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notícia da morte de Steve Jobs que correu mundo na manhã de 6 de Outubro pode servir como exemplo de um estado permanente de actualização de informação ao minuto. As notícias relacionadas com a Apple e Steve Jobs saturaram de tal forma a Internet nesse dia que tudo o que podia ter sido dito sobre o empresário esgotara-se ao fim de uma manhã. As nossas mentes por vezes ressentem-se do excesso de informação, mas ao mesmo tempo não conseguem passar sem essa corrente imensa de sounds e bytes que nos consome e desgasta diariamente. Em certos aspectos podemos não ter cumprido as grandes ideias desenvolvidas na ficção científica, em especial a exploração espacial que ficou por concretizar, mas as primeiras noções de realidade virtual ampliaram-se e definiram o nosso tempo. Stanislaw Lem, na sua colectânea de ensaios filosóficos Summa Technologiae (1964), pretendia analisar o futuro, “os espinhos de rosas que ainda não tinham desabrochado”. É da mente de Lem que surge Phantomat, uma máquina de realidade virtual que nos permite ter múltiplas vidas e navegar pelo ciberespaço por toda a eternidade. Ainda não é possível desligarmo-nos do mundo material e viver de ilusões virtuais, mas não deixamos de ser constantemente alimentados por coisas novas que absorvemos todos os dias. Todavia, temos acesso a milhares de livros que podem ser descarregados em aparelhos, mas teremos alguma vez tempo para os ler a todos? Podemos estudar todas as ciências do mundo através de um computador com ligação à Internet, mas a nossa própria ignorância faz-nos desconhecer o quão vasta é a rede de informação. Sentimos que controlamos os eventos mas uma comunicação mal redigida causa repercussões tremendas. Já não há forma de virar costas a tudo isto se queremos deixar uma marca neste mundo e já ninguém se pode dar ao luxo de ceder à tecnofobia. Mas apesar disso, e mesmo reconhecendo que a parte racional em mim deseja todo o conforto proporcionado pelo mundo virtual, muitas vezes dou por mim tentada a seguir as pisadas de Henry David Thoreau e desaparecer nos bosques para, nas palavras do poeta, “aniquilar tudo o que não era vida”.

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Safaa Dib é coordenadora editorial da editora Saída de Emergência. Juntamente com Rogério Ribeiro, organiza a convenção anual do Fórum Fantástico.

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oana Dias nasceu em Lisboa a 22 de Março de 1989 e desde tenra idade que se sentiu ligada às artes. Mais conhecida pelo seu alter-ego, pseudónimo “Shinobinaku”, que possui há cerca de 6 anos desde que descobriu a arte digital. Artisticamente auto-didacta, a sua arte é uma simbiose de literatura, cinema e música, tudo o que a rodeia e que a inspira, sendo depois filtrado para o seu mundo fantástico, belo mas monstruoso, frágil mas poderoso. Profissionalmente, por conta própria, elabora projectos de design para capas de livros e álbuns de música, incluindo artistas internacionais. Apesar de jovem, já conseguiu criar admiradores em várias partes do mundo, tendo sido publicada em revistas desde os Estados Unidos à Indonésia e participando em livros de arte contemporânea tão reconhecidos como as séries de ”Art Now” pela Ilex Press, sendo a artista de capa de “Vampire Art Now”; e o “The Digital Art Techniques Manual for Illustrators and Artists”, a sair em Janeiro de 2012. Como projecto futuro tenciona publicar a sua própria novela gráfica, esta incorporará uma colectânea das suas melhores obras em conjunto com textos inspirados pelas mesmas. Para mais informações e portefólio visite o site oficial: www.shinobinaku.com.E a página oficial do Facebook: www.facebook. com/Shinobinaku.Art.by.Joana.Dias.

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m Novembro, a Saída de Emergência faz oito anos. Não parece muito tempo mas, de 2003 até agora, praticamente nada está igual no mercado editorial. Quando começámos não existiam enormes grupos editoriais, mas sim muitas editoras de tamanho médio com catálogos diferenciados. À frente das editoras estavam os editores (com os seus gostos e manias) e não meros gestores à caça de números. Se entre os editores havia uma espécie de acordo de cavalheiros onde ninguém roubava ninguém, agora os gestores passam uns por cima dos outros na ânsia de cumprir objectivos que outros gestores lhes impuseram. O marketing era uma brincadeira mal compreendida, agora é uma ferramenta fundamental. Se quando começou, a Saída de Emergência tinha as melhores capas do mercado (o que foi muito útil para conquistar livreiros e leitores), agora é rara a editora que não tem excelentes designers. Entretanto, apareceu o fenómeno mega bestseller (aquele livro que vende tanto que, sozinho, aguenta uma editora anos a fio), as tiragens médias caíram (afinal, os leitores foram todos comprar o bestseller) e o preço dos livros praticamente que não subiu. A Saída de Emergência teve a sorte de nascer numa altura propícia a quem tinha projectos novos - se em vez de 2003 tivéssemos nascido em 2011 nunca conseguríamos crescer como crescemos. Passaram-se oito anos e não sei dizer-vos se o mercado está melhor ou pior. Mas que está irreconhecível, isso está.

A salvação para quem acabou “As Crónicas de Gelo e Fogo” de George R. R. Martin e não sabe o que ler... Sangue do Assassino Robin Hobb

Quando se chega ao fim de A Dança dos Dragões, nono volume de As Crónicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin, há uma pergunta que todos os leitores partilham: o que ler agora? Não é fácil sair das mãos hábeis de Martin para nos entregarmos a outro escritor. Poucos autores do género têm o seu talento para construir mundos, personagens, intrigas e diálogos tão conseguidos. Voltamos então à pergunta, o que ler agora? Talvez a solução seja perguntar ao próprio George R. R. Martin, e ele responde sempre da mesma maneira: se gostam de boa fantasia épica, leiam Robin Hobb. Agora que sabe-

Nas palavras da própria autora, para Fitz, “as magias do Talento e da Manha têm perigos e benefícios. Tem que trilhar o seu caminho com muito cuidado entre ambas as magias se quer sobreviver”.

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Heróis que derrotaram cientistas loucos, monstros e alienígenas... mas não resistiram a Salazar Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa Vários autores Séculos de uma inquisição invulgarmente repressiva e uma ditadura de várias décadas no século passado deixaram um vazio na criatividade e capacidade de sonhar dos portugueses. Isso reflectiu-se num século XX cinzento, bafiento e atrasado em relação a tudo o que se fazia lá fora. Mas Luís Filipe Silva, num trabalho notável de investigação e pesquisa, vem demonstrar que as coisas não foram bem assim. Durante algumas décadas do séc. XX Portugal teve uma ficção 4 /// BANG!

Provavelmente a antologia mais complexa editada pela SdE até à data, é uma obra que recria toda uma pulp fiction portuguesa que poderia ter existido.

mos que o “novo Tolkien” da fantasia recomenda vivamente Robin Hobb, vamos lá saber o que tem esta autora de tão especial. Segundo a crítica e a legião de fãs que se tem vindo a formar por todo o mundo, o seu ponto forte é a criação de mundos originais e credíveis, personagens com as quais nos identificamos e preocupamos e intrigas surpreendentes e imprevisíveis. Depois de A Saga do Assassino, um quinteto que conta a juventude de Fitz, e a sua transformação de jovem inocente em assassino temido nos quatro cantos do reino, veio O Regresso do Assassino, segundo quinteto que conta a transformação de Fitz de assassino lendário em... Pois é, Robin Hobb tem muitas surpresas e não as podemos contar aqui. Mas se confiam no gosto de George R. R. Martin dêem uma oportunidade ao talento único de Robin Hobb. O próximo volume é Sangue do Assassino, terceiro na nova saga.

No 4º volume, Mercy Thompson pode não sobreviver a uma confrontação com Marsilia, a rainha dos vampiros, mas a força e determinação da nossa heroína não são de subestimar.

popular tão activa quanto as melhores. Dos detectives que resolviam os casos com um misto de dedução e punhos aos heróis espaciais que viviam aventuras para lá do horizonte galáctico; dos bárbaros com sindroma de bom gigante aos desgraçados que se cruzavam com horrores em tudo semelhantes aos de H. P. Lovecraft, a pulp fiction portuguesa foi um farol de irreverência e pura imaginação durante algumas décadas sofridas da nossa História. Mas se os heróis enfrentaram e (quase sempre) derrotaram centenas de vilões durante esse período, nada puderam fazer contra a censura do Estado Novo. Tão eficaz foi esse lápiz azul que ainda hoje poucos se recordam da pulp fiction portuguesa e do papel que esta teve em iluminar as vidas de um povo com tão poucas razões para sorrir. Uma obra fundamental para conhecer alguns dos mais extraordinários heróis da literatura portuguesa - que, garanto-vos, nada deviam aos melhores da pulp americana.

Para quem gosta de romance paranormal mas está farto de vampiros Cruz de Ossos Patricia Briggs Mercy Thompson está rapidamente a tornar-se uma das heroínas da fantasia urbana mais populares da colecção Bang! As leitoras já se renderam às aventuras desta mecânica metamorfa com um grande dom para se meter nos mais incríveis sarilhos com lobisomens, vampiros e seres feéricos. Mas mais do que um enredo sólido e bem construído, é a incrível força interior de Mercy, a par da sua vulnerabilidade, que conquistou os leitores ansiosos pelo novo volume que saiu este mês, Cruz de Ossos.

Edição ilustrada e de luxo para os fãs de Zoey Redbird onde não faltam as histórias de antigas SumoSacerdotisas e do passado da Casa da Noite.

Para quem gosta de romance paranormal mas acha que os vampiros ainda têm muito para dar Manual do Iniciado P. C. Cast e Kim Doner

P. C. Cast regressa numa parceria com a artista Kim Doner e presenteia os seus fãs com o Manual do Iniciado. Para quem está familiarizado com as aventuras de Zoey Redbird na Casa da Noite, sabe como este Manual tem guiado os iniciados e tem servido de inspiração. Agora, numa edição ilustrada e de luxo, chega às livrarias este Manual onde ficamos a conhecer mais acerca da história dos vampyros e Sumo-Sacerdotisas do passado. A história de Zoey será retomada com Despertada no ano 2012.


Dos clássicos da fc aos novos bestsellers da fantasia, sem esquecer os autores portugueses e os videojogos

Conseguirá o Imperador de Acácia superar os perigos que o rodeiam e proteger os seus herdeiros da corrupção em que assenta o Império?

Assassin’s Creed Cruzada Secreta Oliver Bowden Eis que surge a oportunidade de conhecer o significado do Credo dos Assassinos. Baseado no primeiro jogo da Saga Assassin’s Creed, o livro Cruzada Secreta revela-nos a história de Altaïr – Um dos mais extraordinários assassinos da Irmandade durante a terceira cruzada da Terra Santa. Os eventos da vida de Altaïr são contados pela primeira vez: uma viagem que vai mudar a História. O seu objectivo - uma batalha interminável contra a conspiração dos Templários. A sua determinação é guiada pelo lema – Nada é verdadeiro. Tudo é permitido.

Acácia David Anthony Durham Sensação do momento está a ser a ingressão de David Anthony Durham na fantasia. Depois de conquistar prémios e prestígio escrevendo romances históricos, o autor decidiu soltar as amarras à imaginação e surpreender os leitores. E, na verdade, foi uma excelente surpresa. Talvez pela experiência adquirida, a fantasia de Durham é madura e adulta. A dureza de um mundo onde o bem e o mal são zonas cinzentas, fizeram a crítica compará-lo regularmente a autores como George R.R. Martin. Mas as qualidades não se ficam por aqui. Durham mostra ter as suas próprias ideias bem delineadas e coisas como a inclusão das drogas ou a escravatura infantil, fazem do seu mundo um lugar credível e apaixonante. A geografia é

coerente e a intriga faz-nos contorcer no sofá de tão maquiavélica. Um povo é praticamente domesticado por uma droga chamada “bruma”; um rei que é uma vítima de um sistema herdado há várias dinastias; o amor pelos seus quatro filhos pequenos que o admiram e desconhecem os alicerces sujos em que assenta o Império. Os povos do Norte sentem-se no direito de reclamar o trono. Uma organização domina os mares e as trocas comerciais, e tem um tal poder que faz o Rei questionar-se se poderá ou não negar-lhes as exigências. Tudo isto e muito mais, faz de Durham um legítimo concorrente dos maiores nomes da fantasia. A não perder.

O Messias de Duna Frank Herbert Publicado pela primeira vez em Portugal, O Messias de Duna vem na sequência do grande clássico, Duna de Frank Herbert. Doze anos depois dos eventos narrados nesse livro, Paul Atreides é Imperador do Universo, mas vê-se a braços com uma Jihad sangrenta que destrói mundos em seu nome. Um livro mais pausado e de intensa reflexão filosófica, a braços com densas intrigas políticas, as últimas cem páginas arrebatam o leitor e tornam esta obra mais um clássico da FC inesquecível.

Publicado pela primeira vez em Portugal, todos os amantes da FC ir-se-ão render à continuação do relato por Frank Herbert da vida de Muad’Dib, profeta, santo, guerreiro, místico e Imperador.

PREÇO FNAC:

18,55€

O fim chega numa manhã de nevoeiro Renato Carreira O novo livro de Renato Carreira, O Fim Chega Numa Manhã de Nevoeiro, é um thriller fantástico cuja pedra de toque assenta na irónica e divertida subversão do mito d’el-rei D. Sebastião. Baltazar Mendes, herói acidental e investigador policial, após ter sido acusado de loucura em circunstâncias um pouco bizarras, vê-se enredado numa trama sobrenatural que poderá levar à destruição do mundo como o conhecemos.

O que vem aí? Na recta final do ano, o calendário editorial da Saída de Emergência entra numa merecida pausa, dando mais

tempo aos nossos leitores para olharem para todos os nossos lançamentos deste ano, ver o que lhes escapou e colocarem na lista ao Pai Natal. Mas a pausa não será muito longa pois em Janeiro de 2012 o fogo e sangue dos Targaryen regressam com Os Reinos do Caos, o 10º volume das Crónicas de Gelo e Fogo. Stephen Hunt delicia-nos com mais um sensacional livro no seu universo Steampunk com O Reino Mais Além das Ondas. Se leram A Corte do Ar, não irão querer perder este lançamento. Drizzt Do’Urden, o elfo negro mais famoso da fantasia regressa com o 2º volume da trilogia das Planícies Geladas, Rios de Prata. Mas a maior surpresa reservada para o início do ano é certamente o início da publicação da saga Dragonlance de Tracy Hickman e Margaret Weis.

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m From Paralysis to Fatigue, Edward Shorter enuncia a existência de “reservatórios de sintomas”: aglomerados ideais, preenchidos pelas tendências predominantes dos períodos que permeiam. São, em simultâneo, influenciáveis e influentes. Faz sentido falar em “sintoma”, porque a palavra também significa “presságio”; logo, as mutações que afectarão a sociedade poderão ser calculadas pelo estudo do “reservatório de sintomas”. Nas primeiras décadas do século XIX, os Estados Unidos foram desinquietados pelo Segundo Grande Despertar: revivalismo religioso, de natureza arminiana, que quis repor o rigor protestante, perdido em favor do agnosticismo estimado pelos Pais

Fundadores. Foi um período em que a ciência manteve a orientação de que deveria glorificar o desígnio de Deus. Entre os astrónomos americanos e europeus, a maioria era composta por teólogos crentes num pluralismo cósmico teísta (como William Herschel, descobridor de Úrano e da radiação infra-vermelha), sob o qual o universo era populado por raças tementes a Deus. Reverendos astrónomos, como Thomas Dick, acreditavam que a Lua era habitada por uma civilização isenta de pecado (Dick até calculou que ela perfazia o número de 4,2 mil milhões de indivíduos) e Von Littrow e Friedrich Gauss arrogaram ser possível comunicar com os selenitas. A crença no povoamento da Lua foi aceite por todos como provável: fez parte do “reservatório de sintomas” desse tempo. Em Agosto de 1835, o jornal nova-iorquino The Sun publicou uma 6 /// BANG!

série de artigos sobre a descoberta do astrónomo John Herschel (filho de William Herschel), isolado na África do Sul. Lendo o seriado, intitulado Great Astronomical Discoveries Lately Made by Sir John Herschel, L.L.D. F.R.S. &c. at the Cape of Good Hope, o público ficou a saber que a Lua tinha florestas, lagos e era habitada, entre outras espécies (como castores bípedes), por inteligentes híbridos de humano com morcego, capazes de construir igrejas. Graças a um novíssimo procedimento óptico (descrito ao detalhe), que permitia a magnificação das imagens telescopiadas sem que perdessem definição, Herschel desvendava que o homem não estava sozinho no sistema solar. The Sun, criado em 1833 por Benjamin Day, já revolucionara cabalmente o modo de fazer jornalismo, ao lançar-se no mercado em pequeno formato e com custo de um penny: foi o primeiro

A Lua por inteligentes híbridos de humano com morcego, capazes de construir igrejas.

diário popular, com características actuais, e as novidades sobre os selenitas transformaram-no no título mais vendido. À edição episódica advieram as panfletárias, com litografias dos homens-morcegos voando entre vulcões, lagos e cascatas lunares. Os restantes periódicos norteamericanos (e europeus) não perderam tempo em republicar o material na integralidade, mas James Gordon Bennett, proprietário e editor do diário nova-iorquino Herald, concorrente do The Sun, não acreditou na descoberta e iniciou uma campanha para que Richard Adams Locke (editor do The Sun) assumisse a autoria das espantosas “notícias”. Com efeito, fora Locke a escrevê-las; e em 1840, numa crónica publicada no semanário New World, assumiu que quisera satirizar a crendice com que a ciência, em particular a astronomia, era praticada nas academias, mas, infelizmente,

ninguém compreendera o ponto de vista. O seu único trabalho ficou conhecido como Grande Embuste da Lua. Foi o “reservatório de sintomas” da época, recheado com a crença na Lua habitada e a exuberância da emergente imprensa popular, que serviu de placenta ao desenvolvimento de um inédito género literário que iria aperfeiçoar-se no início do século seguinte. No dia 3 de Setembro de 1835, Bennett escreveu no Herald um artigo intitulado A New Species of Literature: nessas linhas, cunhou o estilo de Locke como sendo «scientific novel». O seriado foi pioneiro na descrição meticulosa de uma tecnologia óptica especulativa que credibiliza a história do ponto de vista científico: o texto suspende-nos a descrença porque ciência e ficção se entrosam com harmonia – e esse cruzamento aparece pela primeira vez pela mão de Locke,


assim como a designação «scientific novel», inventada pelo editor rival Bennett, antecipa em quarenta e um anos a de «scientific fiction», criada por William H. L. Barnes na introdução que escreveu para a colectânea de homenagem póstuma a Caxton (W. H. Rhodes), e em noventa e um anos o uso dado por Hugo Gernsback no primeiro número de Amazing Stories. Concluise que Locke, com o estilo inédito, e Bennett, com a designação que lhe deu, foram os pais remotos da ficção científica. Locke atreveu-se a imaginar sobre a Lua e num precursor jornal popular mostrou-nos como imaginar o século XX. Sem Locke talvez não houvesse Verne e Wells e sem os seriados e folhetins do The Sun talvez não houvesse fanzines, nem weblogs. A Lua deu-lhe ainda oportunidade de usá-la como alegoria de uma sociedade sem escravos, num momento em que Nova Iorque era a cidade mais sulista dos estados do Norte. A especulação fantástica podia, afinal de contas, falar de problemas reais. O período supracitado, cheio de convulsões, prova que só o fantástico pode salvar a cultura de tornar-se o epifenómeno subserviente de um mercado cada vez mais volúvel e falsamente personalizado. É olhando para a Lua, domínio argênteo da Imaginação, que se pode observar sem cegueira a luz do Sol, radiância dourada da Obra. Fantasiando, planeia-se o futuro.

David Soares é autor dos romances “Batalha”, “O Evangelho do Enforcado”, “Lisboa Triunfante” e “A Conspiração dos Antepassados”. A revista literária Os Meus Livros considerou-o «o mais importante autor português de literatura fantástica».

oderia começar por dizer que a primeira coisa que o Metal e o universo da literatura fantástica têm em comum é o preconceito. Estaria, todavia, a desperdiçar uma oportunidade de revelar cenários bem mais felizes que unem estes estilo de vida de uma forma reveladora e inequívoca. Correria também o risco de cair no vício da lamentação, ao qual todos nós cedemos durante estes anos todos a tentar explicar a nossa atracção e devoção a um ou ao outro, ou aos dois, como é o meu caso pessoal e, felizmente, o de muitos. Não quero iniciar esta colaboração com a Bang! construindo, à nossa volta, esse muro que encobriria a o feixe de luz, para ser mais sci-fi, que a simples publicação desta revista abre ao público português, sempre necessitado de revelação sob pena de se afogar no abundante vómito cultural e musical que prolifera

e avança destemidamente no nosso país. Por outro lado, é curioso saber que quem curou o preconceito fomos nós próprios pelo simples facto de o termos anulado ao não lhe dar nenhuma importância. Os jovens que se iniciam agora no fantástico, os que lá permanecem há já vários anos, deixaram simplesmente de tentar ensinar as cores aos cegos. Não devemos justificação a ninguém e em boa hora o espírito desesperado/missionário dos anos Oitenta e Noventa se transformou numa saudável convivência com aquilo que gostamos e do qual os outros não gostam. Vive-se e trabalha-se muito bem para um nicho e tal como um amigo meu, pouco dado à fantasia mas bastante dado às tecnologias (que tantas vezes a ficção pensou antes da sua compleição, criando arquétipos que se tornariam em objectos da nossa mais pura dependência), me disse há já muita da nossa gente em posições de liderança e o sucesso das séries de TV e do cinema inspirado em autores outrora sombrios, desconhecidos do grande povo (George R. R. BANG! /// 7


Martin como exemplo mais recente), legitimam o crescimento sem cedências do fantástico. Os Iron Maiden serão, muito provavelmente, a melhor banda de Heavy Metal do mundo. No Metal há sempre disputas pelo título, mas os Maiden são eles próprios uma espécie de origem visual, estética, poética e territorial do estilo. Muitas das escalas, melodias, penteados, roupas e líricas das bandas que os seguiram radicam com profundidade na banda Inglesa que fez a curva de todas as gerações, apresentando-se, hoje em dia, perante um público de todas as idades, influenciando fornadas futuras de bandas, escritores e leitores. Com uma ligação sólida e natural à literatura (consubstanciada pela obra magna The ryhme of the ancient mariner/A rima do antigo Marinheiro, escrita por S. T. Coleridge e que marca o início do Romantismo Inglês, imortalizada no disco de 1984 Powerslave) os Maiden tiveram o condão de pôr milhares a saber de cor extensas partes deste poema, conseguindo, pelo talento do seu Metal, o que a maior parte dos programas absurdos de educação, pensada por tecnocratas durante férias caribenhas pagas pelos contribuintes, não conseguiram. A ligação com o fantástico atinge o pleno visual no disco Somewhere in time (1986), outra obra-prima reverenciada por milhares em todo o mundo, e que é um verdadeiro festim de referências explícitas ao gosto e influências fantásticas de todos os artistas visuais e músicos envolvidos na feitura deste disco. Comecemos pela capa: Mais uma vez, Derek Riggs, criador da mascote imortal dos Maiden, o infame Eddie, foi comissionado para fazer a capa deste disco. Derek encheu-a de pormenores que fazem as delícias de qualquer leitor do fantástico e é uma verdadeira aventura descobri-las e reconhecê-las: Todo o ambiente da capa procura recriar o filme de Ridley Scott, Blade Runner (1982). O cinema da cidade da capa chama-se Philip K. Dick Cinema numa referência ao autor cujo livro (Do Androids dream of electric sheep?, 1968) inspirou o filme de Ridley. As referências espalham-se por toda a gravura e as ligações estabelecemse, invocando a ponte entre o imaginário de Blade Runner e as influências da banda comuns às do cineasta: Ray Bradbury (Bradbury Towers); o 8 /// BANG!

