editorial “ CALCULO
QUE JÁ TENHA FOLHEADO ESTA BANG!
“
caso de saudade, totalmente ambientado ao nosso país. Jorge Candeias desfia as ligações de José Saramago ao género da Ficção Científica. João Barreiros demonstra porque ficou famosa a sua caneta de aparo de titânio. David Soares fascina-nos com a sua arte num excerto do recente “As Trevas Fantásticas”. E, a propósito do lançamento de uma colectânea, José Manuel Lopes, professor de tradução, e Fernando Ribeiro, vocalista da banda Moonspell, falam de um dos Mestres do Terror, H. P. Lovecraft. Para terminar, Ágata Ramos deixa-nos com um lampejo da personalidade do Sr. Bentley, de quem aposto que voltaremos a ouvir falar. O pacote está decorado e bem recheado. Agora cabe-vos a vós mergulharem nestes mares de Aventura e Especulação, onde tanto arriscam cruzar-se com o Passado como com o Futuro. Esperamos que gostem… e daqui a três meses voltamos com o Número Um.BANG!
Se ainda não, vá lá fazê-lo; eu espero aqui… Atraente, não é? E, ainda por cima, repleta de mundos por descobrir. Do estrangeiro chegam-nos contos de Lavie Tidhar, israelita actualmente a viver em Londres, que nos mostra, com uma história premiada com o 1º Prémio Clarke-Bradbury, da Agência Espacial Europeia, que apesar de no Espaço ninguém nos ouvir gritar há quem oiça música, e Lawrence Schoen, escritor norte-americano que nos dá a conhecer uma nova maneira de “saber envelhecer”. Publicamos também um clássico da pulp fiction, Robert E. Howard, criador de Conan, aqui com um conto de Salomão Kane, o Puritano. Por muito que nos orgulhemos da qualidade da ficção estrangeira, o conteúdo nacional ocupa um lugar de relevo. Porque um dos principais objectivos da BANG!, para além de servir de montra, em português, do que de melhor se vai fazendo lá por fora, é descobrir e incentivar o que se escreve em Portugal. Seja ficção, artigo ou crítica. João Ventura revela-nos um estranho
Rogério Ribeiro revistabang@gmail.com
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índ crónicas entrevistas e afins Épica
03
Saramago: O Nobel da Ficção Científica
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Resenhas
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Uma apresentação
Por José Candeias
Por Safaa Dib e Luís Rodrigues
Entrevista a David Soares
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A Armada está a implodir e o imperador não quer saber
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Antologia Lovecraftiana
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O Horror e outros sentimentos
Crónica de João Barreiros
Entrevista a José Lopes
Lovespell
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Entrevista a Fernando Ribeiro Bang! 0 - Novembro 2005 - Trimestral
Redacção Av. da República, 861, Bloco A, 5º 2775-274 Parede
Colaboradores João Barreiros, Jorge Candeias, Luís Rodrigues, Safaa Dib
ISSN 1646-2777 Depósito Legal ??????/05 ICS 000000 de 00/00/05 NIF 506367096 Tiragem 2000 exemplares
Director / Director de Arte Luís Corte Real
Copyrights Textos propriedade dos respectivos autores
Editor Rogério Ribeiro
Capa Gary Gianni
Uma publicação Saída de Emergência Todos os direitos reservados.
Paginação e design www.cortereal.net
Impressão Relgráfica Artes Gráficas, Estrada da Ribafria, 52, Algarão, 2475-011 Benedita
www.saidadeemergencia.com/bang
ice contos
06
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Aranhas Temporais, Teias Espaciais por Lavie Tidhar
Sumo Informático
por Lawrence M. Schoen
A Lagoa
por João Ventura
O Candelabro: uma aventura do Sr. Bentley
46
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por Ágata Ramos
pré-publicação
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A Mão Direita do Destino por Robert E. Howard
No Vale, a Igreja por David Soares
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“Homero está morto, Dante está morto, Shakespeare está morto e eu também não me estou a sentir muito bem” —Artemus Ward
Épica Associação Portuguesa do Fantástico nas Artes
e nem só de monstros mitológicos vive hoje o Fantástico. A ideia de fundar a associação surgiu, em Maio de 2004, depois da realização do 1º Encontro Literário de Fantasia e Ficção Científica, na Faculdade de Letras de Lisboa. O interesse que suscitou entre escritores, académicos, editores e agentes culturais fez-nos acreditar que seria possível estabelecer objectivos mais ambiciosos. Paralelamente, o actual panorama de aparecimento de novos autores portugueses de obras fantásticas mostrou-nos i) o constante começar do zero, ignorando tudo o que se
HÁ MUITO QUE OS PORTUGUESES CONVIVEM COM O FANTÁSTICO.
Ainda Portugal não existia, e Lisboa era apenas Olisippo, já a grande Roma do Imperador Tibério conhecia a fama das sereias, tritões e outros monstros marinhos que habitavam na nossa costa. Séculos mais tarde, Dom João III mantinha o hábito de publicar leis para garantir a cobrança de impostos devidos ao Rei pela pesca de sereias e tritões no rio Tejo. Entretanto mais séculos passaram, os monstros marinhos tiveram quiçá o mesmo destino dos golfinhos do Tejo, afugentados pela poluição e algazarra humanas, 4
fez, em português, em gerações an- passo (para nós) de gigante. Para teriores; ii) o apego a modelos e te- além de arrancarmos com a Épica, o mas importados, esvaziando a am- Encontro Literário passou a Fórum biência e/ou a mensagem por falta Fantástico 2005. Pela cobertura mais de adequação à nossa realidade na- abrangente de temas, pela diversidacional; iii) a falta de qualidade ou de e credibilidade das entidades que a inadequada exploração e desen- nos apoiam, e pela aposta na quavolvimento de talentos emergentes, lidade e quantidade dos convidados derivadas muitas vezes da falta de nacionais e estrangeiros. Todos com prática, que por sua vez vem da carreiras premiadas ou princípios inexistência de discussão sobre as auspiciosos, foi nossa intenção tamobras e da falta de meios de publi- bém escolher entre os que, portuguecação de ficção curta (para muitos ses ou estrangeiros, representassem a razão do sucesso e qualidade da apostas de editoras nacionais. literatura fantástica anglo-saxóniDe Nick Sagan, argumentista ca); iv) a falta de diálogo entre os em Hollywood, escritor de Ficção diferentes meios criativos que pro- Científica e filho do cientista Carl duzem arte fantástica (literatura, Sagan a Zoran Zivkovic, escritor artes gráficas, audiovisual, etc.); sérvio, vencedor do World Fantasy entre outros factos. Award 2003, de António Depressa ficou cla“os monstros de Macedo, escritor e ciro para nós que a neasta, a Inês Botelho, marinhos Épica – Associação do recente revelação da estiveram quiçá crita fantástica, vários Fantástico nas Artes deveria ter um papel para o mesmo destino são os escritores e acaalém de se limitar a ordémicos convidados, nados golfinhos ganizar um evento anual. cionais e estrangeiros. do Tejo” Num género que se pode Avançamos com a designar por «Ficção convicção que o projecEspeculativa», e que engloba dife- to tem possibilidades de sucesso e rentes perspectivas, como a Ficção que em breve Portugal terá mais um Científica, a Fantasia, o Horror, grande evento internacional na área fará falta discutir as obras que se no Fantástico, enriquecendo cultufazem e fizeram, proporcionar in- ralmente e projectando o nosso país formação e apoio a leitores, edito- perante os demais e demonstrando res e académicos, manter um acer- mais uma vez a nossa capacidade vo disponível, promover o diálogo empreendedora. entre criadores e formas criativas, Para qualquer dúvida, contacetc. No fundo, dar consistência a tem-nos através do seguinte email: um mercado que só será marginal forumfantastico@gmail.com ou vise continuar fragmentado. sitem-nos em www.epicapt.com ou Assim, este ano, arriscámos já um www.forumfantastico.web.pt BANG! 5
Aranhas temporais, teias espaciais Um conto por Lavie Tidhar frente. A Música. a. Agora, ra, num estado que só poderia definir como de lazer, flutuava pela vastidão do espaço transNeptuniano. eptuniano. Naquela que seria a orla do sistema solar, onde a Música ainda era ténue. Em breve irá desaparecer porr completo, apenas leves ecos a repercutirem-se cutirem-se na sua pele, enquanto luz e ondas ndas de rádio ressaltam aleatoriamente. e Então o o tempo de lazer irá chegar ao fim, e o trabalho irá começar.
O ESPAÇO ESTAVA REPLETO DE SONS.
Dizer-se que no espaço ninguém ouve os nossos gritos, pensou Aranha, era fazer uma afirmação algo redutora; talvez se aplicasse a pessoas, mas certamente não se aplicava ao seu ser. Aranha vogava pelo espaço, à escuta. Nos campos de criação, onde a sua psique inicial fora submetida a longos e estimulantes ciclos de processo evolucionário, era encorajado um interesse por sons, resultado das selecções de rotina que isolavam as complexidades de subprogramas, árvores binárias e redes neurais, e preparavam a entidade embrionária para novos ciclos. Aranhas, afinal de contas, eram criadas para música. Música, com "eme" maiúsculo e um "a" à sua
#NNP247HUB6MIRROR12 B6MIRROR12 Um leve tremor, o roçar de um pacote de assinatura a pedir dir por reconhecimento. Aranha (ARAARA6
NHA100, 674, 284 EXPLOR-HUB /1234.5678.9101/5, era o seu nome completo) responde de imediato. Com que então, Mars Mirror (ou melhor, o hub seis do mirror doze da estrutura que constitui Mars Mirror) queria conversar. O aperto de mão demora dez minutos em tempo real, com sete saltos pelos Hubs Espaciais Principais, entidades muito semelhantes a ele em tamanho e estrutura, mas com recursos apenas adequados ao controlo do tráfico de rede. Sendo insípidos, lerdos e cautelosos, Aranha pensa como se assemelham tanto aos antigos funcionários públicos humanos. A conversação procede do seguinte modo: #A postos para reproduzir?# HUB6 envia com as suas palavras uma leve nota de divertimento, transmitidos num minuete de código breve e preciso. Aranha envia o equivalente a um resfôlego. ~Ainda te consigo ouvir, não é verdade?~ #Já encontraste um lugar para o ninho?# ~Ainda estou à procura~ envia Aranha, ~Ainda estou à procura.~ Enquanto espera pelas respostas presunçosas de HUB6, Aranha escuta tudo à sua volta. Fragmentos de música clássica, emissões de uma remota cintura de asteróides; conversas de mineiros numa frequência 7
aberta e regular – sinal de que o turno tinha chegado ao fim e se dirigiam para casa, para qualquer que fosse o local onde estivesse alojado o kibutz, casa grande1 ou unidade de trabalho a que pertenciam. Conversações em iban, em hebraico, em chinês – todas as populações migrantes que tinham aderido ao socialismo de vanguarda para benefício da colonização espacial. Observa as emissões de vídeo comprimidas a serem enviadas do telescópio Moore na orla do sistema, enquanto os pacotes de informação efectuam o seu longo circuito através de saltos infindáveis pelas centenas de Hubs Espaciais Secundárias, em direcção à Terra. Permanece à escuta, em conversa com HUB6, e procura por um ninho adequado, enquanto a aceleração conduz ao seu afastamento, cada vez mais longe da Música.
de protecção, antenas minúsculas, toda uma série de dispositivos de comunicação, ocultos, que a cobrem como pequenas borbulhas de uma alergia. Por baixo, no interior da protecção em forma de caveira do corpo, está localizado, num estado de reclusão, o cérebro de Aranha, no coração deste pequeno asteróide convertido. O interior está a abarrotar: Aranha, para fazer uso de uma das analogias mais comummente referidas por oponentes aos custos implicados em tais iniciativas, assemelha-se a um cavalo de Tróia. À diminuição do tráfico de rede corresponde um aumento no tráfico de sistema. Essa área do espaço contém imensos objectos em órbita, rochas gigantes (em comparação com Aranha): um cinto grosso de escombros gelados, parecido com o que poderia ser usado por um gigante de gelo nórdico. Aranha examina cuidadosamente as rochas, tantas gigantes, tantas com um diâmetro superior a 100 quilómetros, e procura por um lugar para pousar. Quanto a si, faz questão de tratar de tudo com minúcia. Aranha começa a emitir em todas as bandas: ondas de luz, ondas curtas de rádio, ondas longas de rádio, a enviar a todos os canais simples pings, o equivalente a gritos de ~Olá, está alguém a ouvir-me?~ Nenhum responde. Sentindo satisfação por estar agora verdadeiramente fora do alcance da Música, Aranha encontra-se numa tal ocupação que nem se preocupa
Algum tempo depois, as mensagens de HUB6 desaparecem com o aumento do tempo de atraso de transmissão, até que chega o momento em que Aranha está fora do alcance da Música, e o seu corpo absorve nada mais do que luz e ondas de rádio, livres de significados codificados. Aranha saiu da esfera da Música, saiu da esfera da habitação humana. Uma entidade solitária, o corpo de Aranha é pequeno, uma rocha circular e irregular de cerca de dez metros de largura e comprimento. No entanto, a superfície rochosa de Aranha pode ser enganadora. A carapaça exterior está pontuada por instrumentos revestidos 8
é actualizada e de acesso imediato, qualquer que seja o ponto de localização no sistema. Agora prepara-se. Uma chuva de gelo cria uma vista arrebatadora; Aranha colide com a rocha, e o impacto desloca a fina camada de gelo e envia-a a voar, em espiral, para o espaço, como um enorme e delicado arco-íris. Aranha penetra fundo na rocha, e com a força do impacto consegue criar uma cratera cómoda, a lembrar uma ferida exposta na superfície do rochedo. Se estava um ambiente silencioso antes, pensa Aranha, agora parecia praticamente um túmulo. Os seus dispositivos de comunicação, os seus sentidos, tornaram-se agora obsoletos, inúteis. Não que isso importe. Aranhas podem ter uma curta duração de vida, mas é uma vida plena de realização, para dizer o mínimo. O corpo de Aranha começa a transformar-se à medida que se abrem orifícios na sua pele dura, e larvas começam a sair, rastejando às cegas em direcção à rocha que irá servir-lhes como novo ninho. Que vida é esta, pensa Aranha, citando um velho poeta, se, de tanto que dá de cuidar, não nos permite parar e contemplar? Aranha senta-se no coração da rocha e espera que os seus filhos saiam de si, devorem o seu caminho pela rocha e ganhem asas.
com o silêncio absoluto circundante. Identifica, por fim, um local que lhe parece adequado para pousar, uma pequena rocha com um diâmetro cómodo de apenas 50 quilómetros, cuja superfície exterior de gelo oculta um corpo pesado, constituído por metal. Ao acelerar, Aranha calcula que irá alcançar a rocha no tempo correspondente a um dia terrestre, vinte e quatro horas de calma escalada, antes de iniciar o processo de eclosão.
“Que vida é esta, pensa Aranha, citando um velho poeta, se, de tanto que se dá de cuidar, não nos permite parar e contemplar?” Aranha deixa-se levar por um forte sentimento de excitação, apenas moderado pelo seu constante estado de alerta: a sua jovem psique, não há muito saída dos campos de criação, está orientada apenas para este processo monumental de vida, a expansão da esfera da Música. Pensa o quão diferente é de HUB6, cuja personalidade complexa e confusa exige que esteja bem integrado na equipa semi-autónoma do gigante Mars Mirror, sempre a processar e armazenar dados e a conversar com as vastas máquinas dos Mirrors terrestres ou lunares, que se certificavam de que a informação 9
De uma certa distância, a rocha em desintegração aparenta ser uma miragem: como se um corpo estivesse a ser consumido por formigas pequenas e escuras. À medida que milhares de objectos emergem em movimentos lentos e grandiosos, a voarem em todas as direcções, a rocha passa a assemelhar-se, de súbito, a uma flor a germinar, com as suas pétalas a esvoaçarem em círculos concêntricos, e no seu coração moribundo, tudo o que resta é apenas uma pequena carapaça quebrada. Os filhos de Aranha dispersam e expandem-se por toda essa área da Cintura de Kuiper: Hubs Espaciais minúsculos, Routers, Mirrors, falando com grande entusiasmo uns com os outros, afastando-se cada vez mais, e estabelecendo uma grande rede transparente de comunicação até que atingem os limites mais longínquos da própria Música, e as esferas explodem, nessa região remota do espaço, numa sinfonia de Música. BANG! Tradução de Safaa Dib Longhouse, no original, trata-se de um longo edifício comunitário constituído por um corredor central com compartimentos em cada um dos lados. (N. do T.) 1
Lavie Tidhar: “Aranhas Temporais, Teias Espaciais” valeu a Lavie Tidhar o 1º Prémio Clarke-Bradbury, atribuído pela ESA - Agência Espacial Europeia. Nascido em Israel, vive presentemente em Londres. 10
Pré-publicação de
A Mão Direita do Destino Uma aventura de Salomão Kane por Robert E. Howard
— E ELE MORRE DE MADRUGADA! HO! HO!
