as árvores do quintal. Certa vez, ao ver minhas lágrimas, ele me levou para sua cela, como já era costume, e as lambeu com carinho. Depois lambeu meu rosto, meu pescoço, e continuou assim até que eu me sentisse melhor. Como faz o cão com seus filhotes. E minha boca também era dele. Ainda lembrava de seu gosto – ereto, herege – amargurando o céu de minha boca naquela cela do seminário. Fechando os olhos, TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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ainda podia sentir seu hálito no ouvido, quando ficávamos a sós. Senti um arrepio ao me lembrar de sua língua, acariciando cada centímetro de minha pele. Lembrei das coisas que falava no auge da excitação, quando eu sentia na boca o seu sal. Quantos anos passei querendo senti-lo novamente. Mas não daquele jeito, naquela altura de nossas vidas. O tempo passara, levando o gosto que eu um dia tivera e trazendo dissabores em seu lugar. Seu gosto também não haveria de ser o mesmo. Seria doce e nauseante. Suas palavras seriam outras. Perto da hora final, não haveriam de ser tão picantes, mas mórbidas. Ouvi de sua boca um gemido mais alto e claro, que me acordou daquele transe com o gosto do fel, a garganta seca. Como haveria de estar a garganta dele, no fundo daquela boca murcha e vazia que eu não haveria de untar. Queria apenas seguir a bênção: “Por esta santa unção e por sua grande misericórdia, Deus te perdoe de tudo o que fizeste de mal pelo tato.” O tato de seus dedos firmes em minha pele, eriçando-a. Como devia ser macia minha pele de menino. Com que prazer ele não explorava suas texturas? Ele me conhecia como um cego conhece o sexo. Podia me ler em braile enquanto me acariciava. E assim o fazia. Desvendava-me com minúcia antes de chegar ao ponto final, que ele não explorava sem antes mergulhar seus dedos no azeite. Isso ele começou aos poucos, avançando com paciência. E quanto mais fundo ele ia, mais aumentava meu desejo de devolver para ele o indicador. Aos poucos eu criava coragem para dedá-lo e contar para todos o que ele vinha fazendo comigo. Planejava cagüetar aquele sodomita dos diabos. Mas junto com minha raiva veio a vergonha. E meu amor por ele. Um embate de sentimentos em meu corpo, prendendo-me ao seu jugo. Eu estava em suas mãos e ele me moldava como 148 l RUDIRAN MESSIAS
se fosse o criador. Eu era um monte de barro, que ele esculpia para depois colocar no forno. Queimado, eu tomaria minha forma definitiva. Também o toquei. Minha mão lisa tocou a sua mão calejada. E houve o tempo em que acreditei ter tocado seu coração, como ele tocara o meu. Eu tinha acariciado todo aquele corpo, impresso nele minhas digitais. Esses mesmos dedos umedecidos pelo óleo consagrado, que estendia até suas mãos distraidamente, como se desejasse verificar a textura. Mas não precisei tocá-las para saber que eram mãos enrugadas, a tempo de recuar meus dedos e terminar o sacramento: “Por esta santa unção e por sua grande misericórdia, Deus te perdoe de tudo o que fizeste de mal pelos passos.” Tentei imaginar por onde ele havia andado ao longo de tantos anos sem notícias. Quantos quilômetros havíamos caminhado sem estar lado a lado? E qual era o motivo para que nossos caminhos se encontrassem novamente, depois de tantos passos em direções distintas? O que teria Deus em mente ao nos confrontar daquela forma, como dois lados de um espelho de gerações perdidas? De um lado, o homem com o qual eu convivera tantos anos. Do outro, aquele que eu não conhecia mais. Aquele cujos pés eu examinava, com as mãos pairando sobre eles sem os tocar. Pairando sobre os tornozelos e subindo por suas pernas, passando pelos joelhos e parando na cintura. A cintura de velho que não funcionava mais; e que eu agarrei, mesmo assim, com a firmeza de antes, com a vontade dos anos perdidos e a tensão de quem ainda guarda a ferida de uma infidelidade antiga. Virei seu corpo de bruços e o despojei de todas as suas vestes. Agora ele seria puro mais uma vez, como no dia em que nascera. Minha oração, que jamais teria a forTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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ça para resgatar sua alma errática para o reino do Senhor, salvaria ao menos sua carne, para que fosse recebida pela terra como uma oferenda. A terra engoliria seu corpo como a uma chuva de mágoas, enxugando-o para seu interior e se alimentando de seus nutrientes, sem deixar rastros. Para que fosse assim, eu precisava apenas superar minha repulsa e transcender meus princípios religiosos. Por isso fiz o que fiz, despejando todo o óleo dos enfermos dentro daquele homem. Usando meus dedos para tamponá-lo bem, evitei que uma só gota vazasse de seu corpo. O que se revelou um ótimo expediente. Logo podia senti-lo mais relaxado, o que me obrigava a afundar minha mão. A ir mais e mais fundo, até que ele emitisse seu último suspiro. O que não demorou muito. Foram apenas alguns minutos antes que eu pudesse desvirar seu corpo, vesti-lo novamente, fechar seus olhos e chamar sua esposa. Ela ficaria triste, isso era certo. Mas eu poderia voltar, enchendo seu coração de consolo até que não houvesse mais espaço para ele. Até que os dias de luto ficassem para trás e a primavera retornasse, usando as mãos da viúva para me ofertar suas flores. No que dependesse de mim, esse dia também não demoraria. Com o objetivo de consolá-la, eu faria qualquer coisa que estivesse ao meu alcance. E não haveria Igreja, ou voto, ou dogma que pudessem me impedir. Nem mesmo ele, que agora estava morto dentro de mim, e logo feneceria dentro dela também. Estaríamos eternamente unidos pela viuvez e pela libertação. *** Um dia fechei os olhos. E quando os abri, estava livre. Se ao menos soubesse que era fácil assim, que bastava uma piscada – um passe de mágica, uma passagem de 150 l RUDIRAN MESSIAS
milionésimos de segundo entre estados de luz e sombra. Como em um túnel: antes de ver o outro lado, é preciso passar pela escuridão. Assim é a vida, uma longa passagem ao final da qual o homem – lobo ou cordeiro – cai em si, dentro de seu profundo precipício. E o que resta, pergunto eu, quando nem ao menos o apoio de Deus pode ajudar a suportar o impacto e os estilhaços na aterrisagem? Quando tudo está prestes a se desintegrar: passado, presente e futuro? O tempo acabou. Olhei para minha mão e ela estava sem cajado. Não era mais o pastor. Apenas uma ovelha desgarrada: livre, afinal.