Todo o ambiente da capa procura recriar o filme de Ridley Scott, Blade Runner

Tardis da série original do Dr.Who; a Fundação Asimov. Para rematar, um dos temas deste disco tem por título Strange in a Stranger Land, segundo os Maiden sem relação ao clássico de Robert Heinlein (1961), publicado em Portugal em três volumes na mítica Colecção Argonauta, dos Livros do Brasil. Como diria Cervantes: “no creo en las brujas, pêro que las hay, las hay...” Outra coisa em comum ao mundo do Fantástico e do Metal é a sua intricada infinitude. Os metaleiros são leitores ávidos de ficção fantástica e as

bandas que eles formaram no passado, ou que dão hoje os primeiros passos, irão aproveitar a sua cultura fantástica para cunhar outros clássicos. Em retorno, o Heavy Metal na sua versão mais clássica, com ramificações no folk, no épico também já constitui a banda sonora de muitas séries ou filmes do domínio do fantástico. É esta relação de grande qualidade envolvendo autores tão díspares como Tolkien ou Orwell e bandas como Metallica (Lovecraft) ou Ulver (William Blake) que vos convido a descobrir.

Fernando Ribeiro é vocalista e letrista da banda Moonspell, com a qual já lançou vários discos, e em 2009 participou no projecto Amália. Tem três livros de poesia publicados e, no universo lovecraftiano, traduziu para português a biografia em banda desenhada intitulada “Lovecraft”, assinou as introduções das antologias “Os Melhores contos de H. P. Lovecraft” e participou nas antologias “As Sombras Sobre Lisboa” e “Contos de Terror do Homem-Peixe”. Em 2011, publicou ficção na colecção Mitos Urbanos da editora Gailivro.


egundo o livro “Viagem à Lua e Mais Além”, de Tristan de Sapincourt, o artefacto voador – que o próprio autor alegadamente construiu – baseava-se num aparelho criado por Burattini e que veio a servir, anos mais tarde, de inspiração a uma das invenções de Cyrano de Bergerac. Funcionava a explosões, cada uma impulsionando o aparelho (com formato de gafanhoto) cada vez mais para o alto, em direcção ao espaço, às estrelas mais distantes. O principal ingrediente do combustível era sal petrae. Quando se gastavam as reservas, Tristan de Sapincourt apanhava o orvalho da fuselagem e extraía mais sais dessa água. Todos os dias, antes de o Sol nascer, estendia lençóis sobre o metal da nave para que estes se encharcassem de orvalho. Depois espremia os panos, tal como indica o Mutus Liber, e extraía os nitratos que serviam de explosivos para a sua nave metálica. Tristan de Sapincourt viajou, segundo afirmou o próprio, até à Lua no ano de 1613, tendo descoberto, numa das crateras, a máquina voadora de Arquitas, que tinha forma de pomba. A madeira mantinha-se intacta. Tristan admirou aquele pássaro do pitagórico de Terento e caminhou uns metros sem ver ninguém. Ao cabo de algumas milhas, no meio de um bosque, avistou os mortos, tal qual acreditavam os Antigos. Estavam lá os

Galileu quer despovoar o universo e fazer dele um deserto de fórmulas matemáticas BANG! /// 9


platónicos, os neoplatónicos, os pitagóricos, os neopitagóricos e muitos outros. Tristan de Sapincourt conversou com eles sobre as parvoíces de Luciano de Samósata. O divino Platão riu-se muito de alguns capítulos que foram lidos por Crítias, salientando algumas passagens com a sua voz rouca. Nas crateras depositavam-se, segundo Tristan de Sapincourt , vários artefactos que antes haviam servido para voar no espaço. Um dos mais impressionantes era a águia de madeira de Regiomontanus, a mesma que impressionou o imperador Maximiliano I, na cidade de Koenigsberg. Havia também o carro de fogo de Elias, uma espécie de balão, bem como o famoso tapete de Salomão. Da Lua para os outros planetas estendiam-se cordas metálicas e, sobre elas, andavam funâmbulos, para trás e para a frente. Eram aprendizes de Aristóteles, os peripatéticos do Liceu, que eram obrigados não só a caminhar, como a contemplar o universo enquanto o faziam. Debaixo dos seus pés estava o infinito como aliás acontece a quase toda a gente que tem a coragem de olhar para o abismo onde caminha. Concentrados naquele fio de navalha que é a vida sobre o Nada, sobre o absurdo, pensavam sobre a morte e outras questões filosóficas. Numa cratera da face oculta, Tristan de Sapincourt descobriu a caixa onde voava Nimrod. Ainda tinha lanças espetadas. Nessas lanças, o rei da Babilónia pendurava carne podre e os abutres que ali medravam faziam voar a caixa até planetas distantes. É também na Lua, segundo Tristan, que estava a arca do Princípio, feita de acácia e tendo no seu interior amostras dos primeiros elementos, no seu estado mais puro. São quatro pedrinhas absolutamente esféricas, que contêm Ar, Água, Fogo e Terra. Quando se juntam formam um pequeno Caos, mais pequeno do que a cabeça de um alfinete, mas que pode conter todo o universo, incluindo as estrelas mais distantes e os Diálogos de Platão. A arca tem ainda um compartimento especial para um produto chamado Quadraturin, que é uma espécie de verniz de fácil aplicação, responsável pela expansão do universo. As paragens seguintes de Tristan de Sapincourt incluíram os outros seis planetas onde viu inúmeras maravilhas. Pôde também trepar à Árvore da Vida, da tradição judaica, que ainda vegeta num montículo de Vénus. Tem dez ramos que representam as dez sephirot e dá frutos o ano todo, sempre em hebraico, cada um 10 /// BANG!

com o seu sumo filosófico, com o seu caroço de verdade. Num dos planetas mais longínquos vive Pico della Mirandola com toda a sua soberba. No planeta Saturno, os filósofos são carregados por anjos, que os levam ao colo. Segundo Tristan de Sapincourt, este planeta possui grandes cidades, muitas das quais não se vêem a olho nu. Tristan descreveu ainda o funcionamento das enormes lentes montadas em cada um dos sete planetas, que haviam sido construídas pelos Antigos para emissão de influências astrológicas. Muito criticado por Galileu, tal como pode ser lido na obra Sidereus Nuncius, Tristan reagiu com desprezo. A obra maior de Galileu acusa Tristan de Sapincourt de ser um fantasista pior do que Luciano de Samósata – autor de um dos primeiros livros de Ficção Científica – ou um louco. Tristan, por seu lado, afirmou que a obra de Galileu não é senão um deserto: «Galileu olha através de um telescópio e descreve o que vê. Como se o mundo pudesse ser visto através de um telescópio. Qual será o motivo para um homem destes achar que o universo visto através de lentes de vidro é mais verdadeiro do que o universo visto através da minha cabeça? Galileu quer despovoar o universo e fazer dele um deserto de fórmulas matemáticas. Se as pessoas acreditarem nele, em breve viverão num universo vazio, serão uns funâmbulos a caminhar sobre o absurdo. O meu mundo não são apenas umas pedras a girar à volta do Sol. Se Galileu, um dia, quiser pousar o telescópio, posso mostrar-lhe o verdadeiro universo que se esconde por trás dessas pedras.»

É autor dos livros Enciclopédia da Estória Universal (Quetzal, 2009), A Carne de Deus (Bertrand, 2008) e Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (Caminho, 2010 - Prémio Literário Maria Rosa Colaço). Recentemente publicou A Boneca de Kokoschka (2010) e O Pintor Debaixo do Lava-Loiças (2011). Além de escrever, também é ilustrador, cineasta e músico (compõe e toca na banda de blues/roots The Soaked Lamb). Vive no campo e tem dois filhos. http://afonso-cruz.blogspot.com http://soakedlamb.com


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uando estás Morta – disse Samantha, - não é preciso lavar os dentes… - Quando estás Morta – disse Claire, - vives numa caixa, está sempre escuro, mas nunca tens medo. Claire e Samantha eram gémeas idênticas. As suas idades combinadas somavam vinte anos, quatro meses e seis dias. Claire era melhor a fazer de Morta que Samantha. A babysitter bocejou, cobrindo a mão com uma longa mão branca. - Eu disse que estava na hora de lavar os dentes e ir para a cama – respondeu. Estava sentada de pernas cruzadas sobre a coberta florida da cama no meio das duas meninas. Tinha estado a ensinar-lhes um jogo de cartas chamado Pounce, que envolvia três baralhos de cartas, um para cada jogadora. O baralho de Samantha não tinha o Valete de Espadas nem o Duque de Copas e Claire continuava a fazer batota. Mesmo assim, a babysitter ganhava todos os jogos. Ainda tinha salpicos de creme de barbear seco e papel higiénico nos braços. Assim de repente, era difícil dizer que idade tinha – primeiro pensaram que ela já devia ser crescida, mas agora parecia ser pouco mais velha que elas. Samantha já se tinha esquecido do nome da babysitter. O rosto de Claire tinha uma expressão obstinada.

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- Quando estás Morta – disse – podes ficar acordada a noite toda. - Quando estás Morta – ripostou a babysitter com rispidez – tudo é muito frio e húmido e tens de estar muito, mas mesmo muito, quieta senão o Especialista vem buscar-te. - Esta casa está assombrada – disse Claire. - Eu sei que está – respondeu a babysitter. – Eu costumava viver aqui.

Alguma coisa está a subir as escadas, Alguma coisa está atrás da porta, Alguma coisa está a chorar, a chorar no escuro; Alguma coisa está a suspirar no outro lado do quarto. Claire e Samantha estavam a passar o verão com o pai, numa casa chamada Oito Chaminés. A mãe delas já morreu. Estava morta há exactamente 282 dias. O pai das meninas estava a escrever a história das Oito Chaminés e a do poeta Charles Cheatham Rash, que viveu naquela casa por alturas da viragem do século; Charles fugiu para o mar quando tinha treze anos e regressou quando tinha trinta e oito. Casou, teve um filho, escreveu três volumes de poesia obscura e de má qualidade, escreveu até um romance ainda mais fraco e tenebroso, Aquele Que Me Observa Através da Janela, antes de voltar a desaparecer em 1907, desta vez para sempre. O pai de Samantha e Claire dizia que alguma da poesia até se conseguia ler e que pelo menos o romance não era muito grande. Quando Samantha lhe perguntou por que motivo estava a escrever sobre Rash, o pai respondeu que ainda ninguém o tinha feito e disse-lhe que fosse brincar com Samantha para a rua. Quando a menina esclareceu que era a Samantha, o pai franziu o sobrolho e perguntou como devia ele saber quem era quem quando andavam as duas vestidas de calças de ganga e camisas de flanela e por que razão não 14 /// BANG!

podia uma delas vestir-se toda de verde e a outra toda de cor-de-rosa? Claire e Samantha gostavam mais de brincar dentro de casa. A Oito Chaminés era tão grande como um castelo, mas muito mais empoeirada e escura do que como Samantha imaginava que um castelo seria. Havia mais sofás, mas pastorinhas de porcelana com os dedos lascados, menos armaduras. E não havia fosso. A casa estava aberta ao público e, durante o dia, as pessoas e famílias que passavam pela Alameda Blue Ridge paravam para visitar os jardins e o primeiro andar; o terceiro andar pertencia a Claire e Samantha. Por vezes brincavam aos exploradores, outras vezes seguiam o caseiro enquanto ele fazia as visitas guiadas aos turistas. Ao fim de algumas semanas já tinham memorizado o discurso dele e iam fazendo os gestos com a boca enquanto ele falava. Ajudavam-no a vender postais e cópias dos poemas de Rash às famílias de turistas que entravam na pequena loja de lembranças. Quando as mães lhes sorriam e lhes diziam como eram queridas, as gémeas devolviam o olhar, mas não diziam nada. A luz débil da casa fazia as mães parecerem pálidas, frágeis e cansadas. Quando saíam das Oito Chaminés, as mães e as famílias já não pareciam tão reais como antes de pagarem o bilhete de entrada, e como era óbvio que Claire e Samantha nunca mais os voltariam a ver, talvez eles não fossem mesmo reais. Era melhor ficarem dentro de casa, queriam dizer às famílias, e se tiverem de sair, então que vão directamente para os carros. O caseiro dizia que a floresta não era segura. O pai ficava na biblioteca do segundo andar durante toda a manhã, a escrever, e à tarde dava grandes passeios. Levava com ele um pequeno gravador portátil e uma garrafa de bolso com Gentleman Jack, mas nunca levava Samantha e Claire. O caseiro das Oito Chaminés era o senhor Coeslak. A sua perna esquerda era notoriamente mais curta que a direita. Usava um daqueles sapatos com tacão. Cabelos curtos e negros cresciam-lhe nos ouvidos e no nariz embora no cimo da cabeça não tivesse um único cabelo, mas deu autorização a Samantha e Claire para explorarem a casa toda. Foi o senhor Coeslak quem disse às gémeas que na floresta existiam cobras venenosas e que a casa era assombrada. Disse que eram todos, cobras e fantasmas, um bando de mal-humorados e que Samantha e Claire deviam manter-se nos trilhos marcados e longe do sótão.

O senhor Coeslak conseguia distinguir as gémeas, mesmo que o pai não o conseguisse fazer; os olhos de Claire eram cinzentos, como o pêlo dos gatos, dizia, mas os de Samantha eram cinzentos como o oceano, quando chovia. No segundo dia que passaram nas Oito Chaminés, Samantha e Claire foram passear para a floresta. E viram qualquer coisa. Samantha pensou tratar-se de uma mulher, mas Claire disse que era uma cobra. A escadaria que dava acesso ao sótão foi fechada à chave. Espreitaram pelo buraco da fechadura, mas estava demasiado escuro para verem o que quer que fosse. Assim, ele tinha uma mulher e diziam que era realmente bonita. Havia outro homem que queria ir com ela; inicialmente ela não quis, porque tinha medo do marido, mas depois foi. O marido descobriu e dizem que matou uma cobra, arranjou um pouco do sangue dela e colocou-o num copo de uísque que ofereceu à mulher. Tinha aprendido isto com um ilhéu que andara com ele num barco. Cerca de seis meses depois, as cobras criaram-se no interior da mulher e começaram a sair por entre a carne e a pele dela. Dizem que se conseguia ver as cobras a serpentear para cima e para baixo nas suas pernas. Dizem que ela ficou com o corpo todo oco e assim continuou até morrer. Pois o meu papá diz que a viu. - História Oral das Oito Chaminés A casa Oito Chaminés tinha mais de duzentos anos. Recebera o nome devido às oito chaminés que tinha, cada uma delas suficientemente grande para que Samantha e Claire coubessem ambas numa única lareira. As chaminés eram feitas de tijolo vermelho e em cada andar da casa existiam oito lareiras, o que perfazia um total de vinte e quatro. Samantha imaginava as chaminés a estender-se como robustos troncos vermelhos de árvores, bem até ao cimo através do telhado de lousa da casa. Ao lado de cada lareira havia um suporte de troncos, pesado e negro, e um conjunto de instrumentos de ferro forjado para atiçar o fogo, com a forma de cobra. Claire e Samantha faziam de conta que lutavam com os atiçadores-cobra em frente à lareira do seu quarto, no terceiro andar. O vento elevava-se na parte de trás da chaminé. Quando as gémeas enfiavam as cabeças na lareira, conseguiam sentir o ar húmido a elevar-se até lá cima, como se fosse um rio. O cano da chaminé cheirava


a velho, a fuligem e a humidade, como as pedras do rio. O quarto delas fora outrora um berçário. Dormiam juntas numa cama de dossel que se assemelhava a um navio com quatro mastros. Cheirava a bolas de naftalina e Claire dava pontapés à irmã enquanto dormia. Charles Cheatham Rash dormira ali quando era pequeno, assim como a sua filha. Ela desapareceu ao mesmo tempo que o pai. Talvez tivesse algo que ver com as dívidas do jogo. Podiam ter-se mudado para Nova Orleães. O senhor Coeslak disse que ela tinha catorze anos. Claire perguntou como se chamava a rapariga. Samantha queria saber o que aconteceu com a mãe dela. O senhor Coeslak fechou os olhos, quase piscando-os. A senhora Rash morrera um ano antes de o marido e a filha desaparecerem, de uma doença misteriosamente debilitante. Não se conseguia recordar do nome da pobre menina, disse. A casa Oito Chaminés tinha exactamente cem janelas, todas ainda com os vidros ondulantes originais soprados pelos artesãos. Samantha pensava que, com tantas janelas, Oito Chaminés devia estar sempre inundada de luz, mas ao invés disso, as árvores amontoavam-se muito perto da casa, por isso as salas do primeiro, segundo e até do terceiro andar eram verdes e sombrias, como se Samantha e Claire vivessem nas profundezas do oceano. Era esta luz que fazia com que os turistas parecessem fantasmas. De manhã e depois novamente à tarde, instalava-se um nevoeiro em redor da casa. Por vezes era cinzento como os olhos de Claire e outras vezes era cinzento como os olhos de Samantha.

Conheci uma mulher na floresta, Os seus lábios eram duas serpentes vermelhas. Ela sorriu-me, os seus olhos eram lascivos E queimavam como fogo. Há algumas noites uma brisa suspirava na chaminé do berçário. O pai já as tinha ido aconchegar e desligar a luz. Claire desafiou Samantha a enfiar a cabeça na cha-

miné, no escuro, e ela aceitou o desafio. O ar frio e húmido fustigou-lhe o rosto e quase parecia ouvir vozes a falar baixinho, a murmurar. Não conseguia entender muito bem o que elas diziam. O pai ignorara Claire e Samantha quase inteiramente desde que elas chegaram a Oito Chaminés. Ele nunca falava da mãe delas. Uma certa noite ouviram-no gritar na biblioteca e quando desceram as escadas, havia uma grande mancha pegajosa no tampo da secretária, onde um copo de uísque tinha sido derrubado. - Estava a olhar para mim - disse ele através da janela. Tinha olhos alaranjados. Samantha e Claire conseguiram impedir-se de mencionar que a biblioteca ficava no segundo andar. À noite, o hálito do pai estava adocicado pela bebida; ele passava cada vez mais tempo na floresta e menos tempo na biblioteca. Ao jantar, que consistia normalmente de cachorros quentes e feijão cozido em lata, comidos em pratos de papel na sala de jantar do primeiro andar, por baixo do lustre austríaco (que tinha exatamente 632 cristais com chumbo na forma de lágrimas), o pai recitava poesia de Charles Cheatham Rash, que nem Samantha nem Claire apreciavam. O pai andava a ler os diários de bordo que Rash mantivera e disse que descobriu provas de como o poema mais famoso de Rash, “O Chapéu do Especialista”, não era um poema e nem sequer fora escrito por Rash. Era uma coisa que um dos homens do baleeiro costumava dizer, para conjurar as baleias. Rash limitou-se a copiá-lo, a arranjar-lhe um final e a dizer que era da sua autoria. O homem era de Mulatuppu, que era um lugar que nem Samantha nem Claire nunca tinham ouvido falar. O pai disse que o homem era tido como uma espécie de feiticeiro, mas afogou-se pouco tempo antes de Rash regressar à casa Oito Chaminés. O pai contou que os restantes marinheiros queriam deitar a arca do feiticeiro borda fora, mas Rash convenceu-os a deixarem-no ficar com ela até que pudesse desembarcar, juntamente com a arca, na costa da Carolina do Norte.

O chapéu do especialista faz um barulho como uma cutia; O chapéu do especialista faz um barulho BANG! /// 15


como um javali; O chapéu do especialista faz um barulho como um porco-bravo; O chapéu do especialista faz um barulho como um tapir; O chapéu do especialista faz um barulho como um coelho; O chapéu do especialista faz um barulho como um esquilo; O chapéu do especialista faz um barulho como um alector; O chapéu do especialista geme como uma baleia na água; O chapéu do especialista geme como o vento no cabelo da minha mulher; O chapéu do especialista faz um barulho como uma cobra; Pendurei o chapéu do especialista na minha parede. O motivo pelo qual Claire e Samantha tinham uma babysitter era porque o pai conhecera uma mulher na floresta. Ia encontrar-se com ela naquela noite, para fazerem um jantar piquenique e admirarem as estrelas. Era naquela altura do ano que as chuvas de meteoritos se podiam observar a cair através do céu, nas noites claras. O pai disse-lhes que passeava com a mulher todas as tardes. Era uma parente afastada de Rash e além disso, disse o pai, ele também 16 /// BANG!

precisava de conversar um pouco com outros adultos. O senhor Coeslak não ficava na casa depois de escurecer, mas concordou em encontrar alguém para ficar com Samantha e Claire. Depois, o pai não conseguia encontrar o senhor Coeslak, mas a babysitter apareceu em casa às sete em ponto. A babysitter, cujo nome nenhuma das gémeas conseguiu apanhar, usava um vestido de algodão azul com mangas esvoaçantes. Samantha e Claire acharam que ela era bonita de um modo um pouco antiquado. Estavam na biblioteca com o pai, à procura de Mulatuppu no atlas de capas de couro vermelho, quando ela chegou. Não bateu na porta da frente, limitou-se a entrar e a subir as escadas, como se soubesse onde os ia encontrar. O pai deu-lhes um beijo de boa noite, uma beijoca rápida, disse-lhes para se portarem bem e que no fim-de-semana ia levá-las à cidade para verem o filme da Disney. As gémeas foram para a janela para o observarem a entrar na floresta. Já estava a ficar escuro e os pirilampos já voavam, minúsculas fagulhas amarelas vivas que pairavam no ar. Ela ergueu o sobrolho. - Muito bem – disse. – Que tipo de jogos gostam de jogar?

Correrias em redor das chaminés, Uma vez, duas vezes, outra vez. Os raios estalam na bicicleta como o relógio; Contam os dias que faltam na vida de um homem. Primeiro jogaram à Pesca, a seguir aos Oitos Loucos, depois transformaram a babysitter numa múmia colocando creme de barbear do pai nos braços e pernas e envolvendo-a depois em papel higiénico. Era a melhor babysitter que alguma vez tiveram. Às nove e meia tentou deitá-las. Nem Claire nem Samantha queriam ir para a cama, por isso começaram a jogar o jogo da Morta. O jogo da Morta era um jogo de faz de conta que jogavam há já 274 dias consecutivos, mas nunca em frente do pai ou de qualquer outro adulto. Quando estão Mortas, podem fazer tudo

o que lhes apetece. Até podem voar, saltando da cama do berçário e agitando os braços. Se praticassem bastante, um dia haviam de conseguir. O jogo da Morta tinha três regras. Primeira: os números são significativos. As gémeas mantinham uma lista de números importantes num caderno de endereços verde que pertencera à sua mãe. As visitas guiadas do senhor Coeslak eram uma boa fonte de quantidades e registos significativos: estavam por isso, a escrever uma história trágica dos números. Segunda: as gémeas não jogavam o jogo da Morta em frente aos adultos. Tinham estado a avaliar a babysitter e decidiram que ela não contava. Puseram-na ao corrente das regras. A terceira era a regra mais importante. Quando se está Morta, não é preciso ter medo de nada. Samantha e Claire não sabiam muito bem quem era o Especialista, mas não tinham medo dele. Para se tornarem Mortas, sustinham a respiração enquanto contavam até 35, que era a idade que a mãe tinha quando morreu, isto sem contar com alguns dias. - Tu nunca viveste aqui – disse Claire. – O senhor Coeslak vive aqui. - À noite não – respondeu a babysitter. – Quando era pequena, este era o meu quarto. - A sério? – Perguntou Samantha. - Prova-o – desafiou Claire. A babysitter olhou para Samantha e para Claire, como se estivesse a tirarlhes as medidas: que idade tinham, quão espertas, corajosas e altas eram. Depois acenou com a cabeça. O vento soprava pelo tubo da chaminé e sob a luz difusa do berçário conseguiam ver os fiapos leitosos do nevoeiro que saía da lareira. - Coloquem-se de pé dentro da chaminé – instruiu-as. – Estiquem a cabeça o mais que forem capazes e vão encontrar um pequeno orifício do lado esquerdo, com uma chave lá dentro. Samantha olhou para Claire, que disse: - Vai lá. Claire era quinze minutos e alguns segundos não contabilizados mais velha que Samantha, por isso podia dizer-lhe o que fazer. Samantha recordou-se das vozes que murmuravam, mas depois lembrou-se que estava Morta. Aproximou-se da lareira e baixou-se para entrar lá para dentro. Quando Samantha se levantou no interior da chaminé, só conseguia ver um cantinho do quarto. Conseguia ver as franjas do tapete azul puído, uma perna da cama e, ao lado dela, o pé de Claire, a balançar para a frente e para trás como


um metrónomo. O atacador do sapato de Claire estava desatado e tinha um penso rápido no tornozelo. De dentro da chaminé, tudo parecia muito agradável e pacífico, como um sonho e por instantes quase desejou não ter de estar Morta. Mas a verdade era que assim era mais seguro. Levantou a mão esquerda tão alto quanto possível ao longo da parede rugosa, até que sentiu um entalhe. Pensou em aranhas, dedos cortados e lâminas ferrugentas, mas depois enfiou a mão no orifício. Manteve os olhos baixos, focados no cantinho do quarto e no pé agitado de Claire. No interior do buraco estava uma chave minúscula e fria, com os dentes virados para fora. Samantha tirou-a e baixouse para regressar ao quarto. - Ela não estava a mentir – disse Claire. - Claro que não estava a mentir – respondeu a babysitter. – Quando estás Morta, não podes dizer mentiras. - A não ser que queiras fazê-lo – disse Claire.