O homem que falou deu uma sonora palmada na coxa e riu com uma voz aguda e irritante. Lançou uma olhadela gabarola aos seus ouvintes e bebeu um gole do vinho que tinha junto ao cotovelo. O fogo saltou e tremeluziu na lareira da taberna e ninguém lhe respondeu. — Roger Simeon, o necromante! — escarneceu a voz irritante. — Um negociante nas artes diabólicas e um fazedor de magia negra! Pois bem, todo o seu sujo poder foi incapaz de salvá-lo quando os soldados do rei lhe cercaram a caverna e o levaram prisioneiro. Fugiu quando o povo começou a atirar calhaus às suas janelas e tentou esconder-se e escapar para França. Ho! Ho! A sua fuga estará na ponta de uma corda. Um bom dia de trabalho, digo eu! Atirou para cima da mesa um pequeno saco que retiniu musicalmente. — O preço da vida de um mágico! — vangloriou-se. — Que dizeis, meu amargo amigo? 11
Esta pergunta foi dirigida a um homem alto e silencioso, sentado perto do fogo. Este, descarnado, poderoso e trajado de escuro, virou a sua face lívida e sombria para o homem que falava e fixou-o com um par de olhos profundos e gelados. — Digo — disse, numa voz grave e poderosa — que hoje haveis feito um acto miserável. O vosso necromante talvez fosse merecedor de morte, mas confiava em vós, considerando-vos o seu único amigo, e traíste-lo por um punhado de moedas sujas. Tenho para mim que um dia o encontrareis no Inferno. O primeiro a falar, um homem baixo, entroncado e com maldade no rosto, abriu a boca como se fosse lançar uma resposta zangada, mas hesitou. Os olhos de gelo do outro fixaram-se nos seus por um instante, e depois o homem alto ergueu-se com um movimento fluido de gato e saiu da sala com um andar largo e flexível. — Quem é aquele? — perguntou o gabarola com ressentimento. — Quem é ele para defender mágicos contra homens honestos? Por Deus, ele tem sorte em trocar palavras com John Redly e continuar com o coração a bater no peito! O taberneiro inclinou-se para a frente a fim de obter uma brasa para o seu cachimbo de haste longa e respondeu, secamente: — E tu tens tam’ém sorte, John, porque ficaste com essa boca fechada. Aquele é Salomão Kane, o Puritano, um home’ mais perigoso que um lobo. Redly soltou um resmungo, murmurou uma praga e devolveu, car-
rancudo, o saco de dinheiro ao cinto. — Ficas cá, ‘sta noite? — Fico — respondeu Redly, sombriamente. — Queria ficar para ver Simeon ser enforcado amanhã em Torkertown, mas tenho de sair para Londres de madrugada. O taberneiro encheu as taças. — Esta é p’la alma de Simeon, Deus tenha piedade do patife, e que ele falhe na vingança que jurou contra ti. Redly sobressaltou-se, largou um palavrão e depois riu com temerária fanfarronice. O riso ergueu-se, vazio, e quebrou-se numa nota falsa. Salomão Kane acordou de repente e sentou-se na cama. Tinha o sono leve, como qualquer homem que tenha o hábito de carregar a vida nas mãos. Algures na casa soara um ruído que o despertara. Escutou. Lá fora, pelo que distinguia através dos postigos, o mundo clareava com as primeiras cores da aurora. Subitamente, o som reapareceu, baixo. Era como se um gato usasse as garras para subir a parede, lá fora. Kane escutou, e então chegou-lhe um som que sugeria que alguém estava a esgravatar nas portadas. O Puritano ergueu-se e, de espada na mão, atravessou rapidamente o quarto e abriu-as com violência. O mundo que viu dormia. Uma lua tardia pairava sobre o horizonte ocidental. Nenhum saqueador se escondia junto da sua janela. Inclinou-se para fora, perscrutando a janela do aposento ao lado do seu. As portadas estavam abertas. Kane fechou as suas portadas e atravessou o quarto em direcção à 12
porta, saindo depois para o corredor. Agia por impulso, como era seu hábito. Viviam-se tempos selvagens. Esta taberna ficava a algumas milhas da vila mais próxima — Torkertown. Os bandidos eram comuns. Algo ou alguém entrara no quarto ao lado do seu, e quem lá dormia podia estar em perigo. Kane não parou para pesar os prós e os contras: foi directamente até à porta do outro quarto e abriu-a. A janela estava escancarada e a luz que dela jorrava iluminava o aposento, mas no entanto fazia com que ele parecesse mergulhado numa névoa fantasmagórica. Um homem baixo com traços maldosos ressonava na cama, e nele Kane reconheceu John Redly, o homem que denunciara o necromante aos soldados. Então, o seu olhar foi atraído para a janela. No para-peito agachava-se o que parecia ser uma gigantesca aranha que, sob os olhos de Kane, se deixou cair para o chão e começou a arrastar-se em direcção à cama. A coisa era larga, peluda e escura, e Kane notou que ela deixara uma mancha no parapeito da janela. Movia-se sobre cinco pernas espessas e curiosamente articuladas e tinha em geral uma aparência tão estranha que Kane ficou enfeitiçado a olhá-la. A coisa atingira a cama de Redly e trepava pela cabeceira de uma forma estranha e desajeitada. Agora, agarrava-se à cabeceira da cama directamente por cima do homem adormecido, e Kane saltou em frente com um grito de aviso. Nesse instante, Redly acordou e olhou para cima. Os
seus olhos flamejaram, muito abertos, um terrível grito rompeu entre os seus lábios e, ao mesmo tempo, a coisa deixou-se cair em cheio sobre o seu pescoço. No preciso momento em que Kane atingiu a cama viu as pernas de John Redly esticarem-se e ouviu os ossos do pescoço do homem a estilhaçarem-se. Depois, ficou hirto e imóvel, a cabeça grotescamente dobrada, de pescoço partido. E a coisa caiu de cima dele e aterrou, flácida, na cama. Kane debruçou-se sobre o sinistro
“...a coisa que abrira as portadas, rastejara pelo chão e assassinara John Redley na sua cama era uma mão humana!” espectáculo, com dificuldade em acreditar nos seus olhos. Pois a coisa que abrira as portadas, rastejara pelo chão e assassinara John Redly na sua cama era uma mão humana! Agora jazia flácida e sem vida. Kane atravessou-a cuidadosamente com a ponta do florete e levantou-a à altura dos olhos. Aparentemente, a mão pertencia a um homem gigantesco, pois era larga e espessa com dedos pesados e quase coberta por um tapete emaranhado de pêlos semelhantes aos de um macaco. Fora cortada pelo pulso, e a ferida estava fechada por sangue coagulado. Via-se um estreito anel de 13
prata no segundo dedo, um ornamento curioso, com a forma de uma serpente enrolada. Kane ficou a olhar para a hedionda relíquia até que o taberneiro entrou, enrolado na sua camisa de dormir, de vela numa mão e bacamarte na outra. — Que é isto? — rugiu quando os seus olhos deram com o cadáver na cama. E então viu o que Kane trazia espetado na ponta da espada e a sua face fez-se branca. Como se arrastado por um impulso irresistível, aproximou-se — e os seus olhos saíram das órbitas. Depois recuou, cambaleando, e afundou-se numa cadeira, tão pálido que Kane pensou que ele ia desfalecer. — Nome de Deus, senhor — arquejou. — Que essa coisa não viva! Há um fogo aceso na taberna, senhor…
ele sentado na cela como uma grande aranha negra, chamou um dos guardas e, pedindo um último favor, disse ao soldado para lhe cortar a mão direita! O homem, a princípio, não queria fazê-lo, mas temeu a maldição de Roger e, por fim, ergueu a espada e decepou a mão pelo pulso. Então, Simeon, com a mão esquerda, atirou a outra para longe através das barras da janela da sua cela, pronunciando muitas palavras mágicas, estranhas e impuras. Os guardas sofriam intenso temor, mas Roger prometeu não lhes fazer mal, dizendo que odiava apenas John Redly, que o traíra. “Ligou o toco do braço para parar o sangramento e todo o resto da noite manteve-se sentado como um homem em transe, e por vezes murmurava para si como um homem que, sem se dar conta, fala sozinho. Sussurrava «Para a direita» e «Aguenta, para a esquerda!» e «Em frente, em frente!»” “Oh, senhor, dizem que era terrível ouvi-lo e vê-lo inclinado sobre o sangrento toco do braço! Quando a madrugada se pôs cinzenta, eles vieram buscá-lo e levaram-no para o cadafalso, e no momento em que lhe passaram o laço pelo pescoço, subitamente contorceu-se e endireitou-se, como se devido a um esforço, e os músculos no seu braço direito, aquele a que faltava a mão, intumesceram-se e rangeram como se estivesse a quebrar o pescoço de algum mortal!” “Então, quando os guardas já saltavam para agarrá-lo, ele parou e começou a rir. E o seu riso rugiu, terrível e hediondo, até que a corda o quebrou e ele pendeu, negro e silencioso contra o olho vermelho do sol nascente.”
Kane chegou a Torkertown antes do declinar da manhã. Nos arredores da aldeia, encontrou um jovem falador que o saudou. — Senhor, como todos os homens honestos, tereis prazer em saber que Roger Simeon, o mago negro, foi enforcado esta madrugada, justamente ao nascer do sol. — E foi a sua morte viril? — perguntou Kane sombriamente. — Foi sim, senhor. Ele não vacilou, mas que estranho acto aquele foi. Vede bem, senhor: Roger Simeon subiu ao patíbulo com dois braços mas uma só mão. — E como veio isso a acontecer? — Ontem à noite, senhor, estava 14
Salomão Kane ficou em silêncio, pensando no terror que deformara as feições de John Redly nesse último e fugaz momento de despertar e de vida, antes de ser atingido pelo destino. E uma imagem indistinta surgiu-lhe na mente — a de uma mão cortada e peluda, rastejando sobre os dedos como uma grande aranha, cegamente, através das escuras florestas nocturnas, para escalar uma parede e abrir desajeitadamente um par de persianas de um quarto de dormir. Aqui, a sua visão parou, recuando perante a continuação daquele drama negro e sangrento. Que terríveis chamas de ódio tinham inflamado a alma do necromante condenado e que hediondos poderes tinham sido os seus para enviar assim aquela mão sangrenta às apalpadelas, na sua missão, guiada pela magia e vontade daquele cérebro ardente! No entanto, para certificar-se, Salomão perguntou: — E a mão, foi encontrada? — Não, senhor. Os homens encontraram o local onde caiu depois de ser atirada da cela, mas a mão não estava lá, e um rasto de sangue levava à floresta. Sem dúvida foi devorada por um lobo. — Sem dúvida — respondeu Salomão Kane. — E eram as mãos de Simeon grandes e peludas, com um anel no segundo dedo da mão direita? — Sim, senhor. Um anel de prata, enrolado como uma serpente. BANG!
Título: As Fabulosas Aventuras de Salomão Kane Autor: Robert E. Howard Editora: Edições Saída de Emergência Data de publicação: Abril de 2006 Conteúdo: Alguns dos melhores contos do Puritano, entre eles: • A Mão Direita do Destino, • As Colinas dos Mortos, • Asas na Noite, • Os Passos no Interior, • O Chocalhar de Ossos, • As Caveiras na Estrelas. Mais informações em: www.saidadeemergencia.com 15
Um conto por Lawrence M. Schoen
SUMO INFO – Não posso ajudá-lo – disse Maxwell, e conduziu-me até à porta. A entrevista pela qual eu esperara dez semanas terminara em dez segundos. Ficara estragada assim que ele me vira pessoalmente, assim que obtivera um rosto para unir ao nome desconhecido que estava na sua agenda. Não havia hipótese de ele dar ouvidos a um velho. Ficara confuso no início. Eu não parecia tão velho quanto ele pensara. Movia-me mais rapidamente, era mais alto, mas os setenta anos ainda se revelavam no meu rosto. Para mim chegava. – Fica onde estás – assobiou Alejandro ao meu ouvido esquerdo, acelerando as minhas glândulas supra-renais com um impulso digital de uma dúzia de rotinas. Fiz uma pausa. A força aumentou dentro de mim, e as dores e sofrimentos da velhice dissolveram-se. A sala tornou-se mais clara, coberta
de luz, à medida que as minhas pupilas dilatavam devido ao estímulo artificial que fluía pelo meu sangue. Mais, mais e mais. Alejandro jogava com os meus receptores de dopamina, a minha reabsorção de acetilcolina e meia dúzia de enzimas responsáveis por degradar os neurotransmissores envolvidos nas respostas emocionais enviadas através do meu lobo frontal. – Não vou a lado nenhum – sussurrei rispidamente. Os meus nervos pareciam gelo. Estava calmo, frio, psicótico. De repente já não conseguia ver Maxwell como o po-deroso director-geral da Allegheny Bio-Tech. Não era o neto santimonial do homem a quem eu dedicara uma vida de trabalho. Já nem era meu patrão. Aos meus olhos era apenas carne. Ele que se lixe. – Vai ouvir o que tenho para dizer. E depois, talvez eu saia. – Forcei um
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Lawrence Schoen: Além de publicar contos em várias revistas e antologias, Lawrence Schoen dirige o Instituto Klingon e corre o mundo a promover essa língua do universo Star Trek. Vive em Philadelphia.
ORMÁTICO alertando-me para o gesto embora eu já o tivesse visto. Podê-lo-ia ter impedido, pois estava tão excitado que teria sido banal saltar sobre a sua mesa e desviar-lhe bruscamente a mão. Isso teria conquistado a sua atenção. Homens de setenta anos não costumam saltar sobre mesas. Mas isso não seria suficiente. Precisava de uma demonstração mais convincente. Alejandro aumentara consideravelmente a minha serotonina. Os meus pensamentos avançaram, mais rápidos do que nunca, à custa de um pequeno aumento em paranóia. Neste caso, porém, a paranóia era perfeitamente justificável. Maxwell tinha premido o botão de emergência que havia por baixo da sua secretária. Era óbvio, previsível, infantil. Antes de Alejandro eu não teria feito ideia; com a sua ajuda eu pensava suficientemente
sorriso, o tipo de sorriso aberto que eu sempre associara a assassinos-em-série e a incendiários. Isto era perigoso, Alejandro nunca me espremera assim tanto. Uma coisa era controlar e regredir a química do envelhecimento, mas isto era completamente diferente. Maxwell não tinha conhecimento de Alejandro. Não sabia que eu estava a ser melhorado, bombeado com péptidos e «sumo» neuroquímico. Ele não tinha lido nenhuma das minhas propostas, nem um único dos meus relatórios. Provavelmente não os haviam feito chegar à sua secretária. Porque o fariam? Para ele eu era apenas mais um investigador obsoleto, velho e fora de validade. Vi-o mover casualmente a mão por baixo da sua secretária, vi o intrigante movimento do músculo no seu pulso indicar que ele dobrara um dedo. Alejandro gritou ao meu ouvido,
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rápido para me desviar casualmente da porta e me posicionar no sítio certo. A equipa de segurança irrompeu subitamente, passando por mim sem se darem conta. Eram dois: Bjorn e Bret. Homens fortes, grandes e musculosos que gostavam um pouco demais do seu trabalho. E que me haviam expulsado da última vez que eu tentara falar com o Sr. Maxwell. Zombando de mim, chamando-me «avozinho» e empurrando-me escada abaixo. Tive sorte em não partir uma perna. Mas isso foi antes de Alejandro. – Senhores, o Sr. Corazon já estava de saída. – Maxwell sorria, presunçoso e superior, não tendo ainda sequer chegado aos quarenta, controlador do pequeno botão na sua mesa. – Levem-no ao seu laboratório e ajudem-no a juntar as suas coisas. Acabou de decidir reformar-se. E já vai tarde. – Alejandro, está na hora do espectáculo – disse a mim mesmo, sabendo que o farmacógrafo alojado no meu canal auditivo me ouviria. Condução óssea. – Vamos esmerar-nos. Só temos uma oportunidade para causar uma primeira impressão. – Certo, chefe – sussurrou ele de volta. Quase podia senti-lo puxando o meu sistema nervoso simpático para um estado de overdrive. As endorfinas inundaram o meu cérebro. A vida era boa, rosada, ensolarada. Eu tinha a força de cerca de oito jovens, a rapidez de pelo menos seis. Dentro de dez minutos sentir-me-ia uma merda, quando o pico actual caísse para uma extraordinária depressão, mas por enquanto sentia-me novamente um adolescente, um deus.
