Cozinha, doce e amargo

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Cozinha, doce e amargo

rudolf rotchild

Apresentação As folhas de papéis “amassados” com palavras, poesias (?) e devaneios são páginas de um livro-objeto que redimensiona o significado de cozinha. O seu doce e o seu amargo se misturam num banquete antropofágico. Prazer e dor numa mesma condição humana. Nutrientes verbais para a nossa existência esquizofrênica. Coma todas as páginas.

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(coma com muito alho, vinho e sal grosso.)

Cozinha Quando eu puder te cozinhar, me avise tá. Só preciso de cinco segundos. Um tupinambá não exitaria, criaria calos nas mãos de tanto chupar teus ossos. Tem muito sal . Vai a merda! Antopofagiar é um verbo sem presente, sem passado e sem futuro. Depois de comer tudinho, raspe o prato. Coloque um pouco de pimenta. Raspe o prato de novo. Palite os dentes na frente de todo mundo pra tirar o excesso de carne crua.

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Beber é uma forma de comer água. Tem gosto de vida. Lucidez. Qué água com açúcar, pra acalmar as raiva do mundo? Atravessei a rua com vontade de urinar toda o meu veneno em cima das cabeças dos bárbaros. Água que deixou seus rastros pelo meu corpo. Muito cara. Empacotada e cara. Tenho fome de água pura. Como em mesa de jantar, água envenenada com sabor de churrasco. Açúcar demais que entope as minhas veias. Preciso me azeitar como eu sou. Lá na minha casa tem um poço potável. Quem quiser vendo baratinho.

Fome de água (coloque água benta e cheiro-verde.)

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Larica

(use ervas para temperar.)

Penduro tudo pela casa: panelas, frigideiras, potes de plástico, formas, colheres de madeira e baticum. Mexidão da madrugada. Coloca-se tudo que sobra, quase estragando, arroz, feijão, ovo, farofa, salada e vai embora. Não interessa você tá na larica. Se esconde e come até morrer. Vinte e um dias depois. E daí? Morri e acordei num lugar paradisíaco. Desculpem amigos este ano não vai ter mais Carnaval. No lugar farei um bolo de chocolate sem glúteos que é uma delicia. E tem mais: amendoim torrado, pipoca com manteiga e pinga.

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Onde vivo, bicho é morto. E come outro bicho. Saio do trabalho e vou direto para o supermercado. Me vê dois quilos de presunto e mussarela. Ligo o disk denuncia: tem um homem de capa preta fumando maconha na cozinha. Pego a primeira panela que vejo pela frente e faço um angu com caroço que é pra engasgar capeta. Todo mundo satisfeito com cara de filha da puta. Minha mãe sempre dizia que cozinha é coisa de mulher. Nunca liguei pra isso. Na verdade, cozinha é coisa pra homem muito macho. Entende?!

Eu como bicho

(coloque uma colher de sobremesa de fermento para inchar a barriga.)

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Pão de queijo

O apito. A fumaca. O trem. O carro um. Plataforma única. Queima lenha devagar, devagar, devagar… Bom passeio! alguém grita da janela. Se eu pudesse… a cura só é possivel com a fé que não se vende, se constrói. Uma parada pra comer um pão de queijo. ___Moça, aceita cartão débito? Esse progresso ainda não chegou por aqui meu filho, graças a Deus. Entra. Toma um café de bule, acabou de sair, tá frasquinho. Cozinha de fogão a lenha, queima devagar, devagar, devagar… tudo aqui seu moço, é mais gostoso feito viola sertaneja. (aqui use 200 kg de polvilho azedo.)

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Se lembra da rádio afonsiana? Os padres faziam cerveja. O pão desce gostoso, goela abaixo. Ah! Dona Emília, eu sei cozinhar, já posso casar? Desde pequeno eu escuto rádio de pobre. Tenho a esperança de um dia ouvir a voz do meu pai que está do outro lado. Sou bom de massa. Já comeu a minha pizza de batata? Puro afrodisíaco. E se comer demais minha filha, pode até engravidar. Quem come risco, não come petisco.

Rádio de pobre ( nunca ouça programas de culinária, pelo amor de Deus.)

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Já entrou em alguma cozinha proibida? Simples cheiro comum de tempero. Santa-puta! As mulheres que fazem sexo sabem do que estou falando. Quer um Conselho? Experimente um prato sem carne e repita até não aguentar mais. Os homens precisam se libertar da santa da rua e conquistar a puta de casa. Deixa ela entrar sem medo. Sim. Veja que os olhos lacrimejam de dor de ser santa. Liberte a puta. Ela fará um bom café na cama. Realizará todos os seus sonhos reprimidos. Sente. Quer um pouco de chá?