Desolador e terrível bate o mar contra o cais. Sinistra e gotejante é a neblina que está à porta. O relógio da parede bate a uma, as duas, as três, as quatro. A manhã não chega, não, nunca, nunca mais. Samantha e Claire iam acampar todos os verãos durante três semanas desde que completaram sete anos. Este ano, o pai não lhes perguntou se queriam ir e, depois de discutirem o assunto, decidiram que era melhor assim. Não queriam ser obrigadas a explicar a todos os amigos que agora eram parcialmente órfãs. Estavam habituadas a serem motivo de inveja, por serem gémeas idênticas. Não queriam agora ser alvo da pena dos outros. Ainda nem se tinha passado um ano mas Samantha apercebera-se que estava a esquecer-se de como era a mãe. Não tanto do seu rosto, mas do seu cheiro, que

era qualquer coisa como feno seco, Chanel Nº 5 e algo mais. Não se recordava se a mãe tinha os olhos cinzentos como os dela, ou cinzentos como os de Claire. Já não sonhava com a mãe, mas sonhava com o Príncipe Encantado, um baio que montou em certa ocasião, numa exibição de cavalos no acampamento. No seu sonho, o Príncipe Encantado não cheirava nada como os cavalos. Cheirava a Chanel Nº 5. Quando estava Morta, podia ter todos os cavalos que queria e todos cheiravam a Chanel Nº 5. - De que fechadura é esta chave? – Perguntou Samantha. A babysitter estendeu a mão. - Da porta do sótão. Na verdade, não precisamos dela, mas é mais fácil ir pelas escadas do que pela chaminé. Pelo menos da primeira vez. - Não nos vais obrigar a ir para a cama? – Perguntou Claire. A babysitter ignorou-a. - O meu pai costumava fechar-me no sótão quando eu era pequena, mas eu não me importava. Havia lá uma bicicleta e eu andava nela, contornando as chaminés, até a minha mãe me deixar sair outra vez. Vocês sabem andar de bicicleta? - Claro – respondeu Claire. - Se andarem suficientemente depressa, o Chapéu do Especialista não vos consegue apanhar. - O que é o Especialista? – Perguntou Samantha. As bicicletas não eram más, mas os cavalos conseguiam andar mais depressa. - O Especialista usa um chapéu – respondeu a babysitter. – O chapéu faz barulhos. E não disse mais nada.

Quando estás morta, a relva que cobre a tua campa É mais verde. O vento é mais cortante. Os teus olhos enterram-se, a carne apodrece. Começas A habituar-te à lentidão; esperas os atrasos. O sótão era de alguma forma maior e mais solitário do que Samantha e Claire julgavam. A chave da babysitter abriu a porta fechada ao fundo do corredor, BANG! /// 17


revelando um lanço estreito de escadas. Fez-lhes sinal para que avançassem e subissem. O sótão não era tão escuro como imaginavam. Os carvalhos que bloqueavam a luz e tornavam os três primeiros andares tão sombrios, verdes e misteriosos durante o dia, não chegavam até ali acima. O luar extravagante, empoeirado e pálido, entrava em raios através das janelas salientes do telhado. Iluminava toda a extensão do sótão, que tinha comprimento suficiente para conter um campo de softbol, ladeado por baús onde Samantha imaginou que as pessoas se podiam sentar, esconder ou observar. O tecto era inclinado, empalado pelas oito colunas grossas das chaminés. De alguma forma, as chaminés pareciam demasiado vivas para estarem contidas naquele espaço vazio e negligenciado; embatiam quase com fúria pelo telhado e chão do sótão. Sob o luar, pareciam respirar. - São tão bonitas – disse ela. - Qual destas chaminés é a do berçário? – Perguntou Claire. A babysitter apontou para o aglomerado mais próximo à sua direita. - É aquela – respondeu. – Passa pelo salão de baile no primeiro andar, pela biblioteca e pelo berçário. Pendurado num prego na chaminé do berçário estava um longo objecto preto. Tinha um aspeto amolgado e pesado, como se estivesse cheio de coisas. A babysitter tirou-o e revirou-o por entre os dedos. O objecto preto tinha buracos e assobiava lamentosamente enquanto ela o virava. - O chapéu do Especialista – anunciou. - Isso não se parece com um chapéu – disse Claire. – Não se parece com nada de nada. – Decidiu-se a passar uma vista de olhos às caixas e baús que estavam empilhados contra a parede do fundo. - É um chapéu especial – disse a babysitter. – Não deve parecer-se com nada. Mas é capaz de soar como qualquer coisa que possas imaginar. Foi o meu pai quem o fez. - O nosso pai escreve livros – disse Samantha. - O meu pai também escrevia. – A babysitter pendurou o chapéu no prego. E ele enroscou-se sombriamente contra a chaminé. Samantha olhou fixamente para ele. E o chapéu relinchou para ela. – Ele era um mau poeta, mas ainda era pior feiticeiro. No verão passado, Samantha desejou mais que tudo que pudesse ter um cavalo. Achou que desistiria de tudo por um cavalo – nem mesmo ser gémea era tão bom como ter um cavalo. Continuava 18 /// BANG!

sem ter um cavalo, mas também não tinha mãe e não conseguia deixar de pensar se a culpa seria sua. O chapéu voltou a relinchar, ou talvez fosse o vento na chaminé. - O que lhe aconteceu? – perguntou Claire. - Depois de ele ter feito o chapéu, o Especialista veio e levou-o com ele. Eu escondi-me na chaminé do berçário enquanto o Especialista andava à procura dele, mas a mim não me encontrou. - E não tiveste medo? Ouviu-se um estrépito, um tremor, um ruído seco. Claire encontrou a bicicleta da babysitter e estava a trazê-la em direcção a elas, pelo guiador. A babysitter encolheu os ombros. - Regra número três – disse. Claire arrancou o chapéu do prego. - Eu sou o Especialista! – Exclamou, colocando o chapéu na cabeça. O chapéu caiu-lhe por cima dos olhos, com a aba mole e sem forma cosida com pequenos botões assimétricos que apanhavam e reflectiam o luar como dentes. Samantha olhou novamente e viu que eram realmente dentes. Sem os contar, soube de imediato que eram exactamente cinquenta e dois dentes e que pertenceram às cutias, aléctores, porcos-bravos e à mulher de Charles Cheatham Rash. As chaminés gemiam e a voz de Claire troava surdamente por baixo do chapéu. - Fujam ou vou apanhar-vos! Vou devorar-vos! Samantha e a babysitter fugiram, rindo enquanto Claire montou a bicicleta enferrujada e barulhenta e pedalou loucamente na direcção delas. Enquanto pedalava, tocou a campainha da bicicleta e o chapéu do Especialista saltitava para cima e para baixo na sua cabeça. Bufava como um gato. A campainha era estridente e aguda e a bicicleta queixava-se e gritava. Curvava primeiro para a direita e depois para a esquerda. Os joelhos ossudos de Claire espetavam-se ora a um lado, ora a outro como contrapesos improvisados. Claire serpenteava por entre as chaminés, perseguindo Samantha e a babysitter. Samantha era lenta, porque se virava para olhar para trás. À medida que Claire se aproximava, mantinha uma mão no guiador e a outra estendida em direcção a Samantha. No preciso instante em que se preparava para agarrar a irmã, a babysitter virou-se para trás e tirou o chapéu da cabeça de Claire. - Merda! – Exclamou a babysitter, deixando cair o chapéu. Havia uma gota de sangue a formar-se na parte carnuda da sua mão, sangue negro ao luar, onde o chapéu do Especialista


a tinha mordido. Claire desmontou, a rir. Samantha ficou a observar à medida que o chapéu do Especialista rebolava pelo chão. Ganhou velocidade, guinando através do chão do sótão até que desapareceu, descendo as escadas. - Vai apanhá-lo – disse Claire. – Desta vez podes ser tu o Especialista. - Não – disse a babysitter, sugando a palma da mão. – Está na hora de ir para a cama. Quando desceram as escadas, não havia sinais do chapéu do Especialista. Lavaram os dentes, subiram para a cama em forma de barco e puxaram os cobertores até ao pescoço. A babysitter sentou-se no meio dos pés de ambas. - Quando estás Morta – perguntou Samantha, - continuas a ficar cansada e a ter de dormir? Continuas a sonhar? - Quando estás Morta – disse a babysitter, - tudo é bastante mais fácil. Não precisas de fazer nada que não queiras fazer. Não precisas de ter um nome, não precisas de te recordar de nada. Nem sequer precisas de respirar. E mostrou-lhes exactamente o que queria dizer. Quando tinha tempo para pensar sobre o assunto (e agora tinha todo o tempo do mundo para pensar), Samantha percebia com uma pequena pontada que estava indefinidamente presa entre os dez e os onze anos de idade; presa juntamente com Claire e com a babysitter. Pensou sobre isto. O número dez era agradável e redondo, como uma bola de praia, mas ao fim e ao cabo, não tinha sido um ano fácil. Questionava-se como seria ter onze anos. Um pouco mais difícil, talvez. Em vez disso, escolheu estar Morta. Desejava ter tomado a decisão acertada. Questionavase se a mãe teria decidido estar Morta, em vez de morta, se pudesse ter escolhido. No ano anterior, quando a mãe morreu, tinham aprendido as fracções na escola. As fracções traziam à lembrança de Samantha manadas de cavalos selvagens, pigarços, pintos e palominos. Havia tantos tipos de cavalos e todos eram, bem, irascíveis e difíceis de domar. Quando se pensava que se tinha um cavalo domado, ele empinava a cabeça e atirava-nos ao chão. O número favorito de Claire era o 4, que dizia ser um rapaz alto e magricela. Samantha não gostava assim tanto de rapazes. Mas gostava de números. Como por exemplo, do número 8, que podia ser mais do que uma coisa ao mesmo tempo. Visto de certa forma, o 8 parecia uma mulher curvada de cabelos ondulados. Mas

se o deitássemos de lado, parecia uma cobra enroscada com a cauda na boca. Era mais ou menos esta a diferença entre estar Morta e estar morta. Talvez quando Samantha se cansasse de uma pudesse tentar a outra. No relvado, por baixo dos carvalhos, ouviu alguém a chamar o seu nome. Samantha desceu da cama e foi até à janela do berçário. Olhou através do vidro ondulado. Era o senhor Coeslak. - Samantha, Claire! – Chamou na direcção dela. – Estão bem? O vosso pai está aí? Samantha quase conseguia ver o luar a brilhar através dele. - Estão sempre a fechar-me na casa das ferramentas. Malditas coisas fantasmagóricas – disse. – Estão aí, Samantha, Claire? Meninas? A babysitter aproximou-se e colocou-se ao lado de Samantha. Depois levou um dedo aos lábios. Os olhos de Claire brilhavam na direcção delas, a partir da cama escura. Samantha não disse nada, mas acenou ao senhor Coeslak. A babysitter também acenou. Talvez ele as tivesse visto a acenar, porque pouco tempo depois, deixou de as chamar e foi-se embora. - Tenham cuidado – avisou a babysitter. – Ele vai regressar. Aquilo vai voltar em breve. Pegou na mão de Samantha e levou-a de volta para a cama, onde Claire estava à espera. Sentaram-se e esperaram. O tempo passou, mas elas não ficaram cansadas, nem envelheceram.

silenciosamente. Foram atrás dela. Sem falar, sem respirar, puxou-as para a segurança da chaminé. Estava demasiado escuro para verem, mas perceberam perfeitamente a babysitter quando esta lhes disse sem som, Subam. Subiu primeiro para as gémeas verem onde estavam os apoios para os dedos e os tijolos que estavam salientes para que apoiassem os pés. A seguir foi a vez de Claire. Samantha observou o pé da irmã a subir como fumo, com o atacador ainda desatado. - Claire? Samantha? Caramba, estão a assustar-me. Onde estão? – O Especialista estava mesmo do lado de fora da porta entreaberta. – Samantha? Acho que fui mordido por qualquer coisa. Acho que fui mordido por uma maldita cobra. Samantha ainda hesitou, mas apenas por um segundo. Depois subiu, subiu, subiu, pela chaminé do berçário.

O conto The Specialist’s Hat de Kelly Link está protegido por uma licença da Creative Commons Attribution-NonCommercialShareAlike 2.5 Portugal License. http://creativecommons.org/licenses/ by-nc-sa/2.5/pt/

Quem está aí? Apenas o ar. A porta do primeiro andar abriu-se e Samantha, Claire e a babysitter ouviram alguém a rastejar, a rastejar pelas escadas. - Silêncio – disse a babysitter. – É o Especialista. Samantha e Claire ficaram caladas. O berçário estava escuro e o vento crepitava como o fogo na lareira. - Claire, Samantha, Samantha, Claire? – A voz do Especialista era arrastada e húmida. Parecia a voz do pai, mas isso era porque o chapéu conseguia imitar qualquer som ou voz. – Ainda estão acordadas? - Rápido – disse a babysitter. – Está na altura de subirmos ao sótão e escondermo-nos. Claire e Samantha deslizaram debaixo dos cobertores e vestiram-se rápida e

Kelly Link (1969-), natural de Miami, Florida, é uma das contistas mais reputadas no género da fantasia, tendo vários dos seus contos vencido os prémios Hugo, Nébula e World Fantasy Award. Juntamente com o marido Gavin Gant, é editora da Small Beer Press. Dá aulas de escrita criativa e edita revistas e antologias de fantasia. BANG! /// 19


Dos patos da Disney às Tartarugas Ninja de Eastman e Laird, passando por um clássico como La Bête est Morte, de Calvo, que quase 50 anos antes do Maus, de Art Spiegelman, descreve os acontecimentos da II Guerra Mundial, usando animais antropomorfizados em vez de humanos, até Usagi Yojimbo, o coelho samurai de Stan Sakai e os romances e as BDs protagonizadas por Gerónimo Stilton, não faltam exemplos de histórias de Banda Desenhada protagonizadas por animais antropomorfizados, que, em alguns casos, podiam sem grandes alterações ter personagens humanas como heróis. É o caso de The Mice Templar, de Bryan J. L. Glass e Michael Avon Oeming e de Mouse Guard, de David Petersen, duas séries recentes de fantasia medieval, que têm a particularidade de serem protagonizadas por pequenos ratos hábeis com a espada.

A

pesar de as duas séries terem chegado às livrarias americanas quase ao mesmo tempo (Mouse Guard em 2006 e The Mice Templar em 2007), isso não passou de uma coincidência, pois Michael Avon Oeming publicou a primeira história dos ratos templários no seu blog em 1997, para só voltar

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ao projecto em 2003, já com Glass como co-argumentista, enquanto que Petersen começou a trabalhar a ideia durante o liceu, influenciado pelo filme Robin Hood da Disney e pelo universo do jogo Dungeons and Dragons, para voltar a pegar nela já nos seus tempos na universidade, desta vez numa perspectiva “mais próxima das

fábulas de Esopo, em que os animais são mesmo animais”. De qualquer modo, nenhum dos autores acusa o outro de lhe ter roubado a ideia. Ideia essa que, como vimos, não é propriamente original e que Bill Willingham (o criador da série Fables, onde, curiosamente, há uma Mouse Police...)


Mice Templar em aguarela

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Para quem a experiência de leitura não chega, há o RPG, onde se pode viver as aventuras na primeira pessoa

no prefácio ao 1º volume de The Mice Templar, remonta a Reepicheep, o ratinho espadachim das Crónicas de Nárnia, de C. S. Lewis. E a comprovar a boa relação de Oeming e Glass, com Petersen, está o projecto de uma cross-over entre Mouse Guard e The Mice Templar, em que participaria também a Mouse Police, de Willingham, numa história curta destinada a ser publicada em alguma iniciativa de apoio à indústria dos comics e aos direitos dos seus criadores. Mas vejamos um pouco melhor estas duas histórias, tão semelhantes na sua premissa inicial, mas bem diferentes na forma como a desenvolvem, começando pela Mouse Guard, de David Petersen. Projecto independente, escrito, desenhado e editado pelo próprio David Petersen e distribuído pela Editora Archaia, The Mouse Guard foi inicialmente publicado no formato de mini-séries, antes de cada história ser recolhida em livro. Optando por um pouco convencional formato quadrado, a série não teve dificuldade em sobressair no meio das centenas de comics publicados mensalmente, pois o seu formato diferente trouxe-lhe uma maior visibilidade. Como explica Petersen: “como a maioria das lojas espe22 /// BANG!

cializadas têm prateleiras e divisórias com formatos fixos, onde a minha revista não cabia, acabaram por a colocar no balcão, ao lado da caixa registadora, ou em mostruários, e isso funcionou muito bem em termos comerciais. (…) “O primeiro número foi lançado a uma quartafeira, dois dias antes da 1ª New York Comic Con (um dos maiores Festivais de BD americanos, a par com San Diego) e tive vários lojistas que foram ter comigo ao meu stand durante a convenção, para buscar mais comics, pois em dois dias tinham esgotado duzentos e cinquenta exemplares da minha revista. Foi aí que percebi que The Mouse Guard ia ser um sucesso!” A série relata as aventuras da Mouse Guard, uma ordem militar criada para proteger os ratos durante as viagens entre as diversas cidades escondidas, quando têm que atravessar zonas onde ficam muito mais expostos ao predadores naturais, como corujas, cobras, ou doninhas. Ou seja, apesar do

contexto de fantasia medieval, com ratos guerreiros, cidades escondidas e templos subterrâneos, há uma grande preocupação naturalista na forma como os ratos e os seus inimigos são representados e se movimentam, com Petersen a desenhar a partir de fotografias de animais, ou utilizando animais mortos como referência, como na cena do primeiro livro em que os ratos são atacados por caranguejos à beira-mar, desenhada a partir dos caranguejos que Petersen comprou no mercado. Depois das duas primeiras mini-séries, Fall 1152 e Winter 1152, a terceira série, The Black Axe, actualmente em publicação, é uma prequela que conta a história de Celanawe e de como ele descobriu o machado negro, uma arma mítica cujo poder os leitores descobriram na segunda série. Pelo meio, ainda houve espaço para Legends of the Guard, uma antologia em que diversos autores, entre os quais o português João Lemos (como já vimos na última Bang!) prestam a sua homenagem aos ratos de Petersen, escrevendo e desenhando uma história passada naquele universo. O ponto de partida de Legends of the Guard, é o mesmo dos Canterbury Tales, ou de World’s End, um arco de histórias do Sandman de Neil Gaiman, com uma série de personagens reunidas numa estalagem, que contam histórias para passar o tempo, encarregando-se Petersen das páginas de ligação entre as várias histórias desta antologia, premiada na última San Diego Comic Convention, com o Eisner (o mais prestigiado prémio da indústria dos comics, uma espécie de Óscar da BD) para a melhor antologia, elevando para três o número de Eisners ganhos pela série. Mas o sucesso da Mouse Guard não se ficou só pela Banda Desenhada, pois a série deu origem a um premiado jogo de Role Play, criado por Petersen e pelo designer de jogos Luke Crane, que desenvolve o universo da série. Série essa que poderá chegar também ao cinema, pois não faltam estúdios e realizadores interessados nisso. Sangue, tripas, pedaços de ratinhos espalhados pelas vinhetas. Pois é, neste mundo o rato Mickey ia dar-se mal


Se Mouse Guard deu a conhecer David Petersen aos leitores, já Michael Avon Oeming não precisou da série The Mice Templar para isso. Desenhador da popular série Powers, escrita por Brian Michael Bendis, Oeming não é estranho ao género da fantasia, pois foi o argumentista dos primeiros números da nova versão de Red Sonja, a guerreira criada por Robert E. Howard na série Conan. E o mundo em que se movem os ratos templários de Oeming está bem mais próximo do universo de Howard, ou de Tolkien, do que do de Petersen. Se Mouse Guard é uma obra coral, com o protagonismo a ser dividido por meia dúzia de ratos guerreiros, The Mice Templar tem um herói bem definido, o jovem Karic, cujo percurso iniciático acompanhamos ao longo da série, desde que um exército de ratazanas ataca a sua aldeia, matando ou fazendo prisioneiros os seus familiares. O título do primeiro volume, The Prophecy, deixa logo perceber que Karic, apesar da sua aparente fraqueza, é o escolhido pelo Deus Wotan para restaurar a antiga glória da Ordem dos Ratos Templários, que dissenções internas tinham levado à decadência. Prevista para quatro volumes, a série viu no segundo volume Michael Avon Oeming ceder o lugar ao espanhol Victor San-

tos como desenhador principal, de modo a conseguir manter um ritmo de publicação regular, algo que não tinha sido conseguido na primeira série, devido aos muitos afazeres de Oeming. Conhecido nos EUA graças à sua colaboração com Brian Azzarello (100 Bullets) em Filthy Rich, uma novela gráfica que inaugurou a colecção Vertigo Crime, Santos não é estranho ao universo da fantasia, tendo criado uma série muito popular em Espanha, Los Reyes Elfos (cujo primeiro volume foi publicado em Portugal pela Polvo) que se move nas mesmas águas. Curiosamente, por estar ocupado a desenhar The Mice Mais uma vez, a Templar, Santos viu-se obrigado a banda desenhada convidar outros desenhadores esmostra porque é uma das formas panhóis, como Vicente Cinfuende arte mais vivas, tes, para desenhar Los Reyes Elfos… dinâmicas e actuais. Passada num universo de fanTodos nos queixamos do nível rasteiro a que tasia, onde há deuses, demónios desceu a televisão, e até um gato zombie, The Mice o cinema e até os Templar tem uma carga de fantástops de literatura. Mas a BD continua a tico que não existe em The Mouse surpreender, a atrair Guard, do mesmo modo que os cada vez melhores diálogos e a narração têm um peso profissionais, a conquistar públicos muito maior na série de Oeming e maduros e exigentes. Glass do que na de Petersen, em Só a mais profunda que os diálogos são bastante mais ignorância permite que alguém diga o sucintos e não existe um narracontrário. dor. Do mesmo modo, enquanto a condição de ratos é inerente ao comportamento das personagens da Mouse Guard, já a história de The Mice Templar podia perfeitamente ser contada com recurso a humanos, ou a outros animais, em vez dos ratos estilizados de grandes orelhas, criados por Oeming. Entre a sangrenta fantasia clássica protagonizada por ratos, de Oeming, Glass e Santos, ou a fábula para todas as idades criada por Petersen, cabe ao leitor escolher qual a que prefere, sabendo que em ambas vai encontrar ratos guerreiros e uma leitura agradável.