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Cabeça feita
Lá pelos idos dos anos 80, o Dienyfers Cut! era o salão mais moderninho da cidade, uma espécie de grife em matéria de cortes e penteados. Por lá passavam todos os descolados, incluindo pessoas ilustres, como a vereadora feminista-radical-do-PT, famosa por seus cortes pirados e tingidos com as cores vibrantes do arco-íris; ou o vocalista de uma famosa banda de heavy metal, que aparecia a cada semana com um cabelo novo, em mudanças radicais que iam da cabeça raspada até o cabelo comprido, passando pelo corte moicano e pelo militar, dependendo do humor; além de, nada mais, nada menos, contar com a famosa top model internacional Pietra na lista de clientes, com seus longos cabelos louros que caíam pelos ombros até a cintura. Isso para citar apenas alguns entre os famosos atendidos pessoalmente por Dienyfer, que saía de uma porta emoldurada de néon como se fosse apresentar um programa de auditório, sempre com aquele ar deslumbrado, fungando insistentemente, com os olhos meio vidrados e a mandíbula travada. Pilhadinha que só vendo. Parecia movida à TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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bateria alcalina. Se tivesse contado o que sabia, acabaria ficando rica. Bastaria escrever tudo em um livro para entrar na lista dos mais vendidos e lá ficar, por incontáveis semanas. O público adora uma fofoca, e o salão é sempre uma fonte rica delas. Os cabeleireiros costumam acumular involuntariamente a função de psicólogos, com a diferença de que, geralmente, têm uma língua comprida e ferina. Mas Dienyfer era uma exceção neste ponto. Gostava de ser discreta com as confidências dos clientes, o que contribuía para manter sua agenda lotada. Além do mais, sua competência e sua criatividade eram talentos reconhecidos por todos. A grande prova de seu profissionalismo era o fato de que muitos dos clientes se tornavam amigos. E a mais próxima era, justamente, a modelo Pietra, que parecia não se importar em desfilar pelos shopping centers da cidade acompanhada por uma travesti. Não ligava para o impacto que tal companhia pudesse causar em sua carreira. Ajudava-lhe de bom grado a escolher roupas chiques, agindo como uma espécie de personal stylist de Dienyfer. Enquanto isso, a cabeleireira investia todo o seu talento nas madeixas da top model, o que rendeu a Pietra um contrato milionário com um fabricante de tinturas capilares, e à Dienyfer o título de hairdresser das estrelas. Faziam uma dupla perfeita, aparecendo juntas nas festas de gente famosa e em fotos nas revistas de fofoca. Dienyfer a acompanhava em desfiles e produções de foto, mesmo fora do país, como cabeleireira exclusiva. Até por isso, muitas pessoas começaram a estranhar quando elas pararam de aparecer juntas em público. Dienyfer saíra para um curso de dois meses na Espanha e, depois de sua volta, era Pietra quem sumia do circuito por um tempo, internando-se em um spa inglês e se negando 154 l RUDIRAN MESSIAS
a conceder entrevistas ou a posar para fotografias. O motivo alegado pela assessoria de imprensa da modelo seria uma crise de stress provocada pelo excesso de trabalho na temporada de desfiles outono-inverno, acompanhada por um quadro de fadiga crônica. Uma jornalista da revista Fifi havia marcado um horário com Dienyfer, aproveitando a ocasião para tentar colher algumas informações, sem muito sucesso. Algumas pistas apenas, através de respostas esquivas. Nada que desse para publicar. O furo jornalístico foi dado pelo papparazzo de um tablóide inglês, que conseguiu captar a imagem de Pietra através de uma das janelas da clínica. Quase irreconhecível, a top model aparecia com um cabelo curtíssimo, recebendo a visita de um famoso ator brasileiro que começava a fazer sucesso em Hollywood. No Brasil, ele havia posado recentemente para uma revista gay, onde mostrava seu corpo musculoso e seu imenso dote em poses eróticas, além de um corte de cabelo ultramoderno, forte indício de que ele também era cliente de Dienyfer. Todos esses fatos lançados, assim, formam um quadro extremamente obscuro, composto por peças difíceis de encaixar. Seria preciso voltar no tempo e dispor de informações direto da fonte para desvendar o que, de fato, ocorreu, e as implicações de toda a situação. Além de uma boa dose de malícia para entender a vingança de Dienyfer. Ninguém acreditaria que o grande galã latino que despontava para o estrelato nos filmes americanos, tendo sido o protagonista de algumas novelas brasileiras, teria se envolvido, alguns anos antes, com uma cabeleireira travesti. Até por isso, é provável que a história nunca seja