( faça esse prato com as mãos limpas, luvas e máscaras cirúrgicas.)

Santa Puta

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Receita de pão para acabar com a fome sem macete. Uma xícara de água poluída Um ovo estragado. Três colheres de sopa de açúcar cocainada. Trinta gramas de fermento biológico vivo. Uma colher de sal de mármore. Cinco xícaras de trigo transgênico. Três colheres de sopa de óleo queimado.

(atenção, não faça esta receita.)

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A cozinha nos protege. Aqui fora, um gato morre. Um velho urina na parada de ônibus e a vida se torna ácida. Por isso comemos brigadeiros, pirulitos, balas, goma de mascar, bolo de chocolate... A vida merece ser doce. Amargo é o homem. Amarga é a mulher. Que habita este quintal de ervas daninhas. Não desejemos o mal, mas reconhecemos que a comida sem gosto… A cozinha nos protege.

Proteção culinária.

(ofereça a sua comida para Krishna para que ele abençõe.)

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Intimidade

Intimidade é para poucos. A cozinha da sua casa é um território íntimo. Não deixe nenhum estranho entrar na sua cozinha. Duskrtinas (os canalhas) obsediam a tua luz? Impossível. Somos protegidos por Sri Narasimha Deva. Valente! Misture Ghi, Chapati e bonequinhas russas. Talento de sovar a massa integral. Silêncio: o cale-se mais perto. Intimidade é para todos. A utopia do ser humano está em acreditar na humanidade. Guardem todas as panelas, por favor, guardem todas as panelas, os duskrtinas estão chegando em seus carros de IPI reduzido, quase zero. Que os temperos sejam envenenados até perderem o gosto. Intimidade não existe. Acordemos com olhos de coruja. Gritemos por que o mundo que conhecíamos acabou. Não vejo nada na minha frente. Fecho em mim mesmo. Converso com o meu umbigo. Aqui os duskrtinas não tem força. Olhemos para o lado, estamos em uma cozinha desconhecida.Azulejos embolorados. Geladeiras enferrujada. Armários sem porta. Talheres sujos. Resumindo: um pouco de trigo, uma pitada de sal, um saco de açúcar e muita (alegria) purpurina de estrelas. Vêm amor, o café tá pronto!

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Engolidor de Sapos Olhem! Tá vendo aqueles sapos? Sem fome, engoli quase todos. Feios sapos. Sem gosto algum. Sem sal. Questão de sobrevivência?! Condicionamento social. Não somos obrigados alimentar-se de sapos. Meu nome é fulano, tenho… nunca mais vou engolir sapos. Decidi abster-me deles, engorda, faz mal. As perninhas costumam ficar penduradas no canto da boca. Gosmento. Sabe de uma coisa, farei uma sopa de sapos para dar aos meus inimigos - tipo de bruxaria caseira inventada por mim. Profetizo: Chuva de sapos cairão sobre a cabeça dos infiéis seres da educação. Depois farei jejum até que o último sapo engolido saia de mim, saia de mim, saia de mim... Boca, ânus e nariz. Sem doce. Daí eu comerei dignidade e respeito em pratos livres de abusos. Bon Appétit !

(bem fritinho é gostoso) 13


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Vingança é um prato que se come quente Sinto uma tristeza que não cabe no olhar. Talvez num bolo de cenoura, numa cozinha carnívora de vísceras dilaceradas pela raiva. A existência não me permite romper a ética. Vou em frente. Compro um quilo de carne bem vermelha, muito sangue. Tábua de madeira que é pra abafar o som. É… por favor, dá pra chegar pro lado? Pás! (Onomatopeia de faca cortando a carne na madeira.) Aceita uma língua? Crunch! Crunch! Crunch! Dizem que os nossos antepassados na ausência de animais, comiam-se. As mulheres faziam sopa. Os homens...um churrasquinho de esquina. Tentei mudar o mundo mas ele não quis. Preferiu ficar oco. Sem sal, molho e pimenta. Sem tempero algum. Só com o gosto de fel na boca. Então...vê se cala a tua hipocrática vagina. Moralista. A placa da esquina dizia: "Procura-se marido com muito dinheiro no bolso, saúde para dar e vender." Na cozinha da raiva, o bolo de cenoura é a sobremesa dos arrogantes. O veneno se dissolve em cobertura de chocolate. Prefiro criar a minha própria sorte. Contar comigo. E Deus finalmente habita a minha cozinha que é um templo. A mesa...farta de humildade. Por favor, poderia passar a faca para eu arrancar a sua unha? Brincadeirinha, agora eu só como vegetais.

