A banda desenhada como meio de comunicação da arquitectura

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Faculdade de Arquitectura e Artes Mestrado Integrado em Arquitectura

A banda desenhada como meio de comunicação da arquitectura

Rui Filipe Fernandes Paulino

Lisboa Dezembro 2012


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Faculdade de Arquitectura e Artes Mestrado Integrado em Arquitectura

A banda desenhada como meio de comunicação da arquitectura

Rui Filipe Fernandes Paulino

Lisboa Dezembro 2012


Rui Filipe Fernandes Paulino

A banda desenhada como meio de comunicação da arquitectura

Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa para a obtenção do grau de Mestre em Arquitectura. Orientador: Mestre Arqt. Alberto de Sousa Oliveira Assistente de orientação: Mestre Arqt. Carlos Manuel Lampreia da Silva

Lisboa Dezembro 2012


Ficha Técnica Autora Orientador Assistente de orientação

Rui Filipe Fernandes Paulino Mestre Arqt. Alberto de Sousa Oliveira Mestre Arqt. Carlos Manuel Lampreia da Silva

Título

A banda desenhada como meio de comunicação da arquitectura

Local

Lisboa

Ano

2012

Mediateca da Universidade Lusíada de Lisboa - Catalogação na Publicação PAULINO, Rui Filipe Fernandes, 1984A banda desenhada como meio de comunicação da arquitectura / Rui Filipe Fernandes Paulino ; orientado por Alberto de Sousa Oliveira, Carlos Manuel Lampreia da Silva. - Lisboa : [s.n.], 2012. Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura, Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa. I - OLIVEIRA, Alberto de Sousa, 1945II - SILVA, Carlos Manuel Lampreia da, 1964LCSH 1. Banda desenhada 2. Banda desenhada - História 3. Cidades e vilas - Banda desenhada 4. Arquitectura - Banda desenhada 5. Arquitectura visionária 6. Comunicação na arquitectura 7. Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Teses 8. Teses - Portugal - Lisboa 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8.

Comic books, strips, etc. Comic books, strips, etc. - History Cities and towns - Comic books, strips, etc. Architecture - Comic books, strips, etc. Visionary architecture Communication in architecture Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Dissertations Dissertations, academic - Portugal - Lisbon

LCC 1. PN6714.P38 2012


APRESENTAÇÃO

A banda desenhada como meio de comunicação da arquitectura

Rui Filipe Fernandes Paulino

Desde o aparecimento da banda desenhada que os seus autores tomaram a cidade como referência para as suas criações. Muitas destas cidades desenhadas, recriadas ou construídas de raiz, servem como pano de fundo a personagens fictícios que as habitam, mas também, noutros casos mais específicos, chegam a ganhar o estatuto de personagem principal da história sendo por vezes até transportadas para o mundo do cinema. A arquitectura tornou-se assim uma das maiores influências na criação de banda desenhada. Foram criadores como Enki Bilal, Moebius ou Peeters e Schuiten que, através da sua obra desenhada, conseguiram criar cidades utópicas, futuristas e fantásticas de enorme qualidade inventiva que permitiram elevaram o patamar da representação arquitectónica na BD. Mas por outro lado, quando analisamos a relação entre o arquitecto e a banda desenhada, esta parece-nos bem mais distante. Mas essa relação existe, e pode tornar-se tão importante para o arquitecto saber aproveitá-la como para o criador de banda desenhada saber aproveitar o trabalho do arquitecto. Arquitectos como Archigram, Herzog & De Meuron e Bjarke Ingels souberam recorrer às capacidades expressivas e comunicacionais da banda desenhada, demonstrando que a arquitectura não vive apenas da sua imagem final, mas sim da história por detrás dela. As imagens sequenciais permitem que os arquitectos expliquem um projecto de dentro para fora, do conceito à imagem final. É assim que surge esta fusão simbiótica entre estes dois mundos. Assim como a banda desenhada é beneficiada com a implementação da arquitectura, o arquitecto é também favorecido pela qualidade da estrutura da banda desenhada enquanto meio de comunicação para o seu projecto.

Palavras-chave: Arquitectura, Banda Desenhada, Arte Sequencial, Imagem, Cidade.


PRESENTATION

Comics as an architecture media

Rui Filipe Fernandes Paulino

Since the emergence of comic strips that its authors took the city as a reference for their creations. Most of these drawn cities, recreated or built from scratch, were used as background for the fictional characters that inhabit it, but also, in more specific cases, they also gain the status of story’s main character, being in some cases moved into the world of cinema. Architecture has now become one of the biggest influences in the creation of comics. Authors such as Enki Bilal, Moebius or Peeters & Schuiten, who, through their drawn work, manage to create utopic, futurist and fantastic cities of huge inventive quality, allowed to raise the level of architecture representation in comics. But, on the other hand, when we analyze the relation between the architect with comics, it seems far more distant. However that relation exists and may become as much important for the architect to know how to harness it, as for the comics creator to know how to harness the work of the architect. Architects as Archigram, Herzog & De Meuron and Bjarke Ingels knew how to rely on the communicational and expressive abilities of comics, showing that architecture not only rely upon its final image, but on the story behind it. Sequential images allow architects to explain a project from the inside out, from concept to final image. That’s how this symbiotic fusion appears between these two worlds. Like the comic book is enhanced with the implementation of architecture, the architect is also favored by the quality of the comics’ structure as a media for his project.

Keywords: Architecture, Comics, Sequential Art, Image, City.


SUMÁRIO 1. Introdução ...................................................................................................... 8 2. Banda desenhada e arquitectura ................................................................. 10 2.1. A origem da banda desenhada e o seu percurso .................................. 10 2.2. Os comics americanos........................................................................... 14 2.2.1. Da origem ao sucesso comercial..................................................... 14 2.2.2. Nova Iorque e as metrópoles dos super-heróis ............................... 21 2.3. A bande dessinée franco-belga ............................................................. 25 2.3.1. O bastião europeu ........................................................................... 25 2.3.2. O eclectismo arquitectónico ............................................................ 29 2.4. Os manga japoneses ............................................................................. 32 2.4.1. A expressão nipónica ...................................................................... 32 2.4.2. Tóquio e as suas variantes.............................................................. 37 3. As cidades na banda desenhada ................................................................. 41 3.1. Representação, leitura e função da arquitectura na banda desenhada . 41 3.2. As capitais pós-apocalípticas de Enki Bilal ............................................ 45 3.3. As cidades de ficção científica de Moebius ........................................... 54 3.4. As cidades reinventadas de Peeters e Schuiten.................................... 62 4. A banda desenhada como meio de comunicação da arquitectura ............... 74 4.1. A arquitectura lida em banda desenhada .............................................. 74 4.2. Archigram .............................................................................................. 79 4.2.1. Introdução ....................................................................................... 79 4.2.2. A imagem do projecto...................................................................... 82 4.2.3. Os projectos contados em dez publicações .................................... 85 4.2.3.1. Archigram 1 ............................................................................... 85 4.2.3.2. Archigram 2 ............................................................................... 87 4.2.3.3. Archigram 3 ............................................................................... 89 4.2.3.4. Archigram 4 ............................................................................... 91 4.2.3.5. Archigram 5 ............................................................................... 95 4.2.3.6. Archigram 6 ............................................................................... 96 4.2.3.7. Archigram 7 ............................................................................... 98 4.2.3.8. Archigram 8 ............................................................................... 99 4.2.3.9. Archigram 9 ............................................................................. 100 4.2.3.10. Archigram 9½ ..................................................................... 101 4.3. Herzog & De Meuron ........................................................................... 103


4.3.1. Introdução ..................................................................................... 103 4.3.2. A imagem do material.................................................................... 105 4.3.3. MetroBasel .................................................................................... 109 4.4. Bjarke Ingels Group ............................................................................. 119 4.4.1. Introdução ..................................................................................... 119 4.4.2. A imagem do conceito ................................................................... 121 4.4.3. Yes Is More ................................................................................... 124 5. Conclusões ................................................................................................ 129 Referências .................................................................................................... 132 Bibliografia...................................................................................................... 134


A banda desenhada como meio de comunicação da arquitectura

1. INTRODUÇÃO Esta dissertação de mestrado tem como tema central o estudo da banda desenhada como um meio válido para a comunicação do projecto de arquitectura, e como tal surge a necessidade de estudar e dar a conhecer exemplos práticos dessa mesma relação, tanto do autor de banda desenhada enquanto arquitecto, como do arquitecto enquanto criador de banda desenhada. O interesse do arquitecto pela banda desenhada é aparentemente menor do que o do desenhador pelas questões arquitectónicas e urbanas. Cidades futuristas, oníricas, poéticas, fantásticas, metrópoles norte-americanas ou asiáticas, cidades fantasma, sonhadas, ou simples cenas urbanas, são uma constante no mundo da banda desenhada, desde a sua criação nas tiras periódicas dos jornais, até aos dias de hoje nas publicações independentes. Do manga japonês, passando pela banda desenhada de super-heróis americana, a cidade oferece muitas utopias arquitectónicas para os criadores de banda desenhada. Mas quando se trata da utilização da banda desenhada como documento para a divulgação da arquitectura, o motivo para a sua não utilização não encontra uma razão válida, senão a do facto de a BD ainda se associar, erradamente, a um estilo infantil. Esta dissertação pretende, para além de desmistificar esta noção estereotipada, dar a conhecer as capacidades que a banda desenhada tem de comunicar o projecto de arquitectura e de como os autores de banda desenhada podem ser influenciados pela arquitectura que os rodeia. Não se pretende, portanto, fazer comparações qualitativas ou quantitativas entre ambas as áreas mas sim uma reflexão sobre como ambas se podem complementar. A escolha do tema surge na sequência do projecto executado no segundo semestre do 5º ano da disciplina de Space Speculation (equivalente a Projecto II), na Universidade La Cambre em Bruxelas, ao abrigo do programa Erasmus. Tendo como lugar a área de Ginza na cidade de Tóquio, e como programa uma biblioteca de manga (banda desenhada japonesa), surgiu a ideia, durante o processo de pesquisa, de realizar um estudo prévio do lugar na forma de banda desenhada, que pudesse explicar todo o contexto social, político, arquitectónico e económico da localidade. A estrutura dos capítulos da dissertação surge de forma gradual. No segundo capítulo, posterior a esta introdução, faz-se uma breve incursão sobre as origens da banda desenhada e de como as grandes capitais como Nova Iorque, Bruxelas e Tóquio se

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tornaram nos seus grandes centros difusores, assim como se tornaram presença constante como cenário de fundo nas diversas histórias aos quadradinhos. O segundo capítulo pretende dar a conhecer a criação arquitectónica dentro da banda desenhada. Com os exemplos de desenhadores como Enki Bilal e as suas cidades pós-apocalípticas, Moebius e as suas cidades de ficção científica e de Peeters e Schuiten com as suas criações arquitectónicas revivalistas, tomamos conhecimento de desenhadores que, não sendo arquitectos mas tendo uma grande paixão por esta área, nos conseguem fazer acreditar que os seus mundos urbanos utópicos existem no universo dos personagens que os habitam. No terceiro capítulo são referidos três gerações de arquitectos que mais tiveram a banda desenhada como referência para a divulgação dos seus projectos. Archigram, Herzog & De Meuron e Bjarke Ingles Group conseguiram encontrar na banda desenhada um meio de comunicação válido para os seus estudos e projectos de arquitectura na qual, de forma simples, sintética e apelativa, desvendam a história por detrás de cada projecto em publicações próprias. O que importa não é se os arquitectos querem usar a banda desenhada ou não, mas sim a comunicação que se possibilita entre as duas artes (…) (Francis Rambert, entrevista de Elena Sommariva, Exposição Archi & bd, la ville dessinée, Paris, 16 de Junho 2010)

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2. BANDA DESENHADA E ARQUITECTURA 2.1. A ORIGEM DA BANDA DESENHADA E O SEU PERCURSO A banda desenhada (BD) é uma forma artística narrativa que une texto e imagens estáticas apresentando-as sequencialmente, geralmente em pequenos quadros 1, com o objectivo de contar histórias de diversos estilos e géneros. Apesar de nunca ter sido oficialmente baptizada, a banda desenhada recebeu diferentes nomes de acordo com as circunstâncias específicas dos diversos países em que se estabeleceu. Conhecida por BD em Portugal, comics nos Estados Unidos, bande dessinée nos países francófonos e manga no Japão, tornou-se célebre a partir da sua divulgação em jornais e revistas, como uma forma de comunicação, impulsionada pela tecnologia da impressão gráfica, a partir do final do século XIX. Esta forma de arte foi influenciada por manifestações narrativas icónicas e simbólicas arcaicas, que se estendem desde a pré-história, com as figuras rupestres, passando pelos hieróglifos egípcios e indo até à arte religiosa, onde se começaram a complementar as escrituras sagradas com imagens, compondo uma narrativa pictórica. O apogeu da banda desenhada foi alcançado na década de 70, quando a Europa, em especial a França e a Bélgica, se curvaram perante ela, tornando-a tão significativa que a elevaram ao patamar de arte. A definição de banda desenhada surge aquando da divulgação de tiras 2 satíricopolíticas publicadas em jornais europeus e norte-americanos, que representavam caricaturas acompanhadas de comentários ou pequenos diálogos humorísticos entre os personagens retratados. Mais tarde esse recurso daria origem aos balões de fala 3, um recurso gráfico que indica ao leitor qual dos personagens em cena está a falar, tornando-se um elemento recorrente na banda desenhada tal como a conhecemos hoje em dia. 1

Estes quadros são tecnicamente denominados de vinhetas. A vinheta é a base estrutural das histórias por imagens. Num período inicial a vinheta correspondia geralmente a uma gravura bem delimitada, mas no século XIX, começaram a aparecer exemplos de vinhetas sem cercaduras ou de formas irregulares. (ver Dicionário Universal da Banda Desenhada, Leonardo de Sá, 2010) 2 As tiras são o alinhamento, geralmente na horizontal, de vinhetas com o objectivo de criar uma continuidade narrativa. Esta denominação teve origem na tradução da expressão daily strip, referindo-se às histórias aos quadradinhos publicadas diariamente nos jornais norte-americanos. (ver Dicionário Universal da Banda Desenhada, Leonardo de Sá, 2010) 3 O balão de fala é o espaço da vinheta, circundado ou não, dedicado às falas em discurso directo ou a pensamentos, geralmente com um bico apontado para o emissor. (ver Dicionário Universal da Banda Desenhada, Leonardo de Sá, 2010)

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O termo “arte sequencial” 4, criado por Will Eisner 5 com o fim de definir a combinação de fotos ou imagens e palavras para narrar uma história ou dramatizar uma ideia, é comumente utilizado para definir a linguagem usada na banda desenhada. Mais tarde, não sendo porém consideradas formas de arte mas apresentando-se com imagens em sequência, surge a fotonovela 6 e o infográfico jornalístico 7.

Ilustração 1 – O exemplo da arte sequencial que nos conta uma história através de uma sequência de imagens. (Will Eisner, Comics & Sequencial Art, 1989, p. 125)

Não se pode também deixar de referir que a banda desenhada é uma expressão do desenho mas com um aspecto mais pessoal e intransmissível, trazendo a capacidade de poder jogar ainda mais com as emoções do observador, através do seu grafismo e cor. Sem modificar a forma de um desenho, podemos-lhe incutir diferentes significados apenas alterando o seu conteúdo cromático, podendo fazer-lhe acentuar o sentimento e a emoção. Um facto evidente é a diferença entre a banda desenhada a preto e branco e aquela em que lhe são adicionadas cores onde até pode ser afectado o nível de experiência de leitura. No desenho a preto e branco, o significado da forma 4

Arte sequencial surge da expressão inglesa “sequencial art”, inventada por Will Eisner no livro Comics & Sequencial Art, originalmente publicado em 1985 nos EUA e serviu para referir uma sucessão de imagens relacionadas ou os processos narrativos utilizados nessas sequências, tal como se encontram nas pinturas rupestres, hieróglifos, manuscritos ilustrados, etc. A forma mais conhecida de arte sequencial é a banda desenhada, tratando-se portanto de uma maneira mais erudita de referir o mesmo objecto, tal como já acontecia com as mais antigas expressões como figuração narrativa ou narração figurativa. (ver Dicionário Universal da Banda Desenhada, Leonardo de Sá, 2010) 5 William Erwin Eisner (1917 – 2005), conhecido como Will Eisner, foi um autor de banda desenhada norte-americano, considerado como um dos mais importantes contributários para o desenvolvimento da banda desenhada do seu país. (ver The Thames and Hudson Dictionary of Art and Artists, London: Thames and Hudson, cop. 1994) 6 A fotonovela é um estilo de arte sequencial que utiliza os processos narrativos das histórias aos quadradinhos mas com fotografias em substituição dos desenhos. Geralmente este tipo de publicação envolvia histórias simples com enredos dramáticos e morais. (ver Dicionário Universal da Banda Desenhada, Leonardo de Sá, 2010) 7 Infográficos são representações visuais de informação usados onde esta precisa de ser explicada de forma mais dinâmica, como em mapas, jornalismo ou em manuais técnicos, educativos ou científicos podendo combinar-se fotografia, desenho e texto. Nos jornais o infográfico costuma ser usado para descrever como aconteceu determinado facto e quais as suas consequências por meio de ilustrações ou diagramas, onde o texto ou a foto por si só não consegue detalhar com a mesma eficácia. (ver Dicionário Editora da Língua Portuguesa 2013, Porto Editora, 2012)

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acentua-se, enquanto o desenho a cores torna-se mais expressivo tendo como alvo os sentimentos e as percepções do leitor.

Ilustração 2 – O uso da iluminação atmosférica confere diversos estados emocionais. (Will Eisner, Comics & Sequencial Art, 1989, p. 15)

A banda desenhada tem a capacidade de abranger muitos campos representativos e emocionais e fazer com que os desenhos se caracterizem em elementos narrativos onde o tempo é definido através da sua sequência. A banda desenhada, ao contrário do cinema, torna-se num meio de representação original que permite ao observador controlar a experiência que retira da narrativa, ao seu próprio ritmo, vivendo o espaço como uma análise real. Há pessoas que não sabem ler banda desenhada. E a explicação que dão para não saber ler banda desenhada é que não sabem por onde começar - se pelo texto, se pela imagem. Se fizermos a mesma pergunta a qualquer leitor de banda desenhada, ele não saberá dizer por onde começa. É uma leitura simultânea (Alan Moore, Revista Vértice, nº 117, 2004, p. 117)

A banda desenhada, apesar de várias influências, surge assumidamente como tal no século XIX com as ilustrações e cartoons 8 políticos, numa altura em que os jornais procuravam novas formas de atrair mais leitores. Entre os principais percursores do género podem-se destacar o suíço Rudolf Topffer 9, o alemão Wilhelm Busch 10, o francês Georges Colomb 11 e o português Raphael

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O cartoon é um tipo de desenho que tenciona satirizar, caricaturar, ou atribuir humor a diferentes cenas ou personagens. Pode surgir sob a forma de desenho individual ou sequencial. (ver Dicionário Universal da Banda Desenhada, Leonardo de Sá, 2010) 9 Rudolf Topffer (1799 – 1846) foi um artista gráfico e escritor suíço, considerado um dos pioneiros da criação da banda desenhada moderna. (ver The Thames and Hudson Dictionary of Art and Artists, London: Thames and Hudson, cop. 1994) 10 Heinrich Christian Wilhelm Busch (1832 – 1908) foi um influente poeta, pintor e caricaturista alemão, famoso pelas suas histórias satíricas ilustradas com textos em verso. (ver The Thames and Hudson Dictionary of Art and Artists, London: Thames and Hudson, cop. 1994) 11 Georges Colomb (1856 – 1945) foi um botânico francês e o pioneiro da banda desenhada francesa. (ver The Thames and Hudson Dictionary of Art and Artists, London: Thames and Hudson, cop. 1994)

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Bordalo Pinheiro 12. Rodolph Topffer foi dos primeiros a perceber que o seu trabalho continha características expressivas bastante interessantes e cuja nova linguagem se começava a evidenciar. Ele chega mesmo a afirmar algo que viria a ser o prenúncio de toda a criação de banda desenhada num dos seus livros: Este livro (Histoire de Monsieur Vieux Bois) é de uma natureza mista (...) Cada um dos desenhos surge acompanhado por uma ou duas linhas de texto. Os desenhos sem o texto não teriam senão um significado obscuro; o texto sem os desenhos nada significaria. (Rodolph Topffer, Prefácio de Histoire de Monsieur Vieux Bois, 1837)

Ilustração 3 – Histoire de Monsieur Jabot é considerada como a primeira publicação da banda desenhada moderna, apresentando já texto e imagem em conjunto. (Rodolph Topffer, Histoire de Monsieur Jabot, 1833)

Hoje em dia, a banda desenhada culmina numa arte madura, divulgada a nível internacional e distinguida com vários prémios, tornando-se ela própria numa influência

para

a

cinematografia

e

um

excelente

meio

de

comunicação

independentemente do tema ou do produto que lhe esteja inerente. A sua importância foi tal que chegou a ser classificada como “Nona Arte” por Ricciotto Canudo 13.

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Rafael Augusto Prostes Bordalo Pinheiro (1846 – 1905) foi um artista português precursor do cartaz artístico, desenhador, aguarelista, ilustrador, decorador, caricaturista político e social, jornalista, ceramista e professor. O seu nome está intimamente ligado à caricatura portuguesa e à criação do personagem popular “Zé Povinho”. (ver The Thames and Hudson Dictionary of Art and Artists, London: Thames and Hudson, cop. 1994) 13 Ricciotto Canudo (1879 – 1923) foi um teórico italiano dedicado ao cinema que viveu em França. Ele via o cinema como uma arte plástica em movimento e atribuiu-lhe também o rótulo de “Sétima Arte”. (ver The Thames and Hudson Dictionary of Art and Artists, London: Thames and Hudson, cop. 1994)

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2.2. OS COMICS AMERICANOS 2.2.1. DA ORIGEM AO SUCESSO COMERCIAL É nos finais de século XIX, na cidade de Nova Iorque que nasce a banda desenhada. Tudo começa com as primeiras batalhas comerciais da imprensa entre as duas maiores publicações jornalísticas: o New York World, liderado por Joseph Pulitzer 14, e o New York Journal por William Randolph Hearst 15. Esta guerra editorial começou pelo início do uso da cor nas páginas dos jornais e sobretudo pela disputa da publicação de cartoons políticos. A concorrência entre ambas as publicações era feroz e fez com que tivessem de investir cada vez mais na originalidade dos assuntos tratados, criando até por vezes notícias fictícias, e na busca de novos meios de comunicação que apelassem a um público mais abrangente. A caricatura foi um dos meios de comunicação que serviu este efeito, estando elas recheadas de sátira política e crítica social. No entanto, e como fruto de todas estas disputas para alcançar o sucesso, os cartoons, disputados por ambos os jornais, desenvolveram-se e deram lugar a uma nova forma de divulgação de informação representada em imagens sequenciais que contavam uma história. Em 1896 surge publicado no New York Journal a revolução no mundo da imprensa: o aparecimento das primeiras tiras cómicas 16 onde surgia pela primeira vez o personagem The Yellow Kid 17 e com ele o balão de fala, elemento que viria a tornar-se numa imagem de marca do estilo.

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Joseph Pulitzer (1847 – 1911) foi o editor jornalístico húngaro-americano do New York World criado em 1860. (ver The Thames and Hudson Dictionary of Art and Artists, London: Thames and Hudson, cop. 1994) 15 William Randolph Hearst (1863 – 1951) foi o editor jornalístico do New York Journal criado em 1895. (ver The Thames and Hudson Dictionary of Art and Artists, London: Thames and Hudson, cop. 1994) 16 Tira cómica (do inglês comic strip) é o nome dado a uma sequência de duas ou mais imagens que contam uma história. O facto dessas tiras de banda desenhada serem originalmente de temática humorista gerou a denominação “comics”. (ver Dicionário Universal da Banda Desenhada, Leonardo de Sá, 2010) 17 Mickey Dugan, mais conhecido como The Yellow Kid, foi um dos primeiros personagens de banda desenhada a ser impresso a cores criado por Richard Felton Outcault (1863 – 1928), um desenhador americano, considerado como um dos pioneiros na publicação de banda desenhada com a presença de balões de fala. (ver The Thames and Hudson Dictionary of Art and Artists, London: Thames and Hudson, cop. 1994)

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Ilustração 4 – O uso do balão de fala nas tiras do The Yellow Kid generalizou-se até aos dias de hoje. (Richard F. Outcault, The Yellow Kid and His New Phonograph, New York Journal, 1896)

A 15 de Outubro de 1905, surge no New York Herald 18 um novo personagem de banda desenhada na série Little Nemo in Slumberland 19. Estas pranchas de publicação periódica designaram, em termos formais e objectivos, a imagem da banda desenhada tal como a conhecemos hoje em dia e lançaram desde logo a importância da arquitectura na banda desenhada.

Ilustração 5 – Little Nemo já comportava a divisão da narrativa em vinhetas e os balões de fala. (Winsor McCay, Little Nemo In Slumberland, New York Herald, 1908, vinhetas 11, 12, 13, 14, 15 e 16)

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O New York Herald foi um jornal de grande tiragem na cidade de Nova Iorque publicado entre 1835 e 1924. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/412447/New-York-Herald >) 19 Little Nemo é o personagem principal de uma série de tiras semanais criadas por Winsor McCay (1869 – 1934) e publicadas nos jornais New York Herald e mais tarde no New York American de William Randolph Hearst. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/127589/comicstrip/278930/The-first-half-of-the-20th-century-the-evolution-of-the-form#ref190855>)

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A partir de 1930, e tendo como influência o mundo do cinema, a banda desenhada começa a deixar de se dedicar exclusivamente ao estilo cómico e inicia uma fase de temáticas mais diversificadas, relatando histórias de aventura, policiais, ficção científica ou qualquer outro estilo que pudesse ser pertinente à época. É esta a fase alta da banda desenhada norte-americana na qual começam a emergir vários personagens que marcariam uma geração. Deu-se assim o aparecimento de Flash Gordon 20, Terry and the Pirates 21, Prince Valiant 22, e Tarzan 23.

Ilustração 6 – A primeira prancha publicada de Flash Gordon. (Alex Raymond, King Features Syndicate, 1934)

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Flash Gordon foi um personagem de ficção científica criado em 1934 pelo desenhador norte-americano Alexander Gillespie Raymond (1909 – 1956). (ver na www: <http://www.infopedia.pt/$alex-raymond>) 21 Terry and the Pirates foi uma banda desenhada criada em 1934 pelo desenhador norte-americano Milton Caniff (1907 – 1988). (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/92583/MiltonCaniff>) 22 Prince Valiant in the Days of King Arthur, mais conhecida por Prince Valiant, foi uma série de tiras de banda desenhada criadas em 1937 pelo desenhador americano Hal Foster (1892 – 1982). (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/214629/Harold-Rudolf-Foster>) 23 Tarzan é um personagem de ficção criado em 1912 pelo desenhador americano Edgar Rice Burroughs (1875 – 1950). (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/85800/Edgar-Rice-Burroughs>)

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Em 1933 surge o primeiro comic book 24 com a compilação e reimpressão das tiras publicadas nos jornais dos anos anteriores. Devido à elevada procura, nos anos seguintes foi comum a publicação de bandas desenhadas em edições independentes e apesar das várias temáticas e géneros, não necessariamente cómicos, o termo comic book continuou a ser utilizado. Em 1938 dá-se a grande viragem do estilo. A editora de banda desenhada DC Comics, anteriormente dedicada à concepção de histórias policiais, surge neste ano, pela primeira vez, a investir nestas bandas desenhadas independentes onde os personagens principais são os super-heróis. O aparecimento de heróis como Superman 25 e Batman 26 mudaram radicalmente a história da banda desenhada americana. A par deste enorme sucesso surge a editora concorrente Marvel Comics 27 que também apostou na criação da banda desenhada de super-heróis, dando vida a personagens como Namor 28 ou o famoso Captain America 29. Na década de 1950, a popularidade e a variedade das bandas desenhadas norteamericanas ganhou uma enorme dimensão, sendo a maioria já traduzida e divulgada a nível mundial. Para além dos super-heróis, o sucesso também recaia nas revistas de guerra e de terror. No entanto, com o passar do tempo, e com algumas bandas desenhadas a começarem a ser consideradas excessivamente violentas e uma má influência para a geração mais jovem, os comics passaram a sofrer fortes pressões governamentais. Essas pressões acabaram por forçar a criação de um código de ética na banda desenhada, o Comics Code Authority 30, que conseguiu praticamente

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Comic book foi o nome adoptado pelos norte-americanos para designar as publicações independentes dedicadas a personagens de ficção em banda desenhada. (ver Dicionário Universal da Banda Desenhada, Leonardo de Sá, 2010) 25 Superman (publicado em Portugal como Super-Homem) é um herói de banda desenhada, publicado pela DC Comics em 1938, considerado como um ícone cultural americano, criado pelos desenhadores Jerry Siegel (1914 – 1996) e Joe Shuster (1914 – 1992). Ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/574431/Superman>) 26 Batman é um personagem de banda desenhada criado em 1939 pelos desenhadores Bob Kane (1915 – 1998) e Bill Finger (1914 – 1974) publicado pela DC Comics. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/669658/Batman>) 27 Marvel Comics é uma editora norte-americana de banda desenhada criada em 1939. (ver The Marvel Vault, Running Press, 2007) 28 Namor é um personagem de banda desenhada criado pelo desenhador Bill Everett (1917 – 1973) em 1939. (ver na www: <http://www.comicbookdb.com/character.php?ID=333>) 29 Captain America (publicado em Portugal como Capitão América) é um personagem de banda desenhada criado em 1941 pelos desenhadores Joe Simon (1913 – 2011) and Jack Kirby (1917 – 1994). (ver na www: <http://www.comicbookdb.com/character.php?ID=208>) 30 A Comics Magazine Association of America, organização à qual foi atribuída a autoridade de regular o Comics Code Authority, foi criada na década de 50 pelas editoras como uma forma de autocensura em resposta a uma recomendação do Congresso. Esta auto-regulamentação modificou o conteúdo das

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exterminar a criatividade nos quadradinhos norte-americanos nas duas décadas seguintes. A partir de 1950 a banda desenhada americana procurou novos temas, a fim de apelar a novos públicos de diferentes sensibilidades e gostos. Foi neste ano que surgiu a famosa série Peanuts 31 a par da banda desenhada de terror.