João Lameiras é Mestre em História da Arte pela Universidade de Coimbra. Tem desenvolvido uma vasta actividade no campo da Banda Desenhada, como conselheiro editorial, tradutor, argumentista e crítico para diversas editoras e publicações e é sócio-gerente da Livraria Dr. Kartoon. Escreve com frequência no seu blogue http://porumpunhadodeimagens.blogspot.com BANG! /// 23


“Livros que li amanhã” stão ainda todos nas minhas estantes, mas pertencem às estrelas. Uma pena. Mas lá chegaremos, às estrelas e ao que quero dizer com isto. Desde relatos de um futuro que nunca veio nem nunca virá, passando por previsões certeiras, até às realidades alternativas. Os mais marcantes li-os quando era petiz e reli a cada década. Porque os livros, mais a mais os que falam do futuro (mesmo o de ontem), estão sempre a mudar, a cada década, a cada ano. Alguns deixam de ser ficção. Outros afastam-se cada vez mais do tecido da nossa realidade. Há alguns, e não são poucos, que permanecem esperançosas utopias ou avisos de desastre. A nível de clarividência, de tiro mais ou menos na mouche acerca do que é essa coisa do amanhã, destaco cinco autores. Mas atenção que não creio ser essa pontaria a mais relevante quando se pretende classificar uma obra. Acontece a coincidência de terem sido, de alguma maneira, os autores dos livros que mais me marcaram. Ou talvez não seja apenas uma coincidência – mas isso será matéria para um eventual texto futuro. Os autores são: Philip K. Dick, Robert A. Heinlein, Arthur C. Clarke, Isaac Asimov e William Gibson. Outros se intrometerão, sem dúvida, nesta listagem, porque o futuro, mesmo quando recordado, é mesmo assim.

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Doctor Bloodmoney, or How We Got Along After The Bomb (1965), de Philip K. Dick, publicado na Colecção Argonauta com o título “Depois da Bomba”, foi a primeira vez que vi o amanhã culpar os de hoje pelo que lhes deixa de herança, na forma de uma criança ainda por nascer, voz interior física e metafórica. Dick, tem aliás, uma mão-cheia de títulos que considero dos mais relevantes de toda a literatura, não só da sci-fi. Os Três Estigmas de Palmer Eldritch (do mesmo ano), Ubik (1969), “A Scanner Darkly” (1979) e Now Wait For Last Year, de 1966, (este último não sei se está traduzido para português), são peças seminais acerca de identidade, ensaios delirantes acerca dos vários níveis de realidade, distorção do espaço e/ou da sua percepção (em K. Dick, são, muitas vezes, a mesma coisa), e de viagens no tempo. Já que falo de identidade, tornase impossível, a meu ver, não referir dois distintos canhenhos de Alfred Bester, que não consta da lista de cinco autores que me propus falar, mas cujas obras têm mesmo de ser referidas neste ponto, pelo menos estas duas: “The Demolished Man” (1953), estreia de Bester no formato mais longo, e que lhe valeu um Prémio Hugo; e The Stars My Destination (1956), também publicado com o título Tiger, Tiger (a partir do poema de William Blake). Com reminiscências de O Conde de Monte Cristo (1844) de Alexandre Dumas, estes dois tomos de Bester (em particular o último) afirmam

aquilo que se sabe mas não se tem ainda como comprovar – só nas estrelas nos encontraremos e, até lá, somos prisioneiros. Li-os durante a adolescência e não consigo imaginar melhor altura para tê-lo feito. E falando de tempo e da sua nãolinearidade, é imperativo referir The Timeliner Trilogy de Richard C. Meredith (73-79), obra composta por At The Narrow Passage, No Brother, No Friend e Vestiges of Time; e Up The Line (1969), de Robert Silverberg. Este último li-o na casa dos 20 anos, a trilogia li mais recentemente. São reportórios definitivos acerca da problemática temporal e dos seus paradoxos. Influenciaram sobremaneira obras posteriores, dentro e fora da literatura, como é o caso de outra trilogia, a do Regresso ao Futuro (85-90) ou a série Lost (2004-2010). Enfatizando o carácter stream of consciousness deste texto, regresso a Philip K. Dick e destaco também o Eye in The Sky, de 1957, (Universos Paralelos em português, pelas edições 70) que coloco, a nível temático – sonhos que transformam fisicamente a realidade – e de ambição, ao lado de outra grande obra, The Lathe Of Heaven (1971), de Ursula K. Le Guin. E é impossível falar de Ursula sem referir o mui premiado The Left Hand Of Darkness (1969), sobejamente elogiado pelo escritor e critico literário Harold Bloom, que diz alguns disparates mas neste caso acertou. Ambos os títulos, o de Dick e o de Ursula,


Freelancer. Argumentista, humorista, dramaturgo, realizador, e outra coisa que agora não se lembra mas que tem a ver com música. Gosta muito de torresmos e de viajar no tempo, especialmente às 3.as-feiras. Quando não é 3.a-feira, viaja até à 3.a-feira anterior, ou à seguinte, e depois já lhe sabe melhor. Truques que foi aprendendo com o tempo.

fizeram-me acreditar, por mais de uma vez, que tudo é possível. Ou quase tudo, pelo menos; afinal, não é de desprezíveis manuais de auto-ajuda que estou a falar. Voltando à lista inicial de autores: Um Estranho numa Terra Estranha, de Robert A. Heinlein. Li-o tinha eu catorze ou quinze anos, talvez menos. Foi escrito em 61 e estava tão de acordo com o espírito da época que antecipava em alguns anos o zénite hippie do make love, not war. Isto salvo umas poucas considerações menos libertárias, fruto talvez da vivência militar de Heinlein, mas que só acrescentam motivos de fascínio pelo personagem Jubal Harshaw, que muitos julgam um alter-ego do próprio autor ou, como diria Grant Morrison, um fiction suit. Só tenho pena de não ter lido esta saga de Valentine Michael Smith nos anos 60. Mas foi-me impossível, não só porque ainda não era nascido, mas – principal razão – porque tenho a máquina do tempo na oficina desde os meus oito anos; já se sabe como são os mecânicos. O quanto este livro me influenciou, só o reparei este ano, quando voltei a lê-lo de uma ponta à outra. Felizmente voltei a encontrar Jubal Harshaw em outras obras de Heinlein, como O Gato Que Atravessa As Paredes (1985), que reli recentemente também na edição da Argonauta (em dois volumes), desta feita sublinhando com pasmo e admiração cada demonstração dada por Heinlein de que, por altura da escrita deste quase-policial futurista, estava no pico da sua facúndia. Abro o livro ao calhas e deparo-me com esta pérola Abrem-se as portas a uma senhora porque ela espera que lhas abram. Arthur C. Clarke sabia que iam existir satélites artificiais antes mesmo de eles andarem a cair dos céus em cima de gau-

leses e não só. As suas quatro Odisseias: 2001: Odyssey, 2010: Odissey Two (1982), 2061: Odyssey Three (1987) e 3001: The Final Odyssey (1997), contêm manifestações divinas e uma fé no avanço da Humanidade que chega a ser comovente. Clarke é bem capaz de ser, destes autores que aqui refiro, o mais optimista e, só por isso, já mereceria o nosso obrigado e um reconhecimento profundo do seu enorme talento. Que seja visionário até ao fim e que The Songs Of Distant Earth de 1989 (publicado em Portugal pela Europa-América) seja também uma realidade, connosco a ter possibilidade de redescobrir esquecidas colónias humanas noutras galáxias, em vez de andar a discutir deprimentes Orçamentos de Estado e falências internacionais, tão longe da utopia que, afinal, merecemos. Isaac Asimov. O que seria dos robots sem Asimov? Mais: o que seria de nós, no futuro – que desejo – em que os robots são omnipresentes, sem as Três Leis da Robótica que Asimov elaborou? A imensidão de contos, novelas e romances que dedicou a essa problemática entre as décadas de 50 e 90 são verdadeiros tratados acerca dos seres artificiais que se tornarão nossos semelhantes. São espelhos da condição humana e servem de guia à robótica actual e futura. Se Richard C. Meredith e Robert Silverberg são definitivos no que respeita a travessias temporais, Asimov é-o neste domínio. Por último, nesta lista de cinco que afinal são mais, o pai do cyberpunk, William Gibson. E chamo-o assim com a mesma leveza mas também com a mesma reverência com que chamei – eu e muitos – a Vasco Granja de pai da Pantera Cor-deRosa. Neuromancer, de 1984, quando aliado a Idoru (1996), é um retrato assom-

brosamente próximo do mundo actual. E, malgrado o travão que os dias de hoje parecem determinados em ser, do mundo futuro. Encerro com uma referência a outro autor, que também não está na lista de cinco que me propus falar (nem sei porque é que me dei a esse trabalho, reduzir a cinco este Panteão; devia estar parvo). Falo de Poul Anderson e, em especial, ao seu Brain Wave de 1954, publicado também na Argonauta com o título A Hora da Inteligência. Imaginou Anderson que o nosso planeta estava dentro de um campo de forças que afectava os processos electromagnéticos e electroquímicos do nosso cérebro. Um dia, a Terra saía desse campo e a inteligência de todos triplicava. Ora, isto é que dava um grande jeito. Olhar para o alto pede muito das vísceras, mas conquistá-lo requer cabecinha. E se há coisa que qualquer um destes autores me ensinou, estes e muitos outros que não referi, como Roger Zelazny, Philip José Farmer, Larry Niven e Frank Herbert (como é que eu fui capaz de não referir Frank Herbert e o seu The Godmakers de 1972?), é que não é de mãos nos bolsos e a assobiar para o lado que se ganha um lugar entre as estrelas. Que fiquem os livros na estante mas não fiquemos fadados nós à prateleira. Lá em cima é tudo muito mais estimulante. É a nossa Casa. E vai estar cheia de livros.

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u não sou um charlatão. Tudo começou quando o rapaz da mochila morreu atropelado. Ia mesmo à minha frente. Um pequeno vulto na multidão que ensardinhou pela passadeira. Pneus chiaram, alguém gritou, várias pessoas provavelmente, todos recuaram e só o rapaz continuou. Levava auscultadores. O carro passou como um borrão, o estrondo foi surpreendentemente forte para um corpo tão pequeno, pareceu-me ver uma mochila a rodopiar. E uns auscultadores. oi então que a luz ficou verde para os peões. Acordei do meu devaneio com os vultos a empurrarem-me e a fazerem-se à passadeira. À minha frente ia um rapazito com mochila azul. Os auscultadores enormes que levava na cabeça davam-lhe um ar insólito. Ouviram-se gritos, um chiar de pneus, parei com o coração na boca. Mas o rapaz da mochila continuou. Nem viu o carro que o atirou ao ar. E o estrondo, meu deus, o estrondo. A mochila aberta cuspiu papéis com desenhos coloridos. Fiquei a olhar para o seu corpo torcido sobre as listas da passadeira. Depois rodearam-no gritos, pessoas exaltadas, chamou-se uma ambulância e alguém quis linchar o condutor paralisado com as mãos no volante. Também eu fiquei paralisado na berma ensanguentada do passeio. Tinha acabado de viver um terrível déja-vu. rabalhava há muitos anos num prédio triste da capital. Num quinto andar rodeado de papéis e armários que chiavam com os nossos passos. Alguns dias depois, ao subir no elevador atulhado que se arrastava penosamente, aconteceu outra vez. Um homem de idade indefinida, mais velho que novo, tombou contra a tinta descascada do elevador. Levou as mãos em garra ao peito, depois ao colarinho apertado por uma gravata, e novamente ao peito, com urgência. Não vi o seu rosto, mas estava vermelho, a boca aberta e os dentes cerrados num esgar silencioso. As forças falharam-lhe e deslizou para o chão com as pernas a chutarem as canelas dos que o rodeavam. Novamente gritos. porta do elevador abriu-se. Nem reparei que era o meu piso com as luzes flácidas e o número cinco enferrujado na parede. Dois colegas contornaram-me e saíram. Depois estranharam eu não me mexer, voltaram-se e perguntaram, divertidos, se eu ainda estava a dormir. Não havia gritos. Estava tudo bem. Olhei de soslaio ao redor, o elevador continuava cheio de vultos, todos em pé, ninguém morto no chão. Saí apressado sem olhar para trás. Mentiria se dissesse que trabalhei normalmente nesse dia. Uma ansiedade pegajosa seguiu-me como uma sombra durante todas as horas do dia. No final do dia, quando esperava pelo elevador para descer, cruzei-me com os mesmos colegas. A minha lassidão contrastava com o seu entusiasmo. Perguntaram-me se eu já sabia o que tinha acontecido. Eu não sabia. Um administrativo do décimo andar morrera de manhãzinha, no elevador. Ataque cardíaco, disse um. Se calhar até subiu connosco e saímos mesmo a tempo, disse outro. Riram-se. Senti uma vertigem e o sangue a fugir-me da cabeça. O elevador não havia maneira de chegar. Murmurei uma despedida e desci pelas escadas. Os dois colegas gracejaram elogios à minha condição física e continuaram em cavaqueira sob o foco amarelecido. o dia seguinte descobri quem era o administrativo que morrera. Não sabia o seu nome mas era o homem que, no dia anterior, subira mesmo atrás de mim e penso que até segurara a porta do elevador quando eu correra para o apanhar. À noite tomei um duche demorado e sentei-me em frente da televisão desligada com um copo de leite nas mãos. O que me estava a acontecer? Tivera dois déja-vus? Não, os déja-vus não funcionavam assim. Lera algures que um déja-vu era uma espécie de amnésia com fracção de segundos, em que o nosso cérebro era enganado a pensar que revivia algo. Mas não era isso que me estava a acontecer. Eu soubera que o rapaz da mochila ia ser atropelado segundos antes de acontecer. E o administrativo morrera minutos depois de eu abandonar o elevador. Estaria a enlouquecer?

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urante alguns dias não me aconteceu mais nada do género. Consegui levar uma vida normal entre a casa e o trabalho, no edifício triste da capital, onde durante preciosos minutos uma nesga de sol encontrava caminho, entre paredes e varandas do outro lado do beco, para iluminar um canto da minha secretária. Mas numa sexta-feira chuvosa, quando chegava a casa, voltou a acontecer. Entrei no prédio e passava em frente à porta da D. Mimi quando a vi dar um grito na cozinha e desequilibrar-se para trás. A cabeça de caracóis brancos bateu na esquina do lava-loiça de mármore. Ela tombou como um saco de compras largado sem cuidado. Os óculos de massa saltaram-lhe e deslizaram pelo oleado. Os seus olhos azuis clarinhos, como só os velhos têm, ficaram virados para o tecto. Para minha casa, eu vivo por cima. Vivia. Mas isso agora não interessa. A última coisa que vi foi o seu gato a cheirar-lhe a cara. iquei paralisado nas escadas com a mão tremente no corrimão. Os tímpanos doíam-me com a força do coração a bater no peito. Dei alguns passos até à porta da D. Mimi e bati baixinho. Não queria tocar à campainha. Se ela estivesse morta no chão, não queria que a campainha soasse. Bati novamente. E ela abriu a porta. Ficou feliz por me ver, convidou-me a entrar, ofereceu-me biscoitos, perguntou-me pelo trabalho. Eu entrei, e comi, e respondi a todas as suas perguntas, tentando sempre descobrir se estava a olhar para alguém prestes a morrer. Passado um tempo razoável iniciei as despedidas. Pedi-lhe que tivesse cuidado e, antes de ela fechar a porta, lembrei-me do gato. O Eusébio? Esse malvado desapareceu há dois dias, disse-me, nunca desaparecera tanto tempo, mas haveria de voltar quando tivesse fome ou precisasse de curar as feridas da rua. Em casa não consegui descansar. Passado um bocado deitei-me no chão e encostei a cabeça ao soalho tentando ouvir a D. Mimi em baixo. Silêncio. Já estaria morta? Ouvia-a recolher roupa da janela e falar com uma vizinha. Estava viva. Silêncio novamente, tão longo que fui até à porta dela escutar. Não se ouvia nada. Bati. Bati mais alto. E ela abriu novamente. Desculpei-me dizendo que me acabara o leite. Teria algum que me emprestasse? Não foi fácil para mim adormecer à noite. o dia seguinte acordei a pensar na D. Mimi. Ouvira um grito ou sonhara? Saltei da cama e re-

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peti a rotina, encostei a cabeça ao soalho, silêncio, fui espreitar à janela, ninguém, desci as escadas e tentei escutar à sua porta. Nada. Bati várias vezes. Chamei por ela, alto, pois era uma velha surda, amável, mas muito surda. O vizinho da frente entreabriu a porta. Era o administrador do prédio, tinha as chaves de todos os pisos. Quando o convenci a abrir a porta da D. Mimi, encontrámo-la morta no chão da cozinha, uma poça de sangue fresco já chegava à dispensa e o gato lambia uma pata vermelha com um misto de curiosidade e aversão. gora não havia dúvidas sobre o que me estava a acontecer. Mas porquê a mim? Haveria mais alguém com uma maldição igual? Deixei de comer, e de dormir, e de ter vontade de trabalhar. Meti férias depois de anos sem as gozar e fechei-me em casa. Durante dias só me levantei da cama para ir à casa de banho. Depois voltava e afundava-me num torpor em que minutos e dias se misturavam numa névoa que me adormeceu o corpo, os sentidos, a

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própria alma. Um dia acordei e senti-me recuperado. Nauseado com o meu próprio cheiro, o fantasma que vi no espelho era eu. Pele cinza, barba de vários dias, cabelo oleoso colado à testa. Tive dúvidas se tudo o que acontecera nos últimos dias (semanas?), não passara de um delírio meu. Reparem, a D. Mimi morrera mesmo, mas talvez o choque do falecimento daquela velhinha, que sempre me tratara como a um sobrinho favorito, me tivesse feito imaginar coisas. Talvez ela tivesse morrido e só depois eu tivesse revivido a sua morte. E o administrativo do escritório morrera mesmo? Estaria eu no elevador quando ele morrera e, com o choque, esquecera que assistira à sua morte para, posteriormente, pensar que a previra? A esperança de não ter nenhuma maldição mas estar apenas louco animou-me. Ia tirar tudo a prato limpos. Tomei um duche rápido, fiz a barba, bebi um copo de leite quase azedo e saí com algumas bolachas moles na mão. irigi-me ao hospital. Fui a pé pois incomodava-me estar apertado num elétrico cheio de gente. Cheguei cansado, parei no grande portão verde e olhei para o edifício sombrio. Era ali que as pessoas vinham morrer. Também se vinham curar, mas eram as que morriam que me interessavam. Sentei-me à sombra de uma árvore perto da entrada das urgências. Depois de um bom bocado sem movimento, levantei-me e entrei no edifício. Odiava aquele local, o cheiro a hospital, as batinhas verdes e azuis a passarem de um lado para o outro, os murmúrios tímidos que saem das bocas, o respeito, quase temor, com que os doentes divinizavam os médicos, espécie de derradeiros feiticeiros dos nossos dias. Subi umas escadas onde os enfermeiros se acotovelavam para fumar às escondidas e deambulei por um corredor cinzento. Por sorte era o dos doentes terminais. Em cada porta que parei, estivesse aberta ou fechada, entrevi uma morte. A velhinha cujo cancro na bexiga já se espalhara por todo o corpo e morreria naquela mesma madrugada. O antigo ciclista que mijava sangue e ia definhar mais alguns dias até morrer nos braços dos filhos chorosos. O homossexual que, depois de décadas com sida e tantos amantes enterrados, sucumbia finalmente à maleita e morreria completamente só. Uma porta sem vidros, guardada por um negro fardado, separava-me da ala pediátrica. Mas o segurança nem me interpelou. Julgo que o meu ar desconsolado o terá convencido de que eu tinha de passar por aquela porta e ele

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não me devia parar. Há tanta morte no mundo das crianças, mesmo quando as paredes estão decoradas com autocolantes amarelecidos de ursinhos e vagas figuras de filmes da Disney. O bebé que caíra de um segundo andar estava no primeiro quarto, o médico assegurava aos pais aliviados que o pequeno era forte e ia sobreviver, mas eu soube que morreria dentro de dois meses, depois de uma inesperada recaída. A rapariga, quase ainda uma menina, cujo cancro no sangue a fazia definhar, estava no quarto seguinte. O seu irmão mais novo, com alguma compatibilidade, ia dar-lhe medula, mas de nada valeria. Os gémeos atropelados à porta de casa. O que estava pior ia sobreviver, mas o outro entraria em coma para morrer em poucos dias. Uma enfermeira gorda olhou-me desconfiada e perguntou o que fazia eu ali. Não tinha tanta compreensão quanto o segurança. Ela ia morrer dentro de quarenta anos, na sua própria cama, ele apenas dentro de dois, de ataque cardíaco fulminante. O mundo é injusto. Caí para o lado com falta de ar. Quis fugir dali para fora mas a cabeça pesava-me toneladas e só conseguia olhar para o chão, deitar-me no chão, chorar. Agarraram-me, abriram-me a camisa, deitaram-me numa maca. A médica que me observou ia morrer dentro de seis anos num aparatoso acidente de carro. O enfermeiro espanhol que me deu um copo de água ia ser assassinado dez anos depois em Caracas. Afinal devia ser venezuelano. Dedos apalparam-me o braço e enfiaram-me uma agulha. Dedos de uma mulher que se suicidaria por amor dentro de dezassete anos. uando reuni força para me pôr de pé, fui-me embora sem despedidas ou agradecimentos. Como um ladrão que foge do seu crime. Não levantei os olhos do chão mas mesmo assim as mortes acompanharam-me até à rua. E no caminho para casa entrevi os últimos estertores de todos os peões e automobilistas com que me cruzei. Ao subir as escadas para o meu apartamento conheci as mortes dos vizinhos que estavam no prédio. Até as das crianças que só morreriam dentro de muitas décadas. O que fazer quando as mortes dos outros nos visitam dia e noite? Mesmo com janelas cerradas, luzes apagadas e o corpo enterrado sob cobertores, as visões perseguiam-me. Queria matar-me. Mas se o fizesse, não deveria ter já sentido essa morte iminente? ugi para os montes, nem me lembro como ou de que modo, para viver como um animal. Dormi

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deitado na caruma sob árvores retorcidas, bebi de regatos selvagens, comi o que apanhei do chão. As visões desapareceram mas apenas porque ninguém vivia perto de mim. E viver como um selvagem de roupas rasgadas e corpo esquálido satisfazer-me-ia se um dia não encontrasse, no chão entre as ervas, uma beata. Nunca fumei, parece-me um acto repulsivo. Mas aquela beata, aquele vestígio de humanidade, fez-me parar. Ajoelhei-me. Peguei nela respeitosamente como a uma relíquia. E vi a morte de quem a tivera na boca muitas semanas atrás. Uma prostituta quarentona cujo amante alcoólico a estrangularia dentro de três anos. Talvez o leitor pense que essa nova visão me tenha empurrado em direcção a uma forma ainda mais profunda de loucura, um passo definitivo e sem retorno na alienação para com o mundo. Não. Pelo contrário. Apercebi-me de que não valia a pena fugir. Encontrei a minha paz. Voltei para casa. om os anos aprendi a controlar o meu dom. Deixei de lhe chamar maldição. Refiz a minha vida em torno dele. É difícil fazer dinheiro com a hora da morte das pessoas. Quem quer pagar para saber isso? Mas guardando para mim a informação desse cerrar final dos olhos, mesmo assim sobrava muito no que eu entrevia nas visões e que podia vender a quem me procurava, no pequeno apartamento que aluguei numa zona fina da cidade. Ao assistir à morte de quem se sentava à minha frente, normalmente via o local da morte, eventuais fotos nas paredes ou mesinhas de cabeceira, os rostos de quem estava à volta, alianças nos dedos, por vezes ouvia até palavras, frases, despedidas, confidências. Com o tempo, aprende-se a destilar muita informação desses fugazes segundos de visões. Sim, minha senhora, vale a pena lutar pelo seu marido pois ainda vão ser muito felizes juntos... Oiça, amigo, demita-se do emprego que odeia e arrisque nesse novo projecto pois vejo muito dinheiro no seu futuro... Não desespere, menina, o seu marido não vai voltar, mas vai conhecer um homem maravilhoso e ter com ele uma menina e um rapaz. Pois é, misturei-me com os charlatões e vendedores da banha da cobra. Mas com uma diferença crucial: tudo o que eu dizia era verdadeiro. E essa diferença fez de mim um homem profundamente rico e realizado. Só há uma morte que não entrevejo. A minha. E esse é o meu maior dom, o oblívio, poder acordar todos os dias acreditando que viverei até ao dia seguinte.