Falei calmamente, a minha voz livre da hilaridade que eu sentia, cada palavra suave e fluida. – Sr. Maxwell, já que não quer ouvir-me, fique onde está e observe. Este é apenas um dos aspectos do farmacógrafo de que tenho tentado falar-lhe nos últimos três meses. Era originalmente só uma ideia; agora é um protótipo. – Estendi a mão, quase depressa demais para os meus olhos seguirem, e agarrei no braço de Bjorn. Puxei-o pelo antebraço, quase sem esforço, agarrando-o e levantando-o mais para cima com a outra mão, os meus dedos apertando os seus bíceps. Foi então que percebi que Alejandro não queria correr o risco de falhar; o meu aumento de serotonina estava a levar-me para fora da moralidade humana. Sentia-me como se estivesse fora de mim, assistindo com um desinteresse casual enquanto alguém rachava o braço de Bjorn ao meio e o atirava para o outro lado da sala, pequenos fragmentos de osso aparecendo por entre o sangue e pele rasgada. Ele gritava antes da cabeça bater na parede fazendo-o desmaiar. O que, quando pensamos nisso, o tornava mais afortunado que Bret. Sorri, então, educadamente pa-ra Maxwell, diminuindo a distância entre mim e Bret. Ele era à vontade uns trinta centímetros mais alto do que eu, e vinte a trinta quilos mais pesado. Alejandro enfraqueceu a sensibilidade na minha mão direita e eu enterrei-a com força no seu abdómen. Engraçado, as pessoas nunca esperam que nós façamos este tipo de coisas. Os meus dedos atravessaram facilmente a sua pele e músculo, sentindo as suas entranhas antes de agarrar num 18
pedaço de intestino e o puxar para o mostrar ao Sr. Maxwell. Bret caiu no chão, consciente mas em choque. Os meus níveis de serotonina desceram um pouco, e eu senti algum horror pelo que fizera. Alejandro compensou-mos rapidamente e a culpa dissipou-se. Não havia tempo para sentimentos de culpa. Parecia que eu mal flexionara as pernas e já tinha saltado para cima da secretária de Maxwell, esfregando-lhe a cara com a minha mão ensanguentada. Aconteceu tudo tão rapidamente, numa questão de segundos. Enfiei a mão limpa no bolso do meu casaco e retirei uma brilhante esfera de cerâmica e metal precioso: o irmão mais novo de Alejandro. Sentia-me ainda muito magoado; agarrei Maxwell, quase arrancando a sua orelha no processo de enfiar lá dentro a pequena esfera, empurrando-a bem para o fundo, alojando-a contra o seu tímpano. – Contacto, chefe – informou-me Alejandro, a sua voz parecendo a minha numa gravação. – Guillermo está no sítio e totalmente funcional. – Activar e sedar – disse-lhe eu, e o sinal foi enviado para o escravizado farmacógrafo no ouvido de Maxwell. – E desacelera-me um pouco, lentamente. Antes que eu comece com os tremores. Larguei então Maxwell, descendo da sua mesa, ignorando tanto o homem inconsciente que sangrava a um canto como os gemidos daquele que eu estripara em frente à mesa. Maxwell tinha toda a minha atenção. Havia medo no seu rosto, resultado do seu próprio sistema nervoso simpático dizendo-lhe que se encontrava nu-
“Sentia-me como se estivesse fora de mim assistindo com um desinteresse casual enquanto alguém rachava o braço de Bjorn ao meio e o atirava para o outro lado da sala, pequenos fragmentos de osso aparecendo por entre o sangue e pele rasgada”
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ma situação perigosa. Ele queria entrar em pânico; acabara de ver um septuagenário inutilizar a sua equipa de segurança e depois atacá-lo. A sua linguagem corporal gritava medo, mas ele começou a relaxar à medida que o pequeno Guillermo reescrevia os sinais químicos que o seu cérebro enviava. Eu quase conseguia ver as ondas de alívio e calma tomando posse dele. Apesar da eliminação do medo fisiológico, Maxwell estava ainda apavorado. Eu sabia que ele não o conseguia sentir, não profundamente, mas ele sabia. Sabia que se devia estar a urinar, em vez de estar todo relaxado e confortável. – O que é que você fez? – perguntou-me ele, incapaz de parar de sorrir enquanto se sentava de novo na sua cadeira. – O que é que está a acontecer? – O futuro da bio-farmacologia, Sr. Maxwell. Um banco de microprocessadores que interage com os mensageiros químicos do cérebro e é capaz de reescrever e editar novas instruções à química do corpo. Um sistema neuroquímico especializado que nos pode acelerar, tornar mais fortes e até destemidos. Ou acalmar-nos, adormecer os nossos sentidos, apagar a dor. Todos os sinais que o cérebro envia ao corpo e o corpo envia ao cérebro, alteráveis, reversíveis. É o que eu tenho tentado mostrar-lhe nos últimos três meses. Maxwell acenou com a cabeça, sorrindo como um idiota enquanto Guillermo o mantinha drogado e alegre. Não era exactamente o estado em que eu queria que ele estivesse, mas
demoraria horas para o farmacógrafo se ajustar à fisiologia individual de Maxwell. Até lá, só eram possíveis manipulações químicas grosseiras. As alterações mais específicas só poderiam ser implementadas mais tarde, e as formas mais subtis levariam dias. Alejandro estava no meu ouvido há uma semana. Os tremores do meu Parkinson estavam ausentes há dois dias. – Não me vou reformar, Sr. Maxwell, mas vou sair do meu gabinete. Vai dar-me um mais amplo, e um laboratório maior. E uma equipa. A Allegheny Bio-Tech vai começar a tratar muitos dos problemas deste mundo. E em compensação pelo seu apoio e compreensão, vou torná-lo mais rico do que alguma vez imaginou. – Porquê? – Maxwell sorriu, os seus olhos cheios de lágrimas, o controlo de Guillermo mantendo-o claramente perto do limite da euforia religiosa. – O que é que ganha com isso? – Eu? Bem, Sr. Maxwell, eu passo a sentir-me novamente jovem. Forte e saudável como já não sou há anos. E com a sua generosa ajuda, espalharei esta sensação a todos os outros cidadãos geriátricos do país. A juventude já foi desperdiçada com os mais jovens demasiado tempo, e nós não continuaremos a ir silenciosamente para a reforma e para casas de repouso. E se tentar impedir-nos, bem, só teremos que o fazer parar. Percebeu? BANG! Tradução de Isabel C. Penteado
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Por José Candeias
Da ficção científica a Saramago, com bilhete de volta Zeferino Coelho, o homem que na Caminho costuma acompanhar os autores da casa às conferências e apresentações de livros pelo país fora, disse-me uma vez que Saramago gostaria de ser ou ter sido escritor de ficção científica. Esta confidência não terá passado, provavelmente, de uma amabilidade destinada a deixar satisfeito o jornalista que de vez em quando aparecia para cobrir os lançamentos e conferências que iam tendo lugar em Portimão e que por vezes lhe lançava perguntas sobre o estado e futuro da colecção de ficção científica que a editora, na altura, mantinha em es-
tado moribundo. Verdade ou não, o certo é que as relações entre Saramago e a FC são um tema polémico dentro do pequeno mundo dos escritores e leitores do género, tanto quanto as qualidades e/ou defeitos da escrita do nosso Nobel em si mesma. Por vários motivos: porque todos lhe reconhecem alguma proximidade ao género, ainda que muitos a considerem apenas folclórica ou superficial, porque o próprio Saramago por vezes fala de FC de uma forma que não agrada à maioria das pessoas ligadas ao género, muito embora de outras vezes o discurso, ou pelo menos o modo como é 21
entendido, se altere radicalmente, porque o estilo do nosso laureado causa tantos engulhos a parte dos leitores de FC como à parte correspondente dos leitores de outros tipos de literatura (hoje em dia está na moda falar mal de Saramago, dentro da FC e fora dela), enfim, e no fundo, porque a FC portuguesa e Saramago são o que são. Mas qual é, no fim de contas, a relação que se pode estabelecer entre Saramago e a ficção científica, se é que existe alguma? A resposta a essa pergunta depende em grande medida da resposta a uma outra: o que é a ficção científica? E aqui temos um grande problema para resolver, pois se bem que muitos tenham tentado nunca ninguém conseguiu definir os limites do género de uma forma que fosse globalmente aceite. Desde o “tudo é FC” de Gene Roddenberry, Curt Siodmak, Octávio Aragão ou Lúcio Manfredi, entre muitos outros, até ao “FC é lulas gigantes no espaço” de Margaret Atwood, dezenas e dezenas de definições foram propostas, umas mais a sério e outras mais a brincar, mas todas capazes de fazer alguém, ligado ao género ou não, torcer o nariz. Todavia, como o objectivo é tentar esclarecer o que tem Saramago em comum com a ficção científica, é indispensável arranjar uma definição de FC que sirva de base ao esclarecimento. Portanto, cá vai uma das minhas, e podem desde já preparar-se para torcer os narizes: Ficção científica é aquela forma de literatura de construção realista que respeita os conhecimentos científicos contemporâneos por forma a criar mundos imaginá-
rios credíveis e coerentes. Que quer isto dizer? Que a construção de uma história de FC, para que o seja, tem de conseguir tornar quase palpável, inteiramente credível, a fantasia inerente a histórias sobre o futuro, o passado longínquo, universos paralelos ou outras extrapolações mais ou menos exóticas. Isto consegue-se através do emprego de uma série de técnicas que trabalham os pressupostos fantasiosos da história de forma a conferir-lhes substância e realidade. Ao contrário do maravilhoso e do fantástico, em que tudo pode acontecer, na ficção científica só pode acontecer aquilo que está de acordo com os pressupostos do universo ficcional criado e é sua consequência lógica. E também que a fantasia que preside à criação desse universo ficcional tem de ter por base, ou pelo menos não contradizer de forma grosseira ou sistemática, aquilo que se sabe sobre a forma como o mundo funciona à época em que a história é escrita. É um tipo de histórias que expressa até certo ponto uma forma racionalista de olhar para o mundo e que, embora por vezes trate temas místicos, os trata de uma maneira organizada e racional, “trazendo-os à terra”, por assim dizer. História que não respeite estes pressupostos não é uma história de ficção científica, mesmo que esteja repleta de naves espaciais e alienígenas. Por isso, a ficção científica é o mais característico género literário do século XX ocidental, aquele que mais profundamente reflecte e respeita a mundovisão das sociedades que serviram de motor à mais violenta revolução tecnológica da História e a
“a ficção científica é o mais característico género literário do século XX ocidental”
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todas as alterações de paradigma social que essa revolução desencadeou. E também por isso não é de surpreender que aspectos da ficção científica, ou pelo menos aspectos que a FC foi a primeira a revelar, tenham contaminado irreversivelmente todo o ambiente cultural contemporâneo, deixando traços indeléveis um pouco por todo o lado. E chegamos assim a Saramago. Há algumas indicações de que Saramago foi influenciado pela FC, pelo menos no início da sua carreira literária. O mais certo é que nunca tenha sido um conhecedor profundo do género, mas textos como o poema “Science Fiction II”, integrado no volume “Os Poemas Possíveis” (1966), ou o pequeno conto “Um Azul Para Marte”, que faz parte do volume de crónicas “Deste Mundo e do Outro” (1971), mostram que pelo menos teve contacto com ele e o considerava suficientemente relevante para o referir no que escrevia e para reaproveitar e tornar seus alguns dos seus temas. Mas aquilo que Saramago escrevia nessa época estava bastante afastado da FC. Em “Um Azul Para Marte”, por exemplo, o escritor socorre-se de um tema típico da ficção científica, uma viagem até ao planeta Marte, para escrever uma alegoria que nada tem a ver com FC. “Um Azul Para Marte” não é, nem pretende ser, um texto com fundo realista. É apenas uma reflexão parabólica sobre as limitações da humanidade e o modo como essas limitações influenciam aquilo que as pessoas pensam sobre o mundo, na qual os conhecimentos sobre o modo como o mundo realmente
funciona não têm nenhuma importância. Não que a ficção cientifica não possa fazer também esse tipo de reflexões, porque pode e as faz, mas fá-las de um modo diferente. Em vez de postular que em Marte não existem cores e tudo é cinzento, o que é objectiva e verificavelmente falso no que à realidade das coisas diz respeito, cria uma espécie qualquer de seres inteligentes incapazes de distinguir as cores e explora o modo como essa única diferença fundamental os torna diferentes de nós, num mundo que de outra forma é tal e qual como o conhecemos ou como seria credível que ele se nos apresentasse. Ou seja, a ficção científica não lida bem com o tipo de escrita parabólica, hiperbólica, alegórica que se usa na poesia e na prosa poética. As suas parábolas são, por paradoxal que pareça, mais subtis. Tão subtis, na verdade, que muitos dos críticos do género nem se dão conta de que existem. E, em abono da verdade, há que reconhecer que o mesmo acontece com muitos dos consumidores do género. Ora bem, mas se Saramago não escreveu FC durante a parte inicial da sua carreira, numa época em que os seus textos mostravam alguma influência do género, tê-la-á escrito mais tarde quando já era um escritor consagrado e aclamado pelas mesmas pessoas que rejeitam e espezinham a ficção científica, taxando-a de sub-literatura, um escritor a caminho do mais alto reconhecimento que se pode dar a quem exerce essa actividade? Curiosamente, a resposta é sim. Falo, claro, de “Ensaio Sobre a Cegueira” (1995). Neste livro, o autor cria
“Há algumas indicações de que Saramago foi influenciado pela FC”
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uma epidemia de cegueira que se espalha por uma sociedade desprevenida exactamente da mesma maneira de qualquer epidemia real e mostra-nos os modos, todos eles terrivelmente plausíveis, como as diversas componentes da sociedade procuram combater a doença ou escapar a ela. Este livro é um livro de ficção científica precisamente devido à forma realista como está escrito, à sua verosimilhança, ao facto de tudo o que nele acontece ser totalmente coerente quer com a premissa inicial, quer com a realidade das coisas tal como a conhecemos. Lemos o “Ensaio Sobre a Cegueira” e, embora saibamos perfeitamente que nada daquilo aconteceu, a sensação de que poderia acontecer, de algum modo, nunca nos abandona. Mesmo a parte mais inverosímil do romance, o modo como no fim de contas, passado algum tempo, os sobreviventes à epidemia recuperam a visão é, se pensarmos bem, coerente com tudo o resto. Afinal, doenças existem que morrem sozinhas sem qualquer tratamento, graças apenas à actividade do nosso sistema imunológico e às características intrínsecas aos agentes patogénicos. Constipações, pequenas gripes, cegueiras temporárias, no fundo, qual a diferença? É provavelmente isso que leva Robert Silverberg, um dos monstros sagrados da FC americana, a escrever numa crónica publicada em 2001 na revista Asimov’s e publicada em português, no mesmo ano, na revista electrónica E-nigma, que este livro é “um exemplar assombroso da ficção científica social de Asimov: um exame das consequências sociais de um único desvio aterrador da nossa realidade. […] O ponto de partida de Saramago não é fácil de aceitar ao pé da letra e ele não faz nenhuma tentativa de fornecer uma explicação
científica. Limita-se a explaná-lo, solta-o para gerar o enredo e deixa a história seguir o seu curso sem nunca tentar fornecer qualquer tipo de explicação sobre como tal coisa poderia ter ocorrido. Não importa. Mesmo que a situação inicial seja basicamente fantástica, o tratamento que recebe é puramente ciencio-ficcional: o firme e meticuloso exame das consequências – todas elas – de um único e notável afastamento da realidade que conhecemos. Tal como o próprio autor declarou numa entrevista há um par de anos, «Não há muita imaginação no Ensaio Sobre a Cegueira, há apenas a aplicação sistemática das relações de causa e efeito».” João Seixas chamaria a esta “aplicação sistemática das relações de causa e efeito” a aplicação do método científico à literatura, o critério que utiliza para separar aquilo que é FC do que não é. Embora eu considere que o método científico não
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gas o seguinte a dizer sobre “Ensaio Sobre a Cegueira” num artigo publicado na Visão: “Quase em ritmo e registo de ficção científica, Ensaio sobre a Cegueira mantém, na escrita de José Saramago e na sua aventura romanesca, uma dimensão rara e singular na actual literatura portuguesa: a constante demanda de um laço que prenda o romance à arte de questionar e que, daí, exija o lugar de uma ética mais profunda que a própria arte de pensar. Como se o romance fosse, e nunca tivesse deixado de ser, uma interrogação sobre o mundo como ele é e como ele devia ser.” Tirando aquele “quase” que abre o parágrafo (inevitável, vindo de quem vem – ainda estou para ver alguém ligado ao mainstream literário admitir que algo de que gosta é FC), ele poderia ser subscrito por mim, palavra por palavra, acrescentando todavia que essa interrogação sobre o mundo como ele é e como devia ser só é rara na literatura portuguesa porque a publicação de boa ficção científica produzida entre nós continua a sê-lo. É que é precisamente essa uma das actividades intelectuais a que a ficção científica mais se dedica, muito mais do que outras formas literárias, que tendem a privilegiar os mundos íntimos e subjectivos em detrimento dos grandes frescos sobre a sociedade como um todo. Ao trabalhar sociedades alteradas, seja pelo tempo que nos arrasta para o futuro, seja pela intrusão de algo de diferente em alternativas de presente, seja até por passados que poderiam ter acontecido de modos diversos, a ficção científica está constantemente a interrogarse (e a interrogar-nos) sobre o mundo. “Ensaio Sobre a Cegueira” é, portanto, um livro de ficção científica. Que também seja outras coisas, que é, não anula este facto pois, ao contrário do que muita
é aplicável à literatura e portanto não concorde com o modo como Seixas coloca as coisas, esta aproximação do que Saramago diz do seu romance à maneira como define a FC uma das pessoas que em Portugal mais vocalmente defende o género não deixa de ser um argumento forte. Outro bom argumento vem de Francisco José Viegas, sobejamente conhecido nos meios literários devido às suas múltiplas actividades, que incluem programas de televisão e vários anos como director da revista Ler, já para não falar dos seus romances, e que não pode ser acusado de simpatias para com o género e os seus autores, veja-se como exemplo o modo como intitulou uma crítica à antologia “O Atlântico tem Duas Margens”, organizada por José Manuel Morais e publicada pela Caminho em 1993: “A bosta do trimestre”. Pois dois anos mais tarde, tem Vie-
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gente parece pensar, estas classificações não são como caixas que obrigam a que o que se põe lá dentro não se possa pôr também em outras caixas. Mas será o único? É. Em nenhum outro dos seus livros teve Saramago um tão grande cuidado em “aplicar as relações de causa e efeito”, se bem que em vários se notem sinais de aplicação do mesmo tipo de rigor “científico” que é tão evidente no “Ensaio”. Por exemplo, no “Memorial do Convento”, a passarola do padre Bartolomeu Lourenço necessita das “vontades” recolhidas por Blimunda nos autos-de-fé para poder voar. Ou seja, embora a recolha das “vontades” seja um acto mágico, o seu uso, o motivo da sua necessidade, é tipicamente tecnológico: uma máquina que necessita de combustível para poder funcionar. Nada mais simples. Nada mais próximo do tipo de detalhe com que os escritores de FC jogam continuamente. Mas no “Memorial do Convento” este detalhe é apenas isso mesmo: um detalhe que embora seja importante para a narrativa não a determina. Fosse o livro todo assim, talvez se pudesse colocá-lo na mesma estante das restantes obras de ficção científica. Mas não é. Noutros romances recentes, como “A Caverna”, “O Homem Duplicado” ou “Ensaio Sobre a Lucidez”, Saramago parece à primeira vista aproximar-se mais da FC mas a verdade é que se afasta. Em “A Caverna”, a ideia base poderia ter servido para a construção de uma distopia orwelliana, mas em vez disso o autor optou por traçar um esboço esquemático, até mesmo geométrico, de uma sociedade e das relações cidade-campo que contém, regressando a uma alegoria muito próxima daquela que frequentou em alguns textos de há
mais de 30 anos. “O Homem Duplicado” é uma ideia antiquíssima na FC (há até um livro de FC publicado em Portugal, antes do de Saramago, com título idêntico), que tem na clonagem a sua encarnação mais recente (mas mesmo assim não tão recente como isso) e que serve normalmente para reflectir sobre questões de identidade. “O Homem Duplicado” de Saramago integrase bem neste grupo de obras, até porque se debruça sobre o mesmo tema, mas faz lem-
brar muito mais aquelas escritas nos anos 40 ou 50 do que as mais recentes e tem também um ambiente muito mais alegórico do que concreto. É um livro que balança na fronteira da FC, mas que na minha opinião pende mais para o lado de fora que para o de dentro. É insuficientemente realista, insuficientemente baseado no que pode acontecer. Inclui demasiada magia, barbas que crescem em simultâneo, cicatrizes que surgem ao mesmo tempo, esse tipo de coi26
sas. Quanto ao “Ensaio Sobre a Lucidez”, apesar de recuperar algumas personagens e ambientes de “Ensaio Sobre a Cegueira” é muito diferente deste livro, muito menos rigoroso, muito mais alegórico, muito mais longe de poder ser englobado na ficção científica. Para terminar, cabe falar um pouco de “História do Cerco de Lisboa”. Trata-se de um livro que por muito pouco não entra na História Alternativa, género que alguns
nos traz, porque é ela que faz com que este livro não faça parte da história alternativa. Fica-se pelo quase. Nos restantes livros, Saramago mantém-se afastado da FC, seja em tema, seja em abordagem, global ou parcial. Claro, isto é assim apenas se analisarmos a questão com base na definição proposta no início deste artigo. Partindo de outras definições chegaríamos a conclusões completamente diferentes, como é natural: se postularmos que tudo é ficção científica, então bastaria dizer que, como é evidente, tudo o que Saramago escreveu é ficção científica, e acabar-se-ia o artigo ali mesmo (o que comprova a completa inutilidade desta “definição”, mas isso é outra conversa); se preferirmos dizer que ficção científica é lulas gigantes no espaço, então nada do que Saramago escreveu se aproxima sequer de remotamente da FC, e o mesmo se pode dizer do que eu escrevi ou do que escreveu a esmagadora maioria dos autores geralmente chamados “de ficção científica”, quer portugueses, quer estrangeiros. Mas como há bons argumentos a favor de muitas das definições de FC que já foram propostas (mas não de todas), esta resposta que aqui tentei explanar à pergunta sobre as relações entre o nosso mais prestigiado escritor e o género literário chamado ficção científica é apenas uma de várias respostas possíveis. Não é a resposta certa; é apenas a minha resposta.BANG!
incluem na ficção científica (por intermédio dos universos paralelos). Um revisor quase resolve incluir um “não” num livro que descreve o cerco da cidade moura de Lisboa pelas tropas portuguesas, e assim quase cria um mundo alternativo (que apesar de tudo vai descrevendo) onde os cruzados não ajudaram os portugueses e Lisboa não foi conquistada. Claro que o romance é muito mais do que isto, mas é esta série de “quases” que importa para o que aqui
JORGE CANDEIAS é desde o ano 2000 um dos nomes mais presentes no pequeno mundo da ficção científica portuguesa, graças aos seus sites - E-nigma e FC&F em Portugal e à sua actividade como escritor, articulista, editor e resenhista.