Ilustração 7 – A primeira tira de Peanuts onde se volta à temática infantil. (Charles M. Schulz, The Washington Post, 1950)

Nos anos 60, e retomando ao conceito de super-heróis que ganharam reconhecimento no início dos anos 40, a Marvel Comics continua a investir na temática e, com a contratação de novos artistas como Stan Lee 32, nascem pela sua mão novos superheróis como Hulk 33 ou Spider-Man 34. Nesta década dá-se também o aparecimento da contracultura da banda desenhada underground 35 como resposta ao Comics Code Authority, divulgando, de maneira ilegal, um tipo de banda desenhada de cariz mais violento e sexual do que os comics publicados até então regidos por este código de conduta. Assim, autores como Robert Crumb 36 começaram a vender nas ruas as suas bandas desenhadas autorais, sem limite de conteúdo. Crumb criou uma publicação underground que lançaria uma contracultura juvenil dentro do género, conhecida como

revistas, a escolha das cores, dos temas e das palavras. (ver Facts About Code Approved Comics Magazines, New York : Comics Magazine Association of America, 1959) 31 Peanuts foi uma banda desenhada escrita e ilustrada por Charles M. Schulz (1922 – 2000), publicada em 1950, tornando-se na mais conhecida, influente e longa da história, apresentando como personagens principais os míticos Charlie Brown e Snoopy. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/447949/Peanuts>) 32 Stan Lee (1922) é um escritor de banda desenhada americano e director da companhia Marvel Comics. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/860784/Stan-Lee>) 33 Hulk é um personagem de banda desenhada criado em 1962. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/1475291/Incredible-Hulk>) 34 Spider-Man (publicado em Portugal como Homem Aranha) é um personagem de banda desenhada criado em 1962. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/1488567/Spider-Man>) 35 As bandas desenhadas underground, conhecidas nos Estados Unidos como comix, são pequenas edições independentes, normalmente satíricas. Elas diferem das edições oficiais por violar os códigos de conduta da banda desenhada, incluindo cenas explícitas de uso de drogas, sexo e violência. A sua divulgação teve o seu auge entre 1968 e 1975. (ver Dicionário Universal da Banda Desenhada, Leonardo de Sá, 2010) 36 Robert Dennis Crumb (1943) é um desenhador e músico conhecido pelo estilo crítico e satírico dos seus desenhos sobre a sociedade americana e foi um dos fundadores da banda desenhada underground nos Estados Unidos. (ver na www: <http://www.biography.com/people/robert-crumb-9262692>)

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Zap Comix, influenciando uma nova geração, mostrando que a banda desenhada estava-se a tornar num meio de expressão com um grande potencial mediático.

Ilustração 8 – A primeira revista de banda desenhada underground a ser publicada era expressamente dedicada a adultos. (Robert Crumb, capa da Zap Comix, nº1, 1967)

Com o sucesso crescente das bandas desenhadas de super-heróis, surge em 1970 o conceito de graphic novels 37 sob a tutela de Will Eisner 38 e Jules Feiffer 39. Em 1986, devido ao recurso às temáticas mais sérias na banda desenhada, ela começa a ganhar uma importância cada vez maior assim como um lugar nas prateleiras das livrarias. A partir deste ano, das obras mais marcantes desta época destacam-se Maus 40, The Dark Knight Returns 41 e Watchmen 42. Até aos dias de hoje a

37

As graphic novels são bandas desenhadas sem limitação comercial de número de páginas e apresentadas em formato de livro. (ver Dicionário Universal da Banda Desenhada, Leonardo de Sá, 2010) 38 Ver referência 5 39 Jules Ralph Feiffer (1929) é um desenhador americano com mais de 35 livros editados. Em 1986 ganha o prémio Pulitzer pelas suas tiras no jornal The Village Voice. (ver na www: <http://www.biography.com/people/jules-feiffer-9292643>) 40 Maus é uma banda desenhada do criador Art Spiegelman (1948) publicada em 1986 com uma sequela em 1991. Nela, Spiegelman é um personagem que entrevista o seu pai sobre as suas experiências

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banda desenhada ganhou uma vida própria e os assuntos tratados não se cingem a um público específico. O mercado conseguiu também abrir portas a edições independentes, de qualidade tal, que algumas delas saíram do papel e foram trazidas para o mundo do cinema. Ela (banda desenhada) saltou de ícone de iliteracia para se tornar num dos últimos bastiões da literacia. Se a banda desenhada tem algum problema neste momento, é o facto de as pessoas não terem paciência para a descodificar nos tempos que correm. Eu não sei se somos (criadores de banda desenhada) a vanguarda de uma outra cultura ou os últimos ferreiros. (Art Spiegelman, Comics as Literature? Reading Graphic Narrative, 2008, p. 460)

Ilustração 9 – Maus tornou-se a primeira banda desenhada a ser reconhecida com o prémio Pulitzer. (Art Spiegelman, capa de Maus, 2003)

enquanto judeu polaco sobrevivente ao Holocausto. De forma a aligeirar o assunto tratado e para uma maior aceitação etária, a BD surge como uma fábula metafórica onde os judeus são representados como ratos, os alemães como gatos e os polacos como porcos. Foi a primeira banda desenhada a receber o Prémio Pulitzer. (ver na www: <http://www.comicbookdb.com/creator.php?ID=5328>) 41 Batman: The Dark Knight Returns é uma banda desenhada de quatro publicações criadas por Frank Miller (1957). (ver na www: <http://www.comicbookdb.com/creator.php?ID=8>) 42 Watchmen é uma série de doze livros de banda desenhada criada por Alan Moore (1953), Dave Gibbons (1949) e John Higgins (1949) em 1986. (ver na www: <http://www.comicbookdb.com/title.php?ID=28>)

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2.2.2. NOVA IORQUE E AS METRÓPOLES DOS SUPER-HERÓIS Se tivermos de enquadrar um período onde a arquitectura começa a ganhar importância na banda desenhada norte-americana, podemos enquadra-la logo no surgimento das primeiras tiras dos jornais com Little Nemo In Slumberland 43 em 1905 pelas mãos do nova-iorquino Winsor McCay 44. E tendo a banda desenhada nascido em Nova Iorque não é de surpreender que tenha esta tenha sido a primeira cidade icónica a ser representada na banda desenhada. A obra Little Nemo in Slumberland, pioneira na introdução da arquitectura como elemento central, é um jogo de cenários vivos e em constante mutação onde McCay faz o personagem Nemo deambular pelo mundo de Slumberland que, apesar de onírico, tem como cenário uma réplica representativa da cidade de Nova Iorque com os gigantescos edifícios emergentes da época. Estes desenhos representativos da grande metrópole influenciaram e inspiraram muitos dos desenhadores seus contemporâneos assim como as gerações futuras de muitos criadores de banda desenhada.

Ilustração 10 – O início da representação arquitectónica na BD onde os edifícios não servem só de cenário mas também são alvo de interacção por parte dos personagens. (Winsor McCay, página completa de Little Nemo In Slumberland, New York Herald, 1907)

43

Ver referência 19 Winsor Zenic McCay (1869 – 1934) foi um desenhador e animador norte-americano. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/353934/Winsor-McCay>) 44

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Desde que este autor invadiu as páginas dos jornais americanos com a sua obra, a arquitectura e os cenários urbanos começaram a ganhar um lugar de destaque na banda desenhada, estabelecendo uma fasquia elevada para a sua representação gráfica logo nos primórdios do desenvolvimento desta nova forma de expressão artística. Esta representação da arquitectura na banda desenhada logo na sua fase inicial não surgiu ao acaso. Ela foi fruto de uma sociedade americana em pleno desenvolvimento, numa época em que se assistia ao crescimento exacerbado da grande metrópole. Se aliarmos este factor ao aparecimento da banda desenhada nos jornais urbanos de elevada tiragem, vemos que, especialmente nos Estados Unidos, a representação arquitectónica tornou-se um factor comum a quase todos os comics vindouros deste país. Este facto foi como que um reflexo da era em que se vivia e um relato dos acontecimentos modernos na cidade. Nos anos trinta as séries de acção e de aventura ocorrem frequentemente em locais exóticos, tanto na Terra como em outros planetas localizados, ou num futuro distante ou no passado. Os personagens movem-se nestes cenários numa procura de novos mundos em histórias coesas de ficção científica, muitas vezes dedicadas a um público mais adulto. Com esta tentativa de mostrar novos cenários hipotéticos e futuristas, a banda desenhada necessitou de expandir o território da ficção criando o mundo dos super-heróis. Nos anos quarenta, são os combates de super-heróis que ganham um lugar de grande destaque. A presença dos edifícios ou monumentos marcantes das principais cidades foi um factor constante nas criações de banda desenhada nos Estados Unidos nesta época. A presença maciça de super-heróis que habitavam as grandes cidades, tendo como referência as metrópoles como Nova Iorque e Chicago, com os seus arranha-céus e as grandes avenidas, ou os bairros populares, decadentes e sombrios da obra de Will Eisner 45, ou mesmo os subúrbios e as cidades horizontais californianas na BD underground, tinham como função essencial a de actuar como pano de fundo para a acção e a aventura. O desenvolvimento dos comics, e a sua divulgação em todos os jornais do país assim como no estrangeiro, leva os autores a não representarem a faceta mais reconhecível 45

Ver referência 5

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da cidade onde vivem, mas apenas aqueles que o autor quer que o leitor reconheça. Assim, essas histórias vêem o nascimento de novas megacidades ficcionais como Gotham City 46 de Batman criada por Bob Kane 47 ou a Metropolis 48 de Superman, modelada da realidade urbana pelas mãos de Joe Shuster 49, nas quais os superheróis tinham o papel importante de as proteger. Mas se a cidade de Nova Iorque serviu muitas vezes como pano de fundo para as histórias de banda desenhada, sendo sempre um exemplo de grande metrópole mundial em desenvolvimento e em constante mutação, por outro lado, nem sempre foi referida nas bandas desenhadas pelo seu brilhantismo e excentricidade. Em 1986 surge a publicação New York: The Big City de Will Eisner onde, ao contrário das demais, é-nos apresentada uma Nova Iorque dos subúrbios onde os personagens desenvolvem as suas acções em cenários decadentes e numa realidade existente mas muitas vezes escondida. Neste caso concreto, a arquitectura representada também é uma réplica da real mas que funciona como elemento condicionador das acções dos personagens. Os edifícios, as barracas, as ruelas e os becos são cenários importantes para criar a atmosfera desejada, passando desse modo a arquitectura a compor a história e a construir o seu imaginário.

46

Gotham City é uma cidade fictícia criada na banda desenhada de Batman da DC Comics e apresenta várias semelhanças com as grandes cidades do mundo onde existem altos índices de criminalidade e corrupção. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/669658/Batman>) 47 Bob Kane (1915 – 1998) foi o autor de banda desenhada norte-americano criador de Batman. (ver na www: <http://www.comicbookdb.com/creator.php?ID=112>) 48 Metropolis é uma cidade fictícia que serve de cenário às histórias de Superman. No mundo da DC Comics, Metropolis é representada como uma das mais ricas cidades do mundo e é inspirada pelas cidades de Nova Iorque, Chicago, Detroit, Toronto, Vancouver e Los Angeles. Muitos dos edifícios icónicos desta cidade são baseados nos verdadeiros existentes em Nova Iorque. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/574431/Superman>) 49 Joe Shuster (1914 - 1992) foi um autor de banda desenhada américo-canadiano conhecido pela criação do personagem Superman. (ver na www: <http://www.comicbookdb.com/creator.php?ID=113>)

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Ilustração 11 – Os subúrbios de Nova Iorque mostrados por Will Eisner. (Will Eisner, New York: The Big City, p. 67, 2000)

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2.3. A BANDE DESSINÉE FRANCO-BELGA 2.3.1. O BASTIÃO EUROPEU A banda desenhada franco-belga, tal como o nome indica, foi um trabalho em conjunto de autores originários da França e da Bélgica. Ao contrário dos comics americanos, cujo nome remete para algo engraçado ou infantil, o termo francês bande dessinée não comporta em si mesmo qualquer alusão a um estilo ou temática. Este pormenor fez com que a banda desenhada franco-belga ganhasse, logo à partida, uma conotação mais séria, e de temáticas mais variadas. Na Bélgica, à semelhança dos Estados Unidos, a banda desenhada começou a ser divulgada através dos jornais. A 10 de Janeiro de 1929, no Le Petit Vingtième 50, começam a surgir as primeiras tiras de BD com as aventuras do personagem que viria a ser o símbolo da banda desenhada franco-belga, o repórter Tintin 51. Anos mais tarde, a 24 de Abril de 1938 surge o Le Journal de Spirou 52 que criava mais um personagem que ficaria para a história.

Ilustração 12 – O suplemento Le Petit Vingtième foi o responsável pelo lançamento do personagem Tintin. (Hergé, Le Petit Vingtième, capa da publicação nº 32, 1934)

50

O Le Petit Vingtième foi um suplemento semanal do jornal belga Le Vingtième Siècle, publicado ente 1928 e 1940, dirigido pelo abade Norbert Wallez (1882 – 1952). (ver na www: <http://www.objectiftintin.com/whatsnew_tintin_1102.lasso>) 51 Tintin é o protagonista da série de ficção de banda desenhada conhecida como Les Aventures de Tintin (publicado em Portugal como As Aventuras de Tintim), criada pelo desenhador belga Hergé (1907 – 1983). (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/596673/Tintin>) 52 O Le Journal de Spirou foi uma revista belga semanal de banda desenhada publicada pela companhia Dupuis num formato de oito páginas reunindo uma série de pequenas histórias. Spirou era o personagem central de uma destas histórias criado pelo desenhador francês François Robert Velter (1909 – 1991). (verna www: <http://www.comicbookdb.com/character.php?ID=29541>)

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Com a ocupação alemã durante a 2ª Guerra Mundial e com as crescentes proibições de importação de banda desenhada americana, a Bélgica começou a ganhar alguma autonomia na criação deste estilo artístico, e a nível nacional começou-se a assistir ao seu progressivo desenvolvimento. É a partir de 1940 que começam a surgir novos jornais e revistas dedicados apenas à banda desenhada. Seguindo as pegadas do sucesso do Le journal de Spirou, Hergé decide tirar o personagem Tintin das tiras dos jornais e dedicar-lhe uma revista homónima em 1946 editada por Raymond Leblanc 53 cujo sucesso contribuiu para que a Bélgica se tornasse no pilar da banda desenhada francófona. A par desta publicação, a revista Spirou continuou o seu bom trabalho dando a conhecer ao público mais personagens de banda desenhada como é o caso de Lucky Luke 54.

Ilustração 13 – Capas dos primeiros números das revistas Tintin (Le Lombard, 26 de Setembro de 1946) e Le journal de Spirou. (Dupuis, 21 de Abril de 1938),

Quando a banda desenhada começa a entrar em França, na década de 50, os autores belgas evitavam quaisquer alusões desenhadas a ícones nacionais com o objectivo de

53

Raymond Leblanc (1915 – 2008) foi um editor belga de livros de banda desenhada conhecido por ter publicado Tintin. (ver na www: <http://www.goethe.de/ins/be/bru/kul/dub/lit/com/fr8744550.htm>) 54 Lucky Luke é um personagem de banda desenhada franco-belga criado em 1946 pelo belga Maurice De Bevere (1923 – 2001), conhecido por ser capaz de disparar mais rápido que a sua sombra e cuja acção da história se desenrola no Velho Oeste Americano. (ver na www: <http://www.infopedia.pt/$luckyluke>)

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tornar a BD em algo mais universal e não apenas uma arte nacional. De entre as bandas desenhadas mais conhecidas surgem Gaston Lagaffe 55 e Les Schtroumpfs 56. A 29 de Outubro de 1959 é criada a revista Pilote 57, um novo suporte para dar a conhecer os autores de banda desenhada da época. Com a revista surge o carismático personagem Asterix 58 e Blueberry 59. Este último quebrou com as regras dos heróis “certinhos” e foi criado a pensar num público mais adulto, apresentando um personagem do Oeste Americano cheio de vícios. Surge Michel Vaillant 60, difundindo em França uma BD cada vez mais popular. Estas publicações

permitiram

à

banda

desenhada

chegar

ao

público

em

geral,

especialmente a juventude da época. Até a década de 60, a BD está associada às crianças e ao público jovem sendo até utilizada como meio de divulgação da leitura nas escolas.

Ilustração 14 – Capa do primeiro número da série Michel Vaillant (Jean Graton, Le Lombard, 1957).

55

Gaston foi um personagem de banda desenhada criado em 1957 pelo belga André Franquin na revista Spirou. A série apresentava o personagem Gaston Lagaffe como um trabalhador desastrado no seu escritório. 56 Les Schtroumpfs (publicado em Portugal como Estrunfes) surgiram como uma banda desenhada belga centrada num grupo de pequenas criaturas azuis pela mão do desenhador belga Peyo (1928 – 1992) em 1958. 57 Pilote foi uma revista de banda desenhada periódica publicada entre 1959 a 1989 dando a conhecer a maioria dos criadores franco-belgas da época e os seus respectivos personagens. 58 Asterix é uma série de banda desenhada francesa escrita por René Goscinny (1926 – 1977) e ilustrada por Albert Uderzo (1927). Asterix é o nome do personagem gaulês que tenta resistir à ocupação romana. 59 Blueberry é uma banda desenhada western franco-belga criada pelo guionista belga Jean-Michel Charlier (1924 – 1989) e pelo desenhador francês Jean Giraud (1938 – 2012). Ela relata as aventuras de Mike Blueberry nas suas viagens pelo Velho Oeste Americano. 60 Michel Vaillant é o título de uma série de banda desenhada do francês Jean Graton (1923). Michel Vaillant é o personagem principal, um condutor francês que compete na Fórmula 1.

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Até ao final dos anos 60 a BD franco-belga caracterizava-se por ser exclusivamente juvenil e só após a criação de Corto Maltese 61 em Itália a banda desenhada conseguiu separar-se da conotação juvenil. A partir dos anos 70, e tendo como referência a ruptura de estilo de Corto Maltese e influenciada pelas novas revistas e editoras que apostavam na banda desenhada, esta começou a ser divulgada em diversos estilos e formatos gráficos a fim de se alargar a um público mais adulto.

Ilustração 15 – O aparecimento de Cortomaltese em Itália teve repercussões na banda desenhada franco-belga com a introdução de uma temática mais adulta. (Hugo Pratt, capa do primeiro número da série Cortomaltese, 1967)

Em Fevereiro de 1978 é editada a primeira edição da revista franco-belga À Suivre 62, que, a par de Tintin, Spirou e Pilote, se tornou em mais um veículo de promoção da banda desenhada no território franco-belga. Os anos 80 e 90 caracterizam-se por um renovar da banda desenhada. Novas possibilidades técnicas e gráficas, permitem que algumas obras sejam expostas em galerias de arte e que alguns artistas sejam distinguidos pelo seu estilo narrativo ou gráfico. A banda desenhada deixa de ser apenas uma arte e passa a ser uma nova linguagem.

61

Corto Maltese é uma série de banda desenhada cujo protagonista é um marinheiro aventureiro criado pelo italiano Hugo Pratt (1927 – 1995) em 1967. (ver na www: <http://www.infopedia.pt/$corto-maltese>) 62 À Suivre foi uma revista franco-belga de banda desenhada publicada entre 1978 e 1997. (ver Reading Bande Dessinee: Critical Approaches to French-language Comic Strip, Ann Miller, 2007)

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2.3.2. O ECLECTISMO ARQUITECTÓNICO Na banda desenhada francesa, qualquer elemento arquitectónico pode ser usado como cenário de fundo, mas na belga essa liberdade não se aplica. Assim que os editores belgas francófonos começaram a querer exportar os seus trabalhos para o grande mercado francês, qualquer tipo de alusão a cenas ou monumentos nacionais desaparece. Como os escritores da flandres trabalhavam principalmente para o público flamengo, a situação era diferente e as zonas e edifícios típicos dessa zona aparecem com regularidade em algumas bandas desenhadas.

Ilustração 16 – A catedral de Antuérpia está representada nesta edição da banda desenhada flamenga Suske en Wiske (Willy Vandersteen, capa do número 311 da série Suske and Wiske, 2010)

Lentamente, os cenários foram adquirindo importância na banda desenhada europeia. Hergé teve, neste campo, uma evolução exemplar. No início dos anos trinta, os cenários das aventuras de Tintin são desenhados de forma elementar, sem grande pormenor e sem preocupação pelo realismo. Mais tarde, Hergé, com a sua equipa de desenhadores, começa a fazer uma pesquisa mais aprofundada de documentação a nível cénico a fim de melhor perceber a realidade onde os personagens se inserem. O movimento de contestação juvenil dos anos sessenta, que se fez notar a nível mundial, também não negligenciou a banda desenhada. Os jovens autores rejeitaram

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os antigos padrões limitativos e exploraram livremente novos estilos e temas, graças aos quais conseguiram alcançar um público mais adulto. Como consequência, nota-se que o carácter local de uma banda desenhada torna-se uma qualidade e começam a surgir publicações onde os personagens se movem por cidades belgas com o objectivo de mostrar a arquitectura das diferentes regiões do país. Os autores de banda desenhada são também influenciados por outros meios. Uma grande parte dos artistas franco-belgas que expressam a arquitectura nas suas obras recebeu influências de várias áreas artísticas. Jacques de Loustal 63 é arquitecto de formação, Hermann Huppen 64 estudou arquitectura de interiores, Joost Swarte 65 design industrial e o pai e o irmão de François Schuiten 66 são arquitectos. Enquanto muitos destes autores têm o prazer de encarnar o papel de arquitectos, outros sentem uma menor afinidade com o tema mas achando-o necessário, atribuem a função do desenho dos cenários a assistentes especializados. Com todo o crescente sucesso, a banda desenhada, género popular por excelência, saltou de autores nascidos e criados na grande metrópole para autores que começavam a dar cartas nos subúrbios das grandes metrópoles. Na década de setenta e oitenta foram alguns os criadores de banda desenhada das cidades periféricas que começavam a desenhar a arquitectura fixando-se muito nos cenários dos subúrbios para permitir que os leitores se identificassem com a história contemporânea que ela contava. A banda desenhada franco-belga torna-se um veículo de comunicação mais diversificado no que toca à divulgação da arquitectura. Ela tenta não só demonstrar uma maior variedade de estilos arquitectónicos, como também desempenha um papel importante na construção ou recriação de mundos. As bandas desenhadas históricas

63

Jacques de Loustal (1956) é um criador de banda desenhada francês cujos traços se inspiram no artista plástico David Hockney. (ver na www: <http://www.loustal.net/Loustal/bio_portugais.htm>) 64 Hermann Huppen (1938) é um criador de banda desenhada belga conhecido pela obra pósapocalíptica Jeremiahia reproduzida numa série de televisão. (ver Reading Bande Dessinee: Critical Approaches to French-language Comic Strip, Ann Miller, 2007) 65 Joost Swarte (1947) é um criador de banda desenhada e designer gráfico holandês. Em 1977 Joost Swarte criou a definição de “linha clara”. (ver nota de roda pé 97) Swarte foi também o único criador de banda desenhada a criar um edifício, tendo sido também designer de interiores do Museu Hergé em Louvain-la-Neuve. (ver na www: <http://www.joostswarte.com>) 66 Baron François Schuiten (1956) é um criador de banda desenhada belga conhecido pela série Les Cités Obscures .(ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/s/schuiten1.htm>)

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francesas recriam, desde a Roma Imperial na série Alix 67, onde a cidade é fielmente reconstruida, até às cidades e castelos medievais, como na série Les Compagnons Du Crépuscule 68.

Ilustração 17 – Dar a conhecer o verdadeiro aspecto da Roma Antiga foi uma das intenções do autor de Alix. (Jacques Martin, capa de Les Voyages d'Alix : Rome, tome 1: La Cité Impériale, 2000)

67

Alix é uma série de banda desenhada franco-belga, desenhada no estilo de linha clara por Jacques Martin (1921 – 2010). A história decorre em Roma Antiga e tem como personagem principal um jovem gálico-romano. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/m/martin_jacq.htm>) 68 Les Compagnons du Crépuscule é uma série de banda desenhada passada na época medieval criada pelo desenhador belga François Bourgeon (1945). (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/b/bourgeon.htm>)

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2.4. OS MANGA JAPONESES 2.4.1. A EXPRESSÃO NIPÓNICA Manga é o nome dado à banda desenhada japonesa segundo um estilo desenvolvido nesse país no final do século XIX tendo como grande influência a arte japonesa ancestral. A palavra manga em japonês pode ser traduzida à letra como “caricatura”. A principal diferença que distingue os manga da banda desenhada do resto do mundo é a sua qualidade expressiva. Os manga recorrem essencialmente à expressão gráfica e à moralidade dos temas, onde os personagens surgem com características humanas alteradas ou distorcidas, para dessa forma, dar um maior enfoque à sua expressão fazendo acentuar os sentimentos que se querem que os personagens demonstrem. Quanto à temática, os manga percorrem vários géneros como a acção e a aventura, romance, desporto, drama, comédia, ficção científica e fantasia, mistério, terror, entre outros. A generalidade dos manga são impressos a preto e branco e são difundidos normalmente em revistas do género, contendo várias histórias que têm continuação nas edições seguintes. A sua origem, tal como no caso dos comics americanos, dá-se com a publicação de edições regulares de cartoons. O primeiro destes exemplos partiu de um cartoonista inglês, de nome Charles Wirgman 69, que em 1862 decide fundar a primeira revista impressa no Japão, a Japan Punch 70, escrita em inglês, com algumas caricaturas da sua autoria, que pretendia satirizar a vida da pequena comunidade britânica a residir no Japão no século XIX. Em 1874 Kanagaki Robun 71 e Kawanabe Kyosai 72 criaram a Eshinbun Nipponchi 73 que foi considerada como a primeira revista manga. Apesar de não ter tido grande sucesso, os dois autores, com esta iniciativa, conseguiram criar as fundações do estilo que mais tarde ganharia toda a importância a nível nacional. Seguindo a linha da 69

Charles Wirgman (1832 – 1891) foi um artista e cartoonista inglês que chegou ao Japão como correspondente do Illustrated London News em 1861 e por lá permaneceu até ao fim dos seus dias. (ver Britain and Japan, 1859-1991: Themes and Personalities, Hugh Cortazzi e Gordon Daniels, 1991) 70 A Japan Punch, publicada entre 1862 e 1887, era uma revista humorístico-satírica. (ver Japanese Visual Culture: Explorations in the World of Manga and Anime, Mark W. MacWilliams, 2008) 71 Kanagaki Robun (1829 – 1894) foi um escritor e jornalista japonês. (ver Historical Dictionary of Modern Japanese Literature and Theater, J. Scott Miller, 2009) 72 Kawanabe Kyosai (1831 – 1889) foi um artista plástico japonês. (ver na www: <http://kyosaimuseum.jp/ENG/about.htm>) 73 Eshinbun Nipponchi tinha um estilo de desenho muito simples que não a tornou famosa, o que fez com que tivesse terminado ao fim de três edições. (ver Japanese Visual Culture: Explorations in the World of Manga and Anime, Mark W. MacWilliams, 2008)

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Eshinbun Nipponchi, foram várias as revistas manga que surgiram nos anos seguintes, sendo as mais influentes a Kisho Shimbun 74 em 1875, a Marumaru Chinbun 75 em 1877 e a Garakuta Chinpo 76 em 1879.

Ilustração 18 – Capa da edição de Julho de 1878 da Japan Punch. (Charles Wirgman, Julho de 1878).

A partir de 1895 deu-se o aparecimento de uma revista que, já estando o estilo manga definido, conseguiu criar um sub-género, o qual permanece até aos dias de hoje. A revista intitulava-se Shounen Sekai 77, criada em 1895, lançando a vertente shounen 78 do manga. Esta publicação tinha um grande enfoque na Primeira Guerra SinoJaponesa 79. Anos mais tarde, em 1905, durante a guerra Russo-Japonesa 80, dá-se o

74

Kisho Shimbun foi uma espécie de livro de notícias em banda desenhada. (ver Japanese Visual Culture: Explorations in the World of Manga and Anime, Mark W. MacWilliams, 2008) 75 Marumaru Chinbun foi uma edição bissemanal que continha cartoons humorísticos e satíricos da vida social do Japão. (ver Japanese Visual Culture: Explorations in the World of Manga and Anime, Mark W. MacWilliams, 2008) 76 Garakuta Chinpo foi uma revista semanal de caricaturas e cartoons político-humorísticos. (ver Japanese Visual Culture: Explorations in the World of Manga and Anime, Mark W. MacWilliams, 2008) 77 Shounen Sekai, cujo título poderá ser traduzido por “ O Mundo dos Jovens”, foi uma revista que se especializou em literatura infantil, publicada entre 1895 e 1914 pelo escritor japonês Sazanami Iwaya (1870 – 1933). (ver Japanese Visual Culture: Explorations in the World of Manga and Anime, Mark W. MacWilliams, 2008) 78 Shounen significa “poucos anos” e refere-se aos rapazes com uma idade compreendida entre os 10 e os 18 anos. É um estilo de manga que se centra essencialmente em cenas de batalha mas sempre com sentido de humor e com a moral dos laços de amizade entre os personagens. (ver Japanese Visual Culture: Explorations in the World of Manga and Anime, Mark W. MacWilliams, 2008) 79 A Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894 – 1895) foi um conflito entre o Japão e a China, fundamentalmente pelo controle da Coreia. (ver The Sino-Japanese War of 1894-1895: Perceptions, Power, and Primacy, S. C. M. Paine, 2005 80 A Guerra Russo-Japonesa (1904 – 1905) foi travada entre o Império do Japão e o Império Russo na disputa dos territórios da Coreia e da Manchúria. (ver Historia Ilustrada Da Primeira Guerra Mundial, John Keegan, 2003)

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grande boom das publicações de revistas de manga, tendo como impulsionadora a publicação Tokyo Pakku 81 que foi um enorme sucesso. Tendo o estilo shounen, dedicado aos rapazes, é definido outro sub-género da manga dedicado às raparigas, com o lançamento em 1906 da revista Shoujo Sekai 82, considerada como a primeira revista shoujo 83. Depois de várias publicações dedicadas ao público infantil, várias outras foram publicadas, começando-se a dar uso à cor e à representação de balões de fala que substituíram a manga silenciosa. A influência da banda desenhada americana nos manga foi decisiva para a obra futura efectuada entre 1945 e 1952. Devido à ocupação do Japão pelos Estados Unidos, os militares americanos divulgaram no Japão a sua cultura, tanto com a televisão e com os filmes, mas também com os comics, entre eles alguns de Walt Disney 84. Foi nesta época e na pós-ocupação americana que o Japão, anteriormente ultranacionalista e militarista, reconstrói as suas infra-estruturas políticas e económicas. Absorvendo todas estas influências, em 1947 surge a primeira manifestação oriental do manga moderno, que se tornou o mais comercializado tanto a nível nacional como internacionalmente. Essa manifestação surgiu sob a forma de uma publicação intitulada Shin Takarajima 85 pelas mãos de Osamu Tezuka 86. Esta publicação fez pelos manga o que Tintin fez pela banda desenhada franco-belga lançando definitivamente a expressão do manga além-fronteiras.