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á não preciso de passar perto de alguém para entrever a sua morte. Já não preciso sequer de tocar num objecto que esse alguém tenha tocado. Basta-me ver uma foto desfocada numa revista, uma imagem fugaz na televisão, uma voz distante na rádio. O dom foi-se aprimorando de tal forma que consigo entrever não só a morte de quem escreveu algo que eu leia, como a morte de quem lê algo que eu escreva. Sabe o que isso quer dizer, caro leitor? Sim, já entrevi a morte de cada pessoa que leu estas linhas. Mas é da sua morte em particular de que lhe quero falar. Para lhe provar que tudo o que digo é verdade. Este texto já foi publicado em diferentes locais na internet e em dois jornais de temática esotérica. Mas eu sei que você o está a ler numa revista Bang! que arranjou na Fnac. Neste momento vai na página 29. Se, como eu, quer continuar a ter o dom do oblívio, aviso-o de que deve parar de ler aqui. ão parou? Muito bem, espero que não se arrependa, apesar de saber que isso irá acontecer. Vou tentar ser o mais directo possível: entrevejo claramente o momento da sua morte, caro leitor. Mais uma entre as milhares que já desfilaram pelos meus olhos. Lamento imenso, mas a sua morte está muito mais próxima do que você gostaria. Dentro de poucas semanas, uma dorzinha que tinha desaparecido vai regressar e necessitar de ser observada por um especialista. Depois começará o calvário. O óbito será exactamente dentro de treze meses. Olhe para a sua agenda e planeie bem o tempo que lhe resta. Treze meses a contar de hoje e nem mais um dia. Lamento. É o conselho de um amigo. E eu não sou um charlatão.

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Luís Corte Real é editor da Saída de Emergência. Adora livros em geral e literatura fantástica em particular. BANG! /// 29


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SDE – Este é um Portugal que não conheço. O que nos podes dizer sobre estas histórias e sobre esta época? LFS – São essencialmente histórias de pulp fiction – ficção popular, sobre detectives e fantasia e fantástico na tradição do Leiber, do Hammett e do Howard – ambientadas em territórios portugueses ou de língua portuguesa – o continente, as ilhas, o Brasil, as excolónias –, escritas por autores portugueses, que entre as décadas de 30 a 60 gozaram de uma enorme popularidade e das quais hoje pouco se conhece. No seu conjunto, pode dizer-se que apresentam um Portugal alternativo, um Portugal de fantasia, habitado por todas estas estranhas personagens e onde aconteciam constantemente fenómenos espantosos. SDE – Não fazia ideia que tínhamos esta tradição. Como é que surgiu? LFS – Basicamente por importação, como grande parte dos nossos movimentos literários. António Assunção, o principal editor português do género, ficou fascinado pelo pulp americano quando viveu nos Estados Unidos e quis trazê-lo para Portugal. Nos anos 30 despediu-se do jornal para quem trabalhava, convenceu Edgar Silveira a investir no projecto e juntos montaram toda uma indústria nacional de produção e publicação de pulps que chegou a ser conhecida no estrangeiro. Nos tempos áureos – sensivelmente entre o acabar da Segunda Guerra e os

finais da década de 50 – publicavam-se mais de trinta títulos mensais, sobre temáticas tão distintas como histórias de guerra (muito se batia nos alemães, naquele tempo), de aviação, aventuras em alto-mar, bastante fantasia heróica e sobrenatural, sem contar com as inúmeras novelas destinadas ao público feminino. SDE – Apenas com autores nacionais? LFS – Sim, refiro-me apenas ao que era feito pelos portugueses – ou melhor, dizendo, lusófonos, pois os autores brasileiros passariam a ter uma importân-

“[histórias que] apresentam um Portugal alternativo, um Portugal de fantasia, habitado por todas estas estranhas personagens e onde aconteciam constantemente fenómenos espantosos.

cia fundamental nas décadas seguintes. A ficção estrangeira – nomeadamente, americana e espanhola – também ia sendo traduzida, mas está fora do âmbito desta pesquisa. SDE – Então, que autores eram esses? O que escreviam? E vamos poder encontrá-los na antologia? LFS – Os autores provinham das mais variadas origens. Alguns exerciam exclusivamente esta profissão, mas eram raros, pois o pagamento era baixo e atrasado, e o ritmo de edição não era obviamente igual ao do mercado americano. Era normal que acumulassem esta actividade com um emprego principal, ou um negócio. A grande maioria trabalhava no jornalismo, pelo que a transição não era difícil. Por vezes, ia buscarse talento dentro de casa, à própria editora – e Assunção era um especialista no assunto, pois não só promovia concursos internos como convencera a própria esposa a contribuir para quase todas as suas revistas. Ana Sofia Casaca foi sem dúvida uma das apostas fortes do género, com uma produção na ordem das centenas de contos, e não é por acaso que a antologia contém, perto do início, um dos seus contos mais famosos, a “Expedição dos Mortos”, que é também uma ficção lovecraftiana (a relação entre Casaca e Lovecraft é explicada no livro), e também praticamente termina (se não contarmos com aquele texto “escandaloso” do Roger Bester) com ela. Aliás, confesso que fiBANG! /// 31


quei verdadeiramente incomodado com o segundo conto, “Noites Brancas”, o que, para quem já leu tanto terror, foi uma surpresa pessoal. SDE – Quando é que foram publicados? LFS – O primeiro nos anos 40, o segundo pouco após o Ano Negro.

talvez o seu conto de despedida. Fomos também capazes de incluir Tiago Rosa, com o “Inconsciente”, não obstante o facto de quase toda a sua obra ter sido destruída por um motivo ou outro... Quem mais? As nossas ilhas estão bem representadas: “A Ilha” do madeirense João Henriques fala sobre assombração demoníaca e “Segundo Sol” do açoriaSDE – Esse Ano Negro é intrigante, no Ruy de Fialho é um divertido conmas já voltamos a ele. Fala-nos de fronto entre um grupo nazi e um agenoutros autores que podemos enconte português no meio do Alentejo. A trar no livro. “Noite do Sexo Fraco” é outra fantasia LFS – Bem, temos o Artur de Carvalho, heróica, mas essa acabou sendo incluída com o primeiro conto do bárbaro Vale- mais pelos comentários do Vasquez

rian que publicou em português, depois do sucesso nos EUA – um bárbaro bastante inspirado no Conan, e que chegou a ser lido pelo Howard. Temos o Guilherme Trindade, com o famoso conto em que mata o detective “Valente”, o qual gozava de tanto apreço pelos leitores que praticamente o obrigaram a ressuscitá-lo. Destaque para a Sónia Louro, com o “Pirata por um Dia”, o conto inaugural da série sobre o pirata Duarte (e uma pena enorme que não tenhamos conseguido obter os direitos das suas lendas de Jambudvipa). Continuando nas sagas marítimas, não podemos esquecer A. M. P. Rodriguez, cuja real identidade se desconhece, de quem escolhemos “Pena de Papagaio”, 32 /// BANG!

Morgado sobre os cortes da censura do que pela originalidade da história. SDE – Não falámos de todos, pois não? No índice, ainda encontro um Orlando Moreira e um Marcelo Galvão. LFS – Ah, dois grandes nomes dos dois lados do Atlântico, criadores das personagens mais famosas da pulp fiction lusitana: Moreira com o seu famosíssimo justiceiro Sentinela, e o brasileiro Galvão com o pistoleiro Maxwell Gun – este, talvez o melhor western escrito em português. Do Moreira, não só contamos a história do Sentinela e o seu impacto na sociedade portuguesa, como conseguimos obter, junto dos

filhos do autor, um texto inédito que possivelmente seria demasiado arriscado para a época. Por sua vez, Galvão era uma presença indispensável, pela importância que a pulp brasileira acabou por ter no nosso país na viragem dos anos 70. Tenho pena de não ter podido incluir uma das histórias do seu Dr. Arkham Ashton, mas nunca apareceram em Portugal. SDE – Parece-me que temos uma selecção bastante diversificada. Essa foi uma preocupação da escolha?

LFS – Sim, sem dúvida. Encontramos diversificação a todos os níveis, quer nas épocas de publicação (desde os primeiros tempos do género, nos anos 30, até ao final dos anos 70, quando para todos os efeitos já tinha desaparecido) quer nos temas – do western à ficção científica – e até mesmo a nível de autores, pois, não obstante a época e o género ser dominado pelos homens, temos uma representação ímpar e invejável por parte das autoras. Quis tornar-se a antologia numa mostruário do género e do que este foi capaz de alcançar. Mas outros critérios andaram a paripasso com a diversidade, em particular a qualidade e a relevância. Qualidade de escrita e enredo – contos


com uma componente “pulpica” bastante vincada, por assim dizer, em detrimento, por exemplo, de novelas românticas ou escândalos de ocasião – e relevância para os nossos tempos – contos que ainda hoje consigam ser lidos com interesse, com temáticas ou abordagens modernas, avançadas naquela era. Este último factor foi deveras importante. Não queríamos um livro enfadonho, académico, com histórias datadas ou ingénuas que limitassem o interesse para os leitores actuais. Queríamos transmitir a emoção do pulp. Daí que a antologia resultante seja substancialmente diferente das outras (poucas) que existem sobre o tema e que, francamente, com a notória excepção da “Voz do Povo”, são ilegíveis pelo abismo de sensibilidade literária entre os dias de hoje e aquele passado. SDE – Como é que dizia o outro académico, o Matias? «Os clássicos ficam para sempre...» LFS - «Se os clássicos são eternos, a ficção popular identifica uma geração». É bem verdade. E normalmente, desaparece com ela.

tencia aos pais e avós e por isso interessava-lhes pouco. Depois, foi uma questão de deixar o tempo e o esquecimento actuarem. SDE - Mas qual o motivo deste corte abrupto? LFS - Bem, os principais motivos e consequências são explicados em maior detalhe na antologia, mas basicamente tratou-se de uma reacção do público, e por conseguinte do governo, à crescente intervenção política desta literatura. Do público, não por discordar necessariamente das mensagens mas por que a intervenção surgiu de forma indecorosa - reacção que por sua vez também foi explorada e incentivada pelos orgãos de comunicação. Do governo, por que era incómoda. Publicouse então uma lei que vetava ao esquecimento: fortalecia-se o controlo dos conteúdos, exigiase uma licença especial de prazo limitado, faziam-se rusgas às

gráficas… foi um período curto mas intenso que travou toda uma indústria. Ventura Matias chama-lhe o Ano Negro e, para os efeitos da antologia, adoptouse essa designação. SDE - Mas a literatura era assim tão intervencionista? LFS – Raramente o foi. A pulp fiction era o que sempre foi, entretenimento, diversão. Claro que havia insinuações e duplos sentidos e comentários escondidos sobre acontecimentos e personalidades correntes – mas essas também as havia nos outros géneros e meios de comunicação. O que a pulp se atreveu a fazer, num dado momento, foi levantar-se e apontar o dedo de forma inequívoca. Reagiu o público, a medo, por incompreensão, reagiram os poderes instituídos, apanhados de surpresa. Acredito que só então perceberam algo que qualquer escritor, ou outro criador, sabe desde que apresen-

SDE – Foi isso que aconteceu à pulp fiction? É a razão pela qual pouco se conhece sobre o tema? LFS – Houve um corte abrupto, no final dos anos 60, após o qual voltou a ser literatura exclusivamente vocacionada para crianças e jovens, essencialmente baseada em obras estrangeiras. Perdeu-se toda uma tradição de autores e personagens lusitanos, que já abordavam temáticas mais adultas. Também havia uma questão de moda, pois os estrangeiros abordavam temas diferentes, eram mais sofisticados e interessantes, e a pulp fiction, para as jovens gerações de 60/70, per-

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ta a primeira obra a público: o poder da ficção – a que é bem concebida e desnuda a nossa posição na vida de uma forma que nos esclarece ou envergonha –, é superior a qualquer notícia, a qualquer denúncia, e espalha-se com mais força e rapidez. SDE – Falemos agora do processo de criação. A antologia tem estado a ser prometida há vários anos, mas só agora consegue vir a público. Sei que o trabalho de pesquisa foi moroso e difícil, o que nos obrigou a sucessivos adiamentos. Podes falar-nos um pouco sobre isso? LFS – Claro. Tudo começou com a descoberta, em 2007, de um exemplar da Falcão Lusitano, a revista mais vendida de Assunção e penso que a única que se manteve durante toda a sua carreira. Era o número de estreia do Gato Pardo do Orlando Moreira – o herói que este aceitou criar para Assunção depois do desaparecimento misterioso de Silveira, o editor da revista “Sentinela” –, facto que era anunciado em letras garrafais na capa: “Um novo vingador corre as ruas de Lisboa”, “Pelo criador do Sentinela”, e coisas assim. Não fazia a mínima ideia de quem fosse o Sentinela, mas comecei a ler e encontrei uma escrita cativante, adulta, bem estruturada e moderna, como se tivesse sido escrita nos dias de hoje. A história terminava 34 /// BANG!

num cliffhanger inesperado mas o meu amigo não tinha o número seguinte, pelo que comecei à procura em alfarrabistas. Não o encontrei (a não ser mais tarde, na impressionante colecção do Daniel Tavares) mas descobri outras revistas da época – as Histórias de Além Mar, Ás de Espadas, Senda do Crime... “Isto é pulp fiction!”, foi o que pensei, “E escrita por portugueses!”. Quanto mais procurava, mais autores e revistas ia encontrando. Até ao ponto em que pensei que alguém devia recuperar este fenómeno das garras da História... SDE – Muitas horas passadas nas bibliotecas, então?... LFS – E não bastaram. Um dos grandes problemas do Ano Negro foi o Estado ter decidido que o género tinha uma natureza sensível e portanto remeteu todo o espólio das bibliotecas públicas para a Torre do Tombo, para ser liberto passados cinquenta anos. Se procurarem pela Falcão Lusitano, pelo Sentinela e por todas as outras revistas, não vão encontrar nada no catálogo da Biblioteca Nacional. Só no final desta década, se a lei não for revertida entretanto, é que todas essas revistas vão começar a ser libertadas. O que me valeu foram as colecções particulares e o facto de os vários coleccionadores irem mantendo contacto entre si. Por outro lado, como os exemplares são bastante cobiçados, há quem estabeleça um con-

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trolo firme sobre os alfarrabistas, pelo que se torna num golpe de sorte conseguir encontrar seja o que for neste circuito. Sim, este conjunto de circunstâncias infelizes conseguiu afastar a pulp fiction lusitana da nossa atenção. Espero que a “Anos de Ouro...” sirva ao menos para despertá-la. SDE – É caricato pensar em todas aquelas revistas juvenis aprisionadas em arquivos bafientos, ao lado dos documentos realmente importantes. Não te faz lembrar aquelas séries passadas nas prisões americanas, com alguém ingénuo e inocente a ser enfiado numa cela de um criminoso duro? LFS – Faz-me pensar de imediato numa história, em que todos os heróis da pulp fiction lusitana teriam sido despachados para uma dimensão paralela e estavam a lutar para sair. E como não confiavam de imediato uns


nos outros, pois poucos se cruzavam nos contos do passado, formavam alianças, lutavam entre si, enganavam-se, tudo para tentar perceber quem os enfiara ali e o que estava a acontecer-lhes. Coitado do Pequeno Bravo Tenente, que ia ter dificuldades em se impor por causa da estatura (o anão da “Guerra dos Tronos” comia-o vivo) e o professor Alves que não se cuidasse com a sua postura de sabichão, que o Valente davalhe uma boa coça. E no dia da libertação prometida, encontrariam Lisboa e Porto e Coimbra totalmente diferentes... muito diferentes do que conheciam. Conseguiriam voltar a integrar-se? Temos espaço para heróis nos dias actuais? Eis uma história que ainda gostava de escrever. Ou que alguém escrevesse. SDE – Talvez para o segundo volume da antologia, se os leitores assim permitirem. Ficaram muitos contos para trás, não foi? LFS – Os suficientes para mais alguns volumes, sim. Há muitas personagens que só afloramos de passagem, outras que nem foram mencionadas. Lembrome de duas ou três sequências do Espectro da Noite bastante divertidas, e sem dúvida que Ana Casaca precisava de um livro só para ela. Mais uma vez, não é material que esteja facilmente acessível – nem sequer online, não existe praticamente nada – pelo que esta seria talvez a única forma de o conhecer. SDE – Esta, ou enveredar por uma pesquisa de vários anos... LFS – Não vos recomendo... Na verdade, acabei por ter sorte, pois encontrei três obras antigas, dos anos 70/80, que já tinham feito muito do trabalho principal. Ventura Matias e Vasquez Morgado permitiram-me ter o enquadramento genérico de que precisava, bem como uma selecção preliminar dos contos (a “Voz do Povo” do Morgado é uma antologia fabulosa), e a autobiografia da Ana Casaca é simplesmente deliciosa e repleta de pormenores, ainda que seja tão fantasiosa que nunca sabemos exactamente quando está a dizer a verdade. O trabalho restante foi preencher as lacunas. Não queria limitar-me a escolher histórias, queria descobrir mais sobre os autores e as suas vidas. Essa foi a principal razão da demora: querer dar alguma carne a um nome, a um pseudónimo. A história da pulp lusitana está repleta de tantas peripécias (e alguns enigmas por resolver) que quase merecia um livro sobre ela.

SDE – Que tipo de enigmas? LFS – O que aconteceu ao Edgar Silveira? Quem tramou o Assunção e publicou o conto que despoletaria o Ano Negro? Tinha de ser alguém muito chegado... Algum sócio descontente? A própria mulher, por ciúmes da Rodriguez? Porque era amante do Bester? Terá o Assunção desconfiado de algum caso entre ela e o Silveira e mandado-o matar, sendo esta a vingança dela? E quem era a Rodriguez, afinal? Além das ligações com alemães e aliados durante a Segunda Guerra, contadas pela própria Casaca, e insinuações que o seu negócio do vinho do Porto era na verdade uma fachada para contrabando e espionagem. Ah, temos matéria para muitas páginas... SDE – Mas infelizmente aqui esgotámos o espaço desta entrevista. Alguma mensagem final para os leitores? LFS – Sim. Quisemos ser fiéis à época. O pulp não classifica apenas o tipo de histórias mas também, ou principalmente, o material em que eram impressas – papel de baixa qualidade, que amarelece rapidamente e que se estraga com o manuseio; uma impressão descuidada, cheia de erros e composição. Tudo no pulp parece efémero, para consumo imediato. Talvez por esse motivo, quando se encontram pérolas, a vontade de preservá-las e colocá-las a par da grande literatura é enorme. Ao tentar transmitir esta experiência de leitura, optou-se – como aliás Morgado já o tinha feito – por facsimilar as revistas ou colectâneas em que os contos apareceram, juntamente com ilustrações de época, anúncios, notas do editor, ao invés de simplesmente transcrevê-las para uma composição moderna... mantendo assim as histórias pulp no ambiente pulp, onde pertencem, e conseguindo no processo um livro com um visual espantoso.

Luís Filipe Silva escreveu quatro romances (O Futuro à Janela recebeu o Prémio Caminho de Ficção Científica 1991) e publicou dezenas de contos em edições lusófonas e estrangeiras (Espanha, Dinamarca, Sérvia, E.U.A.). Também organizou as antologias “Por Universos Nunca Dantes Navegados” com Jorge Candeias e “Vaporpunk” com Gerson Lodi-Ribeiro. BANG! /// 35


Lutava, com todas as minhas forças, contra o abanar da carruagem. Contrariava o fechar das pálpebras lembrando-me de episódios passados em que acordara repentinamente, atraindo para mim a atenção dos outros passageiros que escondiam os risos ao verem o fio de baba que me escorria pelo queixo. Apesar de tudo, nem as recordações dessas vergonhas me valeram e acabei por adormecer duas paragens depois de ter apanhado o metro. Foi uma viagem de cabeçadas no ar e consequentes tentativas de disfarçar um sono de noites mal dormidas e rotinas proletárias. Normalmente, o solavanco das paragens despertava-me o suficiente para ir vendo os nomes das estações que surgiam para lá das janelas da carruagem. Eram nomes estranhos os que se davam às estações de metro e, mesmo desperto, não compreendia o seu sentido pelo que, na minha ignorância e falta de curiosidade, os dava como adquiridos. Para mim eram apenas conjuntos de letras, alguns difíceis de ler, que ficavam para trás a cada viagem até finalmente associar um ao meu destino. 36 /// BANG!

Desta vez, enquanto as estações se anunciavam, deixei-me ir num sono profundo e sem sonhos pois nunca tivera a oportunidade de aprender a tê-los. Acordei com um toque no ombro. Era o condutor. Talvez fosse um revisor mas os meus olhos ensonados e a minha atenção adormecida não me permitiram distinguir. Então, disse ele, chegámos ao fim da viagem. Adormeceu ou quê? Não respondi porque não havia nada para responder e para além disso eu era homem de poucas palavras. Olhei pela janela e as paredes sujas e sem azulejos ou pinturas indicavam que estávamos no fim da viagem, numa estação sem nome e sem rosto. Levantei-me muito rapidamente mas antes de perguntar como poderia voltar atrás, o funcionário do metro alertou: Ó homem não é preciso assustar-se! Veja lá que ainda perde as suas coisas! E apontou para algo no chão, aos meus pés. Cá de cima parecia um envelope normal igual a tantos outros que já vira mas aquele nunca o tinha visto e para o provar disse em voz alta que não era meu.