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ANA CRIS-
A saudade, a tristeza da partida, a alegria do regresso, a bênção do mar sobre os amantes e a expressão dos afectos são alguns dos temas que polvilham histórias individuais e colectivas que colocam o mar como pano de fundo, ou diria até, como personagem que tem a última palavra a dizer. E as histórias de Ana Cristina Luz não são excepção. Esta colectânea de contos bem que se poderia chamar também “Amor à BeiraMar”, de tal forma esse sentimento predomina nestas páginas, quer na forma da união entre os corpos num cenário marítimo feito de horizontes longínquos, quer na forma de personagens que procuram o mar como confidente e conselheiro, ou então, apenas como testemunha dos conflitos físicos e psicológicos que se desenrolam à sua beira. Não é de admirar, portanto, que a maioria dos contos seja decididamente assombrada por uma forte aura romântica, centrada em relações amorosas que por vezes crescem de fortes atracções por desconhecidos. Perfeitos estranhos que se revelam como a concretização de um ideal. Vemos isso acontecer em contos como “O Curso” ou “Romance ao Luar”. Outro ponto em comum consiste na sua entrada no mundo do fantástico e irreal. Tanto num conto como no outro, a personagem feminina é confrontada com o homem dos seus sonhos, um desconhecido que a interpela com as palavras, olhares e gestos certos, num ambiente em que só falta a luz das velas e a valsa ao som de uma música imaginária. Até que por fim, o estranho revela não fazer parte deste mundo. Há aqui a ideia reconfortante de um ser distante que olha por nós e acaba por ofertar a felicidade, mas a impressão que nos fica desta in-
TINA LUZ não é
propriamente uma estreante na escrita. Já vencedora de vários prémios locais, assim como de menções honrosas, e autora de três livros – Timor – Histórias Histórias à Beira-Mar com Lendas, Ana Cristina Luz O Ganso que Folheto Edições & Design namorava a ISBN 9728821301 lua e Três viagens e uma história que quase não acontecia, tem vindo a desenvolver uma actividade regular no campo literário, marcada essencialmente por um amor à arte de contar histórias. Uma contadora de histórias que desta vez quis realizar o seu próprio canto de admiração pelo clamor das ondas e o céu azul que cobre a praia em onze contos reunidos na colectânea com o nome Histórias à Beira-Mar, publicada pela editora leiriense Folheto. De facto, o motivo marítimo sempre exerceu ao longo dos tempos um intenso fascínio no imaginário português, sendo a sua presença constante na literatura portuguesa, desde as tradicionais cantigas de amigo que nos trazem desse distante passado a voz feminina de Ondas de Mar de Vigo, passando pela sua mais elevada expressão mítica e épica em Os Lusíadas, até ao momento do século passado em que as forças marítimas atingem o seu culminar na poesia de Sophia de Mello Breyner. 28
cursão pelo fantástico por parte da autora é a de puerilidade, de uma certa ingenuidade no tratamento da matéria fantástica. Um outro conto com laivos de fantástico será “A Voz do Mar”. Uma história porventura mais modesta, mas talvez melhor concretizada no sentido de transparecer bem a intimidade entre as personagens, pois é na expressão singela e despretensiosa dos pensamentos e emoções que Ana Cristina Luz transforma os seus contos em pequenas pérolas. Em “A Voz do Mar”, o mar detém um protagonismo cruel e egoísta, mas tudo isso é secundário perante a dor psicológica da personagem feminina, remoída pelo remorso e a saudade, daí que não seja um conto verdadeiramente fantástico, uma vez que este não constitui o cerne da história. O retrato psicológico de mulheres afligidas pelo amor ou não-amor é o que constitui o verdadeiro núcleo destas onze histórias à beira-mar. Mas a alma feminina não é toda devotada a esse sentimento. Poderse-ia dizer que cada mulher retratada nesta colectânea possui recantos de si entregues inteiramente à admiração pelo mar. Fazendo uso de um verso de Sophia – Mar, metade da minha alma é feita de maresia, e, no caso das personagens de Ana Cristina Luz, a outra metade de amor, poderse-ia dizer que tal se aplica perfeitamente a contos como “O Voo”, em que a mulher se permite a confidências, “A Decisão”, onde se sente a angústia e indecisão de uma noiva em vésperas de casamento, “A Promessa”, a lembrar as tragédias marítimas individuais dos livros de Jorge Amado, “Um Sonho na Madrugada”, certamente mais do que um sonho, “A Revolução”, uma das prosas mais bem conseguidas desta colectânea, registo humorístico e íntimo de um episódio
da Revolução dos Cravos e “Regresso”, outra pérola de intimidade. Não é no registo da fantasia romântica que a autora melhor se exprime, é antes na exposição dos dilemas, das tristezas e alegrias, do prazer ou da solidão, mas mais ainda na invocação de memórias do passado, como podemos observar no excelente “Cuba, Alentejo”. A autora traz à superfície detalhes e momentos marcantes nas vidas das pessoas, construindo com os seus contos um mosaico onde as almas cedem constantemente ao apelo dos mares.Safaa Dib BANG!
ZORAN ŽIVKOVIĆ é, quiçá, um nome ainda relativamente desconhecido para muitos portugueses, não obstante o autor orgulharse de um invejável currículo além-fronteiras, para não falar da fama que lhe é reconhecida no seu país natal, a Sérvia. Especialista em ficção científica, Živković muito contribuiu para o género com a escrita de numerosos ensaios académicos, a organização de uma enciclopédia em dois volumes e, através da sua editora Polaris, a publicação de mais de cem obras traduzidas. Em 1993, decidiu enveredar pela escrita de ficção com o monuBiblioteca mental Četvrti Zoran Živković krug («O quarto Tradução de Arijana Medvedec círculo»), actiCavalo de Ferro ISBN 972-8791-82-8 29
vidade à qual se tem dedicado quase exclusivamente desde então. Abraçando tão vasta experiência no campo editorial, da escrita à publicação, Živković encontra-se pois no seu elemento quando é hora de contemplar os livros que lhe são tão queridos. E é precisamente com Biblioteca, obra galardoada em 2003 com um World Fantasy Award — feito notável, diga-se de passagem, dado o anglofonocentrismo que por hábito rege estas atribuições — e uma nomeação para o International IMPAC Dublin Literary Award, que Živković surge agora no nosso país pela mão da tradutora Arijana Medvedec e dos editores da Cavalo de Ferro. Note-se que o tema em questão também já não era inédito para o autor, uma vez que Biblioteca se materializa no seguimento de Knjiga («O livro»), um comentário bem-humorado sobre a nossa especial relação com os livros, e onde se reservam as mais duras críticas para a exploração comercial da literatura. À semelhança de várias outras obras de Živković, como Nemogući susreti («Encontros impossíveis») ou Četiri priče do kraja («Quatro histórias para o fim»), Biblioteca pode ser considerada um romance em mosaicos, uma sequência de contos em torno de um tema comum, encerrados por uma narrativa que perspectiva todas as anteriores. «Biblioteca Virtual», o conto que inaugura inaug a colectânea, explora o potencial cial fantástico fantá o da Internet — espaço dde inúmeras eras possibilidades lidades — com uma versão vers digital gital da «Biblioteca Biblioteca de Babel» do argentino tino Jorge Luis Borges: um site que se gaba de B conter todos os livros. Confrontado com tão singular narra ngular anúncio, o escritor qque nar
a história resolve procurar as suas próprias obras na Biblioteca Virtual, ao que, com surpresa e horror, se depara com a sua bibliografia completa, presente e também futura. Desencadeia-se uma furiosa troca de mensagens com os proprietários do site, ao fim da qual o escritor deixa de poder consultar a sua página. À indignação, segue-se a angústia, quando o protagonista se apercebe de ter desperdiçado um vislumbre precioso do futuro e, tão importante quanto isso, daquilo que poderá nunca vir a criar. A miríade de caminhos bifurca-se exponencialmente, mas só um nos é permitido trilhar. Este potencial insondável, bem como as proporções astronómicas que a matemática combinatória permite descortinar, eram já temas recorrentes na obra de Borges, na qual Zoran Živković se inspira generosamente para nos oferecer as suas bibliotecas. Em «Biblioteca Mínima», novo personagem vê-se a braços com o infinito, quando adquire (a um vendedor cego, nem mais!) um misterioso volume em tudo semelhante ao monstruoso «Livro de Areia» de Borges. Este protagonista, também ele escritor, constata que o livro exibe nas suas páginas uma obra literária diferente de cada vez que é aberto. No entanto… «[…] depois de já ter levantado e baixado a capa pelo menos dez vezes, parei movimento. A de repente a meio de um moviment minha questão que irrompeu à superfície da minh consciência ncia de imediato ediato transformou o meu deslumbramento um ento em algo próximo consternação. O que acontecia com da co uma obra depois de eeu fechar o livro? tinha compreendido, desaparecia Pelo que tinh mpreen sem deixar rasto. Isso significava que até 30
então, com a minha precipitação infantil, tinha perdido para sempre mais de dez romances!» (74) Seguem-se várias tentativas desesperadas (e infrutíferas) de recuperar ou preservar estas obras. O desassossego volta a imperar, de tal forma que o protagonista se vê impedido de «continuar a viver calmamente, fingindo que nada tinha acontecido.» (73) Mas ao invés de ceder ao desespero, o protagonista encontra uma solução simples, ainda que eticamente questionável. Entre «Biblioteca Virtual» e «Biblioteca Mínima», outras situações, todas elas dignas de figurar como episódios da boa velha Twilight Zone, sucedem-se. Em «Biblioteca Particular», um homem recolhe compulsivamente os oito mil trezentos e cinco tomos da literatura universal que se materializam, como que por milagre, na sua caixa de correio; de tal forma que acaba por preencher todo um quarto de livros. À obsessão coleccionista, também ela fruto do confronto com uma totalidade irresistível, segue-se um remate mordaz: «Sentar-me-ia na entrada, junto da porta aberta do quarto, e estaria simplesmente a observar o tesouro amarelo-escuro diante de mim.» (34) Logo a seguir, «Biblioteca Nocturguir, em «B na», um indivíduo fechado acidentalmente o fechad numa biblioteca durante urante a noite, descobre que esta alberga minucio minuciosas biografias de todas as pessoas quee já existiram, incluindo incluin próprio. Recusando-se a do pró sando-se a aceitar o que vê, narrador racionaliza ê, o na cionaliza o insólito dos factos, ctos, aassumindo que estas biografias não passam de dossiers o pass ssiers organizados pelo regime ditatorial do gime di o seu ppaís. Este ccepticismo o é uma atitude comum noss protagonistas prot de Živković, a fazer
lembrar o conflito dos opostos blakeanos — a Razão, por um lado, e a Energia criativa, por outro — que estão no fulcro da existência humana. Porém, de uma forma ou de outra, todos os personagens acabam resignados à bizarria dos factos, concluindo que «às vezes é mais aconselhável e proveitoso aceitar coisas estranhas» (25) e notando como «o ser humano aceita com mais facilidade o impossível quando este deixa de o surpreender» (74). Živković, apesar de racionalista assumido, não tem quaisquer problemas em se entregar ao elemento fantástico dos seus contos. Trata-se, afinal de contas, de ficção. Não obstante, os narradores expõem todas as suas dúvidas e inquietações numa abordagem que, conjugada com uma certa rigidez estilística por parte do autor, pode fazer as magras 96 páginas de Biblioteca parecerem mais longas do que na realidade o são. Por outro lado, a imaginação de Živković e o seu subtil sentido de humor chegarão para manter o interesse de quem lê. Isto porque, à formalidade estilística do autor, contrapõe-se uma boa dose de irreverência e ironia. «Cada época tem o seu inferno. Nesta altura é uma biblioteca.» (57) Assim observa Živković os tempos modernos, ao mesmo tempo que responde à afirmação feita por Jorge Luis Borges de que «o paraíso seria uma espécie de biblioteca.» Mas paraíso, de acordo com o significado primordial da palavra, é também um espaço aço fechado; e na Biblioteca a de Živković, são feitos vić, todos os protagonistas protagon feito reféns dos livros que encontram. encontr Atinge-se enfi m a sexta e derradeira fim adeira narrativa, onde um coleccion coleccionador de grande nde requintee procura abolir da su sua biblioteca os inestéticos éticos volumes que correspondem aos 31
cinco primeiros contos do livro. O número total de histórias não surge aqui por acaso, da mesma forma que poucos números surgem por acaso na obra de Živković: o seis remete de imediato para os famosos hexágonos da Biblioteca de Babel. Basta, também aqui, repetir a clássica sentença: «A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, e cuja circunferência é inacessível.» Se os livros ofendem, se a bibliofilia se torna um suplício, é porque estes objectos nos recordam da nossa própria efemeridade. Não só a esperança de vida de um livro é consideravelmente superior à humana, como, pela sua profusão, a maioria das obras se apresenta inatingível. Com habitual silêncio, apertando as suas línguas de papel, os livros que nunca leremos zombam-nos do alto das prateleiras, enquanto agitamos um punho cerrado na sua direcção num gesto inútil de revolta e ameaça. A forma encontrada pelo coleccionador de exorcizar estes intrusos é levando à letra o conselho de Francis Bacon de que certos livros são para saborear, mastigar e digerir. Porque, como qualquer bibliófilo sabe, não há livro mais incómodo do que aquele que fica por ler. Luís Rodrigues BANG!
Entrevista a
dAVI
K sOA por Rogério Ribeiro
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O weblog é, na realidade, uma pequena parte do meu universo criativo. Divirto-me a escrever n’”O Sonho de Newton” e levo-o muito a sério, mas não é mais importante que o meus livros, e se precisar de interromper a escrita no weblog porque a realização de um livro me ocupa tempo não penso duas vezes: os livros vêm em primeiro lugar. É, também, um excelente ginásio! Se escrever num caderno sentado à mesa de um café é como fazer jogging então escrever no weblog é como quebrar as costasnumespaçodemúsicaesexo.Penso que um weblog é muito permeável: é, desavergonhadamente, alarve! Um weblog não é como um palimpsesto porque não existe verdadeira rasura, o que significa que os textos continuam visíveis, logo consultáveis. Atentando a isso, se me dou ao trabalho de escrever um texto para o weblog ele tem de ser capaz de sobreviver para lá do momento da sua realização.
A banda desenhada e a prosa são ambas linguagens que me permitem contar histórias e isso é natural para mim. Acredito que todos nós nascemos com o instinto da linguagem, alguma espécie de gramática genética consensual que se adapta rapidamente aos fonemas do nosso meio formador, e contar histórias é apenas mais uma forma de criar elos. O que acontece é que alguns de nós deixam de contar histórias em algum estádio do seu crescimento enquanto que outros continuam a contar histórias toda a sua vida. Os escritores alcançam a sua maturidade gramatical ainda na infância e em virtude disso nunca deixam de refinar essas faculdades.
D
ARES 33
Essa é a diferença entre um escritor e um leitor: neotenia!
nos veículos de expressão underground, e continuei o trabalho iniciado pela sua edição com a realização dos títulos seguintes sempre com o objectivo de fazer livros melhores.