81

Tokyo Pakku, publicada entre 1905 e 1912 pelo desenhador Rakuten Kitazawa (1876 – 1955), foi uma revista de caricaturas de sátira política e crítica social. (ver Manga: 60 Years of Japanese Comics, Paul Gravett, 2004) 82 Shoujo Sekai teve inicialmente como editor o escritor de histórias infantis Sazanami Iwaya (1870 – 1933) autor da Shounen Sekai. (ver Japanese Visual Culture: Explorations in the World of Manga and Anime, Mark W. MacWilliams, 2008) 83 Shoujo é o estilo de manga dedicado à audiência feminina dos 10 aos 18 anos. A palavra significa “pequena mulher” e a sua temática baseia-se numa variedade de assuntos e de estilos gráficos, sempre com um forte vínculo às relações humanas, românticas e às emoções. (ver Japanese Visual Culture: Explorations in the World of Manga and Anime, Mark W. MacWilliams, 2008) 84 Walter Elias Disney (1901 – 1966) foi um realizador, produtor, escritor, animador e empresário, americano mais conhecido pelo seu trabalho na área da animação. (ver Walt Disney, Jane Sutcliffe, 2009) 85 Shin Takarajima, título que pode ser traduzido por “A Nova Ilha do Tesouro”, foi uma publicação de 192 páginas, tendo ficado conhecida como a pioneira no conceito de manga moderna. (ver Japanese Visual Culture: Explorations in the World of Manga and Anime, Mark Wheeler MacWilliams, 2008) 86 Osamu Tezuka (1928 – 1989) foi um desenhador, animador, produtor, activista e médico japonês conhecido por ser o equivalente japonês de Walt Disney. (ver God of Comics: Osamu Tezuka and the Creation of Post-World War II Manga, Natsu Onoda Power, 2009)

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Obras como Sazae-san 87, ou Astro Boy 88, viriam a ganhar popularidade e a acentuar ainda mais o estilo shounen dirigido aos rapazes e os manga shoujo às raparigas. A partir de 1950 os manga tornaram-se um dos valores económicos mais importantes da indústria editorial japonesa, tão importantes cujas vendas representam uma grande fatia do PIB nacional.

Ilustração 19 – Capa da Shin Takarajima, publicação que viria a ser o início do manga moderno. (Osamu Tezuka, capa do primeiro número de Shin Takarajima, 1947).

De 1980 a meados dos anos noventa começam a surgir os grandes sucessos de manga que mais tarde deram origem às ainda melhor sucedidas animações como é o caso de Akira 89, Dragon Ball 90, Neon Genesis Evangelion 91 e Pokémon 92. Até 2007, a

87

Sazae-san, criada em 1946, foi um manga de Machiko Hasegawa (1920 – 1992), uma das primeiras mulheres criadoras do estilo no Japão, onde a personagem principal, Sazae, uma mulher emancipada cujas aventuras se baseavam em situações cómicas, pretendia mostrar a sua superioridade perante o marido. A temática levantou alguma polémica na época mas a série teve uma grande aceitação por parte dos leitores. (ver Japan Pop!: Inside the World of Japanese Popular Culture, Timothy J. Craig, 2000) 88 Astro Boy, criado em 1952 por Osamu Tezuka, relata as aventuras de um rapaz robô. (ver God of Comics: Osamu Tezuka and the Creation of Post-World War II Manga, Natsu Onoda Power, 2009) 89 Akira é uma serie de manga japonesa escrita e ilustrada por Katsuhiro Otomo (1954), cuja história se situa numa Nova-Tóquio pós-apocalíptica. Inicialmente editada em revista entre 1982 e 1990, foi mais tarde compilada em seis volumes e passada para filme de animação em 1988. (ver Manga: 60 Years of Japanese Comics, Paul Gravett, 2004) 90 Dragon Ball é uma série de manga japonesa escrita e ilustrada por Akira Toriyama (1955) publicada entre 1984 to 1995 que conta as aventuras de Goku, uma criança prodígio nas artes marciais, desde a sua infância até à idade adulta. A par do manga foram realizados filmes de animação desde 1986. (ver Manga: 60 Years of Japanese Comics, Paul Gravett, 2004)

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influência

dos

manga

nas

bandas

desenhadas

internacionais

cresceu

consideravelmente das duas últimas décadas, tanto na ajuda da sua divulgação como no seu aspecto estético e visual.

91

Neon Genesis Evangelion é uma série de manga criada por Yoshiyuki Sadamoto (1962) em 1994, consistindo em treze volumes. A série de animação de 1995 superou o sucesso do manga. (ver Manga: 60 Years of Japanese Comics, Paul Gravett, 2004) 92 Pokémon começou como uma série de manga em 1995 mas que ganhou um estrondoso sucesso com os filmes de animação em 1997. (ver Manga: 60 Years of Japanese Comics, Paul Gravett, 2004)

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2.4.2. TÓQUIO E AS SUAS VARIANTES Os manga e os anime 93, desde o seu aparecimento, sempre foram um enorme sucesso à escala mundial e tornaram-se grandes influências da arte ocidental assim como na cultura popular emergente, tendo-se até tornado num alicerce económico japonês. O manga e os subsequentes filmes que nele são inspirados, são a tela onde os modelos urbanos utópicos e fantasiosos ganham vida. Desde 1980 que os manga de ficção científica representam aspectos arquitecturais que, duas décadas antes, o movimento Metabolista 94 se encarregou de imaginar. Foi nesta década de 80, com a retoma económica, que Tóquio se tornou na cidade de eleição para servir de pano de fundo aos personagens de banda desenhada, tornando-a na nova vitrina arquitectural e cultural mundial expandindo-se, lado a lado, com a onda de cultura japonesa em Tóquio. Assim sendo, as narrativas dos criadores de manga remetem quase sempre para esta cidade capital, fazendo com que os personagens, independentemente do tempo, do estilo e da temática da história, deambulem pela grande metrópole japonesa. E a arquitectura da cidade, quase sempre presente, por mais minimalista que seja, pretende situar a história no tempo. A escolha constante da representação de Tóquio na banda desenhada cria uma multiplicidade de pontos de vista dos vários autores e vemos a cidade a sofrer alterações dependendo do estilo da história e do autor. Quando este nos dá a conhecer um futuro próximo numa saga de ficção científica, Tóquio surge-nos como um cenário pós-apocalíptico, no entanto, se a acção se desenrolar num tempo presente, a representação de Tóquio é mais fiel à realidade, podendo apenas ser alterados alguns aspectos que sejam pertinentes à narrativa. Por vezes a arquitectura pode mesmo ajudar a criar ambientes sentimentais. Um cemitério, por exemplo, pode representar um momento de tristeza assim como um parque de diversões pode representar um momento de regozijo. Para além destes 93

Anime é o nome pelo qual são conhecidos os filmes de animação japoneses. (ver Manga: 60 Years of Japanese Comics, Paul Gravett, 2004) 94 O Movimento Metabolista, surgido no Japão em meados da década de 60, teve como embaixador o arquitecto Kenzo Tange que, tendo em conta a crise da falta de território para a expansão das metrópoles japonesas, tentava encontrar na tecnologia e nas grandes estruturas de engenharia uma resposta. A alternativa mais imediata e evidente era a ocupação dos oceanos para a construção de uma nova civilização, tendo sido desenvolvidos alguns projectos como é o caso da nova baía de Tóquio. O Metabolismo considerava que os edifícios e os espaços urbanos estariam sujeitos às mesmas características evolutivas das populações que os habitavam. Kisho Kurokawa foi o nome mais conhecido deste movimento com o projecto Capsule Tower em Tóquio. (ver Kisho Kurokawa: Architect and Associates, Selected and Current Works, Kisho Kurokawa, Andy Whyte, 2000)

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aspectos, a arquitectura nos manga têm uma função ainda mais importante: a de representar o tempo da história. Se os trajes e as roupagens dos personagens poderão ter o mesmo efeito, ele perde-se quando, por exemplo, no caso da ficção científica, os trajes dos personagens não coincidem com o cenário envolvente. Neste caso a representação de elementos arquitectónicos é essencial e a leitura do desenho é feita no conjunto personagem-cenário.

Ilustração 20 – A escola da série de manga Mahou Sensei Negima! à esquerda (Mahou Sensei Negima!, livro 1, excerto da pág. 24, 2003) é uma reconversão da estação de Tóquio na imagem da direita. (Estação de comboios de Tóquio, http://www.japan-guide.com, 2002)

Mas quando se fala da presença da arquitectura nos manga, não falamos apenas dos edificados urbanos de Tóquio. As obras criadas no Japão são muito extremas mas sem sombra de dúvidas muito variadas. Se Tóquio, a grande metrópole do futuro, é a cidade por excelência para o desenrolar das aventuras de vários personagens que habitam o mundo da banda desenhada, há autores que preferem descrever a zona rural, onde a arquitectura é a paisagem bucólica dos subúrbios. O grande exemplo desse tipo de autor é Jiro Taniguchi 95 Não levando a sua obra na direcção dos super-heróis invencíveis, o mangaka 96 cria uma banda desenhada que se aproxima das bases da banda desenhada europeia e, apesar da expressividade do desenho característico dos manga, nutre uma assumida afinidade, que pode ser encontrada em algumas das suas obras, com o estilo da “linha clara” 97.

95

Jiro Taniguchi (1947) foi dos primeiros criadores de manga cujas influências ocidentais, o fizeram trabalhar com Moebius (ver subcapítulo 3.3) na obra Icaro. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/t/taniguchi.htm>) 96 Nome pelo qual são conhecidos no japão os criadores de manga. (ver Manga: 60 Years of Japanese Comics, Paul Gravett, 2004) 97 Ligne claire (linha clara) é um estilo gráfico desenvolvido por Joost Swarte (ver nota de roda pé 65) baseado no desenho da linha. Hergé foi o pioneiro simbólico deste estilo que se caracteriza pela utilização de linhas fortes, todas com a mesma espessura e importância. Tintin foi o expoente máximo do

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Quando este autor decide rejeitar as restrições impostas por alguns editores, ele consegue criar produções intimistas, diversificadas, que podem ir mesmo contra alguns dos códigos dos manga, como é o caso da lentidão da narrativa, dando-nos uma perspectiva algo diferente do que a sua leitura nos pretende transmitir. A noção de tempo com o desdobramento subtil da história é uma característica comum a muitas das obras de Jiro Taniguchi devido à apresentação de quadros de paisagens detalhadas onde o leitor pode parar numa determinada cena a apreciar cada detalhe assim como alguns personagens o fazem dentro da mesma cena. Taniguchi consegue colocar-nos no papel do personagem principal

e a sua obra encontra-se longe do

manga comercial onde a continuidade da história imposta guia o leitor até ao último quadro não lhe dando pausas na leitura.

Ilustração 21 – A perspectiva do personagem torna-se a mesma da do leitor. (Jiro Tanaguchi, Aruku Hito, 1995, p. 30)

exemplo da utilização deste estilo gráfico onde o uso de sombras é quase inexistente e todos os elementos do desenho são claramente delineados com linhas pretas. (ver Reading Bande Dessinée: Critical Approaches to French-language Comic Strip, Ann Miller, 2007)

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Em obras como Aruku Hito 98, Keyaki no Ki 99 ou Haruka Na Machi He 100, a história funde-se com o lirismo e com o sonho. O fio da narrativa é deliberadamente lento e monótono e isso permite que o autor trate pormenorizadamente cada quadro com a sua característica poesia e graciosidade. Aruku Hito é o melhor exemplo para entender esta parte do trabalho de Taniguchi. Nesta publicação temos a oportunidade de seguir os passos de um homem que acaba de se mudar para uma nova casa com sua esposa e aproveita para fazer longas caminhadas para conhecer seu novo ambiente. Estas promenades arquitecturais permitem que se dê mais enfase ao cenário, à paisagem e à arquitectura por onde quer que o personagem circule. Aqui a história dissipa-se por entre os cenários, que não só enquadram a cena, mas também transmitem sensações, normalmente de serenidade, com grandes planos de áreas rurais e de arquitectura tradicional. A paisagem é o essencial da composição e as conversas do personagem principal não são tão significativas quando comparadas com a banda desenhada ocidental.

Ilustração 22 – Os cenários rigorosamente trabalhados permitem que o leitor se demore mais na leitura de cada quadro na obra de Taniguchi. (Jiro Tanaguchi, Aruku Hito, 1995, p. 32)

98

Aruku Hito, publicado em 1991 foi traduzido para inglês como The Walking Man e para francês como L’Homme qui Marche. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/t/taniguchi.htm>) 99 Keyaki no Ki, publicado em 1993, foi traduzido para francês como L’orme du Caucase. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/t/taniguchi.htm>) 100 Haruka Na Machi He, publicado em 2002, foi traduzido para francês como Quartier Lointain. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/t/taniguchi.htm>)

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3. AS CIDADES NA BANDA DESENHADA 3.1. REPRESENTAÇÃO, LEITURA E FUNÇÃO DA ARQUITECTURA NA BANDA DESENHADA Desde que a arte da banda desenhada foi reconhecida como tal, as primeiras representações da cidade apareceram nas páginas dominicais dos principais jornais americanos. As pessoas apreciavam esta forma popular de entretenimento e um favorito em particular era o personagem Little Nemo de Winsor McCay no (jornal) New Yorker criado em 1905. McCay era fascinado pelo desenvolvimento urbano emergente do virar do século, apesar do período de fundação da cidade pelos pioneiros, ter acontecido há muito. (Jean-Marc Thévenet, Cité de L’architecture & du Patrimoine, caderno informativo da exposição Archi & BD – La Ville Dessinée, 2010, p. 5)

O fascínio dos autores de banda desenhada pela arquitectura, como referido, remonta aos inícios da própria criação das primeiras tiras em jornais periódicos. Apesar da distância que separa as capitais mundiais da banda desenhada, Estados Unidos, Bélgica e Japão, a arquitectura foi o elemento que se manteve sempre transversal às histórias aos quadradinhos. Independentemente dos estilos tão distintos que cada país apresenta, é a necessidade de criação de cenários, de arquitectura, de cidades e até de mundos novos, que une estes autores. De facto, alguns autores até a usam como base para as suas histórias como forma de expressão de uma realidade urbana e poder por em prática os seus desejos daquelas que poderiam vir a ser as cidades ideais. Os novos mundos que se começaram a criar na banda desenhada foram influenciados pelo imenso mundo novo que se começava a construir. Nova Iorque, Paris, Bruxelas e Tóquio, foram as cidades mais destacadas, não só por serem os grandes centros urbanos da altura em constante modernização, mas também por serem os maiores polos de divulgação da banda desenhada. Com o passar do tempo e com a diversificação de temáticas na banda desenhada, os personagens foram deixando de ocupar o centro da história, deixando por vezes que o cenário o seja por eles. É no ambiente construído que tudo acontece. Este ambiente pode ser apenas sugerido, pode ser realista, pode ser fantasioso, mas a arquitectura está sempre presente e é uma parte fundamental na construção dos mundos da banda desenhada. E ela não explora apenas a imagem da “cidade-objecto”. Ela consegue ser mais abrangente, invocando diversas áreas temáticas que lhe estão relacionadas directamente incluindo o desenvolvimento urbano, o design, a política e a sociedade.

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Ilustração 26 – Imagens de Gotham City de Batman e Metropolis de Superman captando as suas maiores características: uma cidade sombria e escura e outra diurna e movimentada. (Justin Van Genderen, posters, 2046design website)

Mas assim como as grandes metrópoles mundiais foram recriadas, alguns foram os autores que também criaram cidades de raíz dentro da banda desenhada. Estas cidades imaginárias representam histórias alternativas do urbanismo e servem para nos fazer reflectir num mundo futuro ou paralelo que, apesar de utópico, tenta dar a conhecer como viveria a sociedade que as pudesse habitar caso elas existissem. A banda desenhada não serve só a vertente lúdica mas também uma vertente especulativa remetendo o leitor para mundos criados ou recriados fazendo-o crer que se viveria assim numa cidade daquele género, ou seja, alguma da arquitectura representada na banda desenhada é a concretização, embora fictícia, de cidades utópicas que vários arquitectos inventaram mas não construíram. Os arquitectos e os autores de BD são, fundamentalmente, visionários. Pessoas como Enki Bilal e François Schuiten têm o mesmo valor de Rem Koolhaas como “sismógrafos” de uma época. A BD colocou há muito a questão do mundo que há-de vir com uma pertinência espantosa. E, claro, os seus autores têm a liberdade de inventar utopias, enquanto os arquitectos têm uma obrigação em relação aos resultados. (JeanMarc Thévenet, entrevista incluída no catálogo da exposição Archi & BD: La Ville Dessinée, 2010, p. 117)

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No que diz respeito à leitura da arquitectura nas pranchas de banda desenhada, existem vários códigos de representação que todos nós conhecemos instintivamente ao lermo-la sem pensar neles. Numa banda desenhada é perfeitamente possível que um edifício se encontre numa imagem e que na seguinte desapareça sem que o leitor se ofenda porque o leitor conhece, sabe e consegue compreender esse código. Ele sabe que o cenário desapareceu temporariamente da imagem para poder direccionar a atenção às acções dos personagens. O desenhador tem sempre de pensar como arranjar um meio-termo entre fazer decorrer uma acção num determinado espaço sem que ele se desvaneça pelo pouco detalhe, assim como evitar em criar um cenário demasiado detalhado perdendo em clareza e legibilidade. Este meio-termo que o desenhador tenta encontrar também parte do pressuposto que as histórias aos quadradinhos são geralmente um acto de rápida leitura e que é este factor que também interfere no seu sucesso. Ao contrário de uma pintura ou de uma fotografia, uma imagem de banda desenhada não existe por si só, ela é, no fundo, parte de um conjunto e uma ligação entre elas. Se uma vinheta é desenhada de uma maneira complexa, menor será a sua rápida compreensão, assim como cenas sem qualquer tipo de pormenor são lidas rápido demais. É exactamente isso que os desenhadores pretendem equilibrar. Normalmente, para fornecer informações suficientes sobre o tempo e o espaço em que a acção tem lugar, um desenhador tenta criar uma cena com uma ampla vista panorâmica de onde a situação está a ser retratada. Desta forma o tempo e o espaço estão presentes. Assim que ela esteja definida, a acção pode começar por completo. O cenário desaparece do campo visual e o foco centra-se nos personagens. Nesta fase, o desenhador opta por close-ups de modo a que não reste muito espaço para representar um cenário. Somente quando a necessidade surge, por exemplo, com o movimento dos personagens. E como tudo é desenhado tira a tira, existe, portanto, a possibilidade do cenário mudar radicalmente. Há casos em que se vai alterando a cada tira, enquanto a história continua normalmente como se nada tivesse acontecido. Por vezes dá-se mesmo o caso de em séries de banda desenhada, os cenários variarem não só de um álbum para outro, mas também dentro da mesma história.

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Ilustração 27 – O exemplo de um plano geral que enquadra a cena e se vai fechando até à personagem principal. (Jean-Pierre Gibrat, Destino Adiado – Tomo 1, p. 28, 2002)

É esta forma de compor e dar a conhecer os cenários que influencia a função da arquitectura no decorrer da história dando-se a conhecer como um elemento central ou como cenário de fundo. De qualquer das formas, a arquitectura realizada na banda desenhada tem quase sempre uma função especulativa. A ficção e a realidade podem-se influenciar uma à outra mas surgem em dois campos distintos. A que interessa ao arquitecto é a cidade real(izável) e quais as suas consequências no mundo real. A que importa aos autores de banda desenhada é a cidade emocional e a cidade cenário especulativa. Se o arquitecto pensa nas consequências da sua obra arquitectónica antes de ser posta em prática, o desenhador põe os personagens a viver essas mesmas consequências da maneira que mais convém ao decorrer da história.

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3.2. AS CAPITAIS PÓS-APOCALÍPTICAS DE ENKI BILAL (…) A ideia por detrás do uso do vocabulário da banda desenhada é a de mostrar que os edifícios ganharão vida com energia. É para isso que o cenário serve – assim como um livro de Loustal ou de Bilal… (Francis Rambert, Cité de L’architecture & du Patrimoine, caderno informativo da exposição Archi & BD – La Ville Dessinée, 2010, p. 8)

Um dos mais marcantes e influentes criadores de banda desenhada de ficção científica da sua geração foi o desenhador Enki Bilal. 101 Tendo começado a sua obra em meados dos anos setenta, desde logo as características do seu desenho se evidenciaram, assim como as temáticas político-sociais e os seus cenários futuristas pós-apocalípticos. A sua técnica de desenho, onde o seu traço rápido, escuro e sombrio, usado de forma a acentuar as emoções dos personagens e a ambiência dos cenários, fez da sua obra um crescente catálogo de imagens e de histórias intensas com uma grande atmosfera gráfica. Além da sua técnica inovadora dentro do estilo da banda desenhada, Bilal conseguiu também criar mundos utópicos dentro dela, que servem para delimitar a história no tempo e no espaço. Os seus personagens bizarros, robôs, monstros, criaturas de outros planetas e até mesmo os humanos, estariam completamente destextualizados sem que o cenário que os envolvesse não os inserisse no tempo e no espaço da acção.

101

Enki Bilal, (1951) de nome Enes Bilalovic, é um realizador, desenhador e argumentista de banda desenhada nascido em Belgrado, na Sérvia (antiga Jugoslávia). Viveu até aos nove anos em Belgrado, onde o fantasma da guerra ainda pairava sobre a região. Em 1961 muda-se para Paris e aos catorze anos conhece René Goscinny que o incentiva a tornar-se criador de banda desenhada. Começou por divulgar ilustrações, capas e pequenas histórias na revista Pilote, tendo publicado a sua primeira história, Le Bol Maudit, em 1972. A partir de 1975, começou a colaborar com o argumentista Pierre Christin (1938) numa série de histórias de teor surreal e sombrio, enveredando maioritariamente na temática da ficção científica. (ver na www: < http://www.lambiek.net/artists/b/bilal.htm >)

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Ilustração 28 – As figuras alienígenas percorrem a obra de Bilal em cenários futuristas, por vezes pontuados por elementos arquitectónicos reconhecíveis. (Enki Bilal, Memórias dAlém-Espaço – Histórias Curtas 1974/1977, vinheta 2, p. 43, 1993)

Tendo sido a sua infância marcada pelo horror da guerra, a sua obra cobre muitas das imagens que lhe ficaram retidas na mente, transformando-as, metaforizando-as, e exagerando-as, transferindo para a banda desenhada, de uma forma visualmente agressiva e perturbadora, as experiências da guerra com vários dos símbolos que lhes estão inerentes. As cidades pós apocalípticas do universo da banda desenhada de Bilal, são basicamente o espelho de uma Jugoslávia em guerra, fazendo da sua obra uma tela ilustrativa dos seus receios de criança. As cidades surreais de Bilal são representações gráficas de um futuro que se prevê caótico numa sociedade que luta contra regimes opressores. Elas são o cenário da acção de personagens com inquietudes, fruto dessas mesmas opressões, ou apenas seres com conflitos interiores que pretendem resolver.

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Ilustração 29 – O centro de Sarajevo visto pelo cunho pessoal da arte de Bilal. (Enki Bilal, O Sono do Monstro, vinheta 1, p. 56, 1999)

Depois de várias obras publicadas desde 1975 com a parceria de Pierre Christan 102, é em 1980 que Enki Bilal publica a sua primeira banda desenhada em nome próprio enquanto argumentista e desenhador. Essa sua primeira obra foi a primeira de uma trilogia que viria a demorar doze anos a ser finalizada e que marcou muita da banda desenhada que se produziria nos anos seguintes. Essas obras ficariam conhecidas como a Trilogia Nikopol. 103. Esta trilogia foi das primeiras obras de banda desenhada a criar uma narrativa complexa conseguida através de uma estrutura simbólica das cores usadas e é considerada com uma obra de ficção científica que reflecte o pensamento pessimista dos anos oitenta, contrariando a promessa de uma evolução democrática e do progresso tecnológico da sociedade ocidental dos anos sessenta.

102

Pierre Christin (1938) é um criador e argumentista de banda desenhada com várias obras editadas em parceria com Bilal. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/c/christin_pierre.htm>) 103 Nikopol é o nome do personagem transversal a todos os três livros da série. Esta obra foi, em 2004, adaptada ao cinema, tendo como realizador o próprio Bilal, cujo filme se intitulou Immortel (Ad Vitam). (ver The Nikopol Trilogy, Enki Bilal, 2004)

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A série abre com a publicação de A Feira dos Imortais 104 em 1980. Este era um álbum destinado a ser auto-conclusivo mas que devido ao seu sucesso, o autor viu-se na obrigação de prolongar a sua história. Na primeira prancha desta banda desenhada, o autor faz uma breve introdução político-social do universo onde decorre a acção: Paris – princípio de Março de 2023 – Na véspera de uma nova mascarada eleitoral sem significado – nada parece ir mudar no imenso aglomerado parisiense politicamente autónomo e irremediavelmente fascisado – a divisão da cidade em dois distritos, em tudo diferentes, parece mais do que nunca irreversível… O primeiro, que constitui o centro, abriga uma sociedade privilegiada, um exército regular poderoso e a classe dirigente – o segundo, que rodeia o primeiro e que se estende a perder de vista, tornou-se depois da entrada em funcionamento dum enorme astroporto, encruzilhada de aventureiros e extraterrestres de todo o tipo. A milícia governamental garante o controlo e também a segurança deste universo de degenerescência, de miséria e de sordidez. – à efervescência artificial da próxima época eleitoral veio juntar—se um estranho clima de mal-estar devido à misteriosa aparição sobre o astroporto, duma imponente nave espacial de curiosa forma piramidal – a inquietação geral cresce – pensa-se saber que os ocupantes da pirâmide voadora reclamam quantidades astronómicas de carburante à cidade de Paris – o silêncio prudente (e suspeito) de Jean-Ferdinand Choublanc, o governador vigente, não tranquiliza ninguém. (Enki Bilal, A Feira dos Imortais, 1999, p.3)

Sendo Bilal um criador de mundos, como é de esperar, a cidade de Paris referida e desenhada por ele, não é a mesma que conhecemos. Estando no ano 2023, Paris é uma cidade desorganizada, suja, confusa e caótica, apresentada num futuro próximo onde as viagens espaciais são uma possibilidade. Toda esta realidade utópica representada na sua obra não é mais do que uma transposição da sua ideia de um mundo em guerra e de como seria a cidade de Paris se o fascismo imperasse. No entanto existem em A Feira dos Imortais referências locais da cidade de Paris. A capital

de

Bilal

encontra-se

repleta

de

edifícios

futuristas

que

crescem

desenfreadamente sem parecer haver uma regra definida, mas apesar desta capital se 104

Publicado originalmente em França com o título La Foire aux Immortels em 1980, é o primeiro volume da Trilogia Nikopol. Passada no ano 2023, a história incide sobre o regress de Alcide Nikopol a Paris depois de ter passado 30 anos congelado no espaço como pena da sua deserção. Paris que ele um dia conheceu, é agora liderada pelo ditador fascista J. F. Choublanc, e a cidade está inundada de seres extraterrestres, decadente e sucumbida ao caos. Ao mesmo tempo, uma nave em forma de pirâmide sobrevoa Paris. Ela é tripulada por deuses egípcios que pedem combustível às entidades locais. Como pagamento por este serviço, Choublanc quer que os deuses lhe concedam a imortalidade. Um dos deuses renegados, Hórus encontra Nikopol e este autoriza-o a tomar controlo do seu corpo. Juntos partem para uma missão para tentar por fim ao poder megalómano e corrupto que controla a cidade. (ver www: na <http://bilal.enki.free.fr/details_oeuvre.php3?nom_oeuvre=la_foire_aux_immortels&quelles_oeuvres=albu ms&special=>)

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tornar quase irreconhecível como sendo a cidade da Paris, ela mantém ainda edifícios típicos e referências arquitectónicas que nos ajudam a identifica-la. É o caso da estação de metro de Alésia, do Palácio do Eliseu ou mesmo da Catedral de Notre Dame.

Ilustração 30 – A Catedral de Notre Dame é o centro religioso da Paris de Bilal e é representada fielmente com o característico cenário futurista do autor. (à esquerda, Enki Bilal, A Feira dos Imortais, quadro 2, p 52, 1999; à direita, Catedral de Notre Dame, Paris)

Em A Feira dos Imortais, a representação desta arquitectura real, apesar de alterada pela guerra, faz-se de forma pontual. Sempre que surge uma representação da cidade como pano de fundo, ou mesmo em grande plano, a leitura quase que pára para que o leitor retenha dessa representação da cidade toda a atmosfera vivida pelos personagens. Este tipo de representação arquitectónica na sua banda desenhada não serve só para o enquadramento da acção no espaço, serve principalmente para a enquadrar no contexto político-social de um futuro próximo dentro de uma ambiência sombria e suja dada pelo traço particular de Bilal. Em 1986 Bilal decide dar continuação à série e surge assim A Mulher Armadilha 105. Esta sequela traz de volta alguns dos personagens do primeiro livro mas desta vez a temática difere. É dado uma maior relevância à acção da personagem principal e aos seus sentimentos e emoções. Nesta publicação a acção desenvolve-se em várias

105

Publicado originalmente em França com o título La Femme Piège em 1986 conta a história de Jill Bioskop, uma jornalista de cabelo azul e pele branca que se vê envolvida com Alcide Nikopol e o deus egípcio Horus. A história é a continuação da anterior, dois anos depois de Nikopol ter sido admitido num hospital psiquiátrico em Paris. Nikopol, entretanto, ganha lucidez quando sente que o deus Hórus voltou à Terra. Em Londres, Jill está a trabalhar num artigo sobre conflitos éticos. Envolvendo-se na história, o seu namorado John é assassinado e Jill começa a tomar drogas para esquecer o acontecido. (ver na www: <http://bilal.enki.free.fr/details_oeuvre.php3?nom_oeuvre=la_femme_piege&quelles_oeuvres=albums&sp ecial=>)

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cidades europeias, no ano de 2025, dois anos depois da acção da publicação antecedente, sempre com a densidade urbana do futuro utópico de Bilal. A visão de Bilal para esta segunda parte da trilogia é uma crítica assumida à cultura urbana, pois normalmente as cidades do mundo ocidental são mostradas como poderosos centros que defendem a qualquer custo ameaças exteriores, enquanto que na obra de Bilal elas são completamente permeáveis e decadentes no que diz respeito aos seus sistemas de saúde e de segurança. À semelhança de A Feira dos Imortais que representa a cidade de Paris futurista e decadente, em A mulher Armadilha, Bilal volta a representar grandes metrópoles europeias como Berlim e Londres. Igualmente comum aos dois álbuns está o facto de a arquitectura querer demonstrar a ruína do mundo em que se passa a acção. Se na primeira história tomamos noção que a acção se desenrola numa Paris pósapocalíptica e não termos mais qualquer noção de como serão as outras cidades europeias, nesta segunda publicação, com o fazer a acção desenrolar-se em Londres e Berlim, percebemos que não é só Paris que sofre os males deste futuro utópico, sendo estas cidades também alvo de uma consciente e propositada degradação. O mundo de Bilal estende-se e percebemos que o seu universo catastrófico é comum aos outros grandes centros urbanos europeus.