Como não é seu? Perguntou o revisor (tinha-lhe visto um daqueles alicates de picar bilhetes meio enfiado no bolso). Quando cheguei estava no seu colo. Mais uma vez não respondi. Estava cansado, doíam-me os músculos de ter estado o dia todo a separar lixo e só queria ir para casa. Agachei-me e peguei no envelope. Quase nem o senti com os meus dedos calejados do trabalho manual de uma vida. Sou funcionário numa estação de reciclagem onde a quarta classe me permite apenas separar lixo. Estou na passadeira do metal mas, mesmo com luvas, as toneladas que já movi endureceram-me as mãos e esmagaram-me os músculos. Nem olhei para o envelope, dobrei-o e pu-lo no bolso de trás das calças. Olhei para o homem e, sem sorrir, perguntei como voltava para trás, de volta à estação que perdera. Cheguei a casa uma hora e vinte minutos mais tarde que num dia normal. Era Inverno e o atraso fez com que achasse a casa mais fria do que nos outros dias. Despi-me o mais rápido que pude e vesti o pijama. Por cima vesti um robe gasto pelo uso e dois pares de meias. Fiz tudo isto às escuras. Primeiro para poupar, segundo porque vivia ali há mais de trinta


anos e se não conhecesse aquela casa de olhos fechados é porque ela não era verdadeiramente minha. Liguei o fogão e aqueci uns restos do fim-desemana. Aproveitei e coloquei as minhas mãos perto da chama. O calor era bom mas retirei-as pouco tempo depois. A temperatura localizada lembrava-me o frio que sentia no resto do corpo. Comi os restos reaquecidos sem grande vontade, quase por obrigação, e deitei-me assim que terminei. O relógio indicava quase meia-noite e, apesar da sesta no metro, adormeci mais rápido que uma volta completa do ponteiro dos segundos. Acordei com um barulho estranho. Era impossível ter sido o despertador e para além disso ainda era noite cerrada. Levantei-me e senti um estranho e anormal frio. Quando dei o primeiro passo, vidros enterraram-se na carne nua do meu pé fazendo-me gritar. Esqueci o frio e agarrei o pé. Com lágrimas nos olhos sentei-me na cama e acendi a luz da mesade-cabeceira. Disse merda baixinho. O sangue escorria pelo meu pé e tinha uma cor vermelha muito escura, quase preta. O vidro da janela estava partido e os cacos, onde me cortara, espalhados pelo chão. Levantei-me e coxeei até à casa de banho. Tive o cuidado de não pisar mais

n e nhum vidro e evitei olhar para o tijolo que provocara o desastre. Quando terminei de limpar a ferida e fazer um atamancado penso já era manhã. E a luz do sol, apesar de fraca, deu-me forças para enfrentar o pesadelo da noite. Varri os cacos e, finalmente, peguei no tijolo. À sua volta, preso com um elástico, estava um papel, amarrotado do choque e do aperto, e sujo do pó. Li o papel devagar, com a dificuldade de uma juventude com poucos estudos. Depois de ler pensei um bocadinho no assunto e descobri que já esperava algo parecido. Tinha de pagar o que devia senão deitavam fogo à casa e davam-me de comer aos cães. Eram estas as palavras que me tinham partido a janela e, até ver, me iriam destruir o futuro. A culpa era minha. Quem me mandara meter no jogo? Naquele maldito jogo de cartas de vão de escada que só me trouxera azar e preocupações. Devia mais de 1000 contos, ainda na moeda antiga, ao Sr. Júlio. Um malfeitor de esquina que organizava as cartadas aos fim-de-semana num barracão clandestino. A dívida já ia para lá de uma mão cheia de meses e, como eu deixara de aparecer, a paciência do Sr. Júlio parecia estar a esgotar-se. Amargurado, deitei o tijolo fora. Dali a uma hora apitava a sirene e teria de entrar ao trabalho. Um cansativo e estúpido trabalho, mal pago e que mal dava para viver quanto mais para pagar dívidas de jogo

maiores que todas as minhas posses somadas. Estava sem vontade para ir trabalhar por isso vesti o robe e desci ao café. Ignorei os olhares e perguntei à Dona Amélia se podia usar o telefone pois estava doente e tinha de avisar o patrão. Telefonei e ouvi mais do que falei: Que assim não podia ser. Que eu fazia falta. Que se eu não queria trabalhar havia quem quisesse. Que só eu é que me lembrava de estar doente naquela altura do ano. Que ai de mim que faltasse no dia seguinte. Que afinal de contas que doença era aquela tão repentina. Apesar de ele não ver, fui acenando a tudo que sim e no final disse apenas que deveria ser do tempo mas que amanhã estava lá nem que piorasse. O patrão desligou-me o telefone na cara e a Dona Amélia disse que não era nada, que a ensaboadela que eu levara mais o meu aspecto já eram paga suficiente. Subi novamente e tomei um duche rápido de água fria que não queria gastar gás, já bastava a conta da água. O plano seria poupar o que pudesse e entregar essa pequena quantidade ao Sr. Júlio. Talvez ele me aceitasse o pagamento a prestações e não tivesse que largar fogo à casa e deitar-me aos cães. Ponderei fugir mas o único destino seria a rua por isso aguentei o frio do chuveiro e sequei-me com a força que os meus músculos ainda tinham para me aquecer. O meu armário não tinha muitas opções, por isso decidi-me pela roupa que deixara na noite anterior em cima da BANG! /// 37


cadeira. Vesti a camisa e a camisola em modo automático, sem pensar no que fazia, mas quando peguei nas calças senti um volume no bolso de detrás. Só quando retirei o envelope amachucado é que me lembrei do que acontecera no dia anterior, naquela malfadada viagem de metro que parecia ter iniciado toda esta situação em que me encontrava. Virei e revirei o envelope. O papel parecia caro. Por momentos pensei que talvez tivesse dinheiro lá dentro mas era fino demais para isso. Fiquei ainda mais esperançado enquanto o abria pois em vez de dinheiro talvez fosse um cheque. Mas não. Tinha apenas um papel branco com uma única frase. Li-a de uma só vez: Quando escrever uma frase receberá 10€. Aquilo não fazia sentido algum. Li com mais cuidado não me tivesse escapado algo. Quando escrever uma frase receberá 10€. Não. Não fazia sentido nenhum. E agora tinha a certeza que o estúpido do revisor se teria enganado. O envelope já lá devia estar no chão e ele simplesmente viu mal. Olhei para a frase uma última vez. A letra, à mão, era elegante e larga como se quem a tivesse escrito possuísse todo o tempo do mundo e uma confiança igualmente extensa. Conformado, amachuquei o papel e deitei-o no caixote de lixo da cozinha, junto ao tijolo. O dia estava mais frio do que parecia. O pé, ferido pelos cortes, doía-me e obrigou-me a ficar em casa a pensar nas amarguras da vida. A pensar como foi que envelhecera tão rápido e chegara aquela idade sem nada de que me orgulhasse. Sem família. Sem passado. Sem futuro. Deitei-me com o sol e dormi uma noite sem tijolos. O despertador acordou-me e tirou-me da cama. Bebi um copo de leite até meio e esfarelei um pão duro com o resto do líquido. Sopas para um cavalo cansado. Vesti-me e saí para apanhar o metro, desta vez sem revisores inoportunos. Chegado ao trabalho, quando ia para os balneários para vestir o uniforme a recepcionista informou-me, com uma careta de pena, que o patrão estava à minha espera. Cabisbaixo, despreparado para mais um sermão, entrei no seu escritório pequeno de tanto tabaco. Sem cumprimentos, pergunta-me se já estou melhor. Aceno que sim e ele entregame um papel. Diz-me que não deram conta do recado no dia anterior e que sobrou trabalho para hoje. Que a culpa é minha e que ele não vai ser responsabilizado por isso. Informa-me também, ou melhor ordena, que tenho de lhe passar uma declaração. Aceno novamente. Para mim é igual. 38 /// BANG!

Pergunto apenas se vou receber o mesmo no final do mês pois essa é a minha única preocupação. Dá uma daquelas gargalhadas cheias de desdém e diz que sim, enquanto ele me deixar trabalhar ali continuarei a receber. Como fico calado, sem resposta, entrega-me uma caneta e dita o que tenho de escrever. Com uma letra insegura escrevo, devagar, a seguinte frase: Declaro que estive doente e não vim trabalhar no dia 27 de Dezembro do presente ano. Tens de assinar, disse-me ele chamando-me de burro. Assino. Sem despedidas manda-me ir trabalhar pois é para isso que ainda me paga. Eu fui trabalhar. O dia passou lentamente. Os meus colegas estranharam a minha postura mais derrotada que o normal. Não lhes dei atenção. Pensava apenas no que aconteceria dali a uns tempos, quando não tivesse o dinheiro todo para pagar ao Sr. Júlio. Não sabia se ele seria capaz de me mandar matar mas a ameaça do tijolo fora agressiva e dei por mim a pensar que não queria morrer. Decidi que iria hoje falar com ele. Prometer-lhe a quase totalidade do meu ordenado desse mês. O que ganhava era pouco mais de um décimo do que devia mas talvez isso fosse o suficiente para ele me dar mais tempo para pagar o resto. Quando a sirene tocou, alegrei-me um pouco. Tinha um plano para resolver a situação. Voltei sozinho para o metro e, desta vez, não me sentei. Fui em pé toda a viagem, junto a uma janela e entretido com a mancha que se formava pela velocidade da carruagem. Perto da minha paragem, sinto alguém a tocar-me ao de leve no ombro. Olho e uma senhora de meia-idade que viajava com uma criança pela mão, pede-me desculpa e aponta para o chão. Desculpe mas deixou cair um envelope, dizme ela. Sigo-lhe o dedo com os olhos e reparo num envelope aos meus pés. Uma réplica quase perfeita do que me acontecera com o revisor. Ainda abri a boca para dizer que não seria meu mas a cor e aspecto do envelope impediram-me. Era igual ao outro. Agradeci e baixei-me para o apanhar enquanto as minhas costas reclamavam. Decidira falar com o Sr. Júlio antes de ir para casa mas a abertura do envelope, à saída da estação do metropolitano, baralhou-me os planos. Dentro do envelope estava uma nota de 10€. Parecia nova, acabada de sair de uma máquina que faça notas. Rodei-a entre as mãos, esfreguei-a com a ponta dos dedos e senti-lhe a rugosidade quase imperceptível. Cheguei a


levá-la ao nariz, o que era ridículo pois eu não saberia distinguir, pelo cheiro, uma nota falsa de uma verdadeira. Mas a verdade é que queria, com todos os sentidos possíveis, perceber aquela nota. Qual a razão para ter aparecido como que por magia num envelope aos meus pés numa carruagem do metro. Exactamente da mesma forma como a anterior estranha mensagem. Ainda para mais, seria possível que estivessem relacionadas? Os 10€ prometidos e estes 10€ recebidos? Não me lembrava de ter escrito nada até que, como se tivesse levado um murro, me lembrei da frase que o meu patrão me mandara escrever. Concluí que teria de ser alguém do trabalho. Olhei em volta mais por desespero que por inteligência. Aquilo era claramente um jogo. Uma partida que me quiseram pregar por me verem abatido e triste. Provavelmente no dia seguinte os meus colegas pediriam o café à borla e lá teria eu de desembolsar a nota. Sorri pela primeira vez em semanas. Eram uns gajos porreiros os meus colegas e, ao fim ao cabo, os meus únicos amigos e familiares. E foi isso que me levou a adiar a conversa com o Sr. Júlio, não queria que os meus problemas me estragassem o resto do dia. Passei pelo supermercado e comprei alguns enlatados. Fome era das necessidades que não podia ignorar. Viver uns meses de sardinhas e salsichas seria um mal menor que teria de suportar. Quando cheguei a casa já tinha anoitecido. Liguei a luz da escada e, quando abri a porta de casa, a luz iluminou um rectângulo no chão da entrada. Poisei o saco e, com o nervosismo do reconhecimento, agarrei um envelope que parecia estar à minha espera. A boa disposição passou a leve indignação. Uma coisa era uma brincadeira inocente mas trazerem aquelas brincadeiras para minha casa é que já se aproximava do abuso. Apesar da indignação abri o envelope com cuidado não fosse ele conter notas. Mas apenas tinha uma folha de papel onde consegui ler: Quando escrever um parágrafo receberá 100€. Demorei mais tempo a ler esta frase pois tive dificuldades na quarta palavra. Depois de reler várias vezes apercebi-me que nem sequer sabia muito bem o que raio era um parágrafo. Estava confuso. Aquilo já não parecia uma partida dos meus colegas. A letra era igual à anterior. E o papel mantinha o aspecto de ser caro. Tirei a nota da carteira e observei-a uma vez mais. Era real. Só não a usara para pagar as compras porque estava convencido que os meus colegas a pediriam no dia seguinte. Mas esta nova frase não falava

de 10€. Falava de 100€ e essa quantia já faz mossa. Pensei sair de casa para tentar resolver aquele mistério mas passava das 21h. Para o que queria já não dava. Comi qualquer coisa rápida e fui dormir, tentando por um lado esquecer os misteriosos envelopes, por outro, o constante barulho que o vento fazia ao passar pela janela atabalhoadamente remendada. No dia seguinte despachei-me a correr, como se pudesse dessa forma acelerar o tempo, e fui para o trabalho. No metro, atento a todos os pormenores, não reparei em ninguém com envelopes ou que me observasse discretamente. Também outra coisa não esperava. Ainda não tinha feito o que a frase pedia. Enquanto separava o lixo, coloquei definitivamente de lado a hipótese de aquilo se tratar de uma partida. Ninguém falou comigo sobre a questão e muito menos me pediram os 10€ de volta. O mistério continuava mas eu estava empenhado em descobrir que tramóia era aquela. Saí mais cedo para almoçar com a desculpa de que ia ao médico buscar a baixa do dia anterior. Mentira. Precisava de passar numa papelaria. Entrei numa que conhecia e onde, em tempos mais folgados, comprava um jornal desportivo de vez em quando. Bom dia, disse eu. Precisava de uma caneta e um caderno. Para escrever, acrescentei como se as minhas intenções não fossem claras. A senhora fez-me uma série de perguntas que fui respondendo com o senso incomum que tinha sobre aquelas coisas. Sei lá, pode ser liso, é só para escrever. Sim, de argolas está bem. Pode ser azul. Isso é que já não sei. A senhora que escolha aí a mais barata. Bic? Sim, pode ser. Paguei com a nota de 10€. Não considerei um gasto desnecessário, se tudo corresse bem até poderia ser um investimento. Aproveitei e, depois do troco, perguntei o que era um parágrafo. Acrescentei que sabia que era de escrita e dos livros mas que não sabia precisar. A empregada pareceu baralhada. Disse qualquer coisa que não percebi e terminou a dizer que era um conjunto de frases e que se mudava de parágrafo quando se queria falar de outra coisa. Não fiquei muito convencido mas aquilo teria de servir. O resto da tarde arrastou-se ainda mais que a manhã. Quando a sirene do fim de dia se desligou não me despedi de ninguém e fui para casa. Ia tentar escrever o tal parágrafo e ver o que acontecia. Com tudo isto já nem me lembrava do Sr. Júlio por isso surpreendi-me quando o encontrei à porta da rua da minha casa.

Então, então, nem sequer te dignaste a aparecer depois do meu lembrete? Disse-me ele enquanto um homem, cujo rosto me pareceu familiar, se veio colocar atrás de mim com os braços cruzados. Expliqueilhe que era para ter ido falar com ele mas não tinha dado. Não deu? Perguntou-me ele. E que mais não vai dar? Continuou mas como eu não respondi, o Sr. Júlio acenou para o homem atrás de mim que me agarrou o pescoço com força. Se pensas que estou a brincar estás muito enganado. Já tratei de trastes muito mais espertos e valentes que tu. Ou me pagas o que deves até ao final do mês ou juro que te parto as pernas! A ameaça parecia sincera. Quase não conseguia respirar com o brutamontes a apertar-me o pescoço e foi necessário ele afrouxar as mãos para eu responder que pagaria tudo no prazo acordado. A brutalidade da situação tirara-me a coragem de lhe pedir um adiamento ou pagamento por prestações. Eu pago! eu pago! Foi a última coisa que disse antes dos dois se afastarem. Nervoso e amedrontado, subi as escadas até ao meu apartamento. As chaves, apesar de serem apenas duas, multiplicavam-se e esquivavam-se-me por entre os dedos. Abri finalmente a porta, entrei e fechei-a atrás de mim. Não acendi as luzes, desta vez não por poupança mas por medo. Fui à janela e afastei a cortina. A rua estava vazia. Merda. Merda. Merda. Merda. Merda. Disse-o várias vezes. Ora alto. Ora baixo. Ora para dentro. Ora para fora. Lamentei-me durante algum tempo pois era a única coisa que, naquele momento, me restava fazer, até que me apercebi que ainda agarrava o saco que trouxera da papelaria. Sem pensar duas vezes, sentei-me na mesa da cozinha e abri o caderno à minha frente. Abri-o ao calhas, sem me dar ao trabalho de começar pelo início. Pequei na caneta e comecei a escrever. Ou melhor, comecei a tentar escrever. Ainda não escrevera a primeira palavra e tive de acender a luz porque caíra a noite. Nasci à 55 anos. Não me lembro de muita coisa de quando era pequeno. Os meus pais morreram quando era pequeno e fiquei sozinho e tive de ir para uma escola para rapazes sem pais. Batiam-me na escola e eu não gostava de andar lá mas tive de andar porque não tinha outro sitio para ir. Quando terminei, ardiam-me os olhos, doía-me a cabeça e suava-me a mão que segurava a caneta. Teriam passado, à vontade, umas duas horas e utilizara várias páBANG! /// 39


ginas. Todas calcadas e rascunhadas a tinta azul. Cada vez que achava que acabara, relia e riscava tudo com raiva. Várias vezes furei o papel com a ponta da caneta furiosa. Contudo, a versão final deixara-me satisfeito. Fazia-me sentido o que estava escrito e acima de tudo era verdade. Assim que pousei a caneta e fechei o caderno senti um cansaço enorme que só era suplantado por uma tristeza desesperada que parecia ter atingido quantidades máximas cá dentro. Não me lembro de me ter despido ou adormecido. A memória seguinte foi de um despertar agreste pelo alarme do costumeiro despertador. Sexta-feira. Infelizmente era o último dia da semana. Face ao que acontecera no dia anterior estaria melhor a trabalhar, sem pensar, longe de casa e de tudo. Nem me preocupei em tomar banho. Desde que acordara, há alguns minutos, que a história dos envelopes me impulsionava a vontade, a curiosidade e, apesar de não o admitir, também a ganância. Antes de sair de casa dei uma volta por cada uma das divisões mas não encontrei nada que se assemelhasse a um dos misteriosos envelopes. Quebrou-me a ausência da descoberta mas era algo que esperava. Fui para o trabalho em piloto automático. Todos os meus sentidos estavam alerta para o chão que pisava e as minhas mãos, na viagem de metro, viajavam também para os bolsos da minha roupa num corrupio expectante. A viagem decorreu sem sobressaltos. Frustrado, dirigi-me ao balneário para vestir a farda. Assim que abro o cacifo, um envelope desliza num voo rasante para o chão. Sinto o coração a agitarse no peito e olho em volta. Apenas estava o Artur a vestir-se, a alguns cacifos de distância, enquanto assobiava uma melodia alegre que antecipava o fim-de-semana. Agachei-me como se fosse arrumar os sapatos no fundo do cacifo e apanhei o envelope. A suavidade do papel despertou em mim uma agradável lembrança. Sentei-me no banco e observei o objecto. Era igual aos anteriores. De uma tonalidade cremosa e indefinida, de um corte elegante e, desta vez, mais volumoso. Abri-o com o vagar com que se cuida de alguém que gostamos. O envelope continha dez notas de 10€. Novas. Brilhantes. Perfeitas. Contei-as várias vezes. Voltei a guardá-las no envelope que coloquei no bolso de trás das minhas calças que por sua vez pendurei num cabide do cacifo. Fui para o tapete rolante com um sorriso que, a custo, lá surgiu por entre as rugas. A viagem para casa foi ocupada por contas mentais. 100€ eram vinte contos na moeda antiga que apesar de ser bastan40 /// BANG!

te nem sequer serviam como sinal para o que estava a dever ao cabrão do Sr. Júlio. Por isso, o bichinho que me remoía cá dentro era a possibilidade de outro envelope. A ideia assustava-me tanto como me atraía. Não fazia ideia do que viria a seguir a um parágrafo e escrever aquele fora como escrever uma porra dum livro inteiro, mas quando cheguei a casa, depois de espreitar de uma esquina se não tinha ninguém a fazer-me uma espera, passei o apartamento a pente fino à procura da próxima mensagem. Não encontrei nada o que me aumentou a ansiedade. Dei por mim a falar alto, a perguntar onde poderia estar o maldito envelope. Entrei e saí de casa várias vezes. Mas o chão do hall estava sempre vazio. Ponderei ir andar de metro, sem destino, mas achei a ideia

arriscada demais pois ainda me cruzava com o Sr. Júlio e o outro brutamontes. Quando a noite se abateu sobre mim, quer em luminosidade quer em temperatura, tomei uma decisão. Era fim-desemana e eu de certeza que não iria ficar ali à espera de uma visita do Sr. Júlio. Os 100€ não serviam sequer para sinal e arriscava-me a que me partissem uma perna ou ainda algo pior. Fui ao armário e limpei o pó a uma mala velha que comprara em tempos. O pó fez-me comichão no nariz e quando a abri um espirro bloqueou-me os sentidos numa explosão à altura do rosto. Quando reabri os olhos um envelope repousava, indiferente, no fundo da mala. A sua delicadeza leitosa contrastava com o fundo sujo e gasto. Os meus dedos calejados tremeram na sua direcção e sem me sentar abri-o. Continha uma folha apenas. Quase nem precisaria de ler para saber o que tinha escrito: Quando escrever um capítulo receberá 1000€. Mais, o facto de o envelope estar numa mala que eu ou, dada a quantidade de pó, outra pessoa qualquer não abria há mais de 10 anos, não me causou qualquer estranheza. Aquela frase hipnotizava-me para lá de qualquer suspeita. Ainda mais resoluto, coloquei alguma roupa na mala e em último lugar pus o meu material de escrita. A caneta e o caderno cujas sucessivas tentativas de parágrafo lhe haviam reduzido as folhas para metade. Desci as escadas às escuras e passei no café da Dona Amélia. Admirada, ela perguntoume onde eu ia de mala feita e preocupação nos ombros. Tentei disfarçar mas acabei por confessar que precisava de férias e que ia passar uns dias fora. Na ombreira da porta, com o reclame luminoso a aprofundar-me os abismos por baixo dos olhos, disse-lhe que qualquer coisa me podia ligar para a Esmeralda. Ela assentiu com a cabeça mas manteve o olhar apoquentado. A Esmeralda era uma pensão onde noutros tempos eu pernoitara com Esmeraldas desta vida. Era o tipo de local onde algum dinheiro nos permitia aliviar a tesão aliviados também de perguntas e más línguas. Fiz o percurso a pé, com a mala a pesar-me no braço e a frase a pesar-me na cabeça. Já passava da meia-noite quando um recepcionista jovem e ensonado me deu a chave de um quarto individual no segundo andar. Antes de subir pergunteilhe, com desinteresse fingido, o que era um capítulo. Um capítulo? Perguntou ele, então isso é aquilo dos livros. Dos livros?