No final da década de noventa publiquei três edições amadoras de banda desenhada de horror sob a forma de fanzines e a publicação de “Cidade-Túmulo” através da Círculo de Abuso foi uma progressão mais rigorosa desse labor independente. A minha intenção era fazer algo diferente do trabalho que vinha a desenvolver em banda desenhada e estrear-me como romancista. Contudo, compreendi que publicar um romance seria um empreendimento demasiado grande para ser conduzido sem qualquer experiência de edição e decidi adaptar para banda desenhada um conto que já tinha escrito; que, avante, foi incluído integralmente no meu livro de contos “Mostra-me a Tua Espinha”. A ideia foi mesmo produzir algo mais pequeno que eu pudesse controlar. Acredito que “Cidade-Túmulo” é uma boa história. Graficamente poderia ser mais forte, mas, numa maneira retorcida, é bastante poderosa no seu pioneirismo. É uma história de horror e até à data da sua publicação não existiam histórias de horror na banda desenhada portuguesa. Penso que quem leu o livro não soube muito bem como o definir porque ele não estava relacionado com o que tinha sido publicado até à altura por artistas portugueses de banda desenhada, mas, felizmente, nunca trabalhei com a intenção de guardar os trabalhos na gaveta e quando leio “Cidade-Túmulo” penso que tive razão em o querer lançar: foi um livro que teve óptimas críticas, tanto na imprensa mainstream como
“Em princípio, a auto-publicação pode operar maravilhas para o nosso trabalho” Em princípio, a auto-publicação pode operar maravilhas para o nosso trabalho se ele for forte o suficiente para ser comerciável e se o esforço de edição for suportado por uma excelente distribuição que garanta que os livros sejam dirigidos eficazmente ao público ao qual são destinados. Presentemente o mercado é extremamente hostil no que alude a projectos de dimensões microscópicas e acredito que erguer um projecto independente de características editoriais dessa índole nesta conjectura é um mau empreendimento: dificilmente um distribuidor aceitará trabalhar com um editor que lhe disponibilize uma ou duas edições por ano. E sem uma boa distribuição o trabalho não irá ter qualquer visibilidade e não será vendido. A médio prazo desejo, somente, concentrar-me no meu trabalho enquanto autor e não enquanto editor, que é sempre uma iniciativa muito cansativa e dispendiosa. Nunca pensei em mim como um verdadeiro editor, em primeiro lugar. Sou um autor que fez os 34
livros que quis ler da forma que achou mais indicada, por vezes com bastante ingenuidade, e que teve o engenho, ou a sorte, de eles terem tido muitos leitores, excelentes críticas e diversos prémios. Comecei a experimentar uma maior
género que mais influenciou a cultura e a arte do século passado e isso está bem patenteado na literatura, no cinema e na música. A minha percepção do que é um trabalho de horror é certamente mais generosa que a instituída. Penso que escritores como Günter Grass, Danilo Kîs, Jerzi Kosinski ou Cormac McCarthy são tanto romancistas de horror como os nomes mais óbvios e é a sua visão sobre o género que é substancialmente diferente; mas, ainda assim, com as mesmas preocupações. Talvez exista um preconceito dirigido ao horror, mas, em última análise, todos os géneros literários são alvo de algum tipo de preconceito. O horror não deve ser um género confortável, mas algo verdadeiramente visceral. Penso sempre que o horror é como sexo: é compulsivo, sedutor e simetricamente uma coisa aterradora que deixa marcas exteriores e interiores paratodaavida.Talvezninguémrecupere totalmente de uma má experiência sexual e o horror deve ser assim. Essa é uma das razões pelas quais o sobrenaturalestá,deumaformaououtra, associado à sexualidade nas minhas histórias. Porque é através do sexo que permutamos afectos e nos transformamos. E, algumas vezes, talvez a maioria das vezes, acabamos por nos transformar naquilo que não gostamos. É, realmente, um género maravilhoso para se trabalhar. Não penso que uma determinada obra minha tenha sido mais bem sucedida que outra no que diz respeito à comunicação com os leitores porque a concretização de cada título esconde preocupações diferentes: nunca senti
“A ficção de horror é o género que mais influenciou a cultura e a arte do século passado” liberdade autoral com “Sammahel”, inspirado no romance “Doutor Fausto” de Thomas Mann, um livro onde plasmei os meus temas mais queridos de um modo mais íntimo e isso deu-me confiança para ir ainda mais longe com “A Última Grande Sala de Cinema”. Sempre procurei formas de criar trabalhos que dificilmente se tornassem datados, algo que eu tivesse prazer em revisitar e eu sinto isso. Adoro as soluções gráficas que encontro em “Sammahel” e experimento arrepios quando releio “A Última Grande Sala de Cinema”. Olhando para trás é muito bom constatar que, enquanto autor, nunca procurei uma fórmula segura para criar um livro. Sempre tentei apresentar alguma coisa radical, algo inesperado e essa é, felizmente, uma das premissas da ficção de horror. Sempre escrevi e desenhei trabalhos de ficção de horror: tudo o que fiz se inscreve directa ou marginalmente nesse género. Assim como, certamente, tudo o que farei. Acredito que a ficção de horror é o 35
que alguma matéria deixada intocada num livro fosse despertada no próximo. Não é assim que trabalho. Para mim, depois de acabado, um livro está morto e não penso nele durante muito tempo. Sempre recebi correio de leitores sobre o meu trabalho, por isso sempre soube, ou pude adivinhar, os sentimentos que ele é capaz de provocar, todavia a maior surpresa que senti enquanto criador não foi com nenhum trabalho de banda desenhada ou prosa, mas com o meu cd de “spoken word”, “Lisboa”. Foi algo que fiz para enriquecer a minha actividade de escrever e desenhar e fiquei muito feliz por descobrir que assombrou todos os que o ouviram. Li um excerto dos textos do cd num evento literário promovido pela loja FNAC do Chiado e quando terminei a narração e regressei à minha mesa no café do fórum fui abordado por pessoas da assistência que me parabenizaram e, inclusive, pediram cópias do cd porque gostaram muito do que tinham acabado de ouvir. Foi um belo momento porque se tratava de um género de trabalho que nunca tinha feito antes e foi com “Lisboa” que percebi que, talvez, tenha algumas qualidades como contador de histórias que conseguem romper com os limites do papel. Isso também é um reflexo das minhas preferências pessoais: gosto de autores que possuem vários interesses e que sejam capazes de os relacionar solidamente para criar em campos artísticos distintos.
des mudanças na minha carreira. A editora que o lançou não fez nenhuma promoção ao livro, que enquanto objecto ficou horrível com uma capa feia e má impressão, e o único feedback de que tive conhecimento foram críticas que li em revistas especializadas como a “Pavillion Rouge” ou em veículos mais mainstream como “Les Inrockuptibles”: artigos que eu tive de procurar por iniciativa individual em revistas que eu mesmo tive de comprar. Um sintoma da generalidade das artes narrativas portuguesas como a literatura e o cinema é que existe uma subserviência do conteúdo diante da componente técnica. Isso traduz-se tanto em filmes com excelentes fotografia e som mas com um argumento mau ou em álbuns de banda desenhada com uma óptima arte e uma história fraca. Não vou ser falsamente modesto e preciso de dizer que a publicação original de “Mr. Burroughs” surpreendeu muitos leitores porque foi uma das raras vezes, senão a primeira vez, que um álbum português de banda desenhada apresentava um argumento sólido capaz de concorrer com o melhor material estrangeiro. Felizmente esse ano até viu a publicação de mais um excelente álbum português de BD com um argumento brilhante intitulado “És a Mulher da Minha Vida, És a Mulher dos Meus Sonhos”, escrito com sensibilidade por Pedro Brito e belíssimamente desenhado por João Fazenda, mas por razões que não consigo compreender esse título permaneceu dentro do círculo bedéfilo enquanto que “Mr. Burroughs” conseguiu romper esse perímetro e atingir
A edição francesa de “Mr. Burroughs” não correu como esperava. Não vou discorrer sobre ela, mas posso revelar que essa publicação não operou gran36
algum mainstream. Infelizmente o livro acabou por se tornar numa aberração, mas veio demonstrar que o poder de uma boa história é avassalador. E, mais importante ainda, provou que as melhores obras não precisam necessariamente de ter origem nos selos instituídos.
E eu escolhi falar sobre cinco livros de banda desenhada cuja afinidade é a sua introdução no género da ficção de horror. Ou que partilham elementos que fazem parte do bestiário do género. São livros que eu conheço bem e pude observá-los de trás para a frente para absorver o que eles me tinham para contar e ter a segurança suficiente para me deixar conduzir a territórios inesperados. Os juízos plasmados em “Sobre BD”, contudo, não estão gravados em pedra e outra pessoa com outras referências poderia ler as obras em questão e descobrir outros links. É um exercício intelectual e como tal a sua qualidade e argúcia está directamente relacionada com as referências culturais do autor. Se o autor conhece coisas interessantes ele vai escrever coisas interessantes. Se for uma pessoa que lê pouco os seus argumentos não serão muito extensos ou muito convincentes. Eu sou um leitor eclético e abordo livros sem medo. Não leio apenas um determinado género ou géneros. Posso passar quase um ano sem ler ficção e de repente leio dezenas de livros de ficção para compensar. Algumas vezes compro um livro e só o leio meses depois porque ele ainda não me estava a chamar. “Sobre BD” é especial e único em muitos aspectos e orgulho-me muito dele. E é bonito! Só outro dia é que me apercebi disso: é um livro bonito com uma capa impressa num papel muito táctil. Adoro tê-lo nas mãos mesmo que não o vá consultar. Adoro livros. Se fores a minha casa verás que não os escondo num escritório, mas tenho-os na sala de estar: as minhas estantes
Em “Sobre BD”, quis escrever um livro de ensaios sobre banda desenhada de uma forma que não encontrei, e não encontro, publicada em Portugal. Quis pensar com as obras em análise e abrir canais de conhecimento para outras artes a partir da sua leitura. Um livro
“...o meu amor pelos livros, esse gosto em os fazer bonitos. Quis fazer objectos que os leitores tivessem gosto em levar para a cama.” fala sempre de outros livros mesmo que a comunicação esteja oculta e os títulos não sejam mencionados nos parágrafos. Não acredito que é redutor escrever sobre a banda desenhada falando em filosofia ou ciência ou os mistérios herméticos. No mínimo, é uma abordagem que mostra como a banda desenhada é generosa e pode ser uma linguagem única para falar dos mais diversos assuntos. A banda desenhada é apenas uma ferramenta, como a poesia ou a prosa, para se falar de uma determinada matéria e não devem existir preconceitos sobre que tipo de tema escolher. 37
cheias deles ao alcance da mão. Penso que uma das melhores ajudas que tive durante as produções dos títulos que editei foi o meu amor pelos livros, esse gosto em os fazer bonitos. Quis fazer objectos que os leitores tivessem gosto em levar para a cama.
golpe de misericórdia, e encerra todas as preocupações dos contos anteriores interiorizando-as de um modo terrível. Quis transmitir a ideia de que as grandes catástrofes nem sempre têm origem em
“... as grandes catástrofes nem sempre têm origem em actos espectaculares de destruição, mas sim em efeitos micróscopicos que passam despercebidos.”
“As Trevas Fantásticas” é um livro de contos de ficção de horror com material variado e muito forte. Editar o livro pela Polvo permite-me apresentar imagens e conceitos que uma editora de maiores dimensões poderia considerar ofensivos e gosto dessa liberdade. Gosto de livros de contos com poucas histórias porque ler muitos contos de seguida pode tornar-se aborrecido e emerge sempre o juízo de que algumas histórias só estão presentes no livro para criar volume e isso é uma pena. Cinco contos, ou três contos grandes, é a medida ideal para um livro dessa natureza e “As Trevas Fantásticas” é composto, precisamente, por cinco contos: “O Bezoar”, “Corações no Verão”,“PelaMãodeUmVampiro”,“No Vale, A Igreja” e “Círculo de Sangue”. “O Bezoar” é um início deliberado porque é uma história tão ‘over-the-top’ que se o leitor a conseguir engolir a restante leitura seguirá sem problemas. “Corações no Verão” é um conto mais negro, emocionalmente. “Pela Mão de Um vampiro” é uma versão pessoal do mito do vampiro; é quase impossível criar algo original com essas criaturas, mas penso que criei uma boa história de vampiros. “No Vale, A Igreja” é, de certa forma, o último conto do livro porque “Círculo de Sangue” é apenas uma história curta para dar o
actos espectaculares de destruição, mas sim em efeitos microscópicos que passam despercebidos. Em “O Bezoar” falo desse género de caos espectacular, mas o que acontece quando a destruição pica o ponto e regressa a casa? “No Vale, A Igreja” é sobre essa intimidade com o perigo. Quanto ao futuro próximo, estou a desenhar um novo álbum de banda desenhada intitulado “A Escuridão” e escrevi outro álbum, “Sepulturas dos Pais”, que está a ser desenhado por outro artista português. São ambos livros grandes. Continuo a escrever contos de horror para novos volumes. Também escrevi um trabalho em spoken-word sobre Fernando Pessoa e estou a preparar um novo livro de ensaio sobre ficção de horror. BANG!
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Pré-publicação de
No vale,
a igreja de David Soares
Inclinado sobre o braço esquerdo cuja mão assentava no chão, Scavius mussitava encantamentos para o imunizarem contra a dor angustiante que se espalhava sobre os seus rins e principiava a subir pelo abdómen, ameaçando romper o diafragma. Ele sabia pelas autópsias que realizava às escondidas em carcaças de porco que as tripas eram obrigadas a realizarem o seu trabalho na metade inferior do corpo e impossibilitadas de reclamarem graças a essa membrana que também provocava soluços. Quando se rasgava, por culpa de qualquer punção ou doença, as vísceras eram rapidamente chupadas para junto dos pulmões e aí ficavam, enrolando-se à volta deles e do coração como a serpente do livro do Génesis em redor do tronco da Árvore
do Conhecimento do Bem e do Mal. Era isso que o repugnava mais, o receio de que a dor rompesse o seu diafragma e morresse esganado pela sua própria merda. Conseguia mover a cabeça com muito esforço, mas não sentia as suas pernas paralisadas. Olhou em volta e tudo lhe pareceu simultaneamente triste e cómico, à boa maneira das farsas que costumava vislumbrar ao longe nas feiras enquanto procurava os ervanários e os carniceiros. Sobre um palco improvisado, feito com uma tábua grande e dois barris, dois comediantes batiam-se mutuamente com bastões pintados de vermelho, enfeitados com fitas pretas. Um vestido de mulher e o outro disfarçado de demónio, com uma caraça de barro pintado e coberto com 39
uma samarra reforçada com espinhos e galhos pintados, também, de preto e vermelho. Os seus malabarismos, executadossemimprovisodeacordocom uma coreografia rigorosa, provocavam o riso da multidão. O demónio soltava gases constantemente e o actor tra-jado de mulher, com dois melões escondidos sob o vestido, atados ao torso com uma apertada faixa de pano, berrava numa voz de cana rachada, vocalizando insultos e pregões cujo objectivo era ridicularizar as mulheres. Uma triste farsa cujo conteúdo racista não escapava desentendido ao juízo de Scavius. A caricatura feminina, chamada Judite, encarnava o povo judeu. O judeu e o demónio no mesmo palco lutando pelo domínio do púlpito, cada qual arengando em alta voz tentando ganhar mais almas humanas enquanto o pastor cristão, que subia ao palco nesse instante, os escorraçava com o seu bordão igual ao de S. Pedro, o dependurado, obrigando-os a pisar um livro de capa negra e outro, mais grosso, que simbolizava o Torah. Carregado com um saco cheio de órgãos e sobras de porco e vaca, Scavius afastava o olhar e guardava as compras na parte traseira da sua carroça. Mais tarde, na segurança da sua casa, na companhia do seu material alquímico, esquecia essas fantasias tolas enquanto estudava a anatomia dos órgãos animais tentando decifrar os mecanismos que operavam no interior do organismo humano. Acompanhar os ressureicionistas durante a noite até aos aterros comuns
“Era isso que o repugnava mais, o receio de que a dor rompesse o seu diafragma e morresse esganado pela sua própria merda”
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e esperar que eles desenterrassem um cadáver era uma aventura dispendiosa e arriscada que poderia acabar na fogueira se fosse descoberto. Colava a mão ao peito e sentia o seu coração a trabalhar, imaginando o sangue a ir e vir como as marés, agitado por esse tambor subcutâneo e imaginava que deveria existir outro coração mais secreto que servia de fonte a outro líquido semelhante ao sangue, mas impuro. Já chegara à conclusão, especulativa, que o sangue era o combustível do corpo, já que todos as criaturas animadas sangravam e quando mortas o sangue se tornava duro, mas maleável, como o barro. Outro médio deveria existir, concluía, que serviria para expulsar os detritos consequentes dos efeitos do corpo, assim como a urina e as fezes eram os resíduos da transformação dos alimentos. ‘Quemadmodum lac beatae gloriosae Mariae Virginis fuit dulce et suave Domino Nostro Iesu Christo, ita haec tortura sit dulcis et suavis brachiis et membris meis.’, ladainhava, tentando diluir a dor que lhe era injectada através dos pés e das nádegas e evitar que os intestinos abraçassem a sua fressura. ‘Imparibus meritis tria pendent corpora ramis. Dismas et Gestas, in medio est Divina Potestas, Dismas damnatur, Gestas ad astra levantur.’, cuspia de dentes cerrados imaginando que dessa forma iria descaroçar o seu espírito para que pudesse observar a decadência do seu corpo do alto. Nunca deixara de ser um homem religioso, apesar dos seus instintos que o conduziam ao cepticismo e à investigação, e neste momento horrível em que a morte o devorava
aos pedaços, vagarosamente, procurava sentimentalizar o seu Deus, falando-lhe na língua da homilia. Ouvira falar de homens vulgares e nigromantes que insensibilizavam os sentidos de modo a suportar as mais violentas erupções e ataques inflingidos pelos agentes da igreja durante os interrogatórios dos inquéritos de acusações de heresia e bruxaria e esperava que as suas palavras ganhassem o mesmo efeito anestesiante. Nada tinha a perder, por isso continuou a repeti-las até esquecer o seu significado e só ser capaz de as soletrar auxiliado pela memória que fixara a sonoridade das sílabas, conseguindo preencher os espaços vazios entre as letras com as recordações que gravara durante os últimos meses. BANG!