Ilustração 31 – A degradação dos edifícios marcantes das capitais europeias é comum em toda a obra de Bilal. (à esquerda, Enki Bilal, A Mulher Armadilha, quadro 1, p 4, 1998; à direita, Hotel Savoy, Londres)

Sendo este álbum mais experiencial ao nível do argumento, onde a narrativa se centra maioritariamente nos sentimentos dos personagens e nos seus dramas interiores, a arquitectura presente nesta obra serve também o propósito de fazer evidenciar essas características psicológicas ao serem representados cenários, não como o leitor os poderia ver, mas sim como os personagens os vêem e os sentem.

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Ilustração 32 – O rio Tamisa é representado a vermelho como visto pela personagem principal. (à esquerda, Enki Bilal, A Mulher Armadilha, quadro 1, p 23, 1998; à direita, Tower Bridge, Londres)

Elas (as cidades) são escarificadas, sim, da mesma forma que os rostos, por isso não se sabe se a pele dos personagens é de matéria urbana ou se são as cidades que são de matéria humana. Portanto, há, há uma espécie de vontade, de desejo de unificação da textura. Mas a cidade é incrível, as cidades são uma das mais belas produções dos homens, e isso é lá que tudo se liga, tudo se passa e que tudo se desenrola. (Enki Bilal, entrevista de Stéphan Bureau para o programa televisivo Contact, l'encyclopédie de la création em Abril e Maio de 2007)

O ciclo fica concluído com a edição de Frio Equador 106 em 1992. Aqui Bilal cria uma narrativa ainda mais surreal do que as das edições anteriores elevando para outro patamar a sua criatividade narrativa. Os personagens principais de cada um das duas edições anteriores encontram-se uma vez mais, mas desta vez numa outra cidade criada de raiz, Equador City. Equador City. Cidade do Centro-Leste Africano, linha do Equador, na margem do lago Edward (ex-Idi Amin Dada). População essencialmente africana até 2015. Depois, cosmopolita e animalista. Cerca de 450 000 habitantes (dos quais 4000 residem permanentemente no bloco central) (Enki Bilal, Frio Equador, p. 16, 1994)

Esta cidade, à semelhança das outras capitais europeias representadas anteriormente por Bilal, tem os seus típicos contornos surreais e futuristas. A degradação e o caos urbano não se fazem notar nesta cidade, mas a malha urbana congestionada está presente.

106

Publicado originalmente em França com o título Froid Equateur em 1992, conta a história do filho de Nikopol que decide procura o pai. A bordo do combóio rumo a Equador City, ele conhece a cientista Yéléna Prokosh-Tootobi pela qual fica logo apaixonado. Na viagem vem a conhecer também Johnelvisson, o lutador de chess-boxing que irá defrontar o seu pai. A história desenrola-se com tramas complexas entre estes personagens e os seus casos amorosos. (ver na www: <http://bilal.enki.free.fr/details_oeuvre.php3?nom_oeuvre=froid_equateur&quelles_oeuvres=albums&speci al=>)

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Ilustração 33 – A plataforma de ajuda humanitária é o edifício icónido de Equadot City. (Enki Bilal, Frio Equador, quadro 2, p. 16, 1994)

As imagens poderosas deste livro e dos dois anteriores, que integram a mesma saga, deram origem ao filme Immortel (Ad Vitam) 107 em 2004, adaptado e realizado pelo próprio Enki Bilal. Este filme de ficção científica, assim como as séries de banda desenhada, dá um grande enfoque à representação da cidade e ao que lhe poderia acontecer se a crescente e desmesurada construção não conhecer um limite. O filme Immortel encontra-se ao nível da ficção urbana de um Blade Runner ou de um Metropolis, tendo estes filmes de culto servido como fonte de inspiração para Bilal, tanto na criação das suas bandas desenhadas como posteriormente na sua adaptação ao cinema. Metropolis despertou em mim a liberdade criativa. O filme de Fritz Lang mostrou o caminho a muitos criadores. Ele mostrou que poderíamos fugir do real. Isso fez-me querer brincar com a imaginação. Criar universos prospectivos, uma extensão da verdadeira liberdade. Muitos criadores foram lá buscar essa fonte de inspiração desde então. (Enki Bilal, entrevista para o jornal Figaro por Olivier Delcroix a 30 de Outubro de 2011)

A arte de Bilal contribuiu para o modelo visual da distopia urbana futurista. Os seus elementos arquitectónicos demonstram a sua intenção de fazer diluir edifícios históricos e culturais urbanos numa arquitectura mais especulativa em termos

107

A acção do filme decorre em Nova Iorque no ano 2095 e conta como personagem principal Jill Bioskop, a conhecida personagem de cabelo azul da série de banda desenhada A Trilogia Nikopol. (ver na www: <http://bilal.enki.free.fr/oeuvres.php3?quelles_oeuvres=films#immortel>)

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tecnológicos. Como exemplo desta ligação artista/arquitecto, temos a obra utópica de Lebbeus Woods 108. Eu não estou interessado em viver num mundo de fantasia… Todo o meu trabalho pretende evocar espaços arquitecturais reais. Mas o que me interessa é como o mundo seria se estivéssemos soltos dos limites convencionais. Talvez eu possa mostrar o que aconteceria se vivêssemos regidos por um conjunto de diferentes regras. (Lebbeus Woods, An Architect Unshackled by Limits of the Real World, New York Times, 25 de Agosto de 2008)

Ilustração 34 – A arquitectura futurista e utópica inserida numa realidade existente é comum a ambos os artistas. (à esquerda, Enki Bilal, A Feira dos Imortais, quadro 1, p 41, 1999; à direita, Lebbeus Woods, Underground Berlin, www.lebbeuswoods.wordpress.com, 1988)

As palavras de Lebbeus Woods reflectem também o conceito por detrás das cidades pós-apocalípticas de Bilal na sua forma: Eu penso que hoje em dia não existe um pensamento suficiente em relação às cidades que enfrentaram súbitas e dramáticas – até violentas – transformações, quer seja por causas naturais ou humanas. Mas precisamos estar aptos a especular, a criar esses cenários e a ser uteis numa discussão acerca do próximo passo (Lebbeus Woods. Without Walls: An Interview with Lebbeus Woods, blogue BLDG, 2007)

Mas também nos aspectos intrínsecos da própria cidade: Eu penso que os arquitectos – pelo menos aqueles interessados em perceber a multidisciplinariedade e a natureza compreensiva do seu ramo – têm de visualizar algo que abarque todas essas mudanças políticas, económicas e sociais. Assim como as tecnológicas e as espaciais. (Lebbeus Woods, Without Walls: An Interview with Lebbeus Woods, blogue BLDG, 2007)

108

Lebbeus Woods (1940 – 2012) foi um arquitecto norte-americano cuja obra se baseava no desenho de projectos onde a ordem existente se mistura e se confronta com uma nova. Os seus desenhos estão carregados de carga política e de visões provocativas de uma possível realidade, tratada e modificada pelos seus criadores. (ver Pamphlet Architecture 15: War and Architecture, Lebbeus Woods, 1996)

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3.3. AS CIDADES DE FICÇÃO CIENTÍFICA DE MOEBIUS Se por um lado a obra de Enki Bilal foi, em grande parte, influenciada pelos filmes clássicos da ficção científica com os seus mundos e cidades futuristas, por outro, há os autores de banda desenhada cuja obra foi a inspiração para esses mesmos filmes. O caso de exemplo com mais sucesso foi, sem dúvida, a obra de Jean Giraud, mais conhecido como Moebius 109. Se Bilal “reconstruía” à sua maneira cidades europeias na sua obra, Moebius construiu, não só cidades, como também mundos e galáxias. A sua representação da arquitectura na banda desenhada baseou-se na criação de mundos irreais com referências, à semelhança de Bilal, a arquitecturas utópicas e futuristas.

Ilustração 35 – Os cenários futuristas de Moebius lançaram-no para o estrelato da ficção científica (Moebius e Jodorowsky, The Incal: Classic Colection, Volume 1, capítulo 1: The Black Incal, quadro 1, p 4, 2011) 109

Jean Henri Gaston Giraud (1938 – 2012) foi um autor de banda desenhada francês que se tornou mais conhecido pelo seu pseudónimo Moebius. Foi, enquanto Jean Giraud, o autor da série western Blueberry e considerado o artista de banda desenhada mais influente a par de Hergé. Sob o pseudónimo de Moebius, ele foi o criador de um grande leque de histórias de ficção científica, num estilo sempre surreal, quase abstracto, de onde se destacam obras como Le Garage Hermétique de Jerry Cornelius, Arzach e Incal. A série Blueberry acabou por ser adoptada para cinema em 2004 pelo realizador holandês Jan Kounen (1964). (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/g/giraud.htm>)

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Moebius foi talvez o autor de banda desenhada, enquanto criador de mundos utópicos e futuristas, cuja imaginação conseguiu influenciar não só os artistas da mesma área como os de tantas outras. Através de um desenho simples mas forte, cores contrastantes e histórias dramáticas, o ambiente construído deixa de ser apenas um cenário para a acção dos personagens para se tornar num mundo metafísico e psicadélico cheio de simbolismo que dá vida aos personagens. Nas suas obras, a arquitectura transforma-se a ela mesma, deforma-se de maneiras estranhas, quase sem fazer sentido, numa linguagem um quanto ou tanto semelhante à usada pelos artistas do movimento surrealista. No início o desenho é aleatório, onde espirais, ziguezagues e pontos, gradualmente criam formas num processo semelhante ao grafismo surrealista. A componente hipertecnológica desta arquitectura funde-se com componentes mágico-sobrenaturais, criando ambientes ambíguos e surreais. (Entrevista de Hervé Le Guyader, Moebius, Les Nomades soirees, Chimères et Métamorphoses na Fundação Cartier, Paris, 28 de Fevereiro de 2011).

A forma como Moebius conseguiu comunicar estas suas arquitecturas urbanas de futuros idealizados, tornou-o num dos desenhadores que mais influência teve no mundo do cinema. As cidades que Moebius criou nas suas bandas desenhadas foram reproduzidas para o mundo da Sétima Arte, tendo sido retratadas nos filmes de ficção científica mais marcantes de sempre como Dune 110, Blade Runner 111, Tron 112, Alien 113, The Fifth Element 114 ou Star Wars. 115

110

Dune (lançado em Portugal com o título Duna) é um romance de ficção científica de 1965 escrito por Frank Herbert (1920 – 1986) e adaptado ao cinema em 1984 por David Lynch (1946). Dune é considerado o maior best-seller de ficção científica de sempre. (ver na www: <http://www.allmovie.com/movie/dunev14962>) 111 Blade Runner (lançado em Portugal com o título Blade Runner: Perigo Iminente) é um filme de ficção científica norte-americano de 1982 realizado por Ridley Scott (1937). O filme tornou-se num ícone do cinema de ficção científica. (ver na www: <http://www.allmovie.com/movie/blade-runner-v5994>) 112 Tron (lançado em Portugal com o mesmo nome) é um filme norte-americano de ficção científica da Walt Disney Pictures de 1982 realizado por Steven Lisberger. (ver na www: <http://www.allmovie.com/movie/tron-v51066>) 113 Alien (lançado em Portugal como Alien, O 8º Passageiro) é um filme norte-americano de 1979 realizado por Ridley Scott. (ver na www: <http://www.allmovie.com/movie/alien-v1503>) 114 The Fifth Element (lançado em Portugal como O Quinto Elemento) é um filme de ficção científica francês de 1997 realizado por Luc Besson (1959). A produção do design foi desenvolvida por Moebius e Jean-Claude Mézières (1938), e demonstra uma forte influência da estética da banda desenhada. (ver na www: <http://www.allmovie.com/movie/the-fifth-element-v154944>) 115 Star Wars (lançado em Portugal como Guerra das Estrelas) é o título de uma série de seis filmes de ficção científica escritos por George Lucas (1944). (ver na www: <http://www.allmovie.com/movie/starwars-v46636>)

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Ilustração 36 – Os elementos arquitectónicos e cénicos de Moebius influenciaram muitos dos filmes realizados depois da publicação da sua banda desenhada. (Moebius e Jodorowsky, The Incal, Volume 1, capítulo 5: Meta Baron, quadro 3, p 46, 1981)

Os seus primeiros trabalhos, já de teor cientifico-ficcional começaram em 1969, com a sua regular participação em revistas de banda desenhada incluindo a emblemática Pilote. Em 1975, com Jean-Pierre Dionnet 116, Philippe Druillet 117 e Bernard Farkas 118, Moebius funda a editora Les Humanoïdes Associés 119 e publica Métal Hurlant 120, a revista mais influente do mundo da banda desenhada em França nos anos 70. Foi nesta revista que apareceram pela primeira vez as tiras de Arzach 121 de Moebius e de Alejandro Jodorowsky 122, cujo trabalho conjunto os lançou como mestres da ficção científica e razão pela qual o seu trabalho foi tão requisitado para o mundo do cinema. A necessidade de chamar a atenção para o desenho é dada pelo rigoroso detalhe das cidades, tanto que a obra de Moebius é, dentro dos artistas de banda desenhada, a que tem mais repercussão no mundo do cinema. Este detalhe urbano é suficiente para que os realizadores o consigam replicar sem terem de acrescentar detalhes suplementares aos que são representados na banda desenhada de Moebius.

116

Jean-Pierre Dionnet (1947) é um produtor, cenógrafo, jornalista, editor de banda desenhada e animador de televisão francês tendo colaborado com Enki Bilal na banda desenhada Exterminador 17. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/d/dionnet_jean-pierre.htm>) 117 Philippe Druillet (1944) é um criador de banda desenhada francês. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/d/druillet.htm>) 118 Bernard Farkas é um director financeiro francês. (ver na www: <http://www.humano.com/>) 119 Les Humanoïdes Associés foi uma editora francesa especializada em banda desenhada, fundada em 1974 e rapidamente se tornou na editora de eleição das histórias aos quadradinhos de ficção científica. (ver na www: <http://www.humano.com/>) 120 Métal Hurlant surgiu em frança em 1974 e foi uma publicação mensal de banda desenhada que reunia várias histórias de vários autores de ficção científica e de terror. (ver na www: <http://www.humano.com/>) 121 Arzach é uma publicação de banda desenhada que reúne quatro histórias curtas mudas. (ver Arzach, Moebius, 1975) 122 Alejandro Jodorowsky (1929) é um realizador, autor, escritor de banda desenhada e guru espiritual francês nascido no Chile. Conhecido pelos seus filmes avant-garde de teor surrealista e violento. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/j/jodorowsky.htm>)

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Foi em conjunto com Dan O’Bannon 123 que Moebius criou a obra mais singular de ficção científica e que serve de exemplo para todas estas influências referidas para o mundo do cinema, The Long Tomorrow 124. É nestas pranchas que podemos ter a noção da visão do artista de uma híper-avançada, e ricamente trabalhada, cidade do futuro onde grandes vales de edifícios escondem toda uma tecnologia de ponta de um futuro próximo. Nesta obra existe uma preocupação acentuada pelo elemento urbano e o que torna estas cidades futuristas e ubíquas de Moebius interessantes é o facto de, por exemplo, as guerrilhas nas ruas não serem apenas entre criminosos, robôs e alienígenas mas também entre as várias facções do povo que procuram um lugar no universo mediático do autor. As cidades são vividas, são destruídas ou construídas, têm vida e isso torna-as, apesar do seu grau utópico, uma realidade que poderia muito bem existir.

Ilustração 37 – Os elementos arquitectónicos e cénicos de Moebius influenciaram muitos dos filmes realizados depois da publicação da sua banda desenhada. (Moebius e Dan O’Bannon, Moebius 4 – The Collected Fantasies of Jean Giraud: The Long Tomorrow & Other Science Fiction Stories, quadros 2, 3 e 4, 1987, p.7) 123

Daniel Thomas O'Bannon (1946 – 2009) foi um guionista, realizador e actor de cinema americano que trabalhava essencialmente a temática da ficção científica e de terror. (ver The Ridley Scott Encyclopedia, Laurence Raw, 2009) 124 The Long Tomorrow é o título de uma banda desenhada curta escrita por O’Bannon e Moebius em 1975. (Ver Moebius 4 – The Collected Fantasies of Jean Giraud: The Long Tomorrow & Other Science Fiction Stories, 1987)

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Na história de The Long Tomorrow a cidade surge numa falha na superfície terrestre que se desenvolve no seu interior em vários níveis estratificados ligados por uma rede de infra-estruturas como pontes, escadas e elevadores que se entrelaçam. O resultado é um espaço urbano congestionado e caótico quase evocando o crescimento vegetal. Os edifícios estendem-se em todas as direcções sem nenhuma aparente ordem ou homogeneidade, criando um misto entre a liberdade urbanística da arquitectura tradicional e uma grande fortaleza de alta tecnologia. Os edifícios, as viaturas e as pessoas, estão todos decorados de forma excêntrica de maneira a dar nas vistas de todos os personagens da história, de fazer sobressair a cor nas pranchas e de chamar a atenção do próprio leitor. Moebius pinta o retrato da solidão e da angústia das cidades cosmopolitas, dando imagem à escrita de O’Bannon. Estas imagens são quase como uma pintura expressionista que cria mundos onde a população é forçada a vestir-se, ela mesma, como pavões para receberem alguma atenção e se fazerem notar num mundo impiedosamente competitivo. Como era uma história bastante forte (The Long Tomorrow), eu senti logo que isso me iria permitir criar algumas coisas bastante loucas e maravilhosas. O artista tem muito mais liberdade, no que toca a desenhar guarda-roupas, personagens, ambientes, etc., quando lida com uma história coesa. Assim, não temos de nos preocupar em adicionar elementos visuais cujo propósito é o de alongar a história. Podemo-nos concentrar exclusivamente na parte artística. (Moebius, Moebius 4 – The Collected Fantasies of Jean Giraud: The Long Tomorrow & Other Science Fiction Stories, 1987, p.23)

Ilustração 38 – A cor dá a expressão, tanto à arquitectura como aos personagens. (Moebius e Dan O’Bannon, Moebius 4 – The Collected Fantasies of Jean Giraud: The Long Tomorrow & Other Science Fiction Stories, quadro 5, 1987, p.9)

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O impressionante em The Long Tomorrow é o facto de Moebius conseguir criar toda uma arquitectura com tonalidades de Pop Art e painéis de publicidade nas suas cidades sem se tornar desagradável ou excessivo para o leitor. Todas estas cores e linhas convergentes acabam por ser quase berrantes para a população destas metrópoles híper-populosas mas que, no decorrer de cada quadro da história e devido aos enquadramentos harmoniosos de Moebius, o leitor consegue digerir toda esta informação de maneira fácil não o deixando perdido nas imagens. O uso de cores aguadas contribui especialmente para adicionar uma textura ao trabalho de desenho de linhas quase claustrofóbico que, por vezes, se afasta da escola belga e da clareza e definição da ligne claire. Moebius não só nos faz sentir as histórias que conta assim como nos faz vê-las. É assim, nesta enorme noção de detalhe e escala, que vemos na arte de Moebius as influências de Winsor McCay, o autor que fez circular o seu Little Nemo por entre a cidade imaginária e surreal de Slumberland. Outra história de sucesso de Moebius foi a sua saga The Incal 125. The Incal começa num complexo urbano de dimensões estonteantes que, com o decorrer da acção e de forma gradual, se vai alargando até conseguirmos ter uma enorme tela representativa de planetas e galáxias, difundindo a acção numa ornamentada história à escala cósmica.

Ilustração 39 – A acção de The Incal tem início num complexo urbano de dimensões estonteantes. (Moebius e Dan O’Bannon, Moebius 4 – The Collected Fantasies of Jean Giraud: The Long Tomorrow & Other Science Fiction Stories, quadro 5, 1987, p.7) 125

The Incal é uma série de banda desenhada de ficção científica escrita pelo francês Alejandro Jodorowsky e ilustrada por Moebius. The Incal passa-se num universo ficcional, iniciando a sua história numa cidade capital de um planeta insignificante num império galáctico dominado por humanos. (ver The Incal, Moebius, 1981)

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Nesta saga, a história desenvolve-se num jogo de arquétipos e de símbolos surrealistas, onde os temas de ficção científica são reformulados. A cidade Ter-21, que recria os desenhos urbanos de The Long Tomorrow, tem uma forma circular e desenvolve-se através de vários níveis verticais, separados de acordo com critérios sociais específicos. O seu topo é habitado pelas classes sociais mais elevadas e no seu fundo encontram-se as classes mais desfavorecidas onde se concentra o lixo dos níveis superiores e a rede de esgotos. Cercado por um lago de águas ácidas, onde o lixo se dissolve, este primeiro nível subterrâneo tem uma torre construída no seu centro que dá acesso ao mundo enterrado, marcando o início da viagem até à purificação. A função da arquitectura nesta obra é óbvia, pois trata-se nitidamente de uma sátira social metaforizando a sociedade e os seus distintos níveis hierárquicos. Esta visão de Moebius, rica em simbolismo e referências, onde a cidade se separa em diversas partes funcionais, encontra pontos em comum com a arquitectura de Paolo Soleri 126 e com os seus conceitos da Arcologia 127. A cidade é desenvolvida como um superorganismo isolado no deserto, estratificado em vários níveis parcialmente escavados num desfiladeiro de forma a comprimir e compactar estruturas urbanas e combater a dispersão urbana.

Ilustração 40 – O cenário da acção de The Long Tomorrow é-nos mostrado logo no início da obra como um complexo escavado no solo. (Moebius e Dan O’Bannon, Moebius 4 – The Collected Fantasies of Jean Giraud: The Long Tomorrow & Other Science Fiction Stories, quadro 1, 1987, p.7) 126

Paolo Soleri (1919) é um arquitecto e professor italiano conhecido pelo projecto Arcosanti e pela criação do termo Arcologia. (ver Conversations with Paolo Soleri, Paolo Soleri, 2012) 127 Arcologia é um termo utilizado para descrever cidades fictícias com uma alta densidade demográfica e é uma junção das palavras arquitectura e ecologia. A ideia por detrás da Arcologia é a de reunir, num espaço relativamente compacto, todos os serviços oferecidos por uma pequena cidade. O termo geralmente refere-se a construções monumentais e inexistentes até o momento. A Arcologia é muito utilizada na ficção científica, já que necessitam de alta tecnologia para seu funcionamento adequado. Na ficção científica, Arcologia e híper-estruturas são geralmente apontadas como possíveis soluções para os problemas da superpopulação e da degradação ambiental, uma vez que são capazes de reduzir o impacto ecológico causado pelas cidades tradicionais ao concentrar a população numa área específica e reduzida, através de um planeamento arquitectónico cuidadoso. (ver Arcology Optimization and Simulation Framework, Rowin Andruscavage, 2007)

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Em Babel, projecto desenvolvido por Soleri, a definição formal da sua cidade compacta é em muito semelhante à cidade estratificada Ter-21 de Moebius. No topo central de Babel, rodeado por auto-estradas, ergue-se um cone invertido que contem as mais importantes funções sociais, encontrando-se as actividades públicas e comerciais no seu fundo. Um anel envolvendo a parte mais larga do cone, parcialmente enterrado no desfiladeiro, representa a área de edifícios residenciais.

Ilustração 41 – O projecto de Soleri assemelha-se ao desenhado por Moebius. (Paolo Soleri, desenho conceptual de Babel IIB, 1969)

Ao contrário da distopia em Ter 21, a visão de Soleri foca-se n uma sociedade justa, eco-orientada, auto-suficiente, e apta a viver em harmonia com a natureza. No entanto a arquitectura apresentada pelo arquitecto e pelo desenhador, apesar das semelhanças formais, difere substancialmente na sua função. Se Soleri desenha uma cidade sustentável para uma melhor qualidade de vida dos seus utilizadores, Moebius pretende desenhar uma cidade como forma de criticar uma sociedade que se vem a degradar com a evolução tecnológica.

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3.4. AS CIDADES REINVENTADAS DE PEETERS E SCHUITEN No contexto da forte tradição da banda desenhada histórico-realista dos anos 80 e, tendo como fascínio o mundo da fantasia e da ficção científica, surge a obra única de Schuiten 128 e Peeters 129, dois autores que conseguem imprimir na sua obra desenhada referências da história da arquitectura ocidental, mas com a particularidade das suas cidades existirem apenas num mundo utópico de fantasia, em que a realidade arquitectónica se torna susceptível de ser transformada. Sendo os autores também pertencentes a uma geração de ilustradores de mundos imaginários mas com a intenção de os tornar reais ao leitor, eles recorrem a um traço realista e bastante pormenorizado para poderem tornar toda esta imaginação o mais real possível pois é ela a sua fonte de inspiração e o factor essencial que permite pôr em prática os sonhos arquitecturais dos autores.

Ilustração 42 – A cidade utópica de Mylos é-nos apresentada como uma metrópole industrial, (Peeters e Schuiten, L’Archiviste, 1987, p.37) 128

Baron François Schuiten (1956) é um autor de bandas desenhadas mais conhecido pela sua série Les Cités Obscures a par do argumentista Benoit Peeters. Filho de pai arquitecto, desde cedo a sua paixão por arquitectura se revelou na sua obra. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/s/schuiten1.htm>) 129 Benoit Peeters (1956) é um escritor de banda desenhada francês cujo trabalho mais conhecido é a série Les Cités Obscures desenhada por François Schuiten. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/p/peeters.htm>)

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E apesar do estilo gráfico e literário de vocabulário urbano, onde a forte precisão gráfica se une aos temas surrealistas e fantásticos, Peeters e Schuiten recorrem sempre e assumidamente a obras e autores clássicos da arquitectura assim como a elementos arquitectónicos existentes, facilmente reconhecíveis da obra de arquitectos que trabalhavam a temática utópica. Os autores seleccionam também traços arquitectónicos que eles próprios sentem que os leitores vão associar a um certo estilo ou lugar como forma de impulsionar a sua imaginação. A parte fantástica da sua obra é combinada com as referências do mundo que conhecemos, e com a ideia de um mundo que gostaríamos que existisse.

Ilustração 43 – A arquitectura utópica de Sant’élia é uma realidade no mundo de Peeters e Schuiten. (www.altaplana.be, François Schuiten, Benoit Peeters, Casterman)

Toda esta preocupação pela arquitectura e pelo cenário faz com que os ambientes das suas bandas desenhadas não sejam apenas um pano de fundo unidimensional. Se Enki Bilal a usa para caracterizar uma época num futuro apocalíptico e Moebius como uma crítica social, estes dois criadores usam-na como a força motriz da história. A principal particularidade na banda desenhada de Peeters e Schuiten é a de, na representação de elementos arquitectónicos, terem sempre presente a figura humana. A arquitectura não serve apenas para enquadrar um tempo, serve principalmente para ser vivida pelos personagens.

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Por vezes sinto-me irritado com o resumir do nosso trabalho à ideia de arquitectura na banda desenhada, ou pela ideia que a arquitectura é a heroína. Eu prefiro falar da noção de espaço. Eu nunca quis ser um arquitecto, embora o trabalho de cenógrafo me aproxime dessa temática. Não existe, nas minhas histórias, quase nenhum desenho sem personagens. Eu não sinto prazer em desenhar os edifícios isoladamente. Eu gosto deles na medida em que me podem ajudar a dar uma escala, a contar uma história, a alimentar campos de tensão. (Entrevista a François Schuiten por Stéphane Beaujean, Paris, Maio de 2010, www.dup.org)

Ilustração 44 – A escala dos mundos de Peeters e Schuiten é dada com a presença da figura humana nas cenas. (Peeters e Schuiten, L’Archiviste, 1987, p.29)

Na sua obra mais conhecida e prestigiada a nível internacional, a série Les Cités Obscures 130, dedicada quase exclusivamente à criação de arquitecturas utópicas, o 130

Tendo sido publicados apenas nove edições em Portugal com o nome As Cidades Obscuras, ela conta com mais de doze álbuns editados em França, a somar os livros fora da colecção mas que dela derivam para melhor a explicar. Tendo sido publicado o primeiro livro da série em 1983, a série ainda hoje

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elemento constante e ponto comum a todos os álbuns, para além da ambiência de inspiração fantástica, é o universo onde as histórias se desenrolam. O mundo de Les Cités Obscures é um mundo paralelo ao nosso, o qual apresenta muitos pontos em comum, mas diferente no sistema sociopolítico, onde cada cidade-estado apresenta um carácter muito próprio e único. Os autores desenvolvem em cada álbum uma cidade que talvez pudesse ter existido se a Terra tivesse tomado um outro rumo algures no passado. De forma geral, a representação arquitectónica tão forte na obra de Peeters e Schuiten parte da intenção dessa mesma premissa, a de pretender comunicar mundos plausíveis de existir ou de ter existido dentro de uma ambiência steampunk 131, comum a todos os álbuns. Peeters e Shuiten conseguem, nesta sua obra, ir para além dos autores de banda desenhada seus contemporâneos, criando uma arquitectura meticulosamente credível e atribuindo-lhe uma importância mais evidenciada do que a dos personagens. Peeter e Schuiten foram assim, na série Les Cités Obscures, os criadores das cidades mais inventivas e fantásticas do mundo da banda desenhada. Entre as mais fascinantes em termos de criação arquitectónica estão os projectos desenhados de Xhystos, Samaris, Urbicande e a de La Tour 132, não sendo esta última um projecto de uma cidade mas sim da criação de um mundo dentro de um edifício de dimensões monumentais.

continua a ser publicada. Estas bandas desenhadas descrevem detalhadamente cenários arquitectónicos de fundamentos utópicos e surrealistas. As histórias decorrem num mundo fictício onde as pessoas vivem em cidades-estado independentes e onde cada uma, tendo a sua própria civilização, desenvolve o seu próprio estilo arquitectónico. A cidade é o elemento central dessas histórias e é visto como um princípio utópico e abstracto e que consegue dominar os seus personagens, fazendo da arquitectura o actor principal destas narrativas. Todos os álbuns desta saga contêm histórias independentes embora haja aventuras diferentes passadas na mesma cidade. Personagens, edifícios, detalhes e diversas alusões subtis passam de umas histórias para as outras. (ver na www: <http://citesobscures.free.fr/>) 131 Steampunk é um subgénero da ficção científica que ganhou especial fama no final dos anos oitenta e início dos anos noventa. Também conhecido como fantasia retro futurista, trata-se da criação de mundos passados, numa época anterior da História, na qual a tecnologia se desenvolveu mais cedo, mas que foi obtida por meio da ciência já disponível naquela época, não recorrendo a uma tecnologia electrónica mas sim mecânica. Um dos criadores mais influentes deste género foi Júlio Verne (1828 – 1905) no fim do século XIX, onde ele representa uma realidade espácio-temporal onde a tecnologia mecânica a vapor teria evoluído até ao nível da criação de automóveis, aviões ou até mesmo robôs. (ver How to Draw Steampunk: Discover the Secrets to Drawing, Painting, and Illustrating the Curious World of Science Fiction in the Victorian Age, Joey Marsocci, Bob Berry, Allison DeBlasio, 2011) 132 Muitas outras cidades foram criadas pelos autores como Brüsel, Calvani, Mylos, Alaxis, e Pâhry. A escolha de Xhystos, Samaris, Urbicande e a de La Tour deveu-se ao facto de serem as mais influentes a nível arquitectónico, e as que possuem elementos mais distintos entre elas.