Sim, é cada uma das partes. Os livros estão divididos nisso. E o tamanho? Insisti eu. Tamanho de quê? Então, dos capítulos, pois claro! Respondi enervado pela desatenção do rapaz. Sei lá, depende, umas quantas páginas. Sem mais nada para dizer, subi as escadas. Cada degrau a antecipar cada página que eu sabia não ser capaz de escrever. O quarto era pequeno. A cama ocupava quase todo o espaço e, para minha frustração, não tinha uma secretária onde pudesse escrever. Puxei a mesa-de-cabeceira de modo a que sentado na cama pudesse usá-la para escrever. Recuperei o caderno da mala e, indiferente à madrugada, peguei na caneta. Nada aconteceu na primeira hora. Fiquei ali, quieto e mudo, a lutar com a folha branca. Finalmente, a caneta começou a mover-se mas quando comparada com o avançar da noite era como se estivesse parada. Arrancava, a custo, cada palavra do fundo da minha mente. As poucas que existiam estavam lá encerradas e desconheciam quando ou como deviam apresentar-se à minha mão que, insegura, escrevinhava. O ar abafado do quarto, empestado de sexo esquecido e perfume barato, ocluía-me os poros da pele que, sufocados, choravam um suor pegajoso e desconfortável. Por cada palavra que escrevia, rasgava uma folha. Por cada folha que rasgava, envelhecia um ano. Por cada ano que envelhecia perdia mais um minuto. Por cada minuto perdido a lua distanciava-se de mim na direcção do horizonte roubando-me o pouco magnetismo que me permitia conservar a caneta nos dedos num vaivém marulhado de escrita. Depois de muitas horas rasgadas e folhas perdidas, num momento de raiva, rebentei a caneta ao meio e a tinta de um azul negro explodiu-me nas mãos, rosto e roupas. Comecei a chorar e as lágrimas, com laivos azulados, deslizaram pela superfície plástica do verso da contra-capa do caderno. Não tinha mais folhas, não tinha mais caneta, não tinha mais palavras. Tinha apenas um nó na garganta e um desespero que me afunilava a perseverança. Olhei em volta e reparei que o reflexo dourado de sol ainda imberbe pulava de partícula de pó em partícula de pó enchendo o quarto de luz fresca. Inspirado, peguei na caneta despedaçada e dirigi-me para a parede mais distante que, de frente para a janela, era tingida de um branco iridescente transformando-a na maior folha que eu já tinha visto. Iluminado, recomecei a escrever. Riscos ao acaso numa tentativa infantil de palavras. Enquanto empurrava a caneta contra a parede esfa-

relava-se estuque que dançava pela divisão fazendo companhia ao pó luminoso. Alguém bateu à porta. A minha mão, que assumira o controlo do meu corpo, não me deixou atender. Continuei naquele ritmo ininterrupto de rabiscos desconexos. Haveria de encontrar um capítulo cá dentro e esparramá-lo naquela parede. Haveria de deixar um testemunho para os próximos hóspedes. Eu sei escrever! Este capítulo que aqui lêem vale 1000€! O bater na porta intensificou-se e uma voz abafada chegou-me aos ouvidos: Rebenta com essa merda! Um estrondo anunciou a chegada de farpas e pequenos pedaços de madeira que se reuniram ao estuque e ao pó numa vertigem de detritos fotónicos. Nem olhei. Continuei a escrita diabólica e sem sentido. Após um momento, durante o qual escarafunchei um ponto final de tinta derramada, alguém me agarra pelo colarinho. As letras fogem-me do campo de visão e caio de costas no chão. O rosto do Sr. Júlio surge-me de cima como uma visão celestial. Mas tu enlouqueceste?! Que raio estás a fazer, pergunta-me ele com a raiva anestesiada pela incredulidade. Um capítulo, respondi eu enquanto sorria para a parede que me surgia gatafunhada e desfocada por trás do Sr. Júlio. O quê? Um capítulo para te pagar o que devo. Levanta-o!, ordenou, e umas mãos enormes elevaram-me do chão. Vou-te perguntar uma única vez. Onde está o meu dinheiro? Querias fugir sem pagar?, berrou tão perto de mim que senti o impacto de cada palavra na minha face. Sorri e apontei para um envelope que estava no chão, junto à porta. O Sr. Júlio afastou-se, pegou no envelope e abriu-o com rispidez. Retirou do seu interior um pedaço de papel que leu devagar. Mas estás a gozar com a minha cara? O medo assistiu-me pela primeira vez e apenas respondi. Mas eu escrevi tanto... Foda-se. O gajo passou-se. Parte-lhe as pernas e mete fogo nesta espelunca. Isto vai ensinar os outros a pagarem tudo a tempo e horas. As mãos largaram-me e caí, mais uma vez, no chão, amparado apenas pelos restos da porta e os pedaços de estuque. No mesmo instante uma dor lancinante obriga-me a gritar já que uma barra de ferro me fracturara o osso da perna. O segundo impacto quase me rouba a consciência mas ainda cheiro a gasolina que deitam sobre mim. Com um derradeiro esforço arrastome na direcção do papel amachucado que o Sr. Júlio deitara ao chão. A dor é excruciante e

quando estico o braço para o papel, o ar implode em labaredas e calor que tudo consomem. *** Não acho justo, disse Calíope com uma voz melódica mas trespassada por exagerado ultraje enquanto se afastava da margem do lago onde o seu irmão ainda sorria para as chamas que consumiam o quarto do distante motel. O jovem gesticulou sobre a água que lhe devolveu um rosto encaracoladamente malicioso. Ora irmãzinha, se é justiça que pretendes queixa-te ao Pai. Ele há-de gostar de saber que andas a fazer apostas sobre mortais. Perante o silêncio, ele continuou. Agora tens de admitir que aquilo que ele escreveu não vale nada. A tua inspiração só lhe trouxe a loucura e temo que a tua beleza tenha o mesmo efeito em mim. Eu sei. As minhas cartas apenas lhe acicataram a necessidade de escrever e a inspiração de nada lhe serviu. Mas continuo a dizer que não foi justo. Ele não teve tempo para terminar o que começou. Respondeu Calíope ignorando o gracejo. Nisso concordamos, respondeu-lhe o jovem com um sorriso no rosto. O tempo dele chegou ao fim e a minha paciência também. Reclamo a minha vitória e exijo o pagamento. Tem calma meu querido irmão. Tal ansiedade parece-me demasiado antecipada. Terás tu tido mão no fatídico desfecho do pobre mortal? Perguntou a Ninfa. Por quem me tomas? Algum trapaceiro sem alma? Apenas os guio a Hades, não os mato! Vamos, não te faças de difícil! Se não querias perder não tinhas apostado de início. A jovem deixou cair o pergaminho que trazia na relva verdejante e aproximou-se lentamente de Hermes. A cada passo resvalava-lhe a toga desvendando um corpo divinal. Ele abraçou-a e deulhe um beijo que, contudo, não foi correspondido. Então? Também não pagas as tuas dívidas? Perguntou ele maldosamente. Se quiseres podes fechar os olhos. Prometo ser rápido. Num misto de resignação e desprezo, Calíope entreabre os lábios e entrega-se à paixão fogosa e célere do seu meio-irmão.

Pedro Vicente Pedroso nasceu há 30 anos em Lisboa onde vive actualmente com a mulher, a filha e o cão. É farmacêutico e encontrou nos livros e na escrita um complemento para a rotina diária dedicada aos medicamentos. Este conto será a sua primeira publicação pela Saída de Emergência. BANG! /// 41


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SAÍDA DE EMERGÊNCIA: Foi considerado o evento literário do ano e os direitos de adaptação para filme foram vendidos ainda antes de o manuscrito estar terminado. O que cativou tanto os leitores na sua obra A Passagem? JUSTIN CRONIN: Penso que tudo se reduz ao facto de os leitores gostarem de uma boa história – personagens pelas quais se interessam, um enredo que as faz continuar a virar páginas, uma escrita que torna as cenas vívidas. Mas também penso que o livro aborda certas ansiedades contemporâneas, de mudanças climáticas a terrorismo e ameaça de uma pandemia global. É um mundo assustador, e os leitores gostam de exorcizar os seus medos através da leitura. SDE: Quão difícil foi combinar o horror, a ficção científica, o terror apocalíptico e o thriller, reforçados por referências literárias importantes e mitos gregos e bíblicos? Foi algo que surgiu naturalmente ou foi difícil prestar uma homenagem a cada um destes géneros e combinar todas as suas influências literárias? JC: E não esquecer as influências ocidentais! Posto dessa forma, parece que foi algo muito difícil mas na verdade a escrita decorreu de modo muito natural.

SDE: Uma dos pontos fortes do romance é o modo como torna os virais cientificamente plausíveis. Como é que evoluiu o background científico do romance? Foi tão fácil de lidar quanto as questões filosóficas e literárias? JC: Uma das minhas intenções originais era a de recriar o mito do vampiro sem magia. Não sou particularmente fã de magia na ficção. Parece algo demasiado fácil. Se permitirmos a magia num texto, qualquer coisa pode acontecer, julgo eu, e penso que um bom romance é aquele que surge dentro de limites bem definidos. Também considero que a magia foi em larga medida ultrapassada pela ciência no nosso tempo. Qual é a diferença entre o meu iPhone e uma varinha mágica? Não muita. SDE: Um dos momentos mais comoventes da primeira parte de A Passagem é a relação afectuosa semelhante a pai e filha entre Amy e Wolgast, que ecoa temas como a perda, luto e amor entre pais e filhos presente na peça de Shakespeare, Rei Lear. Na essência, A Passagem é uma história sobre a humanidade e a fragilidade dos laços humanos? JC: É sobre a sua fragilidade, mas também a sua força. Qualquer romance sobre o apocalipse deve também dar lugar ao que pode ser salvo, e ao que vale a pena ser salvo, da humanidade. BANG! /// 51


SDE: O seu romance também reflecte nas temáticas da morte e imortalidade. A imortalidade dificilmente poderia ser considerada uma coisa boa num mundo em ruínas como descrito na sua obra. Pode haver finais felizes para imortais? JC: Finais felizes humanos, não. Muita da riqueza e cor da vida vem do facto de ser finita, e nós sabemos isso. A morte faz com que as coisas tenham mais importância. SDE: Os leitores já estão fartos de vampiros graças a séries como a da Stephanie Meyer e todas as obras derivativas que se seguiram ao sucesso dessa autora. No entanto, algumas obras maduras e muito interessantes surgiram em anos recentes, como Deixa-me Entrar de John Ajvide Lindqvist ou A Estirpe de Guillermo Del Toro e Chuck Hogan. E agora A Passagem. Estes livos descrevem vampiros muito mais assustadores e perturbantes. Quanto mais os receamos, mais sentimos fascínio por eles? JC: Os livros da Meyer não me interessam porque não foram escritos para mim – foram escritos para jovens mulheres. O que é perfeitamente justo. Também tenho uma filha adolescente. Mas as histórias de vampiros

nunca irão desaparecer. Cada geração tem as suas histórias de vampiros, e eu tenho as minhas. Mas também li muitos livros de ficção apocalíptica quando era criança. Nasci em 1962 pelo que cresci durante a Guerra Fria. Essa foi a grande influência na minha escrita. Simplesmente usei vampiros como um meio para atingir um fim. SDE: Os cientistas e militares são os responsáveis pelos eventos apocalípticos presentes em A Passagem. Ambos estão a tentar criar o súpersoldado, um conceito também presente em outros livros, filmes e séries televisivas. Tal reflecte uma preocupação pela nossa realidade? Estamos condenados a correr para salvar as nossas vidas, como as suas personagens, num mundo que controla cada vez mais os movimentos dos seus cidadãos? 52 /// BANG!

JC: As coisas parecem estar a evoluir nesse sentido, embora eu acrescentasse que as forças que nos controlam, pelo menos no mundo desenvolvido, são bem mais subtis e complexas. Como sabe o Facebook que estou interessado num serviço ou produto em particular? Rendemo-nos todos os dias, cada vez mais, à gigante máquina de marketing da cultura de consumismo. Provoca-me arrepios. SDE: Sendo editora de uma revista de literatura especulativa e trabalhando numa editora que publica esse tipo de literatura, tenho consciência da fricção entre o género especulativo e a a literatura considerada mainstream. Parece ainda haver bastante preconceito contra a ficção científica, o horror ou o a história alternativa. No entanto, A Passagem conseguiu a difícil propeza de combinar sucesso popular com uma boa história de horror e com vampiros. Lev Grossman também conheceu o sucesso com o seu romance The Magicians, fantasia à Bret Easton Ellis. Está consciente da fricção entre estes dois mundos literários? JC: É difícil não nos apercebermos dessa fricção, e sim, tenho consciência dela. Mas não é uma discussão na

qual goste de me envolver; parece-me um pouco disparatado. Há ficção que é escrita meramente para entretenimento, e ficção que é considerada arte, mas a maioria da ficção cai num meio-termo entre ambos. Eu gosto de uma obra bem escrita, mas também gosto de um bom enredo. SDE: Pode nomear escritores de ficção especulativa que tenham influenciado a sua obra A Passagem? JC: O livro mais influente terá sido Earth Abides de George Stewart, publicado na década de 40. Quando era criança, era, sem dúvida, o meu livro favorito. SDE: O que podem os leitores esperar do que resta da vida de Amy nos volumes seguintes de A Passagem? JC: A sua vida é longa. Muito mais está para vir.

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SDE: Podemos esperar uma visita sua a Portugal algum dia? JC: Adoraria! Por favor, alguém me convide.

Obrigado pela entrevista que concedeu à revista Apesar Justin Cronin, nascido em Nova Inglaterra, nos Estados Unidos, concluiu a sua formação em Harvard e no Iowa’s Writer Workshop. Anteriormente escreveu “Mary and O’Neil”, que venceu o PEN/Hemingway Award e o Stephen Craine Prize, entre outros títulos. “A Passagem” é o primeiro livro de uma grandiosa trilogia que entrou directamente para os lugares cimeiros das tabelas de vendas do “New York Times” e foi considerado um dos dez melhores romances do ano da sua publicação (2010) pela revista “Time”.


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erdade seja dita, todos nós gostamos de um agradável apocalipse à hora do chá. Saber que não vamos acabar sozinhos, mas sim na agradável companhia de biliões e biliões de outros seres humanos. Que tudo o que detestamos vai ter um final condigno, na melhor das vezes catastrófico. O nosso patrão há-de agonizar juntamente com os nossos colegas. A sogra, o vizinho, e o fiscal das finanças não vão ficar para trás a rirem-se, a gozar o pratinho da nossa íntima agonia. Já pensaram como será o mundo depois de nós? Sem jogo da bola ao domingo, com as ruas repletas de trogloditas, sem rádio aos altos berros, sem escarros nos passeios ou pastilhas elásticas coladas ao banco onde nos vamos sentar? Ah, o silêncio...a paz...a calma de um mundo sem nós....o ruído do vento a passar de mansinho entre as órbitas vazias dos crânios abandonados no interior das carcaças ferrugentas dos carros. Todo este planeta pós-catástrofe seria um local ideal para se viver, não acham? Apenas nós e aqueles que nos são caros, como únicos sobreviventes num mundo vetado ao abandono. Como novos Adãos, de mãos dadas com as nossas esculturais companheiras, perante um pôr-do-sol cheio de promessas. Desenganem-se. Infelizmente as coisas não vão correr pelo melhor. Acabou-se a aspirina. A coca-cola bem fresquinha. A electricidade e os almoços pré-cozinhados. Quando vos der um treco não vai haver ninguém que vos ajude com uma massagem cardíaca. Mesmo que sobrevivam à desgraça, a vossa esperança de vida conta-se em poucos anos. Uma cárie mata. Uma gripe mata. Uma apendicite mata. Em resumo: This is the end, my friend... Sem contar com os monstros que nos esperam ao virar da esquina, porque esses, como toda a gente sabe, são bem mais resistentes do que nós. Shit happens. E quando acontece, meus

amigos, acontece da pior maneira. Por isso é natural que os fins-domundo sonhados pela literatura de horror nada tenham de paradisíacos. Stephen King, no seu monumental THE STAND (1978) matou quase toda a população do mundo com uma gripe viral e depois deixou os sobreviventes à mercê dos demónios. Robert McCammon num outro apocalipse ainda superior em qualidade ao do King, SWANN SONG (1987) deu cabo do mundo num apocalipse nuclear e deixou os poucos sobreviventes irradiados a errar num continente de cinzas em busca do último silo controlado por... (pois então, por demónios)...

São quase indestrutíveis. Imortais. Pérfidos quanto baste. E todos aqueles que mordem, passam a pertencer à alcateia. Para sempre e mais um dia. São doze ao todo, como já vos disse. No final deste primeiro volume foi preciso uma bomba nuclear para dar cabo de apenas um deles, e isso com extremo prejuízo. Justin Cronin apareceu de pára-que-

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Agora chegou a vez de PASSAGEM de Justin Cronin que promete ser ainda mais maciço, pois trata-se apenas do primeiro volume de uma prometida trilogia. Uma vez mais um vírus fica à solta, uma vez mais os militares (malvadas criaturas) são os responsáveis, mas desta vez o vírus provoca a imortalidade aliada à fotofobia, à perda de consciência individual, à dependência do ferro que só existe no sangue dos outros. Uma experiência dá para o torto numa base militar secreta, como costuma acontecer um número invariável de vezes. Doze psicopatas infectados dispõem-se com alegria a infectar o resto do mundo.

das no meio da literatura fantástica. Até ali, o prado dele era o mainstream. E nota-se, porque toca demasiado na tecla dos estados de alma dos seus personagens. Mas apesar de umas quantas longueurs na narrativa, A PASSAGEM é, ou vai passar a ser, mais um ícon na cronologia dos finsdo-mundo onde todos nós gostamos de molhar o pãozinho. As cenas de horror, quando Cronin a elas se dedica, são arrepiantemente deliciosas. Desafio-vos a não estremecer na cena da biblioteca municipal abandonada. Até aqui não sabia que os vampiros gostavam de ler, ou pelo menos conviver com as páginas bolorentas dos livros. Um romance para ler devagarinho, na noite tempestuosa, quando o vento sopra e as ramagens tamborilam nas portadas das nossas janelas. Divirtam-se.

BANG! /// 53


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explosão luminosa era uma maneira diabólica de se ganhar a vida. Ao fechar a porta atrás de si, Underhill estava furioso. Não fazia grande sentido usar um uniforme e parecer um soldado se as pessoas não davam valor ao que fazia. Sentou-se na cadeira, recostou a cabeça e puxou o capacete por cima da testa. Enquanto esperava que o dispositivo amplificador aquecesse, lembrou-se da rapariga que encontrara no corredor exterior. Ela olhou para o dispositivo e depois para ele, com desdém. - Miau – foi tudo o que a rapariga disse. Porém, Underhill sentiu-se atingido em cheio.

54 /// BANG!


O que pensava que ele era – um palerma, um preguiçoso, uma nulidade fardada? Será que não sabia que por cada meia hora de explosão luminosa, ficava no mínimo dois meses no hospital a recuperar? Naquela altura, o dispositivo já estava quente. Sentiu o quadriculado do espaço em seu redor, sentiu-se no meio de uma imensa grelha, uma grelha cúbica, cheia de nada. Lá fora, no vazio, podia sentir o terror doloroso e oco do próprio espaço; sentia também a terrível ansiedade que a sua mente encontrava de cada vez que se cruzava com o mais pequeno vestígio de poeira inerte. Enquanto descontraía, a solidez reconfortante do Sol, a rotação regular dos planetas familiares e da Lua soaram dentro de si. O nosso sistema solar era tão encantador e simples como um relógio de cuco antigo, repleto de tiquetaques familiares e sons tranquilizadores. As pequenas e estranhas luas de Marte balouçavam-se em redor do seu planeta como pequenos ratos frenéticos, no entanto, a sua regularidade era uma confirmação de que tudo estava bem. Muito por cima do plano da eclíptica, sentia meia tonelada de poeira a deslizar mais ou menos no exterior da zona de viagens humanas. Ali não havia nada contra o que lutar, nada que desafiasse a mente, que rasgasse a alma viva e a separasse do corpo com as raízes a pingar um eflúvio que era tão palpável como o sangue. Nunca nada se movia no Sistema Solar. Ele podia usar o dispositivo de explosão eternamente e nunca ser mais do que uma espécie de astrónomo telepata, um homem que conseguia sentir a protecção calorosa e agradável do Sol a queimar e latejar contra a sua mente viva.

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oodley entrou. - É o mesmo velho mundo cadenciado – disse Underhill. – Não há nada a relatar. Não admira que não tenham desenvolvido o dispositivo amplificador até terem começado a viajar entre planos. Aqui em baixo, com o Sol quente a andar

à nossa volta, é tudo tão bom e calmo. Conseguimos sentir tudo a girar e a virar. É agradável, preciso e compacto. É mais ou menos como ficar em casa. Woodley soltou um grunhido. Não era muito dado a rasgos de fantasia. Sem se deixar deter, Underhill continuou. - Deve ter sido bastante bom ser um Ancião. Questiono-me por que será que queimaram o mundo deles com a guerra. Eles não tinham acesso à viagem entre planos. Não tinham de sair de casa para ganhar a vida no meio das estrelas. Não tinham de se desviar das Ratazanas ou jogar o Jogo. Não podiam ter inventado a explosão luminosa porque não tinham necessidade de a ter, pois não, Woodley? Woodley soltou um grunhido. - Hmm-hmm. Woodley tinha vinte e seis anos e faltava-lhe um ano para se poder reformar. Já tinha escolhido uma quinta e tudo. Tinha passado dez anos de trabalho árduo com as explosões luminosas, trabalhando ao lado dos melhores. Manteve a sua sanidade mental não pensando muito acerca do trabalho que fazia, correspondendo às exigências da função sempre que era necessário e não pensando mais nos seus deveres até que a próxima emergência surgisse. Woodley nunca fez questão de se tornar popular por entre os Parceiros. Nenhum dos Parceiros gostava muito dele. Alguns até guardavam ressentimentos contra ele. Suspeitava-se que em certas ocasiões tivera pensamentos feios a respeito dos Parceiros, mas uma vez que nunca nenhum dos Parceiros pensava na forma articulada de uma queixa, os restantes agentes de explosão e os Chefes da Instrumentalidade deixavamno em paz. Underhill continuava pleno de admiração pelo seu trabalho. E continuou a tagarelar alegremente: - O que nos acontece quando fazemos uma viagem entre planos? Achas que é mais ou menos como morrer? Alguma vez viste alguém a quem tenham arrancado a alma? - Arrancar a alma é apenas uma

força de expressão – respondeu Woodley. – Depois destes anos todos, já ninguém sabe se temos alma ou não. - Mas em certa ocasião eu vi uma. Vi como era o Dogwood quando ele se despedaçou. Havia qualquer coisa engraçada. Parecia molhada e talvez pegajosa como se estivesse a sangrar e a sair do corpo dele – sabes o que fizeram ao Dogwood? Levaram-no para longe, para aquela parte do hospital onde eu e tu nunca fomos – mesmo lá para cima, para aquela parte onde estão os outros, para onde os outros têm de ir se continuarem vivos depois das Ratazanas do Exterior Longínquo os terem apanhado. Woodley sentou-se e acendeu um cachimbo antigo. Estava a queimar uma coisa a que chamavam tabaco. Era um hábito bastante desagradável, mas fazia-o parecer muito arrojado e aventureiro. - Escuta uma coisa, jovem. Não precisas de te preocupar com essas coisas. As explosões luminosas estão a melhorar continuamente. Os Parceiros estão a melhorar. Já os vi a explodir com duas Ratazanas que estavam a quarenta e seis milhões de milhas de distância uma da outra em apenas um milésimo de segundo e meio. Enquanto as pessoas tinham de tentar trabalhar sozinhas com os dispositivos amplificadores, havia sempre a possibilidade de, com um mínimo de quatrocentos milésimos de segundo para que a mente humana compusesse uma explosão luminosa, não conseguirem atingir as Ratazanas com velocidade suficiente para proteger as naves que se encontram em viagem entre planos. Os Parceiros vieram alterar isto. Assim que se encontram preparados, são mais rápidos que as Ratazanas. E sempre serão. Sei que não é fácil – deixar que um Parceiro partilhe a nossa mente… - Para eles também não é fácil – disse Underhill. - Não te preocupes com eles. Eles não são humanos. Deixa que se cuidem sozinhos. Já vi mais agentes de explosão a enlouquecer por andarem sempre BANG! /// 55


de roda dos Parceiros do que aqueles que alguma vez vi serem apanhados pelas Ratazanas. Quantos conheces realmente que se tenham deixado apanhar pelas Ratazanas?

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nderhill olhou para os dedos, que brilhavam em tons de verde e roxo sob a luz vívida que o dispositivo amplificador ligado emitia e começou a contar as naves. O polegar representava Andrómeda, perdida com tripulação e passageiros, o indicador e o dedo médio eram para as Naves Libertação 43 e 56, encontradas com todos os dispositivos queimados e todos os homens, mulheres e crianças a bordo mortos ou loucos. O dedo anelar, o mínimo e o polegar da outra mão representavam as primeiras três naves de batalha que seriam perdidas para as Ratazanas – perdidas à medida que as pessoas percebiam que havia ali qualquer coisa por baixo do próprio espaço que estava vivo, era inconstante e malévolo. A entre planos planos era mais ou menos engraçada. Parecia, parecia… Não se parecia com grande coisa. Talvez com o formigueiro de um pequeno choque elétrico. Como a dor de um dente ao morder pela primeira vez. Como um raio de luz ligeiramente doloroso apontado aos olhos. No entanto, nesse momento, uma nave de quarenta mil toneladas que se erguia livremente por cima da Terra desapareceu de um modo ou de outro para uma realidade de duas dimensões e apareceu a meio ano-luz ou a cinquenta anos-luz de distância. Em dado instante, estava sentado na Sala de Combate, com o dispositivo amplificador a postos e o familiar Sistema Solar a pulsar no interior da sua cabeça. Por um segundo ou um ano (subjectivamente, nunca conseguia dizer quanto tempo se passava), o pequeno e engraçado raio de luz trespassava-o e lá estava ele, perdido no Exterior Longínquo, no terrível espaço aberto entre as estrelas, onde as próprias estrelas 56 /// BANG!

se assemelhavam a borbulhas na sua mente telepática e os planetas estavam demasiado afastados para serem pressentidos ou lidos. Algures naquele espaço exterior, aguardava-os uma morte horrenda, morte e terror de um tipo que o Homem nunca encontrara até que saiu para o próprio espaço interestelar. Aparentemente a luz do Sol mantinha os Dragões afastados.