levada ao conhecimento do grande público. Acontece que a cabeleireira – que não era boba – inTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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tuíra sobre o relacionamento entre os dois, muito antes de a amiga ter um envolvimento real com o ator. Dienyfer ainda era apaixonada por ele, mas o ator a rejeitara após conhecer Pietra na sala de espera do salão. Ele tinha se interessado pela modelo e, com seu jeito sedutor, logo a conquistara completamente. Viveram um grande amor em segredo, para que Dienyfer não desconfiasse de nada. Sabiam que aquela história poderia ser explosiva o bastante para acabar com a carreira e a credibilidade dos dois, caso ela descobrisse tudo e resolvesse fazer algo a respeito. Bastava que abrisse a boca e estariam desmoralizados. A princípio, Dienyfer tinha resolvido fazer vista grossa. Mas à medida que o tempo passava, suas pálpebras se afinavam em um frio e fino olhar de ódio. Sentia-se ultrajada por estar recebendo aquele golpe pelas costas. Pietra poderia ter aberto o jogo, falado sinceramente, mas preferiu traí-la. A vontade de Dienyfer era de dar uma navalhada no rosto da amiga, marcá-la para sempre, como ela a marcara na alma. Fazer um grande talho, como aquele que se abrira em seu peito. Porém, ela era mais paciente, mais fria e má, como Joan Crawford ou Bette Davis. Olhava-se no espelho e repetia o famoso bordão de “A Malvada”: “I’m evil!” Não queria fazer algo que a mandasse para a cadeia, onde teria que andar com um uniforme, sem maquiagem, dando a bunda para um monte de bandidos sujos e asquerosos. Preferiu algo mais calculado e colocou seu plano em prática quando Pietra apareceu para cortar as pontas e fazer uma hidratação nos cabelos. Era domingo, e o salão estava aberto exclusivamente para receber a modelo. Ofereceu-lhe um aromático chá de frutas silvestres antes de lavar sua cabeça. Pietra aceitou sem pestanejar, e foi bebendo até ficar sonolenta e dormir profundamente. Então, 156 l RUDIRAN MESSIAS
Dienyfer ligou uma máquina elétrica e raspou sem dó a cabeça de Pietra. Depois, depositou o cabelo da amiga em um recipiente de vidro bem colorido, translúcido, comprado em uma loja de artesanato especialmente para a ocasião. Quando estava regando generosamente as mechas de cabelo com álcool de farmácia, Pietra acordava, meio tonta. Dienyfer exagerou um pouco mais no álcool, dizendo: “Isso é pelo namorado que você me roubou.” Depois, riscando um fósforo, complementou: “E isso é por não ter me falado nada.” Em seguida, jogou o fósforo sobre os cabelos, que se queimaram quase instantaneamente, enquanto Pietra – perplexa – olhava para o fogo diante de sua imagem careca no espelho. Antes de sumir pela porta de néon, Dienyfer bebeu um gole do álcool e entregou a Pietra uma caixa de presente com um laço de fita, onde havia uma peruca preta, crespa, igual ao seu cabelo. Então arrematou dizendo-lhe que aquele presente era para que Pietra nunca se esquecesse do que havia feito a uma amiga. Foi assim que a modelo saiu de cena: praticamente disfarçada, usando aquela peruca que a tornava irreconhecível. Na televisão, o fabricante de tinturas para cabelo começou a reprisar os comerciais, dispensando Pietra algumas semanas depois, por quebra contratual. Nas propagandas, não demorou para que ela fosse trocada por outras modelos mais jovens e mais loiras. O mesmo aconteceu na vida real, pois seu caso com o ator não durou muito tempo. Nas passarelas, também tinha seus dias contados: conseguiu figurar apenas em alguns desfiles de Jean Paul Gaultier. Depois fez o piloto para um programa de moda na MTV, que não deu certo. Então abriu uma escola para formação de modelos e manequins. TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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Dienyfer continuou cortando cabelos por muito tempo, até o dia em que morreu de overdose. Depois, uma autora de telenovelas se inspirou nela para criar uma personagem caricata na novela das oito, que gerou muita polêmica e abriu mais um daqueles ciclos de discussão sobre a homossexualidade na televisão brasileira. Como protagonista, estava o galã que um dia fez par com Dienyfer na vida real, mas que, ironicamente – talvez convenientemente – fazia parte de um outro núcleo dramático da trama. Essa é a história que se ouve à boca pequena, e com algumas variações, pelos salões da cidade. Salões como este, onde os modernos continuam a confiar suas cabeças às tesouras implacáveis dos cabeleireiros. Então, querida, o que vai ser? Que tal um corte estilo anos 80?
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O inventário de madame K.