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O micro-ondas esquenta a comida da vida moderna. A TV com chuvisco é onde o tempo controla a vida em um minuto… O micro-ondas não fala, não se relaciona, não tempera com amor, não sente prazer. O micro-ondas é a mulher-objeto, a boneca inflável da cozinha fria não interage, interface da pressa, prisão sem ritos...cheiro metálico. O pastor da minha igreja tinha razão: O microondas é coisa do inimigo. Comida congelada envenenada. Cuidado com o rato. A validade é grande. A minha sorte é que eu tenho quatro gatos: Adoram dormir em cima de um microondas. Já comeram pipoca de microondas? Na internet podemos comprar por um bom preço. Facilita a vida. Mas ainda prefiro um fogão de quatro bocas.

Micro-maré (coma pipoca crua )

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Sexo

(coma com moderação)

Em tempo de semeadura, não há cozinha com panelas, a cama é a cozinha. Lá se come, come, come… Antropofagia. Carne com vida. O amor é uma festa de imigrantes italianos sem luxuária com intimidade. O uso é o prazer de dar prazer. O gemido masculino no silêncio do porto. Vento… tradição familiar que resiste as mudanças climáticas da poluição humana, que não alma nada, só se irrita com o desembarque dos sobreviventes da peste negra. O amor é uma festa de família que embriaga a realidade lucrativa de ser alguém neste mundo cruel. Salve o doce palha italo-brasileiro. Sem exageros é bom colher suculentas frutas vermelhas. 16


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cozinha escolar

(Lembra aquele tempero das tias da escola.) Estou em uma cozinha diferente. De mesas distantes. Bancos de igreja. É uma cozinha escolar. Onde nos intervalos bebíamos leite com biscoito. Do tempo em tempo. O bucólico se revela em ódio. Daqueles que me impediam de ser criança. Embaixo d´árvores sofro ameaças: vou te pegar na hora da saída. Calado, eu ficava calado. O medo: quer saber, vão todos se fuder. Educador não pode ter problemas. Não pode explodir. Então, arranco todas as minhas unhas. Meus dedos ficam todos feridos. A comida é requentada. Eles precisam da minha insanidade. Acordai pequeninos cidadãos brasileiros. Espero que sejam assim… Comida de marmita na cozinha escolar é diferente. A minha não tem carne. Sossega menino.

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Sem fome

(beba muita água antes de comer mandioca e ouça mantras.) Não sei do que falar. Estou cansado da falta de humanidade. Taxistas pedem propina para nos transportar. Viver em sociedade é assim? Por que os adultos são tão venais? O amor não existe mais nos corações das pessoas. Mas você é muito tolo. Na vida, meu rapaz ninguém quer perder dinheiro. A riqueza me incomoda e me seduz. O belo só existe por que o feio existe. Descontrolo-me para andar na linha tênue da existência. Meu bem, vamos dormir depois do sexo. Rogo pra São Jorge, rogo pra Narasimha, o deus-leão. Nos proteja durante o sono. Coloca as nossas sombras pra dormir. Boa noite !

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Enchente

(em dia de chuva faça uma feijoada.) E a água imundou a minha cozinha. Eu existo desde que ela existe. Eu quero tapar os meus ouvidos. Os gatos miam. A sol late. Coçar as mãos dá dinheiro, já dizia a minha vó. Corre e joga no peito. A água anuncia novos tempos. A água limpa. A água lava os nossos erros. Na minha cabeça tem muita coisa boa pra te dar, é só aguardar. Ouvir o silêncio: kings of convenience. E textuo aqui e agora essas palavras que saem como música. Parece um sapateado nunca visto. Vamos deixar a água nos limpar de uma vez por todos. O mundo des-água. Imaginamos rios e cachoeiras. Aquela mensagem… deixa pra lá, vamos amar como nunca. Prepare o suco de abacaxi com hortelã, pizza de grãos, fome pra dentro d´alma. Amanhã a vida continua nua. Que roupa iremos colocar? Dormir e acordar...

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Cultura Livre O trabalho “Cozinha, doce e amargo” de Rudolf Rotchild está licenciado com uma Licença Creative Commons - AtribuiçãoCompartilhaIgual 4.0 Internacional. Podem estar disponíveis autorizações adicionais às concedidas no âmbito desta licença em maloteca.blogspot.com.br.

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