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De maneira que é no primeiro álbum da série, Les Murailles de Samaris 133, que todo um contexto arquitectónico inovador na banda desenhada surge. Neste primeiro álbum é-nos apresentada a cidade onde começa a história, Xhystos. O facto de Peeters e Schuiten terem nascido e vivido em Bruxelas, tornam-se um pretexto para que a representação da cidade de Xhystos seja inteiramente desenhada tendo como influência o tradicional estilo arquitectónico belga da Arte Nova 134. Tendo os autores a obra de Victor Horta 135 como referência, a representação da cidade torna-se, tanto um tributo ao arquitecto, como também uma hipotética forma de recriar uma cidade utópica, que poderia muito bem existir se ao arquitecto lhe tivesse sido dada a oportunidade de criar uma cidade de raiz.

Ilustração 45 – A cidade de Xhystos contemplada pelo personagem principal, Franz. (Peeters e Schuiten, Les Murailles de Samaris, 1983, quadro 3, p. 13

133

Les Murailles de Samaris (publicada em Portugal com o nome As Muralhas de Samaris) é o primeiro livro de banda desenhada da série Les Cités Obscures publicado em França e na Bélgica em 1983. A história começa com o personagem principal, Franz, que é informado pelas autoridades que foi escolhido para ir numa missão à cidade de Samaris, descobrir se os rumores da sua natureza são verdadeiros. Vários exploradores nunca voltaram de Samaris mas Franz aceita o desafio. Depois de uma longa viagem, o personagem chega à cidade e questiona-se porque a população é tão calada e porque é que os edifícios parecem mover-se à sua passagem. (ver Les Murailles de Samaris, François Schuiten, Benoit Peeters, 1983) 134 Arte Nova ou em francês Art Nouveau é um estilo internacional de arte, aplicada à arquitectura e aos objectos entre 1890 e 1910. Schuiten em conjunto com Peeters, devido ao seu fascínio pela Arte Nova, ajudaram também a restaurar a Maison Autrique, a primeira casa desenhada por Victor Horta. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/36571/Art-Nouveau>) 135 Victor Horta (1861 – 1947) foi o arquitecto belga pioneiro da Arte Nova na Bélgica. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/272460/Victor-Baron-Horta>)

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A escolha da Arte Nova não surgiu por acaso, nem como simples resultado de uma afinidade pessoal. Imediatamente, este estilo pareceu-nos propício à concepção de uma cidade inteira, tão vasto era o campo que ele abarcava. Longe de se interessarem apenas por fachadas e vidraça, como muita gente continua a pensar, os arquitectos da época eram apaixonados por todos os objectos que se lhe ofereciam. Criaram móveis, desenharam vestuário, inventaram peças de louça e papel de parede como se nada devesse escapar ao seu empreendimento. (Benoit Peeters, Les Murailles de Samaris, 1983, p. 56 e 59)

Cada edifício é decorado com a ornamentação que caracteriza os edifícios da Arte Nova com o ferro a desenhar curvas orgânicas e as cúpulas em vidro curvas, que se erguem a vários andares de altura. Para Xhystos, a Arte nova impôs-se quase instantaneamente. Não a Arte Nova real, aquela que Victor Horta e alguns outros inventaram no final do século XIX: esse estilo não teve tempo de se desenvolver; ele pôde apenas fazer nascer algumas construções isoladas, perdidas nos tecidos urbanos sem ligação com estes. A Arte Nova de onde surgiria Xhystos, teria tido a oportunidade de se impor, de estender a uma cidade inteira os seus arabescos e arrebiques. Partindo de alguns edifícios que conhecíamos, mas também de planos de cidades futuras desenhadas pelos arquitectos e 1900, tentámos conceber Xhystos até aos mínimos detalhes, imaginando o que poderia ter-se tornado uma Bruxelas inteiramente reinventada por um qualquer Victor Horta. (Benoit Peeters, Les Murailles de Samaris, 1983, p. 56)

Ilustração 46 – Samaris, a cidade de aspecto barroco com vida própria. (Peeters e Schuiten, Les Murailles de Samaris, 1983, quadros 1 e 2, p. 26

Depois da longa viagem do personagem principal, eis que ele chega a Samaris. Esta cidade é-nos apresentada como um lugar de ruas estreitas com uma aparência monumental retirada da fase do Barroco.

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A aparência falsa era, geralmente, apenas uma maneira de prolongar as dimensões do real, de dotar um muro, um corredor, um tecto de uma profundidade fantasma, aberta sobre um espaço imaginário. A cidade onde se desenrolaria a nossa história possuiria este princípio até às suas consequências extremas. A arquitectura não seria mais do que uma gigantesca simulação, enganando o viajante que nela se aventurasse. (Benoit Peeters, Les Murailles de Samaris, 1983, p. 55) Para este labirinto traiçoeiro, não teríamos que nos apoiar num estilo tão preciso como o utilizado para Xhystos. Múltiplas e irregulares, as nossas fontes foram claramente a arquitectura oriental e o estilo renascentista, mas sobretudo esses edifícios barrocos que, com frequência, jogavam com a aparência falsa e dos quais as fachadas trabalhadas nos pareciam prestar-se admiravelmente a esta arte da dissimulação. (Benoit Peeters, Les Murailles de Samaris, 1983, p. 59)

La Fièvre d’Urbicande 136, o segundo volume da série, consegue criar uma ainda maior interligação entre a arquitectura, a história e os personagens. La Fièvre d’Urbicande é certamente a obra com mais referências gráficas a projectos de arquitectos do mundo real e uma banda desenhada que reúne muitos dos conhecimentos de Schuiten sobre arquitectura. A banda desenhada abre com um prefácio escrito pelo personagem principal, Robick, arquitecto chefe da cidade de Urbicande, no qual ele discute os seus planos para unir as metades separadas da cidade ao expandir o desenho urbano da zona sul à caótica secção norte. Neste prefácio, Robick refere-se a arquitectos que existem no mundo real, unindo a ficção desenhada à realidade construída, como é o caso de ÉtienneLouis Boullée 137 e de Hugh Ferriss 138, este último uma grande influência para Schuiten.

136

La Fièvre d’Urbicande (publicado em Portugal com o nome A Febre de Urbicanda) é o segundo volume da série Les Cités Obscures, publicado em França e na Bélgica como um volume único em 1985. (ver La Fièvre d’Urbicande, François Schuiten, Benoit Peeters, 1985) 137 Étienne-Louis Boullée (1728 – 1799) foi um arquitecto de projectos utópicos neoclássicos francês, que causou impacto, desenvolvendo um estilo arquitectónico geométrico e abstracto, inspirado nas formas clássicas. A sua principal característica foi a de remover toda a ornamentação desnecessária, ampliando as formas geométricas para uma escala monumental. O projecto mais conhecido de Boullée é o cenotáfio de Isaac Newton. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/75559/Etienne-LouisBoullee>) 138 Hugh Ferriss (1889 – 1962) foi um desenhador e arquitecto norte-americano, cuja obra desenhada influenciou a criação da famosa cidade de Batman na banda desenhada, Gotham City. (ver The Metropolis Of Tomorrow, Hugh Ferriss, 2005)

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Ilustração 47 – O estilo retro-futurista desenha a margem sul de Urbicande. (Peeters e Schuiten, La Fiévre d’Urbicande, 1985, quadros 1, p. 20

A cidade de Urbicande está construída nas margens ingremes do rio, com a racional e rectilínea margem sul exposta ao Sol enquanto a margem Norte é um lugar escuro e misterioso. O tráfego entre as duas metades da cidade é estritamente controlado pelos administradores da zona Sul que temem o caos que a zona Norte representa. O estilo arquitectónico da área Sul é uma reinvenção gigantesca de uma metrópole em Arte Deco 139 inspirada pelo futurismo italiano, enquanto na margem Norte vemos um lugar mais antigo, de ruas sinuosas e edifícios sem identidade. As duas margens desta história são simbólicas e a divisão mente/corpo, racional/irracional é espelhada na relação entre Robick e a personagem feminina Sophie. A utilização de um engenho fantástico para explorar os problemas de carácter e morais é comum na ficção escrita, mas não muito nas histórias de banda desenhada onde os elementos fantásticos ou de ficção científica não são mais do que objectos visuais sem qualquer outro significado. 139

Art Déco foi um movimento popular internacional de design entre 1925 e 1939, que afectou as artes decorativas, a arquitectura e o design de interiores e industrial, assim como as artes visuais, a moda, a pintura, as artes gráficas e o cinema. Este movimento foi uma mistura de vários estilos e movimentos do início do século XX, incluindo o Construtivismo, o Cubismo, o Modernismo, a arte da Bauhaus, a Arte Nova e o Futurismo. Ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/36505/Art-Deco>)

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Urbicande é atirada para dentro de um turbilhão de tumultos quando um pequeno cubo, de um material desconhecido descoberto no deserto, é deixado no atelier de Robick e começa a crescer desmesuradamente, e a criar réplicas de si mesmo. Este material é invulnerável e consegue atravessar qualquer matéria com facilidade, fazendo com que uma estrutura de trama cúbica nasça dentro da casa do arquitecto e se estenda pela cidade. Quando ela alcança a margem norte do rio, dá-se o encontro entre as duas zonas separadas, apesar de não ser bem essa a ligação que o personagem arquitecto desejaria que fosse concretizada. Nesta estrutura podemos ter a noção dos pontos que a banda desenhada de Peeters e Schuiten tem em comum com as obras de Jorge Luis Borges 140, de Italo Calvino 141 e de M. C. Escher 142.

Ilustração 48 – A nova estrutura crescente une agora as duas margens de Urbicande. (à esquerda - Peeters e Schuiten, La Fièvre d’Urbicande, 1985, quadro 3, p. 67; à direita - M.C.Escher, Cubic Space Division, 1952)

140

Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (1899 – 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. A sua obra tem como elementos comuns o sonho, labirintos, bibliotecas, escritores e livros fictícios, religião e Deus. Os seus trabalhos têm contribuído significativamente para o género da literatura fantástica. O conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, que serviu de inspiração para a criação da série Les Cités Obscures, é, à semelhança da obra de Peeters e Schuiten, todo um inventar de um planeta imaginário, com os seus idiomas, a sua física, a sua política, as suas ciências e as suas culturas. (ver na www: <http://www.biography.com/people/jorge-luis-borges-9220057>) 141 Italo Calvino (1923 – 1985) foi um jornalista e escritor italiano de pequenos contos e de romances. A sua obra Le Città Invisibili de 1972, tem sido usada, pela sua aproximação às potencialidades imaginativas das cidades, por arquitectos e artistas para visualizar como as cidades poderão ser, os seus lugares mais recônditos, onde a imaginação humana não está necessariamente limitada pelas leis da física ou das limitações da teoria urbana moderna. Esta obra, assim como a de Peeters e Schuiten, permite dar a conhecer uma aproximação alternativa ao pensar sobra as cidades, como elas se formam e como funcionam. (ver na www: <http://www.infopedia.pt/$italo-calvino>) 142 Maurits Cornelis Escher (1898 – 1972) foi um artista gráfico holandês conhecido pelas suas xilogravuras e litografias que representam construções impossíveis, e padrões geométricos entrecruzados que se transformam gradualmente para formas completamente diferentes. (ver M. C. Escher, Taschen, 2004)

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La Tour 143 é a terceira história a apresentar um novo mundo criado por Peeters e Schuiten na série Les Cités Obscures. E como nas anteriores a arquitectura é o elemento chave da história. E neste álbum a arquitectura ainda se eleva a um patamar de importância maior quando, atmosfericamente, os autores conseguem criar um meio-termo arquitectónico entre as prisões de Piranesi 144 com a Torre de Babel de Bruegel145. Os próprios afirmam até que “Os nosso livros são metáforas e o mundo real aparece como inspiração.” (Benoit Peeters, entrevista para o jornal i online por Diana Garrido, 6 de Novembro de 2009) Até mesmo o protagonista, Giovanni Battista, viu o seu nome ser emprestado dos nomes próprios do arquitecto Piranesi. Nesta obra, a história envolve um edifício colossal conhecido como “A Torre”, uma estrutura que só vemos em planos aproximados ou pelo interior, sem termos as noções reais da sua dimensão. Ao contrário dos livros anteriores da série, desta vez os autores não criaram uma cidade mas sim um mundo novo dentro de uma torre monumental.

Ilustração 49 – A criação do interior da torre inspirada nos desenhos de Piranesi. (à esquerda - Peeters e Schuiten, La Tour, 1987, quadro 3, p. 8; à direita - Giovanni Battista Piranesi, Carceri d´invenzione, 1749 – 1750)

143

La Tour (publicado em Portugal com o nome A Torre em 1989) é o terceiro volume da série Les Cités Obscures, publicado em França e na Bélgica como um volume único em 1987. (ver La Tour, François Schuiten, Benoit Peeters, 1989) 144 Giovanni Battista Piranesi (1720 – 1778) foi um artista italiano que se dedicava a várias vertentes disciplinares como a gravura, a arquitectura, o desenho, a engenharia hidráulica, a arqueologia e à escrita teórica. Das suas obras mais conhecidas destacam-se os seus desenhos e pinturas do interior de palácios e de prisões, as quais influenciaram marcadamente o álbum La Tour de Peeters e Schuiten. (ver Piranesi: Etchings and Drawings, Giovanni Battista Piranesi, 1975) 145 Pieter Brueghel (1525/1530 – 1569) foi um pintor holandês, célebre pela criação do desenho da torre de Babel assim com pelos seus quadros retratando paisagens e cenas bucólicas. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/82006/Pieter-Bruegel-the-Elder>)

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Como a acção deste livro toma lugar na História Antiga do mundo criado por Peeters e Schuiten, La Tour é o álbum com menos ligações ao movimento de ficção steampunk. Ao invés, a arquitectura e as roupagens dos personagens remetem-nos para a época medieval. Enquanto arquitectos de cidades na banda desenhada, dedicados a um detalhe e conhecimento sobre o tema de forma exímia, o seu trabalho não poderia passar ao lado da realidade construída. Por mais que sejam criadores de arquitecturas utópicas, os seus projectos são, na banda desenhada, reais para os personagens que os habitam, e essa repercussão no mundo real pode também ser vivida. Um caso que o comprova foi o restauro da estação parisiense de Metro Arts et Métiers. Em Outubro de 1994, por ocasião do bicentenário do Conservatoire National des Arts et Métiers, François Schuiten imaginou e desenhou o projecto da estação 146.

Ilustração 50 – A estação de Metro de Arts et Métiers idealizada e construída por Schuiten. (em cima - Desenho de François Schuiten para o projecto de recuperação da estação de Metro Arts et Métiers, Musée des arts et métiers; em baixo – interior da estação Arts et Métiers. 146

O projecto, imaginado e desenhado por Schuiten foi o resultado de uma parceria entre a Régie Autonome des Transports Parisiens e o Musée des Arts et Métiers. (ver na www: <http://www.arts-etmetiers.net/musee.php?P=157&id=10292>)

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Nesta estação, o viajante é convidado a entrar no interior de uma grande máquina, ao estilo de Nautilus 147, onde se sugere o aspecto mecânico de Júlio Verne 148. O projecto vai de encontro ao material criado nas bandas desenhadas, onde se evoca este gosto pelo steampunk. Uma grande máquina. A óptica cenográfica escolhida para a estação de Metro Arts et Métiers privilegia o grande plano, um efeito global destinado a merulhar o viajante num clima poderoso. É no interior de uma máquina que entramos, Nautilus (...) (François Schuiten e Benoît Peeters, La Revue n°5, artigo “Le réaménagement de la station de métro Arts-et-Métiers”, Dezembro 1993)

147

Nautilus é o submarino do capitão Nemo na história As Vinte Mil Léguas Submarinas de Júlio Verne de 1870. (ver na www: <http://www.infopedia.pt/$vinte-mil-leguas-submarinas>) 148 Júlio Verne (1828 – 1905), em francês Jules Verne, foi um escritor francês. (ver na www: <http://www.infopedia.pt/$julio-verne>)

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4. A

BANDA DESENHADA ARQUITECTURA

COMO

MEIO

DE

COMUNICAÇÃO

DA

4.1. A ARQUITECTURA LIDA EM BANDA DESENHADA Nos anos 60 desenvolve-se a ideia de um mundo novo, um mundo onde tudo é possível, reforçado pela conquista do espaço. As cidades debaixo de água, as cidades suspensas, as cidades aéreas, as cidades nómadas, ou as cidades desmontáveis são projectadas por arquitectos como Archigram ou Yona Friedman 149. O nascimento da banda desenhada chamada "adulta" é contemporânea deste espírito e os autores desta geração vão também por em prática esse mesmo espírito utópico. (…) Com realizadores como Godard, Antonioni e Wenders, o cinema tem sido uma fonte de inspiração inquestionável para os arquitectos. Ao mesmo tempo, o forte visual da banda desenhada, independentemente do seu valor intrínseco, influenciou de certo modo a maneira como alguns arquitectos apresentam o seu trabalho. Eu posso dar dois ou três exemplos: o grupo Dinamarquês BIG que publicou um livro intitulado Yes Is More, An Archicomic on Architectural Evolution, onde pegam na imagem dos conhecidos comics de super-heróis. O super-herói neste livro é Bkarke Ingels, o arquitecto que aparece em quase todas as páginas e explica o que vai fazendo como se estivesse a dar uma conferência, à excepção que o meio de comunicação aqui é um livro. Os arquitectos suiços Herzog & De Meuron também optaram por uma apresentação em banda desenhada para apresentarem o seu projecto urbano MetroBasel, concebido com vinhetas e balões de fala. Eles até pegaram em imagens de Belmondo e de Seberg de um filme de Godard e inseriram-nos no ambiente da metrópole. Podemos também referir a publicação Content de Koolhaas’s que é um cruzamento entre livro e revista. Louis Paillard, Stéphane Maupin ou Andres Jacque, um jovem arquitecto madrileno, são outros dos arquitectos que usam o formato da banda desenhada nos seus trabalhos. (Francis Rambert, Cité de L’architecture & du Patrimoine, caderno informativo da exposição Archi & BD – La Ville Dessinée, 2010, p. 7)

É nesta altura, e com a ascensão da banda desenhada, que o arquitecto se socorre desta para a criação de imagens arquitectónicas que se encaixassem no espírito da época. O arquitecto começa a perceber as características icónicas deste meio e começa a encontrar paralelismos com a sua profissão. Se um autor de banda desenhada constrói uma estrutura complexa na sua obra, manipulando o espaço de forma a organizar o tempo e a impor-lhe uma narrativa, um arquitecto segue exactamente a mesma linha. Ele cria um edifício com uma narrativa implícita onde o visitante “lê” o espaço construído. 149

Yona Friedman (1923) é uma arquitecta franco-húngara, também dedicada ao planeamento urbano e ao design. Ficou conhecida pelas, então denominadas, mega estruturas no final dos anos 50 e inícios de 60. (ver na www: <http://www.yonafriedman.nl/?page_id=1713>)

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A disciplina da arquitectura é discutida, explicada e identificada quase inteiramente através das suas representações. No entanto, essas representações são muitas vezes tratadas como se fossem a própria arquitectura. É sempre dado um enorme foco de interesse ao projecto imaginário e ao conjunto de documentos estáticos do mesmo. Surge aqui o paradoxo. A arquitectura preocupa-se fundamentalmente com a realidade física, no entanto discutimos, e até definimos a arquitectura através de uma construção elaborada de meios de comunicação representativos como a fotografia, o jornalismo, a crítica, as exposições, a história, os livros, os filmes, e a televisão. Se a arquitectura pode ser divulgada por todos estes meios, porque não recorrer também à banda desenhada para a apresentação e discussão do ambiente construído? A representação da arquitectura, normalmente naquele breve momento entre a conclusão da obra e da sua ocupação pelos utilizadores, através de imagens de momentos congelados, que não são tocados nem pelo tempo nem pela ocupação, nega, tanto a participação do usuário, como todo o processo pelo qual o edifício foi projectado. Ela nega a presença e a participação de um “outro” e eleva a arquitectura aos domínios da estética ou da arte, e exclui aqueles que acabarão por a utilizar. Julgar e apreciar edifícios, espaço e lugar, apenas pela aparência das suas duas representações dimensionais, não permite que percebamos a diferença entre a natureza do edifício e a natureza da representação, negando e eliminando a narrativa e o tempo. A banda desenhada, no entanto, tem dois potenciais vantagens sobre a fotografia de arquitectura tradicional e também sobre o projecto apresentado. Em primeiro lugar, as tiras de banda desenhada sequenciais apresentam sempre o elemento narrativo, introduzindo uma noção de tempo às imagens. Quando este factor está implícito na representação de um projecto de arquitectura, conseguimos compreende-lo como uma história que começa com uma ideia inicial, que vai sendo trabalhada até à imagem final. E é este momento processual que é essencial à arquitectura mas pouco divulgado. Em segundo lugar, as histórias em quadradinhos são únicas como meio de representação, uma vez que permitem ao leitor controlar e interpretar o ritmo a que a narrativa é experienciada. Podemos, ao contrário de um filme, e num suporte físico acessível, olhar para um projecto contado em banda desenhada, folhear cada página ao nosso ritmo de leitura e voltar atrás para tomarmos atenção num ou noutro pormenor esquecido.

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Assim, as histórias aos quadradinhos oferecem uma maneira mais sofisticada de olhar, discutir e projectar a arquitectura, podendo a estrutura particular da narrativa ajudar nos processos arquitectónicos. Na história das duas disciplinas (arquitectura e banda desenhada) os Archigram tiveram um papel importante porque nos anos sessenta eles desconstruíram o superherói, criando a publicação Amazing Archigram, que assenta no imaginário da Pop Art e faz uso em grande escala da linguagem da banda desenhada. O segundo momento mais importante é em 1958, o ano da Exposição Mundial em Bruxelas. Neste momento percebemos que os autores de banda desenhada tinham descoberto a modernidade. Foi e era heróica da arquitectura, (…) os anos do desenvolvimento europeu. Neste período a arquitectura influenciou em grande escala a banda desenhada. (Francis Rambert, co-curador da exposição Archi & BD, la ville dessinée, entrevista para a revista Domus por Elena Sommariva, publicada a 16 de Junho de 2010)

A representação da arquitectura é cada vez mais divulgada por meios como a fotografia, a televisão ou a internet, mas são os desenhos técnicos que ainda possuem a exímia capacidade de a representar na sua plenitude. As imagens que captam um momento ou as fotografias são um fim em si mesmo, são representações válidas mas que não demonstram um percurso ou um discurso evolutivo da obra. A banda desenhada pode entrar neste campo, não como mais um meio individual de divulgação arquitectónica, mas sim como um meio conciliador e unificador de todas as outras formas de comunicação de uma obra atribuindo-lhe um factor importantíssimo: o tempo. A fotografia, o desenho técnico, a maqueta ou o esquisso, quando apresentados isoladamente de pouco servem para falar de projecto, mas quando reunidos de forma organizada e explicados com um texto auxiliar, contam-nos a sua história evolutiva, como se de uma conferência se tratasse. A banda desenhada tem vindo a ter um papel bastante importante a nível cultural, tanto pela sua crescente qualidade como pela sua fácil divulgação e aceitação. E através dela o arquitecto pode explorar o ambiente construído. A originalidade e a diversidade das histórias aos quadradinhos permitem ao arquitecto estudar formas de concepção arquitectónica inéditas, sem regras de formatação ou de representação, tanto em termos gráficos como simbólicos. A banda desenhada é assim um lugar onde a narração, as sequências de imagem, cenários e emoções se encontram. O seu potencial de comunicação é enorme, mas pouco frequente de utilização no que se refere à comunicação projectual da arquitectura. A concepção de banda desenhada comporta na sua essência de execução, meios e técnicas que ajudam o arquitecto a criar o seu espaço construído. As estruturas

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gráficas, as histórias ou o tipo de desenho, podem representar um projecto de arquitectura no seu todo, atribuindo-lhe mais-valias, tanto a nível técnico, como a nível estético. Através das suas visões imaginárias da vida urbana, os criadores de banda desenhada estão a contar uma história, Por vezes esta história é pura invenção. De facto os arquitectos costumam usar a arte da banda desenhada para injectarem uma dimensão futurista aos seus projectos. O livro Habiter La Mer de Jacques Rougerie é uma banda desenhada inspirada em Júlio Verne. O arquitecto usou a banda desenhada para relatar uma história ficcional e futurista dobre as descobertas do mundo subaquático. (…) (Francis Rambert, Cité de L’architecture & du Patrimoine, caderno informativo da exposição Archi & BD – La Ville Dessinée, 2010, p. 8)

No entanto, poucos são os arquitectos que optam por usar a banda desenhada como um meio de apresentar os seus projectos. Se fizermos uma incursão por aqueles que o decidiram fazer, temos os nomes de Archigram, que optaram pela estética da banda desenhada e da Pop Art para, através de dez publicações e mais especificamente na Archigram 4: Amazing Archigram, darem aso à imaginação projectual futurista e utópica. Herzog & De Meuron, com a sua obra Metrobasel: A Model of a European Metropolitan Region, dão a conhecer os seus estudos teóricos sobre a cidade de Basileia em esquema de fotografias sequenciais. Bjarke Ingels Group (BIG), publicam também uma compilação semelhante, Yes Is More, com os seus mais emblemáticos projectos e os conceitos por detrás da sua origem. A influência directa da banda desenhada na arquitectura foi evidente em 1960 com a publicação da revista Archigram criada pelo grupo com o mesmo nome. O primeiro mundo ficcional de cidades imaginárias, no entanto, pode ser encontrado nos desenhos visionários de Virgilio Marchi e de Antonio Sant’Elia, um jovem arquitecto do movimento futurista. Enquanto que no virar do século XX, quando eléctricos e carros de transporte de animais eram a norma, Marchi desenhava cidades contemporâneas ideais representando conceitos dinâmicos. (Francis Rambert, Cité de L’architecture & du Patrimoine, caderno informativo da exposição Archi & BD – La Ville Dessinée, 2010, p. 5)

Tendo sido estes arquitectos os que mais usufruíram deste meio de comunicação que é a banda desenhada, com publicações próprias neste estilo, outros ouve que utilizaram esta forma de arte sequencial de maneira mais esporádica e pontual como é o caso de Rem Koolhaas, na sua proposta da Euralille 80 nos anos 90, onde utilizou a linguagem dos quadradinhos para divulgar os seus conceitos de híper-modernismo a fim de poder garantir que as pessoas e o governo pudessem compreender a sua proposta e fossem capazes de identificar-se com o conceito deste projecto graças à

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capacidade que a banda desenhada tem de ser facilmente lida e percebida, chegando a vários públicos de diferentes faixas etárias.

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4.2. ARCHIGRAM 4.2.1. INTRODUÇÃO O grupo (Archigram) publicou uma série de revistas ao estilo de bandas desenhadas, Archigram 1, 2, 3 e 4, onde desenvolveram novas visões de como a vida urbana e a sociedade seriam no futuro. Os projectos Walking City e Plug-in City representavam máquinas omnipresentes, um ambiente mecânico e de alta tecnologia, embora os ambientes fossem inspirados pela Pop Art. Esses foram tempos fantásticos quando as utopias nasceram. Grupos alternativos brotaram, como o colectivo Haus-Rucker-Co em Viena. Depois surgem os fenomenais projectos de Claude Parent incluindo a cidade espiral e a cidade em forma de cone e as plataformas elevadas do projecto da Spatial City de Yona Friedman. (Francis Rambert, Cité de L’architecture & du Patrimoine, caderno informativo da exposição Archi & BD – La Ville Dessinée, 2010, p. 7)

Os Archigram 150 são um dos grupos arquitectónicos que mais se demarcou pela sua forma de expressão projectual, transmitida através de imagens fortes, coloridas e apelativas, estando na génese da arquitectura high-tech. Eles repensaram a relação entre a tecnologia, a sociedade e a arquitectura e previram uma revolução da informação anos antes de ela acontecer. Surgem como um movimento arquitectónico vanguardista, insurgindo-se como renovadores das ideias do Modernismo 151 e aproximando-se das vanguardas futuristas, apeladoras da velocidade e da tecnologia. Estes conceitos eram aplicados nos seus trabalhos tanto nas temáticas dos ritmos de consumo exacerbante como nas da máquina em movimento. Como fruto da época de desenvolvimento das megacidades, da evolução da cibernética e da ida do Homem à Lua, os Archigram surgem para dar seguimento, no campo da arquitectura, às ideologias inseridas do contexto social da época da inovação e das novas tecnologias. A sua obra resume-se a um conjunto de experimentações teórico-utópicas e projectos não construídos na área da arquitectura, simulados através do recurso à imagem estática e impactante, assim como às imagens sequenciais que contam uma história processual, recorrendo aos símbolos e técnicas formais anteriormente utilizados pelos autores de banda desenhada e da

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O colectivo era composto por Peter Cook (1936), Warren Chalk (1927 – 1987), Ron Herron (1930 – 1994), Dennis Crompton (1935), Michael Webb (1937) e David Greene (1937). (ver na www: <http://archigram.westminster.ac.uk/people.php>) 151 O Modernismo foi um movimento artístico dos finais do século XIX que, na sua essência, criticava a crescente sociedade de consumo. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/387266/Modernism>) Os Archigram trabalharam este mesmo conceito, criando projectos que pudessem ser “descartáveis”.