Eu acreditava que todo ser humano era essencialmente bom, e que a malvadeza provinha de uma enfermidade emocional. Ou da ignorância, da inveja, da limitação do ser humano de enxergar além de seu próprio umbigo. Coisas assim. Acreditava que ninguém desejava conscientemente praticar o mal. Mas isso foi antes de conhecer Judith K., a grande proprietária de terras que ficara conhecida por sua mão de ferro para conduzir os negócios e especular no mercado de banana tipo exportação. Foi então que percebi o quanto havia sido ingênuo na minha maneira de encarar o mundo e as pessoas. Aquela velha decrépita era a maldade em si. Uma verdadeira canheta, tinhosa, esposa do capeta, chifruda, coisa-ruim, espírito maligno, gênio das trevas, serpente infernal, anhangá, anhangüera, bode preto, exu de encruzilhada, anjo caído, companheira de Lúcifer, Satã de saia, senhora do mal. E olha que eu nem estou exagerando. Tudo o que eu sei sobre ela foi devido a anos de convivência, ao longo dos quais meu ódio foi crescendo TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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por dentro na mesma medida em que eu parecia cada vez mais treinado e subserviente por fora. Sempre levando café na cama, chá com bolachinhas na sala, servindo à francesa na hora do jantar. Sempre com aquele sorriso nos lábios, que era motivado tão somente pelo meu medo-pânico de perder o emprego, sendo arrimo familiar. E sempre com a bandeja de prata embaixo do braço, onde eu sonhava, um dia, colocar a cabeça da velha. Nunca tardava a atender seus chamados escandalosos, feitos através de um sininho de cristal ou de uma campainha acionada dos aposentos íntimos, que soava ruidosamente na cozinha. Eu me sentia como uma visita indesejada em seu enorme sobrado. O estilo gótico da edificação deixava o clima ainda mais opressivo do que já era, pela simples presença da Madame. E eu era tratado por ela como algo subumano, tipo um clone, um andróide ou algo que o valha. Para ela, eu nem ao menos tinha alma, ou assim ela me fazia crer. É claro que eu tinha que extravasar este tratamento com pequenas maldades, como dar uma cuspida no cafezinho que ela iria beber, ou bater o seu rico fillet mignon no assoalho para que ele ficasse sujo com o pó que se acumulava entre as ripas de madeira. Ao longo dos anos, essas pequenas maldades foram aumentando em intensidade e freqüência, de modo que eu já via crescer em mim um lado cada vez mais sombrio. Minha maldade crescia alimentada por esse ódio que eu nutria por ela. Até que um dia eu fiz a maior de todas: eu tinha ouvido a história de uma empregada que recebera a notícia de sua demissão enquanto acabava de preparar o jantar. Rancorosa, ela havia fingido que estava tudo bem e, pouco antes de servir a refeição, quando havia sido deixada sozinha na ala de empregados, levara a panela do feijão 160 l RUDIRAN MESSIAS
por alguns minutos até o banheiro. Depois de servir a mesa pela última vez, ela juntou seus pertences para ir embora. Patrão, esposa e filhos comentavam na sala sobre sua maneira tão madura de receber a notícia, quando ela apareceu na sala com uma sacola na mão e uma trouxa de roupas na outra. Encontrou a família sorridente, e retribuiu a simpatia perguntando se a comida estava boa. A pergunta era retórica, mas foi respondida educadamente com um “Sim, está tudo muito gostoso!” Foi então que ela revelou, com uma expressão de quem está, ao mesmo tempo, com muita raiva e uma vontade de rir convulsivamente: “Então podem aproveitar essa feijoada especial, que eu caguei dentro da panela.” A cena que se seguiu foi dantesca. Vômitos por todo o lado e a empregada, já no elevador, com a alma lavada. Eu não me atrevi a tanto, já que desejava manter o emprego, mas passei a urinar freqüentemente nos pratos que incluíam molhos, de forma que meus atos passaram todos despercebidos. Também nunca perguntei se a comida estava boa, e é óbvio que nunca fiz alguma revelação bombástica. Restringia-me a ficar em um canto da sala, como parte da mobília, vestindo aquele uniforme idiota e esperando pela próxima ordem. Ficava pensando que tinha sido bem feito, remoia esse pensamento inúmeras vezes. Era engraçado como uma dama tão rica, uma grã-fina importante, figurona da soçaite, herdeira de tão grande patrimônio, poderia se deliciar quase que diariamente com o mijo de um reles mordomo como eu – ela sempre disse que odiava comida seca. Isso me ajudava a manter sempre o mesmo sorriso, que era recebido pela madame como simpatia. Sorriso que nunca era retribuído, talvez por não combinar com sua perene expressão de nojo, tipo blasé. A mesma expressão que ela guarda agora, deitada TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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no caixão cheio de pétalas de flores que irão murchar e apodrecer junto de si. Ladeada por coroas de flores redondas e coloridas como fogos de artifício. Morreu de velha, a infeliz. E talvez até tenha se arrependido de algumas de suas armações maquiavélicas, que irei narrar em seguida. Talvez tenha sido por isso que, tempos antes de morrer, ela me confidenciara, segurando minhas mãos entre as suas, que havia me colocado como único beneficiário de sua fortuna, já que não dispunha de herdeiros naturais. Quando a gente é velho, costuma repensar muita coisa na vida. Mas eu não me arrependo das maldades dirigidas a ela, que foi o único alvo de minha ira. Nunca deixei de odiá-la, mesmo quando a vi morrendo lentamente, sem me preocupar em chamar uma ambulância. Fiquei horas olhando para aquela velha, como se pudesse ver sua alma saindo do corpo asqueroso. Essa foi a minha melhor maldade. E olhei calmamente, prestando atenção a cada detalhe, cada ronco e gemido de sua respiração dificultada, o olhar pedindo ajuda, até que havia restado apenas um corpo de carne fria. Sempre fui muito observador. Nunca deixei de ver, por exemplo, a semente da demência refletida no fundo dos seus olhos, pronta para brotar. Sim, a loucura é uma árvore frondosa. Sob sua copa, um ser humano pode se alienar de todas as agruras da vida. Passei anos esperando que a loucura de madame Judith K. pudesse me beneficiar de alguma forma, só não pensava que iria demorar tanto. O fato é que sua passagem foi um alívio para todos os que conviveram com ela. Não eram muitos os presentes, mas muitos entre eles mal podiam esconder a sutil alegria por ela ter falecido. Entre os choros que se podia ouvir baixinho – é preciso que se observe aos menos atentos –, a maioria era de uma disfarçada alegria e 162 l RUDIRAN MESSIAS