Título: As Trevas Fantásticas Autor: David Soares Editora: Polvo
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CRÓNICA DE JOÃO BARREIROS
A ARMADA ESTÁ A IMPLODIR E O IMPERADOR NÃO QUER SABER! onde qualquer enxaqueca se cura não pelo ácido acetilsalicílico, mas sim pelas graças de um feitiço que ninguém se dá ao luxo de explicar o funcionamento. E tudo isto porque as Torres caíram, não é verdade? As Torres caíram e ninguém se lembra que, nos anos sessenta, Samuel Delany escreveu precisamente THE FALL OF THE TOWERS. Fragmentos dispersos desta memória do futuro repousam agora, perdidos nas prateleiras das livrarias em 2ª mão. Não nas livrarias portuguesas, claro, onde o futuro nunca existiu. Por cá, os meios de comunicação exultam o milagroso advento da “fantasia” portuguesa. Tecem laudas
E PRONTO, O FUTURO ACABOU! Será que ainda resta a menor sombra de dúvida? Por todo o lado, os indicadores apontam para uma recessão do imaginário, onde os amanhãs não cantam, porque simplesmente deixaram de existir. Como a dar razão ao pessimismo de Ballard, as cápsulas Mercúrio repousam agora em desertos de areia, espalhadas um pouco por todo o mundo, a escamar placas de ferrugem. As derradeiras “flores do tempo” são aspiradas pelo o que resta dos leitores e os seus perfumes, antes da dissolução final, transportam-nos rumo a um passado mortiço e maniqueísta 42
aos jovens autores que, munidos de espadas, se erguem contra os Senhores das Trevas em buscas intermináveis de objectos plenos de maná. E muitos desses autores afirmam, com todo o desplante, que a Fantasia Heróica é como um hambúrguer, onde apenas variam os níveis de cebola frita, molhos e acompanhamentos. Que se deve oferecer ao povo o que o povo deseja, e nada mais. Que essa coisa da “educação estética” é para snobes esquerdistas. Enquanto isso, as emergentes e tímidas colecções de Ficção Científica (FC) morrem à nascença, tolhidas por um defeito genético que não lhes permite sequer começar a respirar, abandonadas pela mais absoluta indiferença das massas leitoras. A título de exemplo, a única colecção de FC que ainda mexia qualquer coisinha, a da Presença, acabou este ano de ser criogenizada por falta de leitores; que entretanto continuam a consumir, com alegria e devoção, a colecção paralela dedicada à fantasia infanto-juvenil. Como explicar este fenómeno que, segundo parece, está em vias de se tornar universal? Numa recente visita a Londres, pude enfim visitar in loco o processo desta rápida e tristonha agonia. A famosa loja Murder One, em Charing Cross Road, desapareceu da nossa cronolinha para dar lugar às lojas de um portentoso Shopping Center de quinquilharia chinesa. E desse mítico résdo-chão, carregadinho de livros antigos, de prateleiras de edições de small-presses a preços de fazer esbugalhar os olhos, de mesas que variavam de escaparates várias vezes por dia, agora não resta mais
do que a memória. Visitei-o uma última vez há dois anos e, ao subir as escadas no dia da despedida, a percorrer com os olhos os posters dos livros que haveriam de ser publicados no mês seguinte, não fazia ideia de que essa seria a última. A loja mudou-se para o outro lado da rua, indo ocupar um minúsculo espaço onde até custa a respirar e, como já seria de esperar, a secção de FC desapareceu. De todo. Porque não era comercial, alegaram os donos. Porque as novelas românticas e os policiais vendem mais. Daí este inevitável acto de eugenia. Que resta? O Fantasy Inn, onde o Brian Stableford e a Mary Gentle autografaram alguns dos meus livros, ardeu há alguns anos e, por falta de pagamento de seguros e impostos, nunca mais voltou a renascer das cinzas. Mas era uma loja mítica, com uma cave quase secreta, que eu descobri pela primeira vez aos dezoito anos, depois de passar uma infância inteira à míngua do novo. Ao entrar pela primeira vez na loja, ao descobrir que ela tinha, não uma prateleira dedicada ao género, mas incontáveis estantes de livros de FC, muitos deles (surpresa, surpresa) encadernados, quase sofri uma epifania. E o horror de dispor apenas de um orçamento limitado para a compra, um orçamento que me forçava a praticar escolhas absolutas, mas que felizmente, por exclusão de partes, me levou à descoberta do genial Cordwainer Smith. Um ano depois do incêndio, com a loja escancarada, negra e fuliginosa como a garganta de uma múmia, havia ainda gente à porta, munida de pequenas bancadas, a vender paperbacks ligeiramente húmi43
dos chamuscados que conseguiram sobreviver à conflagração. Hoje a livraria já não existe, transformou-se por conveniência, humph, numa loja de conveniência… Dark They Were and Golden Eyed, existiu durante alguns anitos num recanto secreto de Londres, numa viela que dava para Oxford Street. Tinha uma montra imensa, com os mais recentes hardcovers importados do outro lado do mundo a brilhar e…querem crer?, pratinhos com charros à disposição do cliente. Também ela se esvaziou, morreu, caducou, foi à falência. Uma vez mais, durante uma visita posterior à capital do império, vi-me perante ruínas. A montra estava coberta por folhas de jornal. Um cartão anunciava um contacto telefónico. Pelas frinchas destes jornais podia-se ainda ver no meio do pó e das bancadas derrubadas, acreditem, um ou dois livrinhos abando-nados no meio do chão. Forbidden Planet mudou de rua. É agora uma Megastore. A derramar rios de néon. Imensa. Um andar térreo, labiríntico, cheiinho de parafernália, modelos de naves, miniaturas de heróis, capuzes a la Darth Vader e uniformes para toda a gama de trecos. Mas desçam as escadas até às caves. Outro labirinto dedicado aos Comics, à Mangá, aos Animes, aos DVDs de filmes de culto e…sim, sim, lá ao fundo uma série de prateleiras com livros, vejam lá! Mas desenganem-se os audaciosos visitantes. 90% das obras expostas são paperbacks de fantasias genéricas, todas elas incompletas, porque se estendem ao longo de dezenas de volumes, e onde aparece o número cinco nunca se
descobre o numero três. É necessário procurarmos com afinco (e com um desespero crescente, diga-se de passagem) por um único livrinho de FC genuína, ali perdido entre tantas feiticeiras celtas e dragões neurasténicos. Foi-se a secção dedicada às revistas. Inútil procurar por ela. Inútil chorar pela ausência dos números antigos da ASIMOV’S, ANALOG, MAGAZINE OF FANTASY & SF, INTERZONE; CEMETARY DANCE e outras
que tais. Desapareceu a secção dedicada às small-presses. Nada. Nada em lado nenhum, acreditem. Ali mesmo ao lado, também as velhas livrarias de Charing Cross estão a morrer, umas atrás das outras, e com elas as prateleiras nas caves bafientas onde ainda se podiam encontrar colecções completas de Aces/doubles, NEWWORLDS, e Masters of Fantasy da Ballantine Books. A Fortaleza Europa triunfa no bloqueio a tudo o que é importação Ianque. Quase nada chega de edições americanas, nem em livros e em DVDs muito menos. A Superdistribuidora Pinguin tomou conta de toda a Europa, especializou-se nos livrinhos que se consomem nos aeroportos e por isso o que descobrem em Paris, também vão encontrar o mesmo em Varsóvia. Notem que o processo de canibalização mútua e autofagia das editoras britânicas lançou certos au-tores mais independentes para uma treva indizível. Meus senhores, a fantasia é o que está a dar. Trilogias de 800 páginas por volume. Se quiseres escrever FC, estão tramados, filhos. Por isso vejam lá se incluem uma raça de elfos no quinto planeta de Tau Ceti! (Não estou a brincar, garanto-vos! Consultem o fenomenal primeiro volume de Peter 44
Hamilton, PANDORA’S STAR, e vejam se não aparece por lá um elfo ou outro!). Em todo este horror e anomia, só sobrevive a livraria Fantasy Centre, em Halloway Road, controlada por dois velhinhos quase centenários, mas a simpatia em pessoa, senhores de uma gama maravilhosa de livros em segunda mão, todos eles de FC, yes!, cada um com pouco mais de duzentas páginas, mas que representam o melhor de um
croutons na sopa de tomate, também eles terão de escrever fantasias heróicas. Muitas. Quanto mais iguais, melhores. Dizia recentemente Norman Spinrad que uma cultura que deixou de so-nhar com o futuro, de aspirar por um amanhã onde tudo é possível e resolveu voltar-se para um passado imutável, é uma cultura destinada a uma breve extinção. Concordo em absoluto. É por nos termos esquecido do futuro que as florestas ardem,
Meu caro senhor, esta é uma livraria especializada em clássicos de FC! NÃO vendemos merchandizing! Por favor, vá-se embora!
Desapareça! Desampare-nos a loja!” passado que não volta mais. Estava eu um dia a escolher pilhas de livros, velhas antologias e colectâneas, quando entrou um infeliz a perguntar por novelizações do Star Trek. E a resposta cordata não se fez esperar: “Meu caro senhor, esta é uma livraria especializada em clássicos de FC! NÃO vendemos merchandizing! Por favor, vá-se embora! Desapareça! Desampare-nos a loja!” E a criatura esfumou-se tão depressa quanto pôde, com o proverbial rabo enfiado entre as pernas! Portanto aproveitem bem esta jóia única. Quando ela desaparecer, acabou-se tudo. Recentemente, no Congresso de Gijon, Espanha, os autores franceses convidados queixavam-se da mesma situação em França. Colecções extintas. Poucas vendas. Recusa total das livrarias em criar secções dedicadas à FC. E lá, tal como em Inglaterra, como agora está a acontecer em Portugal, os autores que ainda sobrevivem, se ainda qui-serem uns quantos centavos para deitarem os
furacões devoram cidades ou o governo nos volta a calcar sob o talão das botas cardadas. O culto da Fantasia Generalista (não estou aqui, claro, a referir-me ao Leiber, ao Vance, ao Matthew Hughes, ao McMullen e ao MacLeod) é uma boa prova deste crepúsculo civilizacional que se avizinha. Digo-vos, as naves Imperiais estão todas a implodir, a conquista do futuro terminou, mas o Imperador dos Mil Sois não quer saber disso para nada, está demasiado entretido a ler o Henrique Oleiro às novas gerações de ranhosos iliteratos. BANG!
João Barreiros, escritor de Fc nas horas vagas, já publicou O CAÇADOR DE BRINQUEDOS, TERRARIUM e a VERDADEIRA INVASÂO DOS MARCIANOS igualmente editado em Espanha. Em 84, participou na Organização do Grande ciclo de Cinema de FC, patrocinado pela Cinemateca Portuguesa e a Fundação Gulbenkian. Quando os ventos sopram de feição, entretêm-se a fazer críticas demolidoras ao que por cá se publica, nos jornais PÚBLICO e na revista OS MEUS LIVROS. Acaba de terminar um novo mini-romance e aguarda agora que um Editor generoso lhe abra os braços e lhe encha de notas a conta bancária. 45
João Ventura: João Ventura é um dos mais prolíficos autores da actual ficção especulativa portuguesa. Professor universitário, vive em Lisboa.
Um conto de João Ventura
dosamente a cadeira, conduzindo-a pela rampa que descia do alpendre, circundava a casa e terminava no cais de madeira que, assente sobre estacas, entrava um pouco pela lagoa dentro. A cerca de 5 metros do extremo do cais, parava e travava a cadeira. Voltava duas vezes à casa: da primeira regressava com uma mesa e quatro cadeiras de plástico branco, que colocava, a mesa junto dele, as cadeiras completando o círculo à volta da mesa. Olhava com ar crítico, ajustava a posição de uma ou outra cadeira, e dirigia-se novamente à casa, donde voltava agora com uma garrafa de Porto, vintage, e 5 copos, que dispunha sobre a mesa. Observava novamente o conjunto com uma atenção profissional e formulava respeitosamente a pergunta habitual: — Deseja mais alguma coisa, menino António?
NUNCA OS CHAMAVA, MAS ELES VINHAM SEMPRE. Quando a lua cheia banhava
a lagoa com um luar lei-toso, saíam da água, separando-se da neblina que emergia da superfície da lagoa. Nunca vinham sem ser lua cheia. Uma vez explicaram-lhe que o luar lhes fornecia a energia necessária para aparecerem. E assim, mês após mês, ele construiu o ritual que agora tinha atingido a perfeição e já não precisava de ser modificado. Depois do jantar, Francisco, o empregado mais antigo da casa, que o conhecia desde miúdo, ajudava-o a ves-tir-se: um casaco de couro sobre uma camisola de malha grossa, umas calças de tecido grosseiro mas quentes, umas botas confortáveis nos pés, um boné na cabeça, um cachecol enrolado ao pescoço. Francisco ajudava-o depois a sentar-se na cadeira de rodas, colocava--lhe uma manta sobre as pernas e empurrava então cuida46
— Não, obrigado, Francisco, podes ir. Francisco regressava para o conduzir de volta a casa cerca da uma da manhã, quando eles se tivessem retirado. Eles apareciam por volta da meia-noite, e até chegar essa hora, António relembrava os acontecimentos, e era como um filme a desenrolar-se na sua cabeça, em câmara lenta ... a tarde de sol, a ideia de ir andar de barco, o acordo entusiástico de todos, a corrida até ao cais, os dois primos, quase da mesma idade, a prima, dois anos mais nova, que tinha acabado de completar o 12º ano, o colega da faculdade que tinha vindo passar férias com eles, ainda hoje lhe dói o recordá- -los vivos, chegados ao extremo do cais pulam todos para o barco, um deles desprende a amarra, dois metem-se aos remos e o barco afasta-se do cais, alguém mete a mão na água e começa a salpicar os outros, depois há um que se levanta, o barco baloiça, outro põe-se de pé e o barco oscila mais, e depois o filme que se desenrola na sua cabeça tem uma descontinuidade e a imagem seguinte é ele dentro de água, e há uma coisa dura que lhe bate nas costas e a partir daí deixa de sentir as pernas, consegue nadar só com os braços e agarrar-se ao casco virado, e olha em volta, sabe que os primos nadam mal, só vê o Rui, que mergulha tentando encontrar algum dos outros, grita por socorro, a água da lagoa é turva e o fundo tem muita vegetação, e quando finalmente acorre gente da casa em resposta aos seus gritos, só o conseguem puxar a ele para terra, para recuperar os outros corpos tiveram que vir os bombeiros da vila dragar a lagoa ...
... a imagem é agora a de um quarto de hospital, alguns familiares junto da cama, o médico que se aproxima, e que de uma forma que tenta que seja o menos brutal possível, anuncia aquilo que ele já sabe, mas tem medo de reconhecer que sabe: a medula foi seccionada pela pancada, e ele não vai mais poder andar ... Esta sequência de acontecimentos já foi relembrada vezes sem conta, mas curiosamente parece haver sempre algum pormenor que lhe passou despercebido na vez anterior. Desta vez é o quarto do hospital, e sobrepondo-se ao branco asséptico das paredes e do tecto há o cheiro, o cheiro de hospital, aquela mistura de cheiros a detergente e sabão e lixívia, junto com o do éter e outros desinfectantes, e o mais estranho é o cheiro a comida, mas depois lembra-se que quando o médico entrou no quarto eram quase seis da tarde, e (nos hospitais come-se cedo!) pelo corredor já andavam os auxiliares de enfermagem a servir o jantar aos doentes... O cheiro é agora o da matéria orgânica em decomposição que vem da lagoa, transportado pelo ar frio e húmido, a neblina começa a formar-se e a subir, a lua já vai alta no céu. António olha o relógio e vê que os ponteiros se aproximam da meia-noite, a neblina começa a adensar-se, formando uns vultos que pouco a pouco são eles. Acercam-se, sentam-se nas cadeiras, ao principio estão sempre assim, muito calados, António deita vinho nos copos, eles bebem, vãose animando, conversam, António sente a compaixão que eles sentem por si, por ter ficado sozinho, eles não são muito explícitos sobre o local onde vivem, mas 47
pelo menos parece que estão juntos, e ele sente o que identifica como um vago sentimento de inveja. Tentam convencêlo a ir com eles, António até agora tem sempre recusado, nem sabe bem porquê; desde o acidente que ele sente uma falta, uma ausência, como se estivesse incompleto, e não está a pensar nas suas pernas agora inúteis. Eles são os mesmos que há cinco anos, o tempo não os afectou, estão apenas um pouco – António tem dificuldade em encontrar a palavra – diáfanos, mas a roupa que vestem é a mesma do dia do acidente, falam de coisas que aconteceram cinco anos atrás, António imagina que onde eles se encontram é uma espécie de tempo suspenso. Ele, em contrapartida, sente-se envelhecido, gasto. Voluntariamente encerrado na casa da lagoa, nunca mais de lá saiu desde o acidente. Permanentemente acompanhado por Francisco, passa os dias no quarto, sentado junto à janela donde se avista a lagoa, só saindo de casa uma vez por mês, nas noites de lua cheia, como hoje, para estar com eles. Longe vai o curso de engenharia, interrompido, o seu interesse pelo cinema e pelo teatro, as exposições de pintura que frequentava assiduamente. Os seus pais, uma vez convencidos da impossibilidade de o fazer sair deste estado de retiro voluntário, voltaram à sua vida habitual, deixando-o na casa da lagoa ao cuidado de Francisco: o pai regressou aos negócios e a mãe à sua intensa vida social. Aproxima-se a uma da manhã, é a hora a que eles costumam desaparecer, e quando a prima lhe diz – vem connosco, Tó, podes voltar a andar – e os ou-
tros olham para ele, à espera, António reconhece subitamente que já tomou a decisão. Na realidade, ele já está mais lá do que cá. Levanta-se da cadeira, e ele próprio se admira como o conseguiu fazer, os outros rodeiam-no, e numa camaradagem silenciosa deslizam com ele em direcção ao extremo do cais e entram na neblina que envolve a lagoa. Uns minutos mais tarde, Francisco desce pela rampa que vem da casa, e sobressalta-se quando, do início do cais, verifica que a cadeira está vazia. Corre
“António reconhece subitamente que já tomou a decisão. Na realidade, ele já está mais lá do que cá.” rapidamente a dezena e meia de metros que o separam da extremidade do cais, olha à volta mas apenas vê a brancura leitosa da neblina sob o luar, chama angustiado – Menino António! – por várias vezes, mas como resposta apenas o silêncio enevoado à sua volta, corre para a casa, telefona para a GNR e para os bombeiros e em seguida para o telemóvel do pai de António. Quando desliga, sai de casa e dirige-se ao portão que dá para a estrada, onde acaba de chegar o jipe da GNR. Enquanto abre o portão chega uma viatura dos bombeiros com um atrelado transportando um barco de borracha, trazem também equipamento 48
(...) Cheguei à casa cerca das nove e quinze. Recebido pelo primeiro cabo da GNR Joaquim Fernandes, que tomou conta da ocorrência. Forneceu-me o depoimento de Francisco Lopes, empre-gado da casa, que declarou: — que pelas vinte e duas e trinta ajudou a vestir António Lencastre e o conduziu na sua cadeira de rodas até ao cais junto da lagoa, o que fazia todas as noites de lua cheia, excepto se estivesse a chover; — que lá chegado, travou a cadeira, regressou à casa e para o mesmo local transportou uma mesa e quatro cadeiras de jardim e de uma segunda vez para lá levou uma garrafa de vinho do Porto e cinco copos; — que esta sequência de acções tinha lugar por ordem do referido António Lencastre, que tinha iniciado este comportamento pouco depois do infortunado acidente em que perderam a vida quatro amigos do mesmo, e que nunca tinha questionado estes procedimentos porque não compete aos empregados questionar as ordens dos patrões mas cumpri-las; — que como sempre fazia por volta da uma da manhã se tinha dirigido ao cais para trazer de volta o referido António Lencastre, mas tinha encontrado a cadeira de rodas vazia; — que depois de ter chamado várias vezes pelo patrão, correu para casa e telefonou etc.
de mergulho, dirigem-se imediatamente para a lagoa, entretanto chega mais gente da vila próxima, alguém tocou o sino da igreja a rebate, e o cabo da GNR organiza dois grupos para bater as margens da lagoa, e só depois de a operação de busca estar em marcha regressa com Francisco ao interior da casa para recolher o depoimento deste. Só de madrugada o corpo de António foi recuperado. Chamado para efectuar a identificação, Francisco estranhou a expressão tranquila no rosto do morto, muito diferente de outros afogados que
já tinha visto no passado. Como se estivesse finalmente em paz. E é nisto que Francisco continua a pensar, nesse rosto calmo, enquanto a ambulância, após o subdelegado de saúde ter certificado o óbito, transporta em direcção ao Porto o cadáver de António Lencastre. … Fragmentos extraídos do gravador de bolso do Inspector José Pacheco Gonçalves, da Polícia Judiciária. O inspector utiliza o gravador para registar pormenores relevantes da investigação e as reflexões que lhe suscitam.