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Pop-Art 152. A projecção dos seus trabalhos deveu-se, essencialmente, à divulgação das revistas homónimas publicadas, à sua participação em exposições e à organização de eventos. Os Archigram são fracos em teoria, extensos no desenho e na produção artesanal. Eles encontram-se no ramo da imagem e foram abençoados com a capacidade de criar algumas das mais marcantes imagens do nosso tempo. (Reyner Banham em Peter Cook e Michael Webb, Archigram, Princeton Architectural Press, 1999, p. 5)

A invenção da cidade como uma mega-estrutura foi o principal tema de trabalho dos Archigram entre os anos 60 e 70. Projectos como a Walking City, a Instant City, ou a Plug-In City, conferem à obra dos Archigram uma visão utópica sobre as cidades do futuro.Como os próprios faziam questão de referir: O desenho nunca pretendeu ser uma janela através da qual o mundo de amanhã pudesse ser visto, mas sim como uma representação de um ambiente físico hipotético ao estilo de manifesto, representado pelas duas dimensões do papel. (Peter Cook, Archigram, p. 2)

Os Archigram entendiam a cidade como um organismo vivo, na qual os seus habitantes podiam definir o seu próprio ambiente através de uma arquitectura adaptável e flexível. Os desenhos da Plug-In City, por exemplo, consistiam numa estrutura desenhada na diagonal para melhorar a flexibilidade e o movimento cruzado onde se lhe poderiam ser colocados módulos de habitação movíveis, ao contrário da grelha fixa de Le Corbusier nos seus planos da Ville Radieuse. Todavia, as experiências dos Archigram apoiavam-se muito numa ordem arquitectural superior baseada na tecnologia, não tendo tanto em conta o factor social. As mega-estruturas eram construídas na base na complexidade tecnológica, mais do que na do desenvolvimento da interacção social. Nesta visão da cidade como máquina, o grupo reproduzia as ideias de Le Corbusier, sendo que os Archigram chegavam a ter os mesmos problemas aos quais eles se opunham desde o início. Apesar de ser um problema crucial na prática da arquitectura revolucionária, os Archigram referem apenas que “ a dependência em tais coisas (máquinas) para uma vida emancipatória é um dos nossos paradoxos.” (Peter Cook, 1999, Archigram, p. 70). Esta prática essencialmente ideológica era divulgada através dos seus manifestos

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A Pop-Art, emergida nos anos 50, foi o movimento artístico que mais inspirou os Archigram devido à sua conotação gráfica, recorrendo ela também ao universo da banda desenhada. (ver na www: <http://www.infopedia.pt/$arte-pop>)

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por um estilo de vida flexível através de colagens onde imagens, texto e objectos se mostravam tão importantes como a própria arquitectura.

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4.2.2. A IMAGEM DO PROJECTO Sendo a imagem o processo de criação por excelência do reportório arquitectónico dos Archigram, o facto de eles recorrerem a formas de expressão artísticas, onde à imagem desenhada fosse dado um especial destaque, tornou-se num processo natural, e como tal, as semelhanças, comparações e cruzamentos com a BD são inevitáveis. No entanto, se tivermos em conta que quando o texto e a imagem se intercalam sem uma noção de hierarquização de qualquer um destes elementos, podemos dizer que estamos perante uma imagem criada com recurso aos elementos da BD. E era este o tipo de trabalho que os Archigram divulgavam. O recurso directo à estética da BD era usado apenas em alguns apontamentos que se queriam mais dinâmicos e expressivos. Esta relação dos Archigram com a banda desenhada funciona a níveis distintos. Em primeiro lugar como meio de transmissão de um reportório arquitectónico, que devido à sua natureza, necessitava de um suporte que pudesse incluir elementos de outros contextos. A função era a de fazer através da iconografia da banda desenhada, um elemento lido, onde estivesse presente um grupo de imagens arquitectónicas que remetessem para um futuro onde a ciência tomaria parte do ambiente humano e das maneiras de habitar.

Ilustração 67 – A Plug-In de Cook apresentada sob a forma de tira de banda desenhada. (David Greene, 1964, The Archigram Archival Project)

A banda desenhada de ficção, mencionada de forma constante na obra dos Archigram, é também um produto típico da cultura industrial e comporta em si mesma

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a força do anonimato e da redundância. As imagens de uma cidade futurista, que começou a aparecer nas bandas desenhadas das primeiras gerações dos comics americanos de ficção científica, era o factor que interessava aos Archigram. Foi este estilo de grafismo, criado de modo estandardizado, onde as mesmas histórias se podiam repetir vezes sem conta sendo desenhadas por diferentes autores e afastando-se do desenho de autor, que fazia todo o sentido ser explorado na medida em que este meio de comunicação era a imagem dos Archigram enquanto colectivo: um grupo com ideias diferentes mas que partilhavam um mesmo estilo gráfico. A cápsula que Chalk desenhou fazia parte integrante da Plug-in City de Cook assim como os Pods de Greene poderiam ser aplicados ao Capsule Pier de Herron. Os Archigram não nos vão dizer de certeza como a Plug-in City será feita de forma a funcionar, mas irão dizer-nos como se poderá parecer. (Simon Sadler, Archigram: Architecture without Architecture, Cambridge Mass: MIT Press, 2001, p. 183)

Além disso, do ponto de vista dos Archigram, a linguagem da banda desenhada oferecia uma alternativa, a qual consideravam o ponto fraco da arquitectura urbana que era “a inabilidade para conter o objecto em movimento como parte de uma estética total” (Peter Cook, Zoom and Real Architecture, Magazine Archigram 4, p. 18, 1964) que incidia na problemática de indicação de movimento num meio estático. E nisto são elucidativas as palavras do editorial da Amazing Archigram, em que se tenta justamente construir esta ponte entre o expressionismo, a tecnologia e a ficção espacial. Como uma contra-imagem, seria fácil olhar para trás e preencher a Archigram com três dúzias de “respeitáveis” dos últimos 50 anos (interessante que tantos seriam pré-1930), e o comentário, “O que foi que perdemos? O que nos está a faltar?” Mas isto aplica-se igualmente a algo que ainda não está desaparecido na perspectiva histórica - uma tradição ainda em desenvolvimento, e ainda original com respeito a muitos dos gestos básicos da arquitectura moderna. Ela compartilha muito da sua expressão com aqueles dias débeis, neuróticos, entusiásticos de Ring, der Sturm e do Manifesto Futurista - as raridades arquitectónicas da época alimentando o movimento infante. O nosso documento é o Space-Comic; a sua realidade está no gesto, no desenho e na estilização natural de um novo hardware para a nossa própria década - a cápsula, o foguete (…). (Cook, Archigram 4, p. 18, 1964)

Assim como os futuristas acreditavam que "não eram mais os homens das catedrais, dos palácios, das salas de assembleias; mas dos hotéis, das estações ferroviárias, das estradas imensas, dos portos colossais, dos mercados cobertos, das galerias luminosas, dos projectos de demolição e reconstrução" (Ulrich Conrads, Programs and

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manifestoes, Cambridge, The MIT Press, 1990, p. 36), os Archigram propunham o Space-Comic como documento, e a cápsula como o gesto necessário.

Ilustração 68 – Os balões de fala da banda desenhada, apesar do seu carácter abstracto, ajudam a criar uma noção de tempo real entre os personagens e a comunicar ideias de forma directa. (Archigram 8, 1968, folha 10, The Archigram Archival Project)

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4.2.3. OS PROJECTOS CONTADOS EM DEZ PUBLICAÇÕES 4.2.3.1. ARCHIGRAM 1 (...) A imagem da arquitectura moderna parece terrivelmente irrelevante. Coberturas planas, muito vidro e paredes brancas. (...) A afirmação na (revista) Archigram é a de que a arquitectura da nossa geração pode estar mais perto, nas suas bases, da primeira arquitectura moderna do que da maioria dos edifícios do pós-guerra - os quais se supõem ser uma continuação dele. (Peter Cook, Revista Archigram nº 2, 1962, p. 1)

O nome Archigram surge pela primeira vez como título de uma publicação de arquitectura posta em circulação por um grupo de três jovens arquitectos londrinos. A partir da junção das palavras “Architecture” e “Telegram”, palavras identificativas das ideologias do grupo homónimo, esta publicação tencionava dar a conhecer uma arquitectura visionária, de uma maneira telegráfica, de forma rápida e sintética. Criada para servir de meio de comunicação de discussões e ideias e para a divulgação de projectos do próprio grupo, a revista foi publicada anualmente entre 1961 e 1970, tendo sido o último número lançado em 1974. Os Archigram formaram-se em 1960, tendo como membros integrantes inicialmente David Greene, Michael Webb e Peter Cook, jovens recém-formados em arquitectura que tinham por hábito reunir-se para discutir ideias de projectos. Destas reuniões gerou-se a ideia de criar algum tipo de publicação onde eles próprios pudessem divulgar os seus projectos, que pela sua excentricidade e grau de utopia, não teriam lugar nas revistas londrinas da época dedicadas ao tema da arquitectura. É como resultado destes encontros que, em 1961, surge a primeira edição de Archigram, nome que apelidou mais tarde o grupo dos seus autores.

Ilustração 51 – A história dos Archigram contada por Peter Cook em banda desenhada aquando da exposição “Archigram” de 1994 no Georges Pompidou. (Peter Cook, Edições do centro Georges Pompidou, 1994)

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A primeira revista dos Archigram apareceu em 1961, abraçando uma intencional visão utópica cuja expressão só conseguia ser canalizada na forma de arte da banda desenhada inspirada na Pop Art. O início dos anos 60 foi um período de optimismo impulsionado pelo ímpeto da Expo 58 cujo sucesso se deveu essencialmente à manipulação estética de objectos do quotidiano (transportes, roupa, design) e às visões bastante reais de como a vida seria no futuro, com um leque de exposições dedicadas ao tema “viver no ano 2000”. Os autores belgas adoptaram esta abordagem estética, embora de uma forma menos contemporânea que os Archigram. Isto pode ser visto em Les Pirates de Franquin ou em Les Aventures de Tif et Tondu de Will. (Jean-Marc Thévenet, Cité de L’architecture & du Patrimoine, caderno informativo da exposição Archi & BD – La Ville Dessinée, 2010, p. 5)

O primeiro número, de 1961, consistia tão simplesmente numa folha de grandes dimensões dobrada em quatro com outra menor no seu interior, produzidas pelos três membros, com a participação de alguns colegas.

Ilustração 52 – Folha maior da primeira edição da Archigram. (Archigram 1, Peter Cook, 1961, The Archigram Archival Project)

De entre os projectos mostrados nesta primeira publicação destacam-se os de David Greene com a sua mesquita em Bagdad como trabalho de fim de curso, o de Peter Cook com o projecto levado a concurso no mesmo ano do redesenho de Piccadilly

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Circus e o de Michael Webb com o edifício para a Furniture Manufactures Association em Berkshire. A primeira revista foi o iniciar de uma nova era na criação da arquitectura utópica. Ela demonstrava uma imagem diferente daquela em que os projectos de revistas do género eram apresentados, apelando a uma criatividade que teria seguimento na criação das revistas dos anos seguintes. Através de colagens, a primeira publicação comportava em si mesma algumas características da BD no que diz respeito à sua representação formal. A banda desenhada pode ser vista como uma arte sequencial onde as várias janelas impõem um ritmo à história que contam, tendo como símbolos os balões de fala e as imagens, no entanto os Archigram tentam seguir essa mesma linha de representação mas com a subversão destes símbolos, com a criação de uma página onde o texto e a imagem surgem interligados e onde o valor hierárquico de ambos é igual. A folha surge como uma banda desenhada onde as janelas parecem ter sido removidas, assim como os balões de fala, e sem esse suporte o texto cai por cima das imagens e a leitura da folha torna-se livre e orgânica sem uma regra de leitura definida. 4.2.3.2. ARCHIGRAM 2 Com o sucesso não muito conseguido em termos de divulgação da primeira publicação, mas com a vontade de fazer uma outra com novas ideias e com mais qualidade, os três membros fundadores decidem convidar para se lhes juntar ao projecto Chalk, Herron e Crompton, arquitectos já com alguma experiência profissional e que viriam a ser uma mais-valia para dar seguimento ao trabalho das revistas Archigram. Agora, com o contributo de seis arquitectos, a intenção de tornar a publicação mais séria foi levada a cabo, deixando de, no ano seguinte, ser um panfleto, passando a ser uma revista com várias matérias de discussão ligadas à arquitectura. É assim em 1962, que é publicada a Archigram 2, tendo já como membros constituintes os seis arquitectos. Se a primeira publicação surgiu como uma intenção experimental de dar a conhecer projectos académicos realizados por Greene, Webb e Cook, mas já de forma a criar uma abordagem crítica, a Archigram 2 foi algo mais sério e fruto de mentes criativas, igualmente críticas e extravagantes, que viriam a redefinir o conceito de arquitectura utópica. Nesta edição de nove páginas, e fugindo desta vez aos projectos académicos

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que pontuavam a primeira edição, o lugar era agora dado à divulgação de projectos que tiveram como fim a participação em concursos de arquitectura levados a cabo pelos vários membros dos Archigram, alguns deles que contaram com a participação de outros arquitectos fora do grupo. Os três projectos divulgados e levados a concurso tinham como objectivo a criação de edifícios de habitação sendo eles o de Chalk, Crompton e Herron em Lillington Street, o de Chalk e Herron em Halesowen e a Gas House de Cook e Greene. Quatro outros projectos são divulgados, a nível individual, com David Greene a apresentar o Fiberglass Project e a Spray Plastic House, Michael Webb o seu Sin Centre e Peter Cook as Metal Houses A nossa afirmação desta vez é a soma das implicações do que é mostrado e dito; ao re-crear um leque de valores podemos dar igual valor à qualidade das “raizes” dos edifícios de quintas de Andrew Anderson e à dinâmica espacial do Sin Center de Michael Webb. A emergência da “dispensabilidade” como tópico em vários esquemas é transversal mas significativa. (Peter Cook, revista Archigram nº 2, 1962, p. 1)

O recurso à simbólica da banda desenhada, nesta edição da Archigram, é deixado um pouco mais de lado. Com a tentativa de tornar a edição mais séria e para que houvesse uma maior divulgação, havia necessidade de deixar um pouco de lado os experimentalismos gráficos. Apesar da Archigram 2 se parecer mais com qualquer outra revista da especialidade, pequenos apontamentos mostram o grau de originalidade gráfica sempre existente dos autores, como é o caso da Spray Plastic House de David Greene. Este projecto é representado na revista com três imagens em sequência que representavam as três fases da construção do projecto. Esta sequencialidade confere às imagens um carácter evolutivo atribuindo-lhe a dimensão temporal. À semelhança da banda desenhada, a imagem sequencial conta-nos uma história, e neste caso David Greene explica, através dos seus desenhos, a construção da sua obra.

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Ilustração 53 – A Spray Plastic House de David Green. Recorre-se à abordagem futurista da alta tecnologia para a criação de uma habitação expansível e flexível. (Spray Plastic House, David Greene, 1961, The Archigram Archival Project)

4.2.3.3. ARCHIGRAM 3 Em 1963 são convidados a assumir a exposição "Living City" a ter lugar no Institute of Contemporary Arts. Aqui já se começa a notar a presença de um grupo que entende a cidade de uma maneira diferente, dando especial valor à leitura arquitectónica, artística e social. Neste mesmo ano é publicado o terceiro número da Archigram tendo como tema a envolvente urbana obsoleta e a ideia de poder criar uma arquitectura descartável perante uma sociedade de produção e consumo imediato. E é com este conceito em vista que a terceira revista surge com o subtítulo “Expendability: Towards Throwaway Architecture” Nesta edição são referidos apenas dois projectos dos próprios Archigram: o do Nottingham Shopping Centre de Peter Cook e David Greene e o da exposição Living City em Londres que contou com a presença de todos os elementos do grupo. Os restantes projectos, referidos ao longo das nove páginas da Archigram 3 e que se integram dentro do tema da revista, “expendability”, são da autoria de arquitectos como Cesare Pea ou Buckminster Fuller, cuja obra reflectia também sobre o tema da arquitectura “descartável”. Quase sem nos apercebermos, absorvemos nas nossas vidas a primeira geração de descartáveis… sacos de comida, lenços de papel, embalagens de polietileno, esferográficas, EP’s… tantas coisas sobre as quais nós nem temos de pensar. Atiramolas fora quase logo desde o momento em que as adquirimos. (…) (Peter Cook, revista Archigram nº 3, 1963, p. 1)

As colagens tornam a desempenhar um importante papel no design gráfico desta revista. À semelhança da Archigram 1, esta publicação demonstra novamente a

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possibilidade de inovação e criatividade do colectivo aquando da disposição das imagens em cada página. O recurso a um texto corrido acompanhado de uma imagem deixa de fazer sentido e, quase como tributo à primeira revista, o texto ganha tanto valor como a imagem, ou seja, a hierarquia de ambas é idêntica. A leitura das páginas torna-se mais demorada devido a esta característica. Como a banda desenhada, o leitor não consegue definir se se começa pelo texto se pela imagem pois ambas complementam-se e lêem-se de forma conjunta. Quando se dá a dissipação de uma sequência de imagens acompanhadas por um texto, elementos estruturais da banda desenhada, o leitor tem de procurar uma ordem dentro do “caos”. Esta edição dos Archigram conseguiu unir eficazmente a estética da Pop-art, a estrutura de uma revista de arquitectura e os elementos construtivos da banda desenhada.

Ilustração 54 – O problema da dispensabilidade na arquitectura demonstrado através de uma página onde o desenho e o texto se unem. (Archigram Group, 1963, The Archigram Archival Project)

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4.2.3.4. ARCHIGRAM 4 Sendo a imagem cada vez mais a forma de expressão do trabalho dos Archigram, o grupo decide recorrer, por completo, ao imaginário da banda desenhada, lançando em 1964 a quarta revista, Amazing Archigram, com o subtítulo Zoom Issue, apresentandoa como uma verdadeira revista de banda desenhada onde apresenta no seu interior janelas de diversos comics americanos alusivos às temáticas da ficção científica e da corrida espacial. Esta foi a primeira revista do grupo a ser publicada além-fronteiras e que lhes proporcionou o reconhecimento internacional. Sendo talvez a revista mais experimentalista do grupo, nela são feitas alusões a projectos de vários artistas, todos eles dedicados ao trabalho da arquitectura futurista, utópica e espacial. Além destas referências são apresentados projectos dos próprios elementos dos Archigram como a Plug-in City de Peter Cook e os estudos de torres futuristas por Warren Chalk, Rob Herron e Peter Cook. Voltámos à preocupação da primeira Archigram – uma procura de formas fora da estagnação da cena arquitectónica, onde o mal-estar contínuo não está apenas na mediocridade do objecto – mas mais seriamente na auto-satisfação profissional apoiada por esse tipo de arquitectura. E a frase “a arquitectura modernista chegou” parece mais que nunca inapropriada. (Peter Cook, Warren Chalk, Dennis Crompton, revista Archigram nº 4, 1964, p. 18)

Ilustração 55 – A Plug-in City de Peter Cook parte de uma série de propostas para uma cidade controlada por computadores desenhada para ser alterada com elementos amovíveis ligados a uma mega-estrutura. (Plug-in City, Peter Cook, 1964, The Archigram Archival Project)

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A relação entre a arquitectura e o mundo da ficção científica era o tema central desta quarta revista dos Archigram. Os comics americanos dos anos 50 e 60 eram ricos em representações de cenários futuristas e de super-heróis que salvavam planetas distantes ou que impediam catástrofes em mundos onde a tecnologia imperava. E neste número, onde surge a Plug-in City de Cook, os autores configuram um estilo gráfico baseado nessas mesmas bandas desenhadas como forma de criar uma ligação entre a arquitectura que os Archigram praticavam e o futuro desenhado antevisto pelos comics. A proposta era a de criar uma leitura arquitectónica feita através deste estilo gráfico em ascensão. Foi nesta época, onde a imagem da estética da banda desenhada, lançou o trabalho dos Archigram para publicações em revistas estrangeiras como a francesa L'Architecture D'Aujourd'hui e a americana Architectural Forum. Num artigo desta quarta edição da revista pode mesmo ser lido o que seria o futuro arquitectónico para os Archigram quando dizem que “as cidades do ano 2000 são vastas, dispersas metrópoles, com incontáveis e retorcidos túneis e passagens subterrâneas...” (Space Probe, Revista Archigram nº 4, 1964)

Ilustração 56 – Capa da quarta edição da Archigram. (Amazing Archigram 4, Warren Chalk, 1964, The Archigram Archival Project,) e a sua influência visível na capa da banda desenhada Mystery in Space. (Mystery in Space, volume 1, número 61, 1960)

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Para os Archigram estava em causa um interesse em unir a tradição das vanguardas expressionistas e futuristas com a ficção da banda desenhada. Com o super-herói da capa de Archigram 4, o grupo não tencionava a análise intelectual da banda desenhada como produto cultural. Esta aproximação à banda desenhada surge como uma aproximação de consumidor, onde, sendo eles mesmos consumidores criadores do produto que vendem, conseguem-no manipular intelectual e fisicamente, podendo organizá-lo a seu critério. Na Amazing Archigram, e pelas mãos de Chalk, é criado o "Space Probe", uma história em quadradinhos, composta por quatro páginas com imagens retiradas de vários comics americanos, colocadas de forma diagramática, a fim de contar uma história. Depois de saudar Roy Lichtenstein, influência destacada, no texto do primeiro balão, tentava-se dar um enfoque às principais características da cidade do futuro tal como a representada pelos comics americanos.

Ilustração 57 – Primeira página da Archigram 4 com o título Space Probe que faz as honras de abertura da publicação. (Amazing Archigram 4, Warren Chalk, p. 1, 1964, The Archigram Archival Project)

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A Space Probe foi uma espécie de introdução ao tema que iria ser abordado na Archigram 4. Os temas mais recorrentes são as estruturas em tentáculos, os tubos, as enormes estruturas aéreas ou as cápsulas plásticas. A imagem mais conhecida recuava ao tempo de Alex Raymond 153 com a nave espacial e a sua cauda de cometa contra um perfil urbano futurista. O vocabulário dos Archigram nesta edição era pontuado pelo uso de onomatopeias retiradas do mundo da banda desenhada, como é o exemplo das expressões Zoom, Zipp, Blaam, Whizz ou Pop up. Com a intenção de resumir um pensamento através de um som, consegue-se sugerir sempre uma estratégia de rapidez ou de encaixe. E num trabalho maioritariamente gráfico, as onomatopeias são a linguagem de eleição para incutir uma noção de tempo e de rapidez. O uso da expressão Zoom na capa da revista, além do seu sentido literal de aproximação a várias escalas, ganha exactamente essa noção de velocidade.

Ilustração 58 – Página dedicada ao projecto de Jacques Cousteau para referir as cidades subaquáticas. (Amazing Archigram 4, Warren Chalk, p. 5, 1964, The Archigram Archival Project) 153

Alexander Gillespie Raymond (1909 – 1956) foi um desenhador norte-americano conhecido por ter criado personagens como Rip Kirby ou Flash Gordon. (ver na www: <http://www.lambiek.net/artists/r/raymond.htm>)

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Existe a mesma consistência numa cidade da Adventure Comics do período de 1962-3 e o projecto Alpine Architecture de 1917 de Taut, com a mesma intensidade preditiva e estilística. (...) O cruzamento fértil pode advir do design mas apenas - e esta é a questão - quando a ideia é grande o suficiente; assim encontramos ambientes condicionados de cúpulas sobre as cidades e representações de redes urbanas na banda desenhada. (...) Umas das grandes fraquezas da nossa arquitectura urbana imediata é a inabilidade de conter o objecto em movimento rápido como parte de uma estética global. - Mas a imagem da banda desenhada sempre foi mais forte neste ponto. A representação do movimento dos objectos e do movimento dos contentores é consistente com o resto, e não apenas porque a velocidade é o gesto principal. (Zoom And Real Architecture, Revista Archigram nº 4, p. 18, 1964)

4.2.3.5. ARCHIGRAM 5 A Archigram 5, de 1964, com o subtítulo Metropolis, pretendia estudar o desenho da cidade recorrendo a um leque de alternativas urbanas relacionadas com o tema da mega-estrutura. Ao longo de 22 páginas são apresentados projectos de vários arquitectos inseridos nas diversas temáticas contempladas em cada página. As obras dadas a conhecer tinham como problemática a questão da metrópole com os seus projectos a nível urbano e as estruturas de grande escala sendo feitas diversas considerações sobre ambas pelos elementos do grupo. Torna-se assim uma publicação mais especulativa e manifestante. Nesta edição, talvez a mais marcante em temos de projectos e de aceitação, são-nos apresentadas obras como a Underwater City de Chalk, a mediática Walking City de Herron, a Computer City de Crompton e a Interchange City de Chalk e Herron. De repente tudo isto surge numa questão: Serão as cidades ainda necessárias? Ainda precisaremos da parafernália de uma metrópole para albergar as funções executivas da cidade capital? Precisaremos da aglomeração de cinco, dez, ou vinte milhões de pessoas para aprender, se divertirem, apreciarem boa comida ou fazerem parte da alta produtividade? De um ponto de vista abstracto, provavelmente poderá ser provado que a metrópole é um tipo de organização ineficiente. Mas enquanto o contacto físico das pessoas continuar a existir, com funções que não poderão ser simuladas ou empacotadas, a cidade como uma ideia manterá a sua importância como a maravilhosa turba de uma experiência de alta-pressão de acontecimentos colectivos. (Peter Cook, Warren Chalk, Dennis Crompton, revista Archigram nº 5, 1964, p. 1)

Os projectos apresentados, no que diz respeito à sua composição e imagem, à semelhança da revista anterior, recorrem novamente ao mundo da ficção científica dos comics americanos. Desta vez, sem o recurso aos quadradinhos que impõem um ritmo narrativo, a Archigram 5 estrutura-se como uma revista mais descritiva onde a imagem

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e o texto se complementam mas não se intercalam à semelhança do que acontecia com as edições anteriores.

Ilustração 59 – A Walking City de Ron Herron. Proposta para uma cidade nómada onde as actividades urbanas não se confinavam a um lugar específico. (A Walking City, Ron Herron, 1964, The Archigram Archival Project)

4.2.3.6. ARCHIGRAM 6 A revista número seis sai em 1965 e recorre ao tema da pré-fabricação e das estratégias mega-estruturalistas. Seguindo esta temática, a revista foi elaborada de forma reversível e consta de duas capas, uma dedicada aos projectos da década de 40 e a outra aos de 60. Dando continuação à ideia de Peter Cook da Plug-In City, onde a cidade crescia com o encaixar de peças habitáveis num elemento estrutural, complementada com o conceito das cápsulas de Warren Chalk, os elementos dos Archigram continuam a trabalhar neste programa apresentando mais ideias para vários outros serviços possíveis de ser “encastrados” na Plug-In City. Esperamos por algumas coisas: por um bom sistema a ser desenvolvido por alguém. Por mais alguns edifícios de alto calibre (e construídos por novos arquitectos). Por aqueles que detêm a responsabilidade da construção em massa que olhem para lá da mera satisfação da rapidez, a boa arquitectura deve sempre olhar para lá da rapidez, por vezes até trocá-la por algo melhor. (Peter Cook, Warren Chalk, Dennis Crompton, Ron Herron, Mike Webb, David Greene, revista Archigram 6, 1965, p. 15)

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Ilustração 60 – As Capsule Homes de Warren Chalk. Estudo para um pré-fabricado baseado na cápsula especial podendo ser personalizado com a montagem de diferentes elementos. (Capsule Homes, Warren Chalk, 1965, The Archigram Archival Project)

A Archigram 6 é-nos apresentada de forma diagramática. As imagens são ordenadas dentro de áreas delimitadas conferindo à leitura uma ordem à semelhança de uma banda desenhada tipo. As várias páginas da edição são compostas desta forma dando a conhecer os projectos do grupo com imagens intercaladas em textos explicativos. Nas páginas explicativas da Plug-In City de Peter Cook, são apresentados diagramas evolutivos de como a sua construção se desenvolve de forma sequencial.

Ilustração 61 – A quarta página da Archigram 6 que lança retóricas sobre as questões energéticas nos edifícios. (Archigram 6, p. 4, 1965, The Archigram Archival Project)

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4.2.3.7. ARCHIGRAM 7 Com a Archigram 7, em 1966, dá-se continuidade ao estudo das mega-estruturas e das cápsulas enquanto construções móveis, questionando a rigidez dos projectos apresentados nas revistas anteriores assim como refere Peter Cook: “Na Archigram 7 estamos à procura de várias interpretações das ideias básicas lançadas nos números anteriores: crescimento, mudança, metamorfoses, indeterminação, anti-zonamento, dispensabilidade, zonas livres, etc.” (Peter Cook, Archigram 7, 1966, verso da folha 9). Num conjunto de folhas soltas dentro de uma capa de plástico, Peter Cook apresenta mais um projecto Plug-In de cápsulas descartáveis para habitação assim como um estudo de uma rede de circulação pelas mesmas, David Green cria um Pod, uma habitação mecanizada que poderia existir por si só ou fazer parte de uma estrutura maior e Rob Herron apresenta uma proposta de uma estrutura de caravanas móveis para habitação não permanente.