alívio. Muitos deviam para ela, e suas lágrimas eram belas, porque eram espontâneas. Caíam silenciosamente. Outros vertiam mais ruidosamente as lágrimas de crocodilo. Queriam ser notados, para que se pensasse estarem sinceramente tocados. Isso por interesse, já que pensavam ter chances de ganhar alguma coisa com a morte da ricaça. Eu mesmo, sabendo-me herdeiro absoluto de todo o seu espólio, tratava de ser o mais convincente de todos. De tantos em tantos minutos, me debruçava mais uma vez sobre o esquife para espiá-la pela janelinha de vidro, como se estivesse me certificando de que sua morte estava mesmo consumada. Foi uma espécie de cacoete que eu desenvolvi durante o velório, e acho que, se ela não tivesse sido enterrada naquele dia, eu ainda estaria voltando para olhar o cadáver. A cada vez que olhava para sua cabeça de defunto, meus olhos se dirigiam instintivamente para seu nariz, que estava tamponado com buchas de algodão, como deveriam estar todos os orifícios de seu corpo, incluindo garganta e esfíncteres. Logo vinha o cheiro doce e nauseante da morte e, como meu nariz não estava tamponado, eu dava uma olhadela pela sala para verificar se tinha quorum suficiente para justificar os soluços escandalosos e gemidos rascados que eu dissimulava perfeitamente bem. Também estava presente o dono da fazenda vizinha com sua família, que devia a ela uma fábula. Até que nem havia pedido muito dinheiro, mas com o insucesso de sua cultura de cacau por anos consecutivos, além dos juros extorsivos cobrados pela Madame, estava prestes a perder suas terras para ela. Uma misteriosa praga acometia sua fazenda, vinda não sei de onde. Uma nuvem de insetos incontrolável, que sempre chegava para assegurar o malogro de sua produção. Algumas semanas antes, ele tinha feito TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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uma visita à casa da velha, ocasião em que ela ameaçara desapropriar legalmente suas terras. Ele, respondendo a suas ameaças, saiu da casa batendo a porta da frente aos gritos de “Sua agiota ordinária!”, e “Véia vaaa-ga-buunda”, ofensa que ele fazia questão de pronunciar sílaba por sílaba, espichando bem o primeiro ‘A’ da palavra vagabunda, e também o U, decerto para deixar bem claro que se referia à enorme bunda de Madame K. E saiu pátio afora falando outros impropérios, como um ator de pornochanchada, acrescentando ameaças sobre ameaças. Dizendo que iria fazer e acontecer. Neste dia eu tive que sair da sala de visitas antes de ter um acesso de riso na frente da patroa. Esse homem não foi o único a quem ela fez mal. E aquele não era, seguramente, o único tipo de maldade a que ela dedicava seu tempo livre. De certa feita, quando seu marido ainda era vivo, ela fez publicar no pequeno jornal da cidade, que tinha tiragem quinzenal, o seguinte aviso na seção de recados: “Querido Vítor F., tenha um feliz aniversário. Tenho certeza de que será muito feliz, pois vai ser o último que passarás com a vaca da tua mulher. Vivo ou morto. Te amo, fofo. Bjs da sua Sandra.” Acontece que o único Vítor da cidade que tinha o sobrenome iniciado por F. era o Farias, cuja secretária se chamava – adivinha – Sandra! Ele era o melhor amigo de seu marido, e a situação foi tão embaraçosa que culminou em uma separação. Anos depois ela contava essa história para quem quisesse ouvir, invariavelmente seguida por um riso seco e artificial. Mas foi o filho bastardo de seu marido com a empregada a maior vítima de suas maldades. Ela tinha idéias muito criativas, como atirar vasos propositadamente no chão para culpar o mulatinho, sem se importar de fazer isto longe dos olhos do garoto. Ela foi criando, assim, diversas 164 l RUDIRAN MESSIAS
pequenas tensões, que saboreava como pequenas vinganças, até que um dia seu marido faleceu subitamente. Assim que ficou sabendo, mesmo antes de lamentar sua morte ou providenciar um funeral, ela tratou logo de mandar a empregada embora com uma mão na frente e outra atrás. Estas são apenas algumas maldades de seu repertório, que ilustram bem como ela se empenhava em prejudicar as pessoas, fosse pelo lado econômico, sentimental, ou atingindo com soco inglês o calcanhar de Aquiles de todos com os quais não simpatizasse. E esse contingente representava quase todo mundo. Houve malvadezas maiores, mas acho que essas poucas são o suficiente para despertar em qualquer vivente um pouquinho de raiva – ou pelo menos um sentimento de desprezo. Alguns dias após o funeral, quando fizeram a leitura oficial de seu testamento, ela conseguiu surpreender a todos, mesmo estando morta. Foi quando mandou sua última e grande banana para todos. Uma semana antes de falecer, ela havia providenciado uma revisão na sua herança, e ali estava, assinada com o próprio punho da finada, um documento que destinava tudo o que possuía em bens materiais, incluindo móveis e imóveis, para a Legião da Boa Vontade, me deixando só com o mais longínquo dos bananais, cujo tamanho não era maior do que uma fazendinha mequetrefe, com uma casa de sapê no meio, onde outrora dormiam alguns meeiros. Em um arroubo de bondade, ou para tentar se redimir de tantas malvadezas, ela decidira praticar um último, talvez único, ato cristão. Nem religiosa aquela vaca era. E no fundo de sua boa ação, o maior lesado era eu. Foi assim que Madame Judith ficou conhecida como uma das maiores doadoras para entidade não-governamenTABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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tal sem fins lucrativos do Brasil. Só faltou ser canonizada como a primeira santa evangélica. Em Brasília, já tramita um projeto-lei que confere a esta senhora uma condecoração póstuma por sua generosidade para com o necessitado brasileiro. Desta forma, em um país onde todo morto vira santo, Judith K. entra para os anais da história como se fosse uma Madre Tereza quando, na verdade, era a cadela mais odiosa que já conheci em toda a minha vida.