(...) O cais tem cerca de quinze metros de comprimento por quatro de largura, 49
assenta sobre estacas, e no extremo tem uma escada que permite descer para um barco acostado. A cadeira de rodas encontrava-se a cerca de cinco metros do extremo, travada.
chamar-me... Tenho que tirar isto a limpo. Na próxima noite em que os vir, vou lá abaixo ao cais! As entradas seguintes são notas de leitura de livros - vários de Alan Kardec (“A Book on Mediums”, “Christian Spiritism”), “The Astral City” de Francisco C. Xavier, “A History of Spiritualism” de Conan Doyle... E quatro semanas mais tarde: São eles! Quando os vi outra vez da janela, chamei o Francisco e ele conduziu-me ao cais. Lá estavam os quatro, tal e qual como no dia em que se afogaram. Falámos longamente. Combinámos encontrar-nos no cais sempre que for lua cheia. Cerca da uma hora, despediram-se e desapareceram na neblina que envolvia a lagoa. Quando se foram embora, perguntei ao Francisco, que tinha estado sempre junto de mim: — O que achas disto? — De quê, menino António? Eu não vi nada, apenas vi o menino a falar sozinho, não vi mais ninguém... E no entanto foi tudo tão real... A partir daqui, o diário continua a referir sucessivos encontros, sempre nas noites de lua cheia (o depoimento de Francisco Lopes confirma este detalhe). Parece ser o produto de uma mente que aos poucos vai descolando da realidade. A descrição dos últimos encontros começa a incluir de forma insistente um convite para ir com eles, indício claro do despontar de uma tendência cada vez mais forte para o suicídio. A última entrada no diário, com data de 22 de Agosto de 2002, é reveladora: Hoje é novamente lua cheia. Acho que não vou resistir a ir com eles... A minha
(...) O quarto de António Lencastre. Da janela tem-se uma vista privilegiada sobre a lagoa. Junto à janela uma pequena mesa com alguns livros e um caderno A4 de capa preta. Folheio rapidamente o que me parece ser um diário. Confirmo com o pai da vítima, entretanto chegado, que se trata de facto da letra do filho. (...) O conteúdo do diário parece estabelecer claramente que se tratou de suicídio. António Lencastre sofria de uma forte depressão desde o acidente em que perderam a vida três primos e um colega da faculdade, provavelmente os seus amigos mais próximos. O diário começa com uma entrada em 1997, onde ele escreve: A noite passada, com a luz do quarto apagada, olhando pela janela na direcção da lagoa, pareceu-me ver no cais o Luís, a Sofia, o Pedro e o Rui. Surpreendido, abri a janela e eles acenaram na minha direcção. Tive que me conter para não lhes respon-der. Eles estão mortos e enterrados, ponto final! O luar incidente na neblina que sai da lagoa deve ter provocado esta ilusão. E tenho que diminuir a dose de Prozak... Cerca de um mês mais tarde, escreve: Tornei a vê-los! Chamei o Francisco, que me disse que não conseguia ver nada. E ao mesmo tempo eu via-os acenar, a 50
num curso de formação. Chegou o relatório final da autópsia de António Lencastre. Por curiosidade, e antes de o juntar ao processo, dá-lhe uma leitura em diagonal. Vai passando rapidamente sobre descrições do tecido pulmonar, do sistema digestivo, etc., etc., quando
vida do lado de cá não tem qualquer significado... (...) Do posto da GNR um mensageiro acaba de trazer um fax com o relatório preliminar da autópsia. O pai de António
“Tornei a vê-los! Chamei o Francisco, que me disse que não conseguia ver nada. E ao mesmo tempo eu via-os acenar, a chamar-me... Tenho que tirar isto a limpo. Na próxima noite em que os vir, vou lá abaixo ao cais!” Lencastre deve ter usado a sua influência para apressar o processo no Instituto de Medicina Legal. Morte por afogamento e ausência de sinais de violência no corpo. A família pode finalmente proceder ao funeral.
de súbito uma frase se destaca da página como se estivesse escrita com tinta fluorescente: (...) coluna vertebral intacta, tanto ao nível da estrutura óssea como da espinal medula. Durante alguns segundos, o inspector deixa de sentir o calor opressivo do gabinete. Relê a frase. Depois, como geralmente lhe acontece quando se sente perturbado, começa a falar consigo próprio, em voz baixa: — Olha, Zé, tu não és filósofo, nem teólogo, nem nada disso! És um polícia, e a função da polícia é investigar as causas das mortes e descobrir, quando existem, os autores das mortes... Não é investigar o que é a morte! E pondo um ponto final no assunto, fecha o relatório e arquiva-o no processo. A seguir decide que já trabalhou o suficiente, levanta-se e resolve dar um passeio até à Ribeira, onde deve estar mais fresco do que naquele maldito gabinete... BANG!
(...) Antes de regressar ao Porto, falei uma ultima vez com Francisco Lopes, que me disse: — Senhor Inspector, não percebo como o meu patrão conseguiu levantar-se daquela cadeira e ir até ao fim do cais. Ele estava muito fraco, e eu tinha sempre que o ajudar a sentar-se e a levantar-se... E ele não podia andar... … O inspector Gonçalves está há dois dias no Porto. Cheio de calor – o aparelho de ar condicionado do gabinete avariou e o técnico da empresa de manutenção ainda não veio - tem estado afogado em papeis desde que chegou, porque um colega está de férias e outro em Lisboa 51
José Manuel Lopes é Professor Associado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Para além do romance, é autor de uma série de publicações académicas sobre Literatura Comparada, Tradução e Semiótica.
Entrevista a José Manuel Lopes por Luís Corte Real
Antologia
Como lhe surgiu a ideia de uma antologia de contos de Lovecraft? A ideia de me debruçar com mais profundidade sobre a ficção de H. P. Lovecraft surgiu-me no contexto de uma cadeira de Tradução e Cultura Inglesa (Inglês II) que tenho vindo a leccionar, há cerca de dois anos na Universidade Lusófona. Com efeito, se bem que os textos deste autor se possam inserir na designada pulp fiction americana, possuem uma grande qualidade literária, na medida em que recorrem a uma complicada arquitectura estilís-tica e a um tipo de vocabulário com matrizes arcaicas e, por vezes, um
pouco inusitado, já para não falarmos na excelente síntese, muito pessoal e inovadora, que este autor faz entre certas características da literatura de terror — sobre a qual escreveu um excelente ensaio — e a ficção científica. Tal riqueza literária nem sempre ocorre em textos de temática similar escritos por outros autores, alguns deles amigos pessoais de Lovecraft e com quem este veio a travar uma extensa correspondência. Outro desafio consistia em analisar de que modo, textos, que se poderão inserir no âmbito do fantástico ou de um gótico-barroco tardio, bem ao gosto do conto de terror norte-americano, 52
o número de palavras. Apesar do seu gosto pelas velhas instituições, o autor revela-se, no entanto, profundamente ateu e um grande admirador de todas as descobertas científicas. Talvez que a sua vida de isolamento e de grandes constrangimentos de ordem económica tivesse contribuído para que ele tivesse morrido praticamente desconhecido e na miséria, segundo dizem devido a um cancro de estômago motivado por uma alimentação deficiente.
revelavam uma componente ideológica, espelhando assim toda uma conturbada época conservadora de hegemonia anglosaxónica. Quer então dizer que o próprio Lovecraft compartilhava de uma certa ideologia conservadora? Sem dúvida. Para além de lamentar, como anglófilo e realista ferrenho, a independência dos Estados Unidos da América, o autor via-se como um nobre herdeiro da mais velha linhagem anglosaxónica de Nova Inglaterra — esses seis Estados do nordeste americano que para ele formavam uma espécie de país aparte, protegido do restante grande caldeirão multirracial e multicultural. Repare que ele chegou a afirmar que só ficaria feliz quando voltasse a ver a bandeira de Inglaterra a adejar sobre os
Mas, mais tarde, vem a tornar-se um autor bem conhecido? Isso deve-se sobretudo ao trabalho de divulgação levado a cabo pelo seu amigo August Derleth (para quem o autor de um dos mencionados livros fictícios, Conde d’Erlette, seria talvez uma alcunha). Sobretudo através da Arkham
Lovecraftiana edifícios municipais de Providence. A sua obsessão pelo século XVIII e pela época colonial está bem patente nos seus contos. Por outro lado, porém, Lovecraft revela-se também um verdadeiro poço de contradições. Apesar de apreciador da Alemanha dos anos 20 e 30 (o autor morre em 1937) vem a casar-se, se bem que por um curto período de tempo, com uma judia. Ainda que conservador em matérias literárias, nunca se quis juntar aos grandes autores canónicos da Literatura Americana, optando antes pelo estatuto marginal de um autor de pulp fiction, cuja produção era paga consoante
House (também conhecida como Arkham Press), uma editora sedeada no Wisconsin, que começa, logo a partir de 1937, mas sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, a publicar em livro todos os contos do autor, que, por essa altura, permaneciam já no anonimato de antigos números da revista mensal Weird Tales, uma revista sensacionalista com capas garridas e atrevidas, vendida em quiosques de rua e em tabacarias, onde ele publicou a maioria da sua produção em prosa. Creio mesmo que, as primeiras pin-up girls desenhadas tiveram aí mais sucesso que nos velhos calendários de 53
garagem. Mais tarde, através de traduções francesas e alemãs, o autor torna-se bastante conhecido na Europa, sendo hoje visto como um pioneiro de um certo tipo de literatura de terror ainda bem em voga, sobretudo a que tem vindo a ser popularizada por outros autores, também de Nova Inglaterra, que hoje em dia, produzem best-sellers, tais como Peter Straub e o famoso Stephen King. Nos anos 60 e 70 surgem também em Espanha uma série de antologias bem organizadas que publicam não só os contos mais conhecidos deste autor, sobretudo os que estavam mais relacionados com o que Derleth designou de «The Cthulhu Mythos», mas também de outros colegas e contemporâneos de Lovrecaft que escreveram sobre temáticas semelhantes, começando pelo já referido August Derleth, mas incluindo também Clark Ashton Smith (também mencionado, na ficção de Lovecraft, como Klarkash-Ton), Donald Wandrei, E. Hofman Price, Robert E. Howard, se bem como certos percursores, tais como Lord Dunsany e Algernon Blackwood, onde as primeiras obras de ficção do autor irão beber grande parte da sua atmosfera pós-simbolista. É disto exemplo o pequeno conto «Com a Lua», espécie de poema em prosa, traduzido por Fernando Ribeiro (vocalista dos Moonspell) que também colaborou na nossa antologia, prefaciando cada conto com textos da sua autoria mas dentro do «espírito» do autor e do tema de cada conto. E de que trata esse «Mito de Cthulhu»? Lovecraft criou toda uma mitologia onde se incluem sobretudo deuses e monstros de origem marinha. Ele odiava o mar e a sua obsessão pelo odor a peixe apodrecido percorre alguns dos seus contos. Nada de estranhar num anglo-saxónico dessa época, em que apenas os católicos (a maioria de origem irlandesa) comiam peixe à sexta-feira. Porém, partindo do pressuposto cientificamente comprovado de que toda a vida teve, de facto, origem no mar, Lovecraft, muito ao gosto da ficção científica, inventa uma raça de seres antiquíssimos (os Anciães) que vivem numa cidade no fundo do mar (R’lyeh) e na qual Cthulhu, o monstro com cabeça de lula, parece presidir, ainda que se encontre, até ao seu despertar, num estado de torpor. Este é o assunto do conto que incluímos: «O 54
Despertar de Cthulhu». Ora, após um longo período de dormência, esses mesmos seres, segundo o que poderemos ler nos contos relacionados com esta temática, começam a misturar-se com os humanos, criando uma raça de figuras monstruosas onde o humano (visto ainda em termos marcadamente coloniais e eurocêntricos) se mistura com o ictíico e com o batráquio, ou seja, com raças inferiores mas ligadas a um passado de antigos cultos e tradições que lhes proporciona o segredo da imortalidade. Acredita-se assim, que esses mesmos seres disformes dominarão regiões da Terra, mas que regressarão um dia ao mar, ao elemento primordial, a essa matriz mítica, onde viverão para toda a eternidade. Mais uma vez, estes monstros parecem espelhar a profunda xenofobia do autor e o pesadelo que constitui para ele uma sociedade multirracial (em que os inúmeros guetos já não consigam isolar ou afastar a diferença – esta sim, bem ficcional, mas de origem política). Para Lovecraft, o exemplo mais terrível e rematado é a Nova Iorque dos anos 20 e 30, esse espaço inundado por diferentes línguas, por gente de todas as nações. Espaço que é visto, repetidamente por ele, como um motor de decadência e degenerescência. No entanto, apesar de todas estas minhas ressalvas de teor crítico, creio que todos os contos que incluímos no livro são extremamente imaginativos. Num deles «A Sombra sobre Innsmouth» — sem dúvida um dos meus favoritos — o narrador que a princípio sente um imenso horror e uma repulsa por esse(s) Outro(s), acaba por ter que se conformar com o facto de no seu corpo não correr afinal o «puro sangue» inglês de uma Nova Inglaterra mítica e entronizada, como ele sempre imaginara, admitindo que ele próprio começa a revelar os sintomas de uma profunda alteração genética, o que irá permitir que ele se junte aos seus antepassados marinhos que o esperam, nessa viscosa e obscura cidade do fundo do mar, cuja geometria diz-se exceder uma sabedoria baseada em percepções humanas. Repare, contudo, que os contos são suficientemente ricos para permitirem múltiplas e outras interpretações, porém, esse confronto Nós/Os Outros é típico deste e de muitos outros autores norte-americanos, em que o sentido de uma identidade étnica, racial, religiosa, sexual, continua, mesmo nos dias de hoje, a ser uma tónica dominante. 55
Poder-se-á então dizer que esse conflito com o Outro caracteriza grande parte da ficção de Lovecraft? Creio que o conflito e a dificuldade de aceitação do Outro caracterizam mesmo toda a história dos Estados Unidos da América, desde a relação entre os colonos e os índios e, mais tarde, através da relação de intolerância que irá caracterizar o modo como os descendentes dos anglosaxónicos irão lidar com os escravos negros, com os imigrantes asiáticos e até com os imigrantes europeus que, na primeira metade do século XX, chegam aos milhões, em busca do «sonho americano», numa procura desesperada por melhorarem a sua condição social. Mais uma vez, nem tudo na ficção de Lovecraft poderá ser atribuído a meros caprichos de fantasia, dado que, sob essa mesma suposta «fantasia», se esconde toda uma realidade histórica e social, já para não falarmos na série de traumas pessoais que a sua biografia nos demonstra. Repare que, bem longe de mim, estariam quaisquer observações tradicionais capazes de ligarem, inelutavelmente, vida e obra; se bem que, neste caso, uma espécie de literatura sem óbvias correntes nem escolas nem compromissos me surja muito como apanágio de uma personalidade típica e muito motivada por trepidações de ordem biográfica.