Ilustração 62 – O Living Pod de David Greene. Proposta de uma habitação itinerante mecanizada. (Living Pod, David Greene, 1966, The Archigram Archival Project)

Em termos de imagem a revista recorre ao uso das colagens de forma assumida sem a preocupação de esconder o perfil recortado das próprias imagens. Voltam-se a inserir em algumas páginas o elemento do balão de fala da banda desenhada. A página impressa já não é suficiente: as ideias e as situações envolvem agora movimento e sequencias que necessitam de fita, cor, magnificação e explicação em profundidade: As revistas irão dissolver-se em redes híbridas de comunicação de uma só vez. (A. Golding, Archigram, Craig Hodgetts, Doug Michels, Archigram 7, 1966, folha 2)

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Ilustração 63 – Página conceptual explicativa de projectos concretizáveis no futuro. (Archigram 7, William Chalk, 1966, verso da primeira folha, The Archigram Archival Project)

4.2.3.8. ARCHIGRAM 8 É a partir da Archigram 8, em 1968, que os Archigram começam a dar mais importância às actividades humanas, reproduzindo imagens onde a figura humana se torna central, chegando até a tornar-se o elemento essencial da composição. Os projectos estão assim mais ligados ao ser humano e à sua escala, tendo-se o grupo concentrado em propostas que beneficiassem o bem-estar individual, deixando um pouco mais de parte os projectos de escala urbana. Assim Webb surge com o Cushicle e com o Suitaloon, dois projectos à escala individual, e Cook com o Ideas Circus, uma proposta para veículos itinerantes com espaços dedicados para a exibição de exposições e seminários. Sendo esta edição mais ligada ao indivíduo, as imagens das grandes estruturas são substituídas pelas imagens humanas. As colagens da figura humana surgem em grande escala a fim de preencher os espaços arquitectónicos dando-lhes uma ambiência real e o sentido de movimento no projecto. A sociedade afluente rejeitou o determinismo social e ideológico. A inovação técnica permitiu ao indivíduo exigir e obter o que deseja. Os designers devem olhar para a tecnologia como a base do determinismo. Desde há muito que o consumidor tem vindo a exigir a escolha em tudo o que compra. Nós, como designers, devemos lucrar com isso. (Archigram 8, John Bowstead, Roger Jeffs, 1966, p. 7)

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Ilustração 64 – A figura humana a destacar-se numa composição diagramática. (Archigram 8, Archigram, John Bowstead, Roger Jeffs, 1968, p. 7, The Archigram Archival Project)

4.2.3.9. ARCHIGRAM 9 Lançada em 1970, a Archigram 9 vai, cada vez mais, abandonando as soluções totalizadoras para a cidade e continua-se a trabalhar os temas da mobilidade, da metamorfose, o impacto das tecnologias da informação e da comunicação no ambiente urbano e na vida pessoal e a sua respectiva repercussão na arquitectura. São mostrados projectos de redes de comunicação, tanto de transportes como electrónicos. Como consequência deste tema desenvolvido, surge o projecto da Instant City de Herron, Crompton e Cook. Este projecto especulativo pretendia explorar as possibilidades de inserir as dinâmicas metropolitanas noutras áreas através de eventos temporários, estruturas, instalações móveis e tecnologias de informação. Para a explicação deste projecto surge novamente a estrutura e a imagem da banda desenhada. Os quadradinhos sequenciais surgem com as imagens do projecto, encimadas por um texto explicativo com o estilo de grafismo dos comics. Em termos gerais o grafismo desta edição, é nitidamente experimentalista, tanto no que diz respeito aos projectos utópicos, como à forma de os divulgar com imagens psicadélicas que incutiam a noção de movimento.

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Ilustração 65 – A Instant City de Ron Herron explicada com o recurso a balões de fala narrativa. (Archigram 9, Ron Herron, 1970, p. 5, The Archigram Archival Project)

4.2.3.10. ARCHIGRAM 9½ A última revista dos Archigram surge em 1974 já com um final na sua publicação à vista. A temática variada apresenta-nos projectos realizados pelo grupo durante o seu período de mais trabalho e, devido a este facto, esta edição foi considerada, não como uma nova publicação, mas sim como um suplemento à anterior. O nome Archigram 9½ reflecte este cariz de continuação e não o de uma revista com novas temáticas. A temática continua a ser a relação do Homem com a tecnologia em situações efémeras, transitórias e híbridas que levam a uma progressiva desmaterialização e fragmentação da arquitectura na Natureza, questionando os limites entre arquitectura e tecnologia. São demonstrados três projectos para o concurso Royal Mint Site Housing por Warren Chalk, Peter Cook e Ron Herron e apresentadas fotografias de exposições realizadas pelo grupo. Em termos de grafismo, a Archigram 9½ dá-nos a conhecer uma estrutura mais rígida e menos dinâmica que a das anteriores edições. Os projectos encontram-se enquadrados por um limite desenhado e a leitura faz-se sempre, em todas as páginas, de cima para baixo, tornando a leitura muito rápida. A quase ausência de textos longos

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e explicativos faz com que o leitor se concentre mais nas imagens que falam por si só, tentando explicar o projecto.

Ilustração 66 – Esquema sequencial de um estudo sobre a evolução da arquitectura (Peter Cook, 1974, The Archigram Archival Project)

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4.3. HERZOG & DE MEURON 4.3.1. INTRODUÇÃO Para Jacques Herzog e Pierre de Meuron 154, a arquitectura sempre foi a oportunidade de poder iluminar e preencher espaços de vivência e de trabalho criando experiências sensíveis aos utilizadores. Para isso recorrem ao uso de materiais inovadores ou à reutilização de materiais tradicionais de forma completamente inusitada, mas funcional, nas suas obras. Se a nível de espaço os ambientes ganham uma nova interpretação, a nível visual as obras de Herzog & de Meuron tornam-se ícones locais. Graças aos numerosos projectos realizados no início das suas carreiras, que se destacaram pela sua densidade apesar da sua pequena dimensão, Jacques Herzog e Pierre de Meuron tornaram-se arquitectos reconhecidos pela exploração dos fundamentos essenciais da arquitectura. Estes pequenos projectos que inicialmente concretizaram foram, pela sua qualidade, rapidamente divulgados e a consequente realização de projectos de escala superior, com programas extensos, exigidos por uma sociedade tão avançada e com uma rica tradição na concepção arquitectónica como a suíça, elevaram o atelier a um dos mais importantes e bem-sucedidos da sua geração. Os seus projectos transformaram a matéria indo para além das limitações do lugar e do programa. As suas primeiras obras demonstram que as ideias se podiam fundir sob formas concentradas e reduzidas, ao estilo de Mies Van der Rohe 155, tão redutoras da modernidade, comparáveis à arte minimalista de Donald Judd 156 ou mesmo intencionalmente puras a fim de alcançar a pureza dos primeiros edifícios de Le

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Jacques Herzog (1950) e Pierre de Meuron (1950), conhecidos pelo seu trabalho em conjunto, são os fundadores do atelier de arquitectura suíço Herzog & de Meuron, fundado e mantido em Basileia desde 1978. Ambos com a mesma idade, seguiram um caminho estudantil paralelo, frequentando o Swiss Federal Institute of Technology em Zurique, de 1970 a 1975 com Aldo Rossi e Dolf Schnebli. São ambos professores convidados na Harvard University desde 1994 e membros do ETH de Zurique, também aí leccionando desde 1999 e tendo fundado o ETH Studio Basel. Em 2001 foram escolhidos para partilharem o prestigioso prémio de arquitectura Pritzker em 2001 e ganharam o Praemium Imperiale em 2007. Actualmente contam com mais de 250 arquitectos que trabalham em escritórios espalhados por Londres, Hamburgo, Nova Iorque, Barcelona e Pequim. (ver na www: <http://www.herzogdemeuron.com/index/practice/profile.html>) 155 Ludwig Mies Van der Rohe (1886-1969) foi um arquitecto alemão, naturalizado americano, foi o criador de frases como "less is more" (menos é mais) e "God is in the details" (Deus está nos detalhes) que sintetizavam a filosofia por detrás da sua obra. (ver na www: <http://www.infopedia.pt/$mies-van-derrohe>) 156 Donald Clarence Judd (1928-1994) foi um pintor e escultor norte-americano associado ao minimalismo. A sua obra revelava uma apresentação clara sem hierarquias composicionais. (ver The Oxford Dictionary of American Art and Artists, Ann Lee Morgan, 2007)

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Corbusier 157. Só mais tarde se deu a combinação da matéria física da arquitectura com a capacidade de poder expressar qualidades conceptuais na mesma, ou seja, a partir da matéria pôr em prática uma ideia, um conceito. Esta evolução ideológica faz com que os seus trabalhos mais recentes sugiram já uma mudança de atitude e um interesse crescente no factor estético e de uma valorização cada vez maior da imagem. Os arquitectos costumam citar Joseph Beuys 158 como uma inspiração artística permanente, colaborando com diferentes artistas em vários projectos arquitectónicos, sendo grande parte do seu sucesso esta interligação das ideias influenciadas por vultos das artes plásticas com a habilidade do atelier na escolha e uso de materiais inovadores. Nós procuramos por materiais que sejam tão incrivelmente belos como as cerejeiras em flor do Japão, tão densos e compactos como as formações rochosas dos Alpes ou tão misteriosos e incomensuráveis como a superfície dos oceanos. Nós procuramos materiais que sejam tão inteligentes, versáteis e complexos como o fenómeno da Natureza. Por outras palavras, materiais que não saltem apenas à vista mas que sejam eficientes a apelar aos nossos outros sentidos – não só à visão mas também à audição, ao olfacto, ao gosto e ao tacto. (Jacques Herzog, Herzog & de Meuron 1997 – 2001, The complete projects Volume 4, Birkhäuser Verlag Basle Boston Berlin, 2009)

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Charles-Edouard Jeanneret-Gris (1887-1965), conhecido por Le Corbusier, defendia a austeridade na arquitectura repudiando qualquer tipo de manifestação de ornamentação dos edifícios. (ver na www: <http://www.biography.com/people/le-corbusier-9376609>) 158 Joseph Heinrich Beuys (1921-1986) foi um artista alemão cuja obra se desdobrava em vários meios e técnicas, incluindo escultura, performances, vídeo e instalações. Considerado um dos mais influentes artistas alemão da segunda metade do século XX, colaborou com os Herzog & de Meuron. (ver na www: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/63668/Joseph-Beuys>)

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4.3.2. A IMAGEM DO MATERIAL São muitos os arquitectos que recorrem a uma imagem ou estilo arquitectónico que os identifica ou que utilizam algum elemento visual, construtivo ou conceptual, constante na sua obra. No caso dos Herzog & de Meuron a sua imagem de marca é a capacidade de não terem uma imagem estabelecida que os identifique como criadores da obra, fazendo com que cada projecto seja lido individualmente. Isto não quer dizer que o conjunto da obra do atelier seja disperso e incoerente, pelo contrário, a coerência encontra-se no conceito por detrás de todos os projectos. Se visualmente cada obra é distinta de qualquer outra, conceptualmente, os projectos unem-se com a ideia que lhes está subjacente: a escolha assertiva do material assim como a da desejada textura, forma e disposição do mesmo, dependendo do local onde se inserem. É esta inteligência prática do saber dar uso a diferentes materiais em cada obra, assim como a inventividade projectual, que demonstra a importância de um lado gráfico no trabalho dos Herzog & de Meuron. Esta importância dada à imagem dos projectos, através das materialidades, reflecte-se também na sua maneira de os divulgar. Se as suas obras podem ser vistas como transições harmoniosas entre a tradição e a inovação, entre a geometria minimal e a ornamentação elaborada ou entre o movimento e a estática, é sempre graças à habilidade de saber unir os materiais naturais com os industriais. (…) Andy Warhol foi um artista que gostaríamos de ter conhecido. Ele transcendeu categorias. É tão simples chamá-lo de artista Pop. Ele usava banais imagens Pop para dizer algo novo. É exactamente nisto que estamos interessados: em usar formas e materiais que todos reconhecem de uma maneira inovadora para que eles ganhem novamente uma nova vida. Nós adoraríamos fazer um edifício que fizesse as pessoas dizer, “isto parece uma casa tradicional antiga, mas ao mesmo tempo há algo de completamente novo nela”. (Jacques Herzog, The Pritzker Architecture Prize, Jacques Herzog and Pierre de Meuron 2001 Laureates – Biography, 2001)

Da obra emblemática do atelier e da sua conhecida capacidade de criar projectos icónicos, podem-se destacar vários que receberam a atenção internacional, tanto pela sua qualidade espacial, como pelo uso de materiais nobres e locais, assim como pela inventividade da união da matéria à imagem do projecto. Dos primeiros projectos internacionais do atelier, o que mais se destacou foi certamente o das vinhas de Dominus na California, realizado em 1998. Este edifício linear que se prolonga numa extensão de 100 metros, intenta na criação de uma obra que se inserisse na envolvente repleta de vinhas e num local onde as de extremas condições climatéricas.

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Perante estas condições, os arquitectos criaram uma estrutura que as pudesse suportar aliando a vantagem de poder minimizar no recurso ao ar condicionado.

Ilustração 69 – O edifício das vinhas de Dominus foi o primeiro projecto realizado pelo atelier nos Estados Unidos em 1997. (Wine Spiral Project, 1997)

O resultado foi uma estrutura exterior concebida em gabiões que isola as salas interiores do calor do dia e do frio da noite. A escolha de basalto, cuja gradação cromática vai desde o verde-escuro até ao preto, teve como princípio a ideia do projecto se envolver com a paisagem. Mas se a imagem deste projectos se apresenta mais sóbria e contida, numa interligação orgânica com o lugar, outros projectos do atelier há cuja imagem se destaca como elemento singular, tornando-se um elemento tão destacado que se torna um ícone local como é o caso do estádio de Pequim, construído pela ocasião dos Jogos olímpicos de 2008. Neste caso, a obra tornou-se tão emblemática que os próprios chineses a apelidaram de “Ninho”.

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Ilustração 70 – O estádio de Pequim destaca-se pelo seu desenho reticular semelhante a um ninho. (Herzog & De Meuron, 2008)

Outro projecto que demonstra a importância visual dos projectos dos Herzog & De Meuron é o da VitraHaus. O conceito por detrás deste projecto une dois factores que são transversais à obra do atelier, a casa arquétipo e os volumes empilhados. Quando a marca Vitra, conhecida pelas suas peças de design destinadas a escritórios e a clientes de negócios decidiu criar uma nova colecção para casa, dedicada a clientes particulares, decidiu pedir um projecto ao atelier Herzog & De Meuron, concluido em 2009, para se transformar numa casa de exposição das peças da marca. Situada em Weil am Rhein, na Alemanha, o seu desenho faz remontar à ideia da casa particular já que o seu propósito do edifício de 5 andares era poder servir de espaço para a apresentação de mobiliário e objectos para a casa. Devido às proporções dos espaços interiores, numa escala “doméstica” as salas de exposição assemelham-se aos espaços de uma residência familiar. As “casas” individuais que comportam na generalidade as características de espaço de exposição, foram concebidas como elementos abstractos. Salvo algumas excepções, só as empenas dos vários volumes são envidraçadas. Empilhados numa altura total de 21 metros na zona mais alta, as doze “casas” intersectadas, criam uma noção de assemblagem em três dimensões, criando, numa primeiro olhar, uma noção de aparente caos construtivo.

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Conforme vamos descobrindo o nosso caminho dentro da VitraHaus, descobrimos que a orientação dos vários volumes não é arbitrária, ela é determinada pelas diferentes vistas da paisagem envolvente.

Ilustração 71 – A VitraHaus, mais do que uma obra arquitectónica, é uma obra visual. (Herzog & De Meuron, 2009)

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4.3.3. METROBASEL A importância dada por Herzog & De Meuron à imagem dos seus projectos não se manifesta apenas através da sua obra construída. Esta sua intenção de conceber ícones atravessa também os seus estudos mais teóricos. Estando o atelier envolvido em estudos específicos ao nível urbano em várias áreas da Suíça, e tendo reunido informações específicas e detalhadas sobre a cidade de Basileia, surgiu a necessidade de os divulgar. Apesar de todos estes estudos serem massivos em termos teóricos, o atelier procurou uma forma de os difundir de forma elucidativa, mas de maneira sintética e apelativa. Eis que surge então um retrato de Basileia e da sua envolvente sob a forma de banda desenhada com a publicação de MetroBasel - A Model Of A European Metropolitan Region. Publicada pelo ETH Metro Basel 159 e concebida por Jacques Herzog, Pierre de Meuron e Manuel Herz, esta banda desenhada narra a história de Michel e Patricia, personagens retirados do filme À Bout de Souffle de Jean-Luc Godard 160, que são, nesta história, os personagens principais 159

O ETH Studio Basel é um instituto de investigação criado pelos arquitectos Roger Diener, Jacques Herzog, Marcel Meili, e Pierre de Meuron em Basileia em 1999, como parte integrante da faculdade de arquitectura do ETH Zurique. Este instituto, cujo trabalho de investigação se centra no estudo das áreas metropolitanas de várias regiões europeias, pretende responder a questões urbanas, sociais e políticas, de forma a agrupar toda a informação relevante, para a poder utilizar numa mais consciente e reflectida prática arquitectónica. Depois do estudo de quatro anos intitulado Suíça – Um Retrato Urbano, que investigou as condições urbanas da Suíça como um país completamente urbanizado, o ETH Studio Basel, começou um programa de pesquisa sobre os processos de transformação no domínio urbano à escala internacional, focando-se nos processos de urbanização das sete Ilhas Canárias, no desenvolvimento da região tri-nacional de Basileia, este que serviu de basa para a publicação Metrobasel, e em cidades como Belgrado, Havana, Nairobi, Casablanca e Hong Kong. Os estudos promovidos pelo instituto abordam os problemas da condição urbana contemporânea, descrevendo meticulosamente as modalidades da transformação física em diferentes ambientes e contextos. Toda esta acção de investigação é levada a cabo com e por estudantes e promove, não só o estudo teórico como todo o trabalho de campo que seja necessário ser efectuado. O ETH Studio Basel investiga regiões que, normalmente, têm um desenvolvimento ambíguo e que estão envolvidas em processos de globalização. Estes são lugares que mantêm a sua identidade sem nunca explodir ou colapsar, pois estão ligados a fluxos internacionais económicos e sociais que continuam a evoluir não deixando que isso aconteça. Estas investigações levadas a cabo pelo Studio Basel baseiamse na hipótese de que as cidades contemporâneas não se desenvolvem todas da mesma maneira nem na mesma direcção, mas consolidam, transformam ou adaptam as suas características específicas às do local. Estes processos de desenvolvimento não são apenas moldados pela especificidade local ou pela tradição histórica, mas também pelo desenvolvimento de novas formas de transformação e de diferenciação praticadas na sequência das ideologias das redes globais contemporâneas. O interesse dirige-se para o estudo de diferentes condições urbanas, centrais ou periféricas, dinâmicas ou estagnadas, tradicionais ou sem história, anónimas ou reconhecidas, tendo como base os diversos dispositivos de transformação que fundamentam as suas situações específicas tentando perceber o que faz com que as cidades se transmutem e o que as torna únicas. Estes estudos revelam que a evolução da cidade contemporânea não segue um movimento linear, ela é modificada por processos de transformação direccionados a metas, por vezes distantes e conflituosas, promovidas por vários actores que interagem sem o conhecimento da situação global. É neste campo que o Studio Basel trabalha, fomentando a cooperação dos vários actores e oferecendo uma visão qualificada da situação arquitectónica e urbana de modo a poder interagir na cidade de forma consciente. (ver na www: <http://www.studio-basel.com/eth-studio-basel.html>) 160 À Bout de Souffle (lançado em Portugal com título O Acossado) foi o primeiro filme realizado por JeanLuc Godard, cujos personagens Michel e Patricia, personagens interpretados pelos actores Jean-Paul

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que vagueiam pela cidade observando os seus aspectos urbanos e arquitectónicos enquanto analisam a região de acordo com temas e actividades urbanas. Ao mesmo tempo eles dão a descobrir os potenciais, as deficiências, as ideias e as visões de como a área metropolitana de Basileia 161 se pode transformar em seu próprio benefício. Esta banda desenhada apresenta-se como um excelente meio de comunicação, já que, de uma maneira mais descontraída, concilia um conteúdo narrativo com factos e informações de fundo, factualmente e tecnicamente precisas, onde, de uma forma exaustiva, consegue ser apelativa e perceptível ao falar de tópicos que, se fossem expostos de maneira mais técnica, surgiriam de forma abstracta para o leitor não entendedor da matéria. Assim a vantagem e a intenção desta publicação é a de chegar ao público em geral, mesmo ao não especializado, e poder ser lida e percebida também por leitores de diferentes faixas etárias. A banda desenhada permite que, ao mesmo tempo que se apresenta a cidade de Basileia pelos personagens Patricia e Michel, se insira nela uma atmosfera, por vezes romântica ou dramática, entre os personagens, fazendo com que a arquitectura e os projectos sejam, embora de forma virtual, vividos e experienciados com sentimentos reais. Aproveitando as capacidades do estilo da banda desenhada, a narrativa é complementada pelas imagens. O texto explicativo surge como fala dos personagens, e deixa de ser extensivo graças ao facto de poder ser auxiliado pelas imagens. Esta publicação divide-se em oito capítulos, estruturados tematicamente, constituídos por uma introdução, descrevendo a história urbana da região, por seis capítulos

Belmondo e Jean Seberg respectivamente, foram retirados do contexto do filme e “colados” nas páginas aos quadradinhos da publicação, percorrendo a cidade de Basileia e explicando-a no contexto arquitectónico. (ver na www: <http://www.allmovie.com/movie/breathless-v7054>) 161 Basileia e a sua densa área urbana envolvente de 800 000 habitantes constitui o centro internacional no campo das artes, da indústria química e das ciências onde, apesar da sua pequena área, alcançou o reconhecimento internacional. É uma região que se estende por três países, distribuída por nove distritos e regiões administrativas e constituída por mais de 200 concelhos, cada um com as suas leis, directrizes, por vezes conflituosas nos objectivos de desenvolvimento, onde qualquer esforço coordenativo para a realização de um plano regional ou de desenvolvimento urbano torna-se fútil e é rapidamente dissolvido na complexa rede de obstáculos administrativos. Apesar da sua localização geográfica e do carácter internacional da região, os planos urbanísticos estão ainda a ser desenvolvidos de maneira tradicional com o mínimo de coordenação entre as comunidades vizinhas, accionando poucas ou nenhumas visões extra fronteiras de como a região deveria de ser desenvolvida. Enquanto o departamento de planeamento do distrito de Basileia se encontra a trabalhar num novo plano de zonamento, esta que é a primeira grande revisão desde há trinta anos, o ETH Studio Basel percebeu que esta seria a sua oportunidade para desenvolver uma proposta alternativa e para sugerir uma diferente metodologia de como a cidade deverá ser desenvolvida no futuro com a criação da publicação em banda desenhada MetroBasel. Ver MetroBasel: A Model of a European Metropolitan Region, Jacques Herzog, Pierre De Meuron, Manuel Herz, 2009)

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temáticos, examinando como as pessoas vivem em Basileia, como trabalham como se movem, conduzem ou andam dentro da região metropolitana, como são os seus consumos e opções de compra, como e onde estudam, investigam e praticam actividades religiosas, onde se podem divertir ou relaxar e termina com uma conclusão, onde depois de examinados todos os pontos anteriores, são apresentados exemplos práticos de projectos do atelier para a cidade. A publicação inicia com uma pequena cena onde os dois personagens principais, dentro do avião rumo a Basileia, começam a vislumbrar, através das janelas, a cidade ao longe e, numa conversa entre ambos, faz-se um apanhado geral da história da cidade e de algumas das suas características. A acção decorre, depois da aterragem de Michel e Patricia, no primeiro capítulo, com a ida de ambos ao ETH, onde um estudante do instituto mostra aos visitantes alguns dos documentos de pesquisa da cidade, com o fim de elucidar Michel e Patricia das características mais técnicas da região, explicando o seu contexto histórico, a sua evolução urbana desde os seus tempos medievais e a sua estrutura natural e a socioeconómica. Nós não estamos assim tão interessados em teorias abstractas de planeamento urbano. Nós preferimos estudar a região observando o que as pessoas que nela vivem fazem e o que não fazem, assim como o que não conseguem fazer. (Herzog & De Meuron, Metrobasel: a Model of a European Metropolitan Region, 2009, p. 43)

Depois destas explicações, Michel e Patricia retomam no dia seguinte ao instituto para conhecerem mais sobre a vivência em Basileia, sendo aqui marcado o início do primeiro capítulo. Conhece-se aqui as tipologias habitacionais existentes e a influência do rio Reno na concentração populacional. Depois destas explicações, Michel e Patricia saem para um passeio de bicicleta ao longo do rio Reno descobrindo os diferentes tipos de habitação que preenchem as suas margens. A reflexão destas temáticas através da banda desenhada traz a vantagem de documentos como plantas tipo de habitações de Basileia serem mostradas, não como um elemento técnico, mas como parte de uma sequência lógica de imagens, intercaladas com balões de fala, que permite ao leitor, mesmo ao mais inexperiente, perceber, através do texto, o que, da maneira tradicional, seria apenas uma imagem isolada que por vezes não consegue “dizer” nada ao leitor. A área metropolitana de Basileia engloba um leque variado de tipologias residenciais. Por consequência ela é uma região europeia modelo. No entanto, ela também tem

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problemas estruturais, os quais iremos observar em detalhe. (Herzog & De Meuron, Metrobasel: a Model of a European Metropolitan Region, 2009, p. 46)

Ilustração 72 – As plantas técnicas intercaladas com balões de fala tornam a leitura mais dinâmica e descontraída. (excerto de MetroBasel - A Model Of A European Metropolitan Region, 2009, p. 10)

O segundo capítulo trata da questão do trabalho em Basileia e de como esta cidade funciona em termos económicos, fazendo-se um estudo sobre a sua produção económica e industrial. Aqui, o casal de personagens, no dia seguinte, decide encontrar-se na praça Müster, a principal praça de Basileia, com o objectivo de começarem uma caminhada desde o parque até à zona industrial nas margens do rio Reno. Ao mesmo tempo, no instituto ETH Basel, professor e aluno dão-nos a conhecer mais sobre a temática económica da cidade como complemento à informação obtida por Michel e Patricia no próprio local. Neste capítulo o recurso aos elementos da banda desenhada permite a criação de esquemas simples em cenários realistas como se uma palestra estivesse a ser dada, sendo explicada pelos alunos do Instituto de uma forma descontraída, como se de uma aula se tratasse. A área metropolitana de Basileia é um importante local de negócios europeu e que consiste num conjunto de sectores económicos. Esses sectores moldaram a cidade. Eles formam espaços específicos na cidade. (Herzog & De Meuron, Metrobasel: a Model of a European Metropolitan Region, 2009, p. 82)

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Ilustração 73 – Um dos alunos do instituto ETH explica os factores económicos da região de Basileia. (excerto de MetroBasel - A Model Of A European Metropolitan Region, 2009, p. 87)

O terceiro capítulo refere-se à mobilidade dentro de Basileia, ao tráfego e às ligações ferroviárias. O capítulo começa, à semelhança dos anteriores, no dia seguinte, onde Michel e Patricia assistem a uma nova conferências dos alunos da ETH Basel sobre este tema da mobilidade. Aqui são tratados tópicos como o tráfego desde o início da fundação da cidade, das suas antigas rotas comerciais, tanto terrestres como por via marítima e a evolução da linha de combóio e de eléctrico. Através de esquemas gráficos, torna-se muito mais simples explicar como funcionam as ligações e as redes de transportes dentro da cidade. A criação de imagens onde os personagens interagem na cidade dá-nos uma visão muito mais realista do que se passa em Basileia. A fotografia real de enquadramentos da cidade é o cenário para a colagem dos personagens que, através dos balões de fala, demonstram o que sentem nesse específico local e momento, transmitindo para o leitor as emoções do como se ele próprio estivesse a ocupar o lugar dos personagens fictícios na história.

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Basileia é uma cidade onde a mobilidade e o transporte de bens e de pessoas são de suprema importância. O tráfego e as infra-estruturas determinaram a imagem da cidade desde os seus primórdios. (Herzog & De Meuron, Metrobasel: a Model of a European Metropolitan Region, 2009, p. 110)

Ilustração 74 – As ruas de Basileia são habitadas pelos personagens fictícios. (excerto de MetroBasel - A Model Of A European Metropolitan Region, 2009, p.112)

No quarto capítulo Patricia e Michel decidem ir às principais ruas de comércio de Basileia, a Steinenvorstadt e a Freie Strasse. Não encontrando as lojas que procuram, decidem ir ao Instituto para se inteirarem com um dos seus alunos sobre esta temática. Descobrem então que em Basileia o diferente comércio se divide pelas diferentes zonas da cidade. O comércio no centro da cidade alberga a maior variedade de lojas.Os centros periféricos, de aspecto mais medieval e tradicional, têm um comércio mais pequeno e onde podem ser encontradas especialidades gastronómicas locais. Fora das cidades o comércio rege-se pelas grandes cadeias de lojas onde o acesso pedestre é trocado pelo automóvel. A utilização da imagem torna-se um recurso necessário a este estudo sobre o comércio. A vantagem surge na sobreposição de vários elementos, tanto de cartografia como dos logotipos de marcas e de imagens dos vários locais da cidade, de forma ordenada, que explicam como a cidade funciona a este nível.