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Auto-retrato em sangüínea e carvão
Antes de dominar a arte, tive que superar a técnica. Está aí um princípio que serve para muitas coisas na vida. Por exemplo: para se deixar arrebatar pelas emoções, é preciso que se transcenda a razão – como transcendi; para atingir o amor, é necessário que se cruze o limiar da dor – como cruzei; e para alcançar a lucidez total, é preciso vencer todas as barreiras da memória e do esquecimento – como venci. Mas não estou aqui para falar de conceitos. Tampouco para me prevalecer ou me vangloriar. De fato, nem ao menos sou um artista conhecido. Não sou, realmente, nada de mais. Porém, dada a natureza das circunstâncias, só me resta contar-lhes essa história – a gênese de minha obra-prima, que hoje realizei, depois de esboçá-la tantas vezes em sangüínea e carvão. No centro dela, o homem ferido de morte, desprovido de sua própria qualidade de homem. Um corpo encarnado e sujo, exausto de sofrer. Não é uma peça de arte, apenas. É minha vida que está aqui, diante de vocês. TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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Comecei a desenhar na clínica de reabilitação para doentes mentais, onde vivi a maior parte de minha adolescência. As memórias e os motivos que me haviam levado até lá eram desconhecidas para mim. Na maior parte do tempo, sentia a cabeça leve e vazia. Deixava-me ficar, apenas, meneando a cabeça e balançando o corpo para frente e para trás, sem vontade de falar. Sem vontade de nada. Tudo o que lembro veio dos desenhos que fiz. Portanto, não garanto a veracidade dos fatos. Ainda não sei se minha arte imitou a vida ou se foi o contrário. Desconfio que ambas se encontram em processo de retroalimentação constante, e já não interessa mais o que é verdade ou mentira. Sinto as cicatrizes e as chagas da vida e da arte em minha pele, cobrindo-me de culpa. E se isso não é realidade o suficiente, não sei o que é. De início, eram rabiscos. Rabiscos vermelhos, raivosos, caóticos, sobrepostos. Rabiscos sobre rabiscos, até que surgissem áreas chapadas de vermelho vivo. Depois vieram as formas: vermelho pingando, vermelho espirrando, vermelho jorrando, vermelho entornando, derramando-se pelo chão. Então surgiram mãos vermelhas, feridas vermelhas e vermelho no fio da faca segurada pelas mãos vermelhas. Não eram minhas, as mãos. Mas aqueles cortes rasgavam-me também. Eu não conseguia fazer nada para impedi-lo, nem ao menos perguntar por quê. “Por quê, papai? Por quê?” – gritava, então, diante do desenho. Como se daquela resposta dependesse toda a minha vida. Berrava descontrolado, repetidamente, até que os enfermeiros me imobilizassem e acalmassem com uma injeção de tranqüilizante. Logo aprendi a me controlar, para manter o privilégio de freqüentar a sala de ludoterapia, enquanto a maioria 168 l RUDIRAN MESSIAS
dos internos ocupava as tardes assistindo à tevê. Teria desenhado com meu próprio dedo se fosse necessário, descarnando-o até a falange para que sangrasse o vermelho do qual precisava. Mas bastou aparentar calma para que me deixassem ali, esquecido, lutando contra as memórias que surgiam de meus traços. E foi com um desenho atrás do outro que vi a cena mais nítida e clara, como se saísse de um transe. Lá estava ele, matando-a com as próprias mãos. Empunhando a faca que ela usava ao cozinhar para nós. Depois me beijara a boca ofegante, horrorizada. Beijo de língua, como fazia sempre que ela não estava em casa. “Não fica assim, filhinho. Mamãe está descansando.” Seus olhos vidrados, me tomando de terror. E ele dizendo: “Não me olha assim, meu filho!”, diante dos meus olhos que não aceitavam suas súplicas, diante dos quais ele voltou para si mesmo a faca que usara contra ela. Foi então que me internaram. E naquela clínica perdi uma parte de minha vida, até completar meus dezenove anos. Depois, mudei-me para a casa de meus avós maternos – a mesma velha casa na qual mamãe crescera –, onde fui recebido como o neto querido. O único sobrevivente, futuro daquela família triste e destroçada. Empenhei-me em recuperar o tempo perdido, tentando ignorar os fantasmas do passado, que todo dia voltavam para me visitar. Diante deles, não havia como fugir da vergonha, pois ela estava dentro de mim. Impossível escapar daquelas fotos de mamãe nos porta-retratos, de seu olhar inquisidor me perseguindo. O que me salvou foi a terapia, combinada com o coquetel de medicamentos para depressão. Continuei com minha vida. Matriculei-me em aulas de desenho, cursei o supletivo e prestei o vestibular para artes plásticas. Por um tempo, parecia reconciliado com TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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todos os pesadelos do passado. Mas o tempo e a prática foram acrescentando