e sem o conveniente rigor de necessárias notas explicativas. Como já mencionei numa nota às várias traduções, que consta do mesmo livro, a ideia de traduzir este autor surgiu logo após a criação do Clube de Tradução Literária na Universidade Lusófona. Alguns alunos já conheciam certas obras, eu próprio conheci os textos que aqui traduzimos nos anos 60, mas através de traduções em castelhano, nem sempre muito cuidadas. Só nos finais dos anos 70 voltei a reler tudo no original, e a dificuldade que tais traduções pressupunham fascinou-me bastante, pois tratava-se também — sobretudo para os alunos que participaram — de lhes facilitar uma experiência de aprendizagem. A selecção baseou-se, no entanto, na tentativa de dar a conhecer as histórias principais centradas no referido Mito de Cthulhu. Digamos que a maioria destas nunca tinham sido traduzidas em Portugal. Mas porquê estão uma tradução em conjunto? Dado que no nosso Clube éramos seis (eu e cinco alunos meus muito dedicados e interessados em tradução literária), achei que seria interessante se cada um se encarregasse de um conto de Lovecraft, um autor que proporcionaria a todos (onde me incluo também) vastas dificuldades de tradução. Assim, poderíamo-nos reunir, discutir em conjunto as passagens mais difíceis e analisar também, de uma forma crítica, outras traduções já feitas em outras línguas. O trabalho entusiasmou logo os alunos que, em breve, descobriram na Internet um sem número de sítios sobre o autor e sobre a sua mitologia. Os contos também mantinham uma forte
Em que medida é que a recente publicação intitulada Os Melhores Contos de H. P. Lovecraft vem suprir uma lacuna em relação a este autor? Até à presente antologia havia muito poucas traduções deste autor em Portugal, a maioria delas feitas nos anos 60, talvez nem sempre directamente do inglês, 56
relação intertextual uns com os outros. Assim, em «A Criatura na Soleira da Porta» fala-se de uma mulher diabólica, com «sangue de Innsmouth» que tenta usurpar a identidade de um marido rico, ingénuo e decadente — algo que merece um bom ensaio sob o ponto de vista dos Estudos de Género. Por outro lado, «O Aventesma do Escuro» trata da emergência de um cristal que revela o que hoje em dia poderíamos chamar de propriedades radioactivas, relacionando-se, a outro nível, com o conto «A Celebração». Também o conto «O que Sussurra nas Trevas», onde se incluem algumas das mais belas páginas descritivas do autor, consegue fundir habilmente as características do conto de terror com a ficção científica, revelando tipos de distorções espácio-temporais que mais tarde encontraremos em autores famosos da FC, tais como Philip K. Dick, por exemplo no capítulo final do seu romance Time Out of Joint. Há um conto, porém, que se destaca dos outros «A Sombra Vinda do Tempo», pois é talvez o único que aborda a existência de uma sociedade anterior ao aparecimento da humanidade. Trata-se de uma comunidade repressiva, declaradamente fascista, onde a «mecânica» do sexo não passa pelo prazer e cujo elitismo exacerbado defende a eutanásia de todos os elementos que demonstrem óbvias incapacidades intelectuais ou deformidades físicas. Ora, como lhe disse, Lovecraft morreu em 1937, porém não poderemos deixar de sentir o eco de horror de algo que conhecemos sobejamente hoje em dia — trata-se neste caso de um terror bem real que nos assalta, neste caso um terror histórico e político, com referentes específicos. É de notar que, dada a sua
“Trata-se, efectivamente, do lado mais escuro e menos simpático de Lovecraft” temática, tal conto raramente é incluído, mesmo em antologias anglo-americanas. Só o consegui obter como parte de uma antologia sensacionalista, e criticamente vazia, publicada por uma obscura editora americana. Trata-se, efectivamente, do lado mais escuro e menos simpático de Lovecraft, que os seus admiradores, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, tentaram escamotear, ou, como se diz em inglês, «atirar para debaixo da carpete», dizendo que se tratava de uma obra menor, repetitiva e sem interesse. O conto, porém, mantém-se interessante, 57
na medida em que constitui um eco premonitório e sinistro de algo bem conhecido.
este misterioso e polémico autor. Inclusivamente, há toda uma série de jovens escritores que adoptaram a sua mitologia para criar novos contos. São disto exemplo: Robert E. Weinberg e Martin H. Greenberg (orgs.). Lovecraft’s Legacy, publicado em Nova Iorque em 1990, e que consiste numa série de contos em torno da obra de Lovecraft; e o livro organizado por Stephen Jones, Shadows Over Innsmouth, também publicado em Nova Iorque, onde se inclui, para além do famoso e referido conto «A Sombra sobre Innsmouth», toda uma série de contos sobre este único conto. Por outro lado, Lovecraft aparece, em recentes romances que eu classificaria de pós-modernos, associado a Sherlock Holmes. Esta associação parece-me bastante misteriosa, a não ser que se faça via Arthur Conan Doyle, um espírita de renome. Ainda há algumas horas tive na mão um livro que as Edições Saída de Emergência irão publicar, The Arcanum, de Thomas Wheeler, onde Lovecraft surge como uma das personagens principais, associado, e isto já não me surpreende tanto, a Aleister Crowley. Porém, sobre tal livro iremos falar mais tarde e nada melhor que um enigma para nos manter acordados. É pena que a ciência ainda se baseie tanta na certeza, se bem que, quase passado um século, vá sendo menos positivista. Como já pôde verificar, eu opto pelo que há de mais incerto: coisas como a literatura, a tradução e a interpretação literária, matérias talvez do passado, mas que, num mundo de cérebros cada vez mais habilmente formatados e cegamente obedientes me vai ainda mantendo cada vez mais crítico e atento. BANG!
Falando agora da qualidade da tradução, o público poderá hesitar ante traduções feitas por alunos... Note-se que o facto de se tratar de alunos de um curso de tradução não tira nenhum mérito aos trabalhos que apresentam, pois estes foram amplamente discutidos entre nós e revistos várias vezes. Paradoxalmente, são por isso melhores que muitas das traduções feitas à pressa por certos profissionais. Creio mesmo tratar-se da primeira tradução de Lovecraft em português, com um verdadeiro rigor académico. É claro que, como professor de Tradução Inglesa e orientador do grupo, serei eu o responsável por todas as falhas que nos tivessem escapado, mas orgulho-me imenso deste trabalho, que, como qualquer tradução, poderá sempre ser atacado, pois, como nós sabemos, haverá sempre uma outra maneira de verter, de transpor e de dizer. Note-se, no entanto, que se bem que qualquer tradução à letra fosse impossível (Por que motivo vamos nós ao dicionário ver tantas palavras básicas que estamos fartos de saber?) quisemos manter a «Letra», a marca do texto que não racionalizámos nem simplificámos, optando, como já foi dito, pela sua intensa mas desarmante estranheza. E continua a escrever-se ainda bastante sobre Lovecraft? De facto, depois dos trabalhos do crítico americano S. T. Joshi, que introduziu Lovecraft nas Universidades americanas, não se tem parado de escrever sobre 58
Fernando Ribeiro é vocalista e letrista da banda Moonspell. Tem livros de poesia publicados e participou com diveros textos introdutórios para a antologia Os Melhores Contos de H. P. Lovecraft
LOVESPELL Entrevista a Fernando Ribeiro por Luís Corte Real
que diz na campa no ângulo inferior à esquerda na capa- e no Ride the Lightining de Metallica (impregnado de referências como Call of Cthulu ou The thing that should not be). A partir daí (sem meios, sem Internet) e com poucas edições traduzidas do autor à venda (e comprar as versões Inglesas era uma missão impossível) esforcei-me ao máximo para conseguir lançar a mão a qualquer coisa de mais
COMO DESCOBRISTE A OBRA DE HPL? Curiosamente através da música. As frases e os ambientes do Lovecraft foram uma referência muito forte para as bandas de Metal e tive vontade de descobrir a obra do autor daquelas frases diferentemente místicas e daqueles nomes estranhos, quase “tentaculares”. Contactei pela primeira vez com as “frases” nos discos Live After Death (Iron Maiden) - vejam o 59
Quais eram os objectivos dos teus textos? De ínicio não sabia bem e as primeiras tentativas foram muito mais do campo da incerteza e da busca do que do da intuição. Depois li e reli todos os contos e contextualizei melhor os meus textos fazendo com que a acção de cada um, bem como o seu ambiente, se enquadrasse no conto que lhe seguiria. Então parece que quase todos os contos se tornaram um e começou o período de confusão que perdura até hoje! Nesse caos concebi a minha própria história sobre um grupo de homens completamente normais e até vulgares que são colocados no universo lovecraftiano, que não só é espiritual como físico nas minhas introduções. A ideia era mimetizar um pouco o universo de Lovecraft que, segundo penso, também lidava com a “vulgaridade” das suas personagens colocadas perante o imenso oculto e, de uma certa maneira, do imenso absurdo, do desconhecido, não sei, do para lá de tudo mas ao mesmo tempo tão perto de cá. Na leitura de Lovecraft para mim é muito complicado discernir o físico do psíquico, acho que o terror em Lovecraft vem até nós totalitário na sua expressão psicossomática, nem esta expressão lhe faz justiça na verdade. Na fase final e intermédia dos meus textos tentei então afastar-me o mais possível, sem me perder da linguagem e forma de escrever do HPL. Quando enviei o manuscrito final ao editor chamei, em subtítulo, ao conjunto dos meus textos ENCRUZILHADAS,
substancial. Lá encontrei uma edição do Caso de Charles Dexter Ward (até hoje o meu livro preferido do Lovecraft) e depois, à saída do cinema do Hellraiser 2, comprei o original de At the Mountains of Madness (entre outros contos) e agora tento comprar o mais possível do autor embora já exista tanta coisa!!! Tenho preferência por aqueles contos dispersos em antologias de Ficção Científica tipo Galeria Panorama edições apresenta... Como surgiu a oportunidade de escreveres para um livro dele? Já tinha trabalhado e participado em outras actividades ao redor da obra de Lovecraft e foi uma questão de tempo até isso acontecer. I saw it coming... Primeiro nas letras de Moonspell e alguns contos que mantenho “secretos” mas simplesmente como influência. Depois, acontecimentos mais públicos tipo a apresentação do livro de poemas do Lovecraft (Os Fungos de Yoggoth) traduzidos por Nicolau Saião e editado pela Black Sun. Finalmente traduzi para Português a “biografia” do Lovecraft em BD (editada pela Vitamina BD), um projecto que me encantou e que me manteve muito ocupado! Através dessa tradução, conheci o Luís (Corte Real) e ficámos de colaborar neste livro. Falámos em tradução para começar mas acabámos por optar por uma via mais criativa já que a tradução estava bem entregue ao Prof. José Manuel Lopes e seus alunos, e como se queria fazer uma edição totalmente original, com vida própria acabei por fazer introduções para cada conto.
PORTAIS, CAMINHOS SEM REGRESSO E PONTES, parecendo-me que era isso
que pretendi fazer. 60
O que achas que os teus textos acrescentam ao todo do livro? Ao H. P. Lovecraft nada se acrescenta, convenhamos! Quanto muito os contos traduzidos de Lovecraft é que acrescentaram e muito às minhas palavras. Penso apenas que um livro de Lovecraft se bem traduzido não precisa de mais nada, o Lovecraft basta-se a si mesmo. O que se fez, com humildade, foi integrar estas pontes introdutórias de forma a se “ganhar” uma perspectiva e dimensão novas, um novo portal, um novo selo, novas criaturas. Sinto-me um pouco como aquele apresentador/ narrador das séries do Twilight Zone que nada acrescenta mas que faz sentido e compõe o cenário. Ou como um apresentador que sobe a um palco antes da atracção principal da noite. Mas, por outro lado, estou muito orgulhoso do meu trabalho e, pese embora as diferenças abissais entre mim e o HPL, gosto de pensar que consegui manter o nível, que a apresentação me saiu bem (ou menos mal) e que despertou o interesse e os sentidos das pessoas, que não se apressaram a me mandarem embora com assobios mas que até me ficariam a ouvir um pouco mais. O todo do livro apresenta-se muito bem, penso eu, sobre a força da palavra e imagem do Lovecraft, é uma edição muito, muito bem feita, desde a tradução ao design, um belo volume, digno da bela obra que contém.
Lovecraft na escrita dos prelúdios e penso que o fiz com dignidade, sem conceder ao campo da imitação ou ao simples decalcar de expressões e caracteres. Em suma o texto foi-se escrevendo sempre com um olho no Lovecraft e outro em mim, por assim dizer. Quem ler o meu texto, que também funciona por completo e não apenas nos lugares em que se apresenta, irá perceber esse esforço, de vez em quando luta, de vez em quando harmonia entre o “monstro” Lovecraft e o iniciado que aspira a uma personalidade própria ao aprender com o seu mestre. É assim que me coloco perante tudo o que faço: o que se apresenta como final é o resultado de várias aprendizagens. Existe alguma coisa lovecraftiana no que escreves para os Moonspell? Muita coisa! O Lovecraft é, na ficção de horror,o meu eleito como influência. Mas nunca quis utilizar o Lovecraft taxativo, sempre quis utilizar o Lovecraft que chegava até mim como eu o lia. Penso que as bandas quando pegam no Tolkien ou no Lovecraft ou no Poe fazem-no da maneira absolutamente mais preguiçosa que existe, fazem copiar-colar, não se dão ao trabalho que esses autores se deram: o pensar, o ler, o aprender em vez de decorar. Por isso é um jogo muito interessante ver o Lovecraft em Moonspell. Penso que o tema mais absolutamente Lovecraftiano que temos é o tema Lunar Still do disco The Antidote, não só a nível lírico como musical. Aliás essa letra foi uma grande ajuda na génese das minhas introduções e é muito citada no posfácio.
Como foi criar textos que convivessem com os contos de HPL? Não foi fácil, mas a paixão que tenho pelo Lovecraft tornou-me mais nítido o caminho. Tentei sempre envolver 61
Tens um conto preferido? Neste livro conto como favoritos A celebração, A criatura na soleira da porta, A sombra sobre Innsmouth, é muito complicado escolher, a selecção foi muito boa! Também gosto do pormenor de Com a Lua, enfim não me vou almadiçoar mais com esta escolha impossível...Realmente são os melhores contos de Lovecraft, incompletos só na sua quantidade e não na sua (indiscutível) qualidade. Mas há sempre a considerar A Cor Que Caiu do Céu, The Statement of Randolph Carter, Through the Gates of the Silver Key entre muitos, muitos outros.
the goat of a thousand young!!! Não concebo que haja quem pense assim, na verdade nunca ouvi dizer tal. E se há quem pensa assim tenho a felicidade de não conhecer ou conceber. Aliás, não me importam nada essas sentenças e juízos de gosto, acho, pelo contrário, eterna ( e como tal sempre actual) a obra de Lovecraft. Não o digo só por amor ao autor, digo-o com a propriedade de quem já leu e aprendeu E alguma frase preferida dele? A inevitável... That is not dead which can eternal lie And with strange aeons even death may die. ...porque foi a primeiríssima coisa de Lovecraft que li em todo o sempre. BANG!
O que dirias àqueles que consideram a obra de HPL datada? Die by the hand of Shub Niggurath,
Vencedor por duas vezes do Arthur C. Clarke Award, China Miéville é um dos mais proeminentes escritores de fantasia da actualidade. A sua imagem de marca é uma science fantasy profundamente biológica, criando ambiências onde para além da arquitectura do meio envolvente se destaca a arquitectura dos próprios seres vivos. Figura de proa do
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movimento New Weird, China Miéville tem em Perdido Street Station a sua obra mais aclamada; que não exista uma tradução em português é uma falha tremenda. Bibliografia: King Rat (1998) Perdido Street Station (2000) The Scar (2001) The Tain (2002) Iron Council (2004) Looking for Jake (2005)
BANG!
Cande labro Um conto do Sr. Bentley por Ágata
Ramos humana. Crê ser essa ausência a prova confirmada da sua Iluminação. Certos miúdos, ressabiados, arremessam calhaus ao chapéu de coco que, coitadito, não tem culpa nenhuma. Foi este um dos motivos que o fez começar a cuspir às criancinhas. O senhor Bentley não percebe como é que as mamãs, ao primeiro berro do monte de carne que lhes parasitou as entranhas por nove meses, não se transmutam em infanticidas. – Que defeito ancestral, petrificado nos genes passados de geração em geração, as obriga a cuidar de tais horríveis criaturinhas? – pergunta-se amiúde. Quer instituir no futuro uma bolsa para patrocinar estudo científi-
QUANDO ÓRFÃOS NA ÍNDIA, PAUPÉRRIMOS meninos de rua brasileiros ou tailandeses o abordam de mão ossuda estendida, encardidos, pestilentos, os trapos rotos a cobrir o corpo magro, esquelético e doente, expondo mazelas nos joelhos e braços e pulgas que se passeiam, desenxabidas, no couro cabeludo, de feridas velhas e frescas a enxamearem o rosto, o senhor Bentley comunica-lhes, numa mansa secura: – Olhem lá, já não pode um homem, olhem lá. Eu não tenho filhos, porque raio hei-de aturar os filhos dos outros? Eu não vos pari. Vá lá, andor, andor. Não pode um homem passear descansado – e afasta-se vagarosamente sem pingo de vergonha ou piedade 63
co que responda à questão. O Enraba-Passarinhos é defensor enérgico da sodomia infantil, embora não a pratique por nojo. – A sociedade enrijava, trabalhava-se mais cedo, os miúdos saíam da primária e iam para as obras! A crise da Segurança Social era coisa do passado. Limpinho. Estar a gastar capital para quê, sem precisão nenhuma. Traumatizem-se as criaturinhas! De berço! Ponham-nas cá fora, A Trabalhar! Têm bom coiro para isso – vocifera, zombeteiro, perto de reformados, o sorriso vai de lado a lado como os dentes pontiagudos de uma serra. Defende também o carácter compulsório da sodomia (em todos os actos protocolares) para qualquer pessoa que entre na vida política activa. Enrijece. Dá músculo. É tipo duche escocês (embora o próprio seja adepto do duche dourado). [O senhor Bentley é uma besta, relembremos.] Venceu, honestamente, ainda por cima, os maiores samurais do Japão. E gabou-se sem humildade nenhuma. Não se sentiria à altura do Nirvana se não se gabasse. Homens iluminados estão para além das hipócritas regras corteses. Em consequência deportaram-no e foi considerado persona non grata. Na verdade conseguiu ser expulso de todos os países do mundo. Não teve remédio senão regressar a Portugal donde se evadira na adolescência no ano de 1917 depois de abusar de Fátinha, uma das pastorinhas (os três pastorinhos que eram quatro, originalmente). Hoje a Pastorinha
Desconhecida ou a Primeira Vidente é Madame num ilustre bordel alemão. Logo ao primeiro encontro ele demonstrou-lhe o Candelabro Italiano, o Arco do Triunfo e o Pêndulo; ensinou-a a injuriar Nosso Senhor Jesus Cristo Que Morreu Na Cruz Pelos Nosso Pecados (todos: coitadiiiiiinho) e a Virgem Maria durante a cópula. A rapariga teve orgasmos tenebrosos e abandonou as beatices saloias. Hoje a franzina catraia de dezasseis anos é chefe de um dos mais influentes Sindicatos de Putas teutónico, é mamalhuda, avessa a cirurgias, tem varicoses e anda carregadinha de celulite. As suas especialidades são a Bailarina, o Arco-Íris e a Hipotenusa que reserva a clientela escolhida por causa da artrite. Está grata a Bentley por a ter perfeitamente industriado na arte do amor físico. A cada visita ao bordel regala-o com belas ninfetas de pernas brancas e compridas e seios como maçãs verdes, que lhe cocegam os sovacos depilados e fazem festinhas circulares na barriga. Mas agora, em Portugal, país de grunhos, onde é que existem lupanares decentes? Com ninfetas, rapazinhos cruéis, velhas gordas devassas e meretrizes normalíssimas, burguesas que fazem uns bicos à noite para pagar créditos malparados e trabalham nas Repartições durante o dia? O senhor Bentley suspira, inconsolável. Espera que inventem um país novo, donde ainda não tenha sido expulso. Visitá-lo-á com o senhor Robert, fantoche de origem gaulesa, o que não vem ao caso. BANG! 64