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As trocas comerciais desde sempre tiveram uma influência significativa na modelação das cidades. A área metropolitana de Basileia é um exemplo de como os espaços comerciais continuam a moldar a região. (Herzog & De Meuron, Metrobasel: a Model of a European Metropolitan Region, 2009, p. 142)

Ilustração 75 – A cartografia é complementada por imagens do local e informações diversas que podem ser lidas com as regras da banda desenhada. (excerto de MetroBasel - A Model Of A European Metropolitan Region, 2009, p.149)

O quinto capítulo refere-se às zonas culturais, de aprendizagem e de culto religioso da região. Michel e Patricia, no quinto dia e estadia em Basileia, decidem encontrar-se num dos museus da cidade. Num ponto paralelo da história, no Instituto, fala-se da localização e da importância da arte em Basileia, assim como do teatro e da música. É feito também um apanhado das escolas mais influentes da área, o seu tipo de arquitectura e a sua localização. As universidades, os institutos de investigação, e as Igrejas locais são também tidos em conta na sua vertente histórica. As cidades são lugares de aprendizagem permanente que toma lugar nas escolas, institutos de investigação, universidades, institutos artísticos e em igrejas ou outras instituições religiosas. (Herzog & De Meuron, Metrobasel: a Model of a European Metropolitan Region, 2009, p. 166)

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Ilustração 76 – Os edifícios de arte mais marcantes de Basileia. (excerto de MetroBasel - A Model Of A European Metropolitan Region, 2009, p.170)

O sexto capítulo inicia com um passeio do casal de personagens pelos alpes suíços. No seu passeio encontram um perito na temática que lhes explica como se compõem os alpes, a que regiões pertencem Faz-se também um estudo geológico e meteorológico desta cadeia montanhosa. De volta à cidade, os personagens decidem dar um passeio pela margem do rio Reno e um passeio de bicicleta pelas áreas verdes e montanhosas nas localidades ainda dentro do espaço da cidade metropolitana. A área metropolitana de Basileia situa-se numa localização única na Europa, na zona de junção entre três regiões geograficamente muito diferentes: Jura, Vosges e a Black Forest. (Herzog & De Meuron, Metrobasel: a Model of a European Metropolitan Region, 2009, p. 204)

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Ilustração 77 – É apresentado um estudo geológico europeu para explicar a morfologia geográfica de Basileia. (excerto de MetroBasel - A Model Of A European Metropolitan Region, 2009, p.210)

O capítulo final apresenta-se como um sumário das informações urbanísticas recolhidas nos capítulos anteriores. Aqui são apresentados projectos do atelier, tendo como base os estudos e informações apresentados nos capítulos anteriores, sendo estes estudos preliminares a justificação teórica para os projectos apresentados pelo atelier. Assim como cada capítulo trata de uma diferente temática, o atelier tenta arranjar soluções projectuais ao nível urbanístico para cada uma delas de forma a preencher as lacunas encontradas na cidade de Basileia. Herzog &De Meuron, através de fotomontagens, demonstram as suas intenções de requalificar Basileia, com projectos à escala urbana. As imagens sequencias que pontuam toda a publicação até este ponto, perdem agora essa característica e as últimas páginas com os projectos propostos surgem como fotografias trabalhadas e manipuladas, de folha inteira, com o título do projecto passível de ser construído. Esta escolha explica-se pelo facto da banda desenhada ser um óptimo meio de comunicação do processo de criação do projecto de arquitectura, explicando passo a passo o seu desenvolvimento nas pequenas vinhetas, no entanto, quando Herzog & De Meuron sumarizam todo esse percurso de estudo, optam pela representação de uma imagem que ocupa toda a página com a representação do projecto idealizado e no local, como forma de chamar a atenção do leitor para o projecto delineado para os diferentes locais da cidade.

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É importante referir que o que realmente interessa não é só a excelente arquitectura, é preciso também uma mente aberta e uma vontade para continuar a investir em novas ideias (Herzog & De Meuron, Metrobasel: a Model of a European Metropolitan Region, 2009, p. 248)

Ilustração 77 – Algumas propostas são apresentadas tendo em conta os estudos efectuados nos capítulos anteriores. (excerto de MetroBasel - A Model Of A European Metropolitan Region, 2009, p.252)

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4.4. BJARKE INGELS GROUP 4.4.1. INTRODUÇÃO Ultimamente, alguns arquitectos dinamarqueses têm vindo a renovar e a expandir por completo a linguagem arquitectónica. Um dos casos de maior sucesso foi o atelier Bjarke Ingels Group (BIG). Liderado por Bjarke Ingels 162 e vencedor de vários prémios, este colectivo criou nos últimos anos uma longa lista de projectos inovadores e uma reputação internacional assinalável, assim como detém uma significativa parte activa em decorrentes debates sociais. Tendo como objectivo a intenção de libertar a arquitectura dos seus clichés e tomando os obstáculos da vida moderna como desafios inspiradores, os BIG têm sido o maior contributo para a renovação da tradição arquitectónica da Dinamarca. Apesar da sua irreverência, ao impor nos seus projectos uma dinâmica controversa e provocante, Bjarke Ingels apresenta uma obra justificada pelos seus conceitos. A imagem de cada projecto não tem por detrás a uma ideia abstracta sem fundamento. Cada um deles tem uma história que é explicada desde o processo conceptual até ao seu resultado final. Sendo os BIG um atelier multidisciplinar, composto por arquitectos, designers e teóricos que operam dentro da área da arquitectura, do urbanismo, da pesquisa e do desenvolvimento, a criação de projectos de imagem utópica do atelier é defendida pelos estudos efectuados pela sua equipa. Os BIG sempre atraíram a atenção pública e criaram motivos de debate político com projectos tão polémicos como o muro de três quilómetros de habitação social envolvendo um parque com campos de futebol em Copenhaga, a proposta de consolidação de todas as actividades portuárias num porto em forma de estrela ao longo da ponte entre a Dinamarca e a Alemanha, ou mesmo a intenção, levada a cabo, de mover o símbolo nacional da Dinamarca, a Sereia, para o pavilhão da Dinamarca na China por seis meses por ocasião da Exposição Mundial de Shangai em 2010. Com os seus inovadores e ambiciosos projectos, onde as regras convencionais da arquitectura tradicional são superadas pelas suas qualidades estéticas e fotogénicas, 162

Bjarke Ingels (1974) é o arquitecto dinamarquês fundador e líder do atelier de arquitectura Bjarke Ingels Group desde 2006. Desde 2009, Ingels já ganhou vários concursos de arquitectura catapultando-o a sua visibilidade ao nível internacional. Em 2001 o Wall Street Journal nomeou-o com o prémio Innovator of the Year na categoria de arquitectura. (ver na www: <http://www.big.dk/#about>)

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os seus projectos são, acima de tudo, um estudo bem estruturado sobre como deve ser uma arquitectura sustentável. A capacidade de conectar as zonas de lazer e os espaços públicos ao edifício de habitação privada é uma das vertentes de trabalho que os BIG também privilegiam, compondo obras arquitectónicas onde as formas excêntricas se fundem com a envolvente, formando espaços de transição harmoniosos e orgânicos onde são tidos sempre em conta os factores ecológicos.

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4.4.2. A IMAGEM DO CONCEITO A importância que os BIG atribuem à imagem dos seus projectos é provavelmente tão grande como a que os Archigram atribuíam aos seus. Apesar das obras utópicas dos Archigram não terem sido construídas, os BIG conseguem criar desenhos arquitectónicos com as mesmas características, e levam-nos ao patamar da realidade construída. Esta construção do utópico revela como a imagem se associa ao atelier. Se os Herzog & De Meuron usam a materialidade para criar uma imagem, os BIG desenvolvem a forma. Desde a construção do seu website, que recorre a pequenos logotipos, cada um deles associado a um projecto, passando por conferências dinâmicas onde Bjarke Ingels impõe um certo sentido de humor na explicação dos seus projectos, até à construção de maquetes expositivas feitas em Lego, fazem com que cada uma destas acções promova e mediatize o trabalho do atelier.

Ilustração 78 – Cada ícone do website dos BIG representa a imagem síntese de um projecto. (Bjarke Ingels, website)

Cada projecto é representado por um ícone que capta a essência do projecto. Os ícones podem ser dispostos cronológica, alfabética ou programaticamente, por escala ou por estado. É como abrir um baralho de cartas de diferentes maneiras no ambiente de trabalho do computador. Cada configuração fornece uma ideia geral intuitiva e quantitativa do nosso trabalho. (...) A configuração dos ícones torna-se a expressão gráfica. O desembaralhar torna-se a animação. O conteúdo torna-se a forma. (Bjarke Ingels, website, 2003)

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Do seu relativamente recente trabalho, são já vários os projectos que se destacam a nível internacional. De entre os primeiros trabalhos do atelier destacam-se as piscinas ao ar livre do porto de Islands Brygge em Copenhaga na Dinamarca, construídas em 2003. O projecto das piscinas surge com o desejo de prolongar o espaço dos jardins envolventes até à água, atribuindo ao parque uma nova vertente lúdica. Os espaços verdes passam a servir os banhistas como zona de apoio às piscinas.

Ilustração 79 – As piscinas tornam-se um prolongamento do espaço público. (Bjarke Ingels, website, 2003)

Em 2007 os BIG são propostos a desenhar um programa que consiste na criação de um parque de estacionamento e de habitação privada numa área de 33000 m² em Copenhaga. Em vez da criação de dois módulos separados para albergar cada um dos programas, Bjarke Ingels decide fundir os dois programas numa relação simbiótica. O parque pretende conectar-se com a estrada ao nível térreo e a habitação quer o contacto da luz solar, de ar fresco e de uma boa vista. Assim, o parque de estacionamento surge como as fundações de uma cascata de habitação que se ergue desde o primeiro andar até ao décimo primeiro. A ideia do projecto se parecer como uma montanha é acentuada com a fachada perfurada com círculos de diferentes diâmetros que, quando vista de longe, é sugerida a imagem do Monte Evereste. O experimentalismo da criação de uma imagem arquitectónica é evidente neste projecto criando uma imagem arquitectónica diferente que vai de encontro às espectativas do arquitecto e do cliente.

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Ilustração 80 – O projecto Mountain Dwellings quebra a paisagem horizontal de Copenhaga e faz dele um ícone arquitectónico. (Bjarke Ingels, website, 2007)

A nível internacional os BIG formam bastante aclamados pelo seu projecto para o pavilhão da Dinamarca na Exposição Mundial de Shangai em 2010 na China. Este pavilhão surge como uma estrutura em espiral interactiva, onde os visitantes podiam percorrer o seu espaço de bicicleta, apreciar uma piscina central com a água límpida do mar da Dinamarca onde se encontrava a estátua-símbolo deste país e um espaço de estar para convívio. Estes elementos foram todos condensados nesta estrutura para que os visitantes pudessem experienciar a simulação do estilo de vida dinamarquês. Este projecto tornou-se bastante polémico pelo facto da vontade do arquitecto ter sido a de retirar das águas dinamarquesas o símbolo nacional, a Sereia, a fim de ser colocado no pavilhão. Apesar de grande polémica, o Governo aceitou a ideia e, de certa forma, a imagem do atelier tornou-se ainda mais mediática.

Ilustração 81 – O pavilhão da Dinamarca em Shangai é construído como um loop criando uma ciclovia contínua. (Bjarke Ingels, website, 2009)

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4.4.3. YES IS MORE Com a publicação Yes is More 163, Bjarke Ingels desconstrói a ideia do super-herói de banda desenhada. É o próprio Ingels quem explica os seus projectos, como sendo o personagem principal da história, criando uma sequência de fotografias e esquemas usando as características e a forma da banda desenhada para as compor. Os balões de fala, na maioria das vezes lançados por Bjarke Ingels, descrevem o processo dos vários projectos, como se de uma conferência se se tratasse, e onde as fotografias montadas em sequência complementam a narrativa.

Ilustração 82 – Bjarke Ingels apresenta a sua equipa no atelier num esquema de banda desenhada. (Yes Is More, 2009, p. 20)

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A publicação foi dada a conhecer ao público através de uma exposição que teve lugar no Centro de Arquitectura da Dinamarca com o mesmo nome, Yes is More, entre 21 de Fevereiro e 31 de Maio de 2009. Esta exposição fazia parte de um projecto-piloto denominado Close-up (aproximação), onde através de exposições, debates, seminários e aulas, se efectua um extenso e preciso olhar às novas tendências, teorias e desafios dentro da arquitectura dinamarquesa. A exposição contava com a mostra de vários projectos do atelier numa sala de 450 m² forrada com 310 m de banda desenhada retirada desta monografia, 19 filmes e 30 maquetas. (ver na www: <http://www.big.dk/#projects-yim>)

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Yes is More é a primeira publicação do atelier dedicada exclusivamente à apresentação da obra dos BIG e a primeira dentro do género da banda desenhada, a qual foi denominada de archicomic 164. Ao contrário de uma comum monografia de arquitectura, este livro torna-se num manifesto que aproveita a cultura popular da banda desenhada, onde são dados a conhecer os métodos, meios, processos e abordagens ao conceito arquitectónico dos BIG, de forma tão não-convencional e inesperada como a realidade onde algumas das obras se inserem. Yes Is More é uma archicomic sobre a evolução arquitectónica que toma a forma de um livro e de uma exposição. A ideia era expor a história atrás dos bastidores de como a arquitectura acontece, de como as ideias tomam forma e de como os espaços evoluem. A arquitectura não é nunca accionada por um evento isolado, nunca é concebida por uma só mente, e nunca toma forma de uma só mão. Nem é a materialização directa de uma agenda pessoal ou de puros ideais, mas sim o resultado de uma adaptação contínua em relação às múltiplas forças de conflito que pairam sobre a sociedade. Nós, arquitectos, não controlamos a cidade - podemos apenas desejar intervir. A arquitectura desenvolve-se da colisão de interesses políticos, económicos, funcionais, logísticos, culturais, estruturais, ambientais, sociais entre muitos outros de caracter imprevisível. (…) (Bjarke Ingels, conferência por ocasião da exposição Yes Is More, 2009)

Muitas monografias de arquitectos tentam criar diferentes maneiras de organizar ou de alargar o seu conteúdo para incluir o processo de criação inerente a cada projecto para um melhor entendimento geral. No entanto, o porquê daquele design particular ou daquela textura especial, muitas vezes não é explicado, deixando-nos a ansiar por mais alguma informação que se encontra subentendida. Mas se a maioria dos arquitectos não quer revelar demais, esta monografia quebra com essas regras, pois esta archicomic da evolução arquitectural coloca-se à margem de outras monografias para poder fornecer informações detalhadas sobre o processo de trabalho de Bjarke Ingels.

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Abreviatura das palavras inglesas architecture (arquitectura) e comic (banda desenhada).

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Ilustração 83 – Todo o processo conceptual é explicado até se obter o resultado visual final. (Yes Is More, 2009, p. 79)

Yes Is More é o reflexo do espírito e da filosofia do atelier e resume toda a sua atitude irreverente de encontro ao formalismo excessivo e à sua determinação em envolver a população nas suas criações. O uso da imagem é essencial para que se possa criar, não só um documento que represente o atelier, como também um meio para poder divulgar o trabalho dos BIG através de uma leitura descontraída e com alguns laivos de humor sem nunca perder a noção básica daquilo que trata a arquitectura: o espaço e as pessoas. Como Bjarke Ingels explica no início do livro, ele tentou canalizar a energia e a vida do atelier e dos seus projectos para um suporte pessoal onde pudesse contar as histórias por detrás de cada projecto. Historicamente, a arquitectura tem sido dominada por dois extremos: uma avant-garde cheia de ideias loucas, com origem na filosofia ou no misticismo; e os consultores de empresas bem organizadas que constroem caixas previsíveis e chatas de acordo com altos padrões. A arquitectura parece impregnada ou de utopias naives ou de um pragmatismo petrificante. Nós acreditamos que existe uma terceira via entre estes dois opostos: uma arquitectura de pragmatismo utópico que cria lugares social, económico e

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ambientalmente perfeitos. Nos BIG estamos empenhados a investir na sobreposição entre o radical e a realidade. Nas nossas acções tentamos mover o foco dos pequenos detalhes para a imagem dos BIG. (Bjarke Ingels, Yes Is More, p. 2, 2009)

O conteúdo desta publicação pretende demonstrar como os membros dos BIG dão resposta às exigências da procura de uma forma, às regras urbanas mais complexas e ao conhecimento social especializado, criando soluções através de processos artísticos. Yes is More surge na forma de uma linguagem popular, permitindo que o tecnicismo e a arte maior da arquitectura possam chegar às mãos dos mais inexperientes ao tema. O nome da publicação, como explicado pelo próprio arquitecto nas primeiras páginas, surge depois de uma análise e interpretação de frases ditas por vários arquitectos e figuras públicas que tentaram resumir o seu método de trabalho através de uma afirmação. O modernismo minimalista de Mies Van Der Rohe com a frase less is more, o Pós-modernismo de Robert Venturi com less is a bore, o oportunismo ecléctico de Philip Johnson com I’m a whore, o realismo agreste de Rem Koolhaas com more and more, more is more e a unidade e optimismo de Barack Obama com yes we can, foram os motes para a adaptação da utopia pragmática de yes is more de Bjarke Ingels. Com este mote o arquitecto pretende mostrar que na realidade dos tempos que correm, o importante é ter uma visão optimista aquando da aceitação e criação de uma obra. O “sim” que Bjarke Ingels promove é um sim que representa uma oportunidade de aceitar todo o tipo de desafios, olhando para os obstáculos como uma fonte de inspiração e desafio a superar. Yes Is More apresenta 35 projectos distintos, explicados pelo narrador e personagem principal, Bjarke Ingels, e cada projecto é lido individualmente. O texto alia-se a diagramas, fotografias, desenhos, maquetas e imagens renderizadas de forma a explicar cada projecto desde a sua origem à sua ocupação, ou até à fase em que o projecto se encontra, podendo desta forma visualizar como a consistência conceptual de cada projecto se espelha na consistência formal. O porquê da imagem final de cada projecto é assim dissecada e explicada.

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Ilustração 84 – O percurso conceptual das W Towers é-nos dado a conhecer com o recurso a uma sequência de imagens apoiadas por um texto explicativo. (Yes Is More, 2009, p. 198)

Os diagramas evolutivos dos BIG funcionam muito bem perante este suporte, por vezes contanto uma parte da história do projecto por si só. As palavras inseridas em balões de fala e em caixas de narração tomam uma importância bastante maior do que as de uma monografia tradicional ou as de uma revista da especialidade. Eu leio banda desenhada desde os meus oito ou nove anos de idade e sempre fui um fã da banda desenhada dos grandes desenhadores europeus dos anos 70 e 80: Paolo Serpieri, Tanino Liberatore, e claro, Manara. Mas também de Moebius e de muitos outros. Eu sempre devorei livros deste estilo. (Bjarke Ingels, entrevista por Gianluigi Ricuperati para a revista Domus publicada no website www.domusweb.it, 16 de Dezembro de 2011, Nova Iorque)

Bjarke Ingels, com o seu Yes Is More, consegue pegar nos elementos caracterizadores da banda desenhada e, através deles, criar uma obra única dentro do estilo. Mas Bjarke Ingels, com a frontalidade que o caracteriza, não pretende descurar a fonte desta sua criação e, em determinadas páginas, chega até a transpor alguns elementos de outras bandas desenhadas, assumindo desde logo a importância que elas tiveram nesta obra.

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5. CONCLUSÕES Numa sociedade que recorre cada vez mais à imagem como forma de divulgação e explanação de um produto, é necessário, por vezes, inventar novos ou renovar os já existentes meios de comunicação. A arquitectura não se encontra fora desse lote de “produtos” passíveis de serem mediatizados e, se novos sistemas urbanos precisam de novas formas de planeamento, novos métodos de desenho da cidade precisam de novos meios para serem divulgados. O desenho arquitectónico necessita de utilizar uma linguagem visual mais diversa e simbólica, que poderá muito bem ser retirada de práticas artísticas já existentes, para poder expressar as suas ideias de diversidade urbana e o seu sistema complexo. Acima de tudo quer-se que a cidade idealizada, utópica ou não, possa ser sentida e vista como um sistema habitado e não como uma imagem estática. Isto porque um projecto de arquitectura não pode ser lido fora do seu contexto social, histórico, político, ou económico. A arquitectura é um todo que deve ser lido em continuidade sequencial, desde a sua ideia à sua fundação. De forma geral, o desenho e a fotografia são os dois meios de comunicação mais utilizados para a comunicação do projecto de arquitectura. Normalmente presentes em publicações da especialidade, são apresentados num formato bastante previsível no que diz respeito à sua imagem e estrutura, variando apenas em como o seu conteúdo é apresentado. Fotografias de edifícios, imagens renderizadas de obras não construídas ou por construir, esquissos convencionais, texto descritivo e pouco mais, tornam estas publicações num meio de divulgação do produto, não do processo. Estes elementos, por si só, não passam de documentos estáticos que não nos dão uma noção de narrativa temporal. Se um projecto de arquitectura é muito mais do que a sua imagem final, então um esquisso que relata um momento da obra captado pelo autor, ou uma fotografia que apresenta a obra no seu estado concluído, não são mais do que momentos retirados de um conjunto maior de ideias que constroem a sua história conceptual. Ambos os meios são válidos como documentos no processo de construção de um conceito, mas não como produto final, pois não dão a conhecer as ideias que se encontram por detrás dessas imagens, nem a história que lhe deu origem. Para o processo narrativo de um projecto de arquitectura, é necessária a criação de uma sequência organizada de imagens que, podendo ser aliada a um texto, possa explicar a evolução conceptual e nos faça compreender que a imagem final da obra é

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a suma de todos estes estudos anteriores à sua conclusão. E se há meio de comunicação que está totalmente dependente de uma narrativa e que consegue contar histórias, independentemente do assunto, é a banda desenhada, que tendo a capacidade para contar uma história em sequência, é igualmente apelativa, etariamente abrangente, sintética e um meio de comunicação assumido e válido. Ao contrário do cinema, que decorre ao ritmo estabelecido pelo realizador, a banda desenhada é lida ao ritmo do seu leitor. E muitas das vezes, um documentário de arquitectura não é mais do que os pontos de vista do realizador sobre a obra acabada, não contando a história conceptual que se esconde por detrás dela. À semelhança do criador de BD, o arquitecto também desenha a cidade antes de a construir, imaginando todas as possibilidades, explorando e experimentando todas as dimensões e todas as perspectivas a fim de a visualizar e de a concretizar, fazendo com que ambos os artistas partilhem a mesma visão urbana embora com diferentes finalidades e responsabilidades. Actualmente, deparamo-nos com o facto de a banda desenhada parecer apreender mais da arquitectura contemporânea do que o contrário. No entanto essa tendência tem vindo a ganhar novos contornos e há uma transversalidade muito mais forte entre a banda desenhada e o arquitecto. Enki Bilal, Moebius ou Peeters e Shuiten são exemplos de autores de banda desenhada que se alimentam da arquitectura e das cidades contemporâneas. Eles apreendem as configurações das cidades, os movimentos arquitectónicos, os marcos urbanos europeus e até mesmo os projectos utópicos nunca construídos para a criação de cenários nas suas histórias. Mas as suas cidades são tidas em conta, geralmente, de uma forma negativa. Mostram-nos um mundo paralelo ao real onde a continuação da degradação da cidade, nas suas vertentes socioeconómicas e políticas, se torna uma realidade. Se os arquitectos utópicos conseguem inventar novos complexos que visam o bem-estar de uma determinada população, os artistas de banda desenhada utilizam esses mesmos projectos, habitam-nos e dão-nos a conhecer como seria a sua existência se fossem passíveis de ser construídos numa vertente caótica e sobrepopulada. Assim como estes artistas criaram mundo arquitectónicos utópicos, também há os arquitectos que usam as características da banda desenhada para explicar o seu processo criativo. Os Archigram encontraram neste meio uma forma de criar uma arquitectura utópica visual e impactante divulgada através de revistas. Os Herzog &

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De Meuron usam-na para explicar em tom de conferência os seus estudos urbanos para Basileia com a publicação MetroBasel. Os BIG recorrem a Yes Is More para divulgarem os seus projectos mais emblemáticos, explicando-os desde a ideia que lhes deu origem até ao momento do habitar. Trata-se de três diferentes gerações de ateliers que, assumidamente, travaram uma relação directa com a arte sequencial, libertando-se dos cânones formais habituais. Bjarke Ingels encontra mesmo um termo para definir este tipo de publicação que poderá muito bem ser vista como um novo meio de comunicação da arquitectura: a archicomic, a fusão entre a estrutura e a imagem da banda desenhada e a temática da arquitectura. Não se põe em questão se este será ou não um meio de comunicação que se possa popularizar entre os arquitectos, interessa sim, ter em atenção que ao recorrer a ele, os arquitectos deverão ter em conta que não basta adoptar o formato da banda desenhada, é preciso saber usá-lo, tentando combinar equilibradamente as palavras e as imagens. Uma má gestão de qualquer um destes elementos pode desfazer a história que se quer contar, devendo ter em conta que é a combinação de palavras e imagens que a fazem funcionar. Assim como a arquitectura é construída de forma reflectida, a maneira como deve ser divulgada deverá tomar o mesmo cuidado. A archicomic permitiria que a arquitectura pudesse chegar a públicos diferenciados, dando-a a conhecer numa forma mais descontraída, mas não menos séria.

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A banda desenhada como meio de comunicação da arquitectura

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APÊNDICES


LISTA DE APÊNDICES Apêndice A - Nota introdutória. Apêndice B - Estudo preliminar ao projecto. Apêndice C - Projecto.


APÊNDICE A Nota introdutória


O projecto desenvolvido no 5º ano da disciplina de Projecto em Bruxelas tinha como lugar, uma das zonas da região de Tóquio escolhida pelos alunos e um programa arquitectónico ou urbanístico, de escolha igualmente livre, que se lhe adequasse. Ginza e as flagship stores foram o lugar e a temática escolhidas. Ginza é a área mais rica do mundo e que alberga as maiores lojas das mais influentes marcas internacionais, tal como a Gucci, a Prada, a Louis Vuitton, a Apple, entre muitas outras. Estas marcas são representadas por lojas, designadas por flagship stores, que se erguem nas ruas de Ginza e se destacam pelo seu design extravagante, luxuoso e apelativo. Sem a existência de um programa obrigatório, a escolha do mesmo deveria ser tido em conta depois de uma análise prévia do local, das suas características sociais, económicas, urbanas e arquitecturais. Nesta primeira fase, depois de vários estudos efectuados de uma forma livre, baseados apenas na criação de esquissos, maquetas de estudo, desenhos conceptuais e ideias soltas, procurava-se encontrar uma ideia para um projecto que seria desenvolvido numa segunda fase. O percurso de trabalho e de investigação tornava-se assim o elemento fundamental do projecto, sendo a sua imagem final apenas um sumário de todas estas informações recolhidas. Durante o percurso de pesquisa surgiu a ideia do projecto e da sua apresentação. Havendo a necessidade de organizar as ideias de forma a poder explicitar todo o percurso da escolha do programa, o conceito do projecto surgiu sob a forma de um documento, ao estilo de banda desenhada, que, por um lado, pudesse espelhar o conteúdo do programa mas que, por outro, também tivesse a capacidade de contar a história de todo o estudo realizado antes da concretização do projecto de uma forma sucinta e perceptível. Foi então assim criado um estudo introdutório utilizando a esquemática da banda desenhada, onde através de quatro capítulos temáticos, se organizavam as ideias. O primeiro capítulo consistia no estudo do local escolhido para a intervenção, neste caso a zona luxuosa de Ginza. Aqui são apresentados estudos da economia local, do tipo de comércio existente e da localização das famosas flagship stores. O segundo capítulo dedica-se ao estudo dos objectos, neste caso das próprias flagship stores. São apresentados os edifícios das maiores marcas existentes no local,


a função a que se destina cada piso de cada uma das lojas, o seu arquitecto e a localização da marca pelo mundo. No terceiro capítulo pretende-se dar a conhecer como as flagship stores se distinguem das lojas tradicionais, tanto no seu interior como no seu exterior e como se tornam ícones locais. O quarto capítulo é o da prospectiva do projecto. Aqui são retidas todas as informações anteriores e especula-se sobre um possível projecto a ser concretizado em Ginza. Depois de estudado o local, é encontrada uma área apta à construção do futuro projecto. Através de estudos conceptuais é efectuada a análise das características e do perfil da rua onde se encontra essa área vazia. São apresentadas várias hipóteses de projecto como a criação de um museu, de um hotel, de um espaço público ou de um restaurante, onde a opiniões da população são “ouvidas”. Sendo Ginza a cidade das marcas, a ideia de criação de uma flagship store que pudesse representar uma marca local seria ideal. Sendo o Japão um país rico na produção de marcas automóveis, surgiu essa hipótese. No entanto, estudos recentes apontavam para uma quebra na economia do Japão, e a criação de um stand de venda de automóveis não seria um projecto viável pois as pessoas, mesmo em Ginza, já começam a procurar as lojas mais baratas. Se assim é, a marca que pudesse ser representada por uma nova flagship store em Ginza teria de ser acessível, conhecida e que de certo modo contrariasse, em tom de crítica, todo o consumismo luxuoso da cidade. E se a maca pudesse ser local, melhor seria para a economia. Depois da leitura de algumas notícias sobre as crescentes quedas na economia na imprensa, surge a de que o presidente do Japão, enquanto apreciador de manga, pretende investir num centro cultural onde possa ser divulgada a banda desenhada, assim como todo o mercado que a rodeia, como os filmes de animação ou as figuras de colecção. Aliado à notícia do crescente aumento da venda destes tipos de produto, a escolha de uma nova marca em Ginza estava definida: a Manga. Escolher a cidade mais luxuosa do planeta, com as lojas das mais famosas e prestigiadas marcas, para a criação de uma flagship store de um produto nacional e barato, tornou-se numa decisão controversa mas que seguia a linha condutora do estudo efectuado e logo, hipoteticamente concretizável.


Socialmente, a criação de uma loja de manga iria trazer gente jovem à cidade, de diferentes classes sociais, e permitir que Ginza se tornasse mais heterogénea, menos elitista e, de certo modo, incorporar uma crítica ao consumo crescente das marcas. A nível económico, a promoção e a venda dos manga iria beneficiar com a criação de uma loja estandarte ao lado de marcas como a Chanel ou a Louis Vuitton, tornando-se numa flagship store para o povo. O projecto começa então a ser idealizado. A imagem é o factor mais importante deste tipo de lojas e a sua aparência tinha de espelhar o seu conteúdo. Tendo como referência uma das páginas de um manga, decidi pegar na composição das vinhetas, aumentar o seu tamanho à escala arquitectónica e criar uma fachada onde os vãos se pudessem assemelhar às páginas de uma banda desenhada. Com as alterações que foram necessárias fazer no seu interior, a fachada foi sofrendo mutações até chegar à imagem final. Devido à configuração da área de implantação, a flagship store tornava-se demasiado estreita para ser desenvolvida em extensão. Assim a necessidade levou a que o projecto se elevasse a doze pisos do solo para poder conter todo o programa por mim definido. Este consistia na criação de um átrio de entrada onde se vendem figuras coleccionáveis, posters, filmes e roupa, três pisos de venda e de leitura de manga, um piso exclusivo para leitura, dois pisos dedicados à projecção de filmes de animação e venda de respectivas figuras coleccionáveis, três pisos de escritórios onde os artistas poderão desenvolver os seus trabalhos e dois pisos para eventos, demonstrações, workshops e concertos. Foram definidas três áreas dentro do espaço interior, a de exposição, a de acessos e a de circulação. Esta última área, definida pela configuração da fachada, permitia que a circulação se fizesse de forma desnivelada com a intenção de, quem visse de fora, poder parecer que os utilizadores do espaço se movimentavam dentro de uma banda desenhada. Os vãos sugerem as vinhetas e as pessoas tornam-se os personagens.


APĂŠNDICE B Estudo preliminar do projecto





















APÊNDICE C Projecto














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