profundidade e força a meus desenhos, trazendo memórias mais antigas. Mais obscuras e esfumadas. Uma infância em sépia e carvão, com muita sombra e pouca luz: minha natureza morta. A vida não era apenas vermelha de desespero, afinal. Tinha também a tristeza do preto. Preto e sujo, como o galinheiro que ficava nos fundos de nossa casa, onde papai me levava para brincar. Ele me fazia usar as roupas de mamãe que secavam no varal. Depois me usava, como fazia com ela. Quanta culpa, meu Deus! Quanta culpa carreguei por todos esses anos por ter tomado o lugar que era de mamãe. Mas eu não queria. Foi ele, ele quem pediu. Hoje, se me fosse dado escolher, ofertaria meu corpo ao vermelho de sua faca, para que ela cortasse minha pele, atravessasse minha carne, rompendo tendões, artérias, órgãos vitais – ainda assim eu não sofreria como sofro agora, diante da lembrança do ocorrido. Por toda a minha vida o remorso me corroeu o coração, enquanto os desenhos se empilhavam em pastas, presos nas paredes, cobertos de um verniz que impedia minha dor de se esvaecer. Como explicar uma dor tão grande? Como sobreviver, preso a uma mente atormentada? Cercado pelos gritos e sussurros de horror que saíam de meus desenhos? Andei por todos esses anos sobre o fio da faca de papai. Sabia que a qualquer momento cairia sobre ele, partindo meu corpo em dois. Viver seria a arte de adiar o momento derradeiro, lutando contra o medo e esperando por ele. E, na verdade, eu sabia que não havia mais o que temer. Nenhuma dor física seria pior que a intensa tortura psíquica pela qual eu passava. Houve épocas em que pensei que iria morrer. Em tempos piores, imaginei que nunca morreria, por mais que 170 l RUDIRAN MESSIAS
sofresse. Por mais que estivesse sujo, impuro e a dor fosse insuportável. Nesses momentos, tudo o que eu precisava era de uma lâmina de barbear. Há sujeiras que não saem com água e sabão, precisam ser raspadas do corpo com violência. Então eu raspava e raspava até cansar de raspar. Depois usava o fio meio cego para fazer desenhos em minha pele, com muita calma para não cortar fundo. Eram cortes tão finos que mal se podia ver. Eu tinha que abri-los com os dedos, para ver o sangue brotar. Só então me sentia mais forte e puro, guiado pela coragem, fazendo de meu talento para o desenho a minha catarse. Ferindo minha pele, eu tinha o poder de trazer a dor do espírito para o corpo. Como vocês me vêem fazendo agora. Há dias estou trancado nesse estúdio cinzento e esfumaçado, acendendo um cigarro no outro, bebendo tequila com cinza de cigarro e tentando afastar as velhas dores uma vez mais. Foi riscando distraidamente com um lápis de sanguínea que vi surgir a imagem de minha mãe morta. Seus olhos acusadores me perturbando, a voz me conduzindo. Tentei me desvencilhar deixando-a de lado, como se ela não estivesse ali. Concentrei-me em meu auto-retrato de corpo inteiro. Um novo esboço, antes de começar a obra final, que seria a um tempo minha epifania e meu avatar. Diferente dos anteriores, nele apareço nu, finalmente revelado. Eu, o homem ferido de morte, desprovido de sua própria qualidade de homem. Um corpo encarnado e sujo, exausto de sofrer. De súbito, entendi. Os pensamentos impuros haviam voltado para ficar. A voz furiosa de mamãe era a confirmação, acusando minha sujeira. Eu precisava de um banho para me purificar. Precisava de uma gilete para raspar de minha pele todo aquele pecado. Raspar, raspar, até ficar TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
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em carne-viva. Até sertir-me vivo novamente. Queria trocar de couro, como uma cobra. Depois, rastejar pelo ralo até sumir no esgoto. E rápido. Antes que papai voltasse. Daria tempo para fazer um daqueles desenhos bonitos em minha pele? O que ele diria ao me ver assim, enfeitado? Será que teria vontade de me tocar? Mas mamãe viria atrás. Viria para me proteger? Ou para me punir? Eu poderia mostrar meus desenhos a ela e dizer: “Olha mamãe, todo o meu sofrimento!” Eles chegariam. Sim, chegariam. Eu precisava me apressar, ficar puro, como no desenho. Raspar fora todo o pecado, tudo o que era sujo e mau. Então me enchi de uma coragem da qual só os loucos são capazes. Peguei a navalha que estava na pia – a mais afiada de todas – e cortei com ela membro e escroto, em um gesto cirúrgico – decidido e preciso. Quando eles chegassem, eu seria novamente criança: nem homem nem mulher. Seria apenas eu. Apenas um anjo, aqui, diante de vocês. Agora, com o sangue escorrendo por minhas pernas, fecho um ciclo, volto ao início. Essa chaga, de onde ele nasce, é a fonte de meu sofrimento que se esgota. Posiciono-me no centro do salão transformando em arte o que a técnica fizera esboço. Deixo para vocês o meu corpo como herança, eternizado pelo auto-retrato em sangüínea e carvão.
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A última peça – ponto de despedida. E o silêncio que segue. Umas sobre as outras, as páginas compõem o manuscrito. Por persistência do escriba; por uma questão de método; guiadas por um deus perverso. Com a mão calejada, ele deposita sobre a pilha a página final, e costura o volume com o fio de Ariadne que desenrolara pelos desvios de seu labirinto. Completa-se, assim, o grande quadro: uma visão parcial emoldurada pela janela de seu apartamento no vigésimo quinto andar. Enquanto o mundo quebra-cabeça dorme lá embaixo. Automóveis já estacionaram em suas garagens. Buzinas silenciaram, qual trombetas de um anjo cansado que espera para assistir ao apocalipse do dia seguinte. Homens e mulheres roncam, descansando temporariamente da lida diária. Ambulâncias e viaturas policiais transitam pela avenida principal com as sirenes desligadas. Postes de iluminação banham debilmente as calçadas com âmbar, até serem vencidos pela luz do alvorecer. Placas de trânsito e de publicidade ainda se impõem, reflexivas e iluminadas, entre postes e prédios altos de todas as formas
e tons de cinza. Mas ninguém as vê – agora não há corpos a preencher os espaços vazios. A madrugada alta é um inferno disfarçado de paraíso, em que o silêncio pode ser quebrado a qualquer instante por uma motocicleta em alta velocidade. A imundície, o fedor e o barulho evaporam do solo como o hálito de um querubim antiquado no vazio. Eis aqui as almas desencarnadas e sonâmbulas, testemunhas da noite em atos solitários de um mundo repleto de tabus, perversões e outras catarses. Eis aqui o escritor na sarjeta – o poeta dos excluídos; o porta-voz dos desesperados; o profeta das aflições humanas. A quem foi dado o nome de Mustaphá M. e a última graça de ver sua missão cumprida. Deste ponto de escape não há volta – não existe retorno possível além do papel em branco, onde os olhos do leitor percorrerão sua escrita. Depois de apagar o derradeiro cigarro; depois de secar a garrafa de cachaça; depois de abrir os olhos e as janelas para o veneno das ruas, ele sobe ao parapeito e dá início a seu último ato. As páginas já estão sobre a mesa, preenchidas com as histórias a serem lidas pelos rostos curiosos de corpos estáticos. Na manhã seguinte, os apreciadores da arte se formarão em círculo lá embaixo, para ver a obra acabada. E no centro dela estarão os restos mortais do escritor. Como um grande ponto final; como um corpo lançado ao vento, sem asas de Ícaro para evitar sua queda ao asfalto; como um livro vivo, aberto, despedaçado. Carne viva de sua própria história. Então ele estará livre.
Créditos
Quatro das histórias integrantes deste volume foram previamente publicadas em meio impresso ou eletrônico: ‘Urubus’, no site da Oficina Charles Kiefer de Literatura (www.charleskiefer.com.br/oficina). ‘Auto-retrato em sangüínea e carvão’, na revista eletrônica Bestiário número 10 (www.bestiario.com.br). ‘Entre nós’, na antologia 101 que contam (Nova Prova Editora, 2004). ‘Segredos de confessionário, confissões de sacristia’, ‘Ronda’ e ‘O inventário de madame K.’, na antologia Histórias de quinta (Ed. Bestiário, 1995). As obras de arte que ilustram a capa e contracapa do livro são de Leonilson (www.projetoleonilson.com.br). Capa: Sagrado Coração Dimensões: 9,0 x 5,0 x 2,0 cm Técnica: bronze fundido Data: 1991 Contracapa: Sem título Dimensões: 24,0 x 33,0 cm Técnica: lápis de cor sobre papel Data: 1985 176 l RUDIRAN MESSIAS
A citação de Salman Rushdie que abre o livro é um excerto do romance Shalimar, o equilibrista, publicado no Brasil pela editora Companhia das Letras (2005), com tradução de José Rubens Siqueira. O autor e a editora gostariam de agradecer a todos aqueles que se envolveram direta ou indiretamente para a realização do I Concurso Charles Kiefer de Livro de Contos: Roberto Schmitt-Prym, Valesca de Assis e Volnyr Santos (Comissão Julgadora); Ana Marson e Gabriel Dall`Agnol (revisão); Ana Lenice, Gabriela e todos do Projeto Leonilson. Esta obra é dedicada ao escritor Charles Kiefer, por todo o tempo, o trabalho, a paixão que investe em suas oficinas literárias e na produção de novos autores. E à Lízia Pessin Adam, in memoriam.
TABUS, PERVERSÕES E OUTRAS CATARSES
l 177
Esta obra foi composta em fonte Electra, desenvolvida em 1935 pelo ilustrador americano William. A. Dwiggins para a Linotype.
Impresso em Porto Alegre, na primavera de 2005, pela Nova Prova Editora, em papel pólen soft 80g e capa em supremo 250g.