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ragões. Era o que as pessoas lhes chamavam. Para as pessoas comuns não existia nada, nada a não ser o calafrio da viagem entre planos e o golpe pesado da morte repentina ou a nota espasmódica e negra da loucura a penetrar nas suas mentes. Mas para os telepatas, os Dragões existiam. Na fracção de segundo que se passava entre a percepção dos telepatas de que existia uma entidade hostil no vazio negro e oco do espaço e o impacto de um golpe psíquico feroz e ruinoso, desferido contra todos os seres vivos que viajavam na nave, os telepatas identificavam criaturas de algum modo semelhantes aos Dragões que existiam no folclore antigo dos humanos; bestas mais espertas que as bestas, demónios mais palpáveis que os demónios, vórtices esfomeados de vida e ódio, compostos através de meios desconhecidos a partir da ténue e frágil matéria que se encontrava por entre as estrelas. Foi necessário que uma nave sobrevivesse para trazer as notícias – uma nave que, por mero acaso, tinha um telepata com um feixe de luz a postos e que o virou em direcção à poeira inocente, de modo que, no panorama da sua mente o Dragão se dissolveu no vazio e os restantes passageiros, que não eram telepatas, foram às suas vidas sem saberem que a morte imediata de todos acabara de ser evitada. Daí em diante, tornou-se fácil – ou quase.

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s naves que se deslocavam entre planos levavam sempre telepatas. Os telepatas possuíam uma sensi-

bilidade desenvolvida a um nível extraordinário quando usavam os dispositivos amplificadores, que eram amplificadores telepáticos adaptados para a mente dos mamíferos. Por sua vez, os dispositivos eram electronicamente orientados para conduzirem pequenas bombas de luz. Era a luz o elemento fulcral. A luz despedaçava os Dragões, permitia que as naves voltassem à sua forma tridimensional, em pequenos saltos, enquanto se moviam de estrela em estrela. As probabilidades mudaram subitamente de cem para um contra a humanidade para sessenta para quarenta a favor dela. Isto não era o suficiente. Os telepatas foram treinados para se tornarem ultrassensíveis, para se aperceberem da presença dos Dragões em menos de um milésimo de segundo. Mas descobriu-se então que os Dragões conseguiam percorrer um milhão de milhas em pouco menos de dois milésimos de segundo e que este tempo não era o suficiente para a mente humana activar os raios de luz. Ainda tentaram envolver permanentemente as naves em raios de luz. Esta defesa esgotou-se. À medida que a humanidade descobria mais sobre os Dragões, também aparentemente os Dragões descobriam mais sobre a humanidade. De algum modo, eles conseguiam tornar o seu corpo mais achatado e atacar rapidamente através de trajectórias muito planas. Era necessário recorrer à luz intensa, uma luz com a energia da luz solar. Apenas as bombas de luz podiam fornecer esta intensidade. Foi assim que surgiu a prática da explosão luminosa. A explosão luminosa consistia na detonação de mini bombas fotonucleares, ultravivídas, que convertiam alguns gramas de um isótopo de magnésio em radiação pura visível. As probabilidades continuavam a descer, a favor da humanidade, no entanto continuavam a perder-se naves. A situação tornou-se tão má que as pessoas nem sequer queriam encontrar as naves, porque as equipas de resgate sabiam o que

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iam encontrar. Era triste levar de volta para a Terra trezentos corpos prontos para serem enterrados e mais duzentos ou trezentos enlouquecidos, sem salvação possível, apenas para serem acordados, alimentados, limpos e colocados a dormir, depois novamente acordados e alimentados até que as suas vidas se esgotassem.

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s telepatas tentaram entrar na mente dos loucos que tinham sido alvo dos Dragões, mas não encontraram nelas nada além de vívidas colunas de terror feroz que jorravam do próprio id primitivo, da fonte vulcânica da vida. Foi então que surgiram os Parceiros. O Homem e o Parceiro faziam juntos aquilo que o Homem não podia fazer sozinho. O Homem possuía o intelecto. O Parceiro possuía a velocidade. Os Parceiros deslocavam-se nas suas minúsculas naves, não maiores que bolas de futebol, no exterior das naves espaciais. Faziam as mesmas viagens entre planos que as naves. Navegavam ao lado delas nas suas cápsulas de menos de três quilos, prontas a atacar. As minúsculas naves dos Parceiros eram velozes. Cada uma levava uma dúzia de minibombas, que não eram maiores do que dedais. Os agentes atiravam os Parceiros – atiravam-nos literalmente – através da determinação telepática, em direcção aos Dragões. O que para a mente humana pareciam ser Dragões, apareciam sob a forma de gigantescas Ratazanas nas mentes dos Parceiros. Lá fora, no nada sem fundo que era o espaço, as mentes dos Parceiros respondiam a um instinto tão velho como a vida. Os Parceiros atacavam, batendo com uma velocidade superior à do Homem, passando de ataque em ataque até as Ratazanas, ou eles próprios, serem destruídos. Na maior parte das ocasiões, eram os Parceiros quem ganhava. Com a segurança dos pulos interestelares das naves, o comércio aumentou imensamente, a população de todas as colónias cresceu

e a procura de Parceiros treinados também subiu. Underhill e Woodley eram parte de uma terceira geração de agentes de explosão luminosa, no entanto, para eles, a sua profissão parecia ter existido desde sempre. Interiorizar na mente o espaço através dos dispositivos amplificadores, adicionar os Parceiros à mente e prepará-la para a tensão de uma luta da qual tudo dependia – era demasiado para que as sinapses humanas o pudessem suportar durante muito tempo. Underhill precisava dos seus dois meses de descanso depois de cada meia hora de luta. Woodley precisava da reforma depois de dez anos de serviço. Eram ambos jovens. Eram bons. Mas tinham os seus limites. Tantas coisas dependiam da escolha dos Parceiros, assim como na pura sorte de quem atraía quem.

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Pai Moontree e a pequena menina chamada West entraram na sala. Eram os outros dois agentes de explosão. O complemento humano da Sala de Combate estava agora inteiro. O Pai Moontree era um homem de quarenta e cinco anos, rosto vermelho, que tinha vivido a pacífica vida de um agricultor até completar quarenta anos. Só nessa altura, tardiamente, as autoridades descobriram que era telepata e concordaram em deixar que, apesar do avançado da idade, entrasse na carreira de agente de explosão. Saía-se muito bem, mas era fantasticamente velho para aquele tipo de trabalho. O Pai Moontree olhou para o sombrio Woodley e para o pensativo Underhill. - Como estão os jovens hoje? Preparados para uma boa luta? - O Pai quer sempre uma luta – disse a menina chamada West com uma risada. Era uma menina tão pequena. O seu riso era agudo e infantil. Parecia ser a última pessoa no mundo que alguém esperava ver a trabalhar naquela actividade

dura e perigosa que era a explosão luminosa. Underhill divertira-se em certa ocasião quando encontrou um dos Parceiros mais indolentes a sair todo contente por ter estado com a mente da menina chamada West. Normalmente os Parceiros não se preocupavam muito com a mente humana com que eram emparelhados para o trabalho. De qualquer maneira, os Parceiros pareciam aceitar que as mentes humanas eram complexas e poluídas além do que era concebível. Nenhum Parceiro questionava a superioridade da mente humana, embora fossem muito poucos os que se deixavam impressionar com tal superioridade. Os Parceiros gostavam de pessoas. Estavam dispostos a lutar ao lado delas. Estavam até dispostos a morrer por elas. Mas quando um Parceiro gostava de um indivíduo da maneira como, por exemplo, o Capitão Wow ou a Lady May gostavam de Underhill, esse afecto não tinha nada que ver com o intelecto. Era uma questão de temperamento, de sensibilidade. Underhill sabia perfeitamente que o Capitão Wow encarava a sua inteligência, a de Underhill, como patética. Ele gostava da estrutura emocional amigável de Underhill, a boa disposição e o brilho de divertimento perverso que passava por entre os padrões inconscientes de pensamento do rapaz e a alegria com que Underhill encarava o perigo. As palavras, os livros de história, as ideias, a ciência – Underhill conseguia pressentir tudo isto na sua própria mente, reflectidas na mente do Capitão Wow, como grandes disparates. A menina West olhou para Underhill. - Aposto que puseste cola nas pedras. - Não pus nada! Underhill sentiu as orelhas ficarem vermelhas de vergonha. Durante o noviciado, tinha tentado fazer batota no sorteio porque gostava particularmente de um Parceiro, uma adorável jovem mãe chamada Murr. Era tão mais fácil operar ao lado de Murr e ela era tão afectuosa com ele que Underhill até se esqueceu que a explosão luminosa era um BANG! /// 57


trabalho árduo e que não fazia parte das instruções divertir-se com o seu Parceiro. Tinham sido ambos nomeados e preparados para entrarem juntos numa batalha mortal. Uma batota tinha sido suficiente. Acabara por ser descoberto e tornara-se no motivo de chacota durante anos. O Pai Moontree pegou no copo de imitação de pele e agitou os dados de pedra que determinavam os seus Parceiros para aquela viagem. Por direitos de antiguidade, foi o primeiro a saber quem lhe saía em sorteio.

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ez uma careta. Tinha-lhe saído uma personagem velha e gananciosa, um macho rude e velho cuja mente estava repleta de babosos pensamentos sobre comida, autênticos oceanos cheios de peixes meio estragados. Em certa ocasião, o Pai Moontree disse que até arrotara a óleo de fígado de bacalhau durante semanas depois de lhe ter saído em sorteio o dito glutão, tal era a força das imagens telepáticas de peixe que ele transferiu para a sua mente. Porém, o glutão era tão sedento por comida como pelo perigo. Contava com sessenta e três Dragões mortos, mais do que qualquer outro Parceiro em funções e valia literalmente o seu peso em ouro. A seguir chegou a vez da pequena menina West. Saiu-lhe o Capitão Wow. Quando viu quem lhe saíra, sorriu. - Gosto dele – disse. – É tão divertido lutar com ele. A sensação de o ter na minha mente é tão agradável e aconchegante. - Aconchegante, o diabo – disse Woodley. – Eu também já estive na mente dele. Ele tem a mente mais lúbrica desta nave, sem excepções. - Que homem desagradável – disse a menina. Disse-o de forma declarativa, sem vergonha. Underhill olhou para ela e estremeceu. Não entendia como podia ela aceitar o Capitão Wow com tanta descontracção. A mente dele era de facto lúbrica. Quando o Capitão Wow ficava entusiasmado no meio de uma batalha, misturavam-se nas 58 /// BANG!

mentes de Underhill e do Capitão imagens de Dragões, Ratazanas mortíferas, voluptuosas camas, cheiro de peixe e o choque do espaço. As consciências de ambos unidas pelos dispositivos amplificadores tornavam-se num compósito fantástico de ser humano e gato Persa. Era esse o problema em trabalhar com gatos, pensou Underhill. Era uma pena que mais nenhum ser servisse para Parceiro. Os gatos eram bons a partir do momento em que se entrava telepaticamente em contacto com eles. Eram suficientemente inteligentes para corresponder às necessidades da luta, mas os seus motivos e desejos eram com toda a certeza diferentes daqueles dos humanos. Eram suficientemente sociáveis enquanto os humanos pensassem em imagens tangíveis, mas as suas mentes fechavam-se e adormeciam quando se recitava Shakespeare ou Colegrove, ou então quando se tentava explicar a noção de espaço. Era mais ou menos engraçado perceber que os Parceiros, criaturas tão sombrias e maturas ali no espaço eram os mesmos animais engraçados que as pessoas domesticavam há milhares de anos, na Terra. Já se tinha colocado em situações embaraçosas mais do que uma vez quando estava no solo e cumprimentava gatos perfeitamente normais, não telepatas, porque se esquecera que naquele instante eles não eram Parceiros. Pegou no copo e agitou o seu dado de pedra. Teve sorte – saiu-lhe a Lady May. A Lady May era o Parceiro mais atencioso que alguma vez conhecera. Nela, a linhagem mental Persa fora tão delicadamente criada que tinha atingido um dos seus pontos mais altos de desenvolvimento. Era mais complexa do que qualquer mulher humana, mas a complexidade era composta por emoções, memória, esperança e experiência com discernimento – experiência obtida sem o benefício das palavras. A primeira vez que entrou em contacto com a mente dela, ficou espantado com a sua clareza. Com ela, recordava-se da sua existência

enquanto gatinha. Recordava-se de cada experiência de acasalamento que ela tivera. Viu numa galeria parcialmente identificável todos os restantes agentes com quem ela fora emparelhada para lutar. E viu a sua própria imagem, radiosa, alegre e desejável. Julgou até ter captado a aresta de um desejo… Um pensamento muito lisonjeador e terno: Que pena ele não ser um gato. Woodley ficou com o último dado. Ficou com aquilo que merecia – um gato macho, taciturno, assustadiço e velho que não tinha nem uma ponta da coragem do Capitão Wow. O Parceiro de Woodley era o gato mais animalesco da nave, um tipo baixo e embrutecido com uma mente bronca. Nem mesmo a telepatia conseguira refinar a sua personalidade. As orelhas dele estavam meias roídas, resultado das primeiras batalhas que travara. Era um lutador serviçal, nada mais. Woodley soltou um grunhido. Underhill olhou para ele com estranheza. Saberia Woodley fazer alguma coisa além de grunhir? O Pai Moontree olhou para os outros três. - Mais vale irem buscar os vossos Parceiros agora. Vou informar o Perscrutador que estamos preparados para o Exterior Longínquo.

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nderhill colocou a combinação que abria a gaiola de Lady May. Acordou-a com meiguice e pegou nela. Ela arqueou as costas luxuriosamente, estendeu as garras, começou a ronronar, pensou melhor e em vez disso lambeu-lhe o pulso. Ele não tinha o dispositivo amplificador, por isso as mentes de ambos estavam fechadas, mas pelo ângulo do bigode dela e pelo movimento das orelhas, Underhill percebeu uma espécie de gratificação que ela sentia ao constatar que era ele o seu Parceiro. Falou com ela em linguagem humana, embora a linguagem não

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tivesse qualquer significado para um gato quando o dispositivo amplificador não estava colocado. - É uma grande pena, enviar uma pequena e doce criatura como tu aos rodopios pelo vazio gelado para caçar Ratazanas que são maiores e mais mortíferas que todos nós juntos. Não pediste para entrar neste tipo de lutas, pois não? Como resposta, ela lambeu-lhe a mão, ronronou, acariciou o rosto de Underhill com a longa e fofa cauda e depois virou-se de frente para ele, com os olhos dourados a brilhar. Ficaram a olhar um para o outro durante um instante, o homem agachado, o gato erecto, apoiado nas patas traseiras, com as garras da frente a enterrarem-se nos joelhos dele. Olhos humanos e felinos olhavam através de uma imensidão que nenhuma palavra conseguia descrever, mas que o afecto explicava num único olhar. - Está na hora de entrar – disse ele. Ela caminhou docilmente para a sua nave esferóide. Entrou. Ele certificou-se de que o dispositivo amplificador em miniatura estava firme e confortavelmente colocado na base do seu cérebro. Certificou-se também de que as garras estavam cobertas para que ela não pudesse arranhar-se com o entusiasmo da batalha. Perguntou-lhe suavemente: - Preparada? Para lhe responder, Lady May arqueou as costas tanto quanto o arnês permitia e ronronou suavemente dentro dos confins da nave que a aprisionava. Ele fechou a tampa e observou o selo a espalhar-se em redor da linha de junção. Estaria selada dentro do seu projéctil durante algumas horas até que um operário com um pequeno arco de corte a viesse desencarcerar, depois de ter cumprido o seu dever. Ele pegou no projéctil e colocou-o no tubo de ejecção. Fechou a porta do tubo, girou a fechadura, sentou-se na sua cadeira e colocou o dispositivo amplificador. Premiu o botão mais uma vez. Estava sentado numa sala pequena, pequena, pequena, quente, quente, com os corpos de outras três pessoas a mover-se em seu

redor, as luzes palpáveis do tecto a brilharem pesadamente contra as pálpebras fechadas. A sala desapareceu à medida que o dispositivo amplificador aquecia. As outras pessoas deixaram de ser pessoas e transformaram-se em pequenos e brilhantes montículos de fogo, brasas, lume vermelho escuro, com a consciência da vida a arder como se fossem velhos carvões carmesim numa fogueira campestre. À medida que o dispositivo aquecia um pouco mais, Underhill sentiu a Terra mesmo por baixo de si, sentiu a nave a deslizar, sentiu a rotação da Lua enquanto se afastava para o lado mais longínquo do mundo, sentiu os planetas e a bondade quente e clemente do Sol, que mantinha os Dragões tão afastados do solo nativo da humanidade. Chegou finalmente à consciência plena. Estava telepaticamente desperto para uma extensão de milhões de milhas. Sentiu a poeira em que já reparara antes a pairar bem no alto por cima da eclíptica. Com um frémito de calor e ternura, sentiu a consciência de Lady May penetrar na sua. A consciência dela era tão meiga e calorosa e no entanto tão acutilante ao sabor da sua mente como se fosse um óleo aromatizado. Transmitia-lhe uma sensação relaxante e reconfortante. Conseguia sentir o agrado com que ela o acolhia. Quase não chegava a ser um pensamento, era apenas uma emoção pura de acolhimento. Mais uma vez, eram finalmente um só. Num pequeno canto da mente dele, tão pequeno como o brinquedo mais minúsculo que alguma vez vira durante a sua infância, ainda estava consciente da sala, da nave e do Pai Moontree a pegar no telefone e a falar para o capitão do Perscrutador que comandava a nave. A sua mente telepática captou a ideia muito antes que os seus ouvidos pudessem enquadrar as palavras. O próprio som seguiu a ideia da mesma maneira que um trovão no oceano segue o relâmpago para o interior, a partir do mar alto. - A Sala de Combate está preparada. Estamos prontos para iniciar a viagem entre planos, senhor.

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nderhill ficava sempre um pouco exasperado com a maneira como Lady May experienciava as coisas antes dele. Estava preparado para a rápida e acre emoção de viajar entre planos, mas apanhou o relatório dela antes que os seus próprios nervos pudessem registar o que acontecera. A Terra tinha ficado tão afastada que ele andou alguns milésimos de segundo à procura, antes de conseguir encontrar o Sol, no canto superior direito traseiro da sua mente telepática. Aquele era um bom salto, pensou. Desta forma ia conseguir lá chegar em quatro ou cinco pulos. Algumas centenas de milhas no exterior da nave, Lady May dirigiu-lhe um pensamento: - Ó caloroso, ó homem gigantesco! Ó corajoso, ó amistoso, ó Parceiro terno e enorme! Que maravilhoso estar contigo, tão bom contigo, bom, bom, quente, quente, está na altura de lutar, na altura de ir, que bom estar contigo… Underhill sabia que ela não estava a pensar palavras, que a sua mente pegava no claro e amistoso tagarelar do intelecto felino dela e as traduzia em imagens que o seu próprio pensamento pudesse registar e entender. Nenhum deles estava absorto no jogo dos cumprimentos mútuos. Ele procurou muito para lá do alcance da percepção dela para ver se havia alguma coisa perto da nave. Que engraçado como era possível fazer duas coisas ao mesmo tempo. Podia perscrutar o espaço com a mente munida do dispositivo amplificador e ao mesmo tempo apanhar um pensamento errante dela, um pensamento adorável e afectuoso sobre um filho que tinha tido com um rosto dourado e o peito coberto de pêlo branco, suave e incrivelmente aveludado. Enquanto ainda procurava, recebeu o aviso dela. E saltamos mais uma vez! Assim foi. A nave saltara para um segundo plano. As estrelas BANG! /// 59


eram diferentes. O Sol estava incomensuravelmente afastado. Mesmo as estrelas mais próximas estavam na orla do contacto. Aquilo era a terra dos Dragões por excelência, aquele tipo de espaço aberto, amaldiçoado e vazio. Underhill chegou mais longe, mais depressa, pressentindo e procurando o perigo, preparado para atirar Lady May para o perigo assim que o encontrasse. O terror acendeu-se na sua mente, tão acutilante, tão claro, que o atingiu como um forte puxão físico. A menina pequena chamada West tinha encontrado qualquer coisa – algo imenso, comprido, preto, agudo, ganancioso, horrendo. Atirou o Capitão Wow na sua direcção. Underhill tentou manter a sua mente límpida. - Cuidado! – Gritou telepaticamente para os restantes, tentando desviar Lady May. Num dos campos da batalha, sentiu a raiva luxuriante do Capitão Wow à medida que o grande gato Persa detonava luzes e ele se aproximava do rasto de poeira que ameaçava a nave e as pessoas que nela seguiam. As luzes quase acertaram no alvo. A poeira achatou-se sozinha, mudando da forma de uma raia para a forma de uma lança. Não se passaram nem três milésimos de segundo.

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Pai Moontree estava a dizer palavras humanas e falava numa voz que se movia como melaço num pesado frasco de vidro: - C-A-P-I-T-Ã-O. Underhill sabia que a frase completa seria – Capitão, mexa-se depressa! A batalha seria travada e acabada antes que o Pai Moontree acabasse de falar. Agora, fracções de milésimos de segundo mais tarde, era Lady May quem estava directamente na linha. Era neste momento que a capacidade e rapidez dos Parceiros entravam em acção. Ela conseguia reagir mais depressa do que ele. Conseguia ver a ameaça como uma gigantesca Ratazana a vir mesmo na direcção deles. Conseguia disparar as bombas de luz com um discernimento que podia faltar a Underhill. Ele estava ligado à mente dela, mas não a conseguia acompanhar. A sua consciência absorveu o ferimento dilacerante infligido pelo inimigo alienígena. Não se assemelhava a nenhuma ferida terrena – era uma dor louca e rude

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que começava como um ponto quente junto ao umbigo de Underhill. Começou a contorcer-se na cadeira. Na verdade, ainda nem tinha tido tempo para mexer um único músculo quando Lady May contra atacou o inimigo de ambos. Cinco bombas da luz igualmente espaçadas brilharam através das cem mil milhas que os separavam. A dor na mente e corpo do rapaz desapareceram. Sentiu um instante de exaltação feroz e terrível a percorrer a mente de Lady May enquanto acabava com a sua presa. Era sempre um motivo de desilusão para os gatos descobrir que os inimigos que pressentiam como gigantescas Ratazanas do espaço se desvaneciam no momento da destruição. Depois ele sentiu a dor, a mágoa e o medo a atravessar os corpos de ambos à medida que a batalha começou e acabou, mais rapidamente que um pestanejar de olhos. No mesmo instante, surgiu a dor aguda e ácida da viagem entre planos. A nave saltou mais uma vez. Conseguia ouvir Woodley a pensar na direcção dele. - Não tens que te preocupar mais. Este filho da mãe e eu vamos assumir o controlo durante um instante. Novamente a dor aguda, o salto. Não fazia ideia de onde estava até que as luzes da plataforma de aterragem de Caledonia brilharam por baixo dele. Com um cansaço que estava quase para lá dos limites do pensamento, voltou a recostar a cabeça e a estabelecer a comunicação com o dispositivo amplificador, fixando com suavidade e rigor o projéctil de Lady May no seu tubo de lançamento. Ela estava quase morta de cansaço, mas ele sentia o bater do seu coração, ouvia-a a arfar e apanhou uma aresta de agradecimento que lhe chegava através da mente dela.

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olocaram-no no hospital em Caledonia. O médico era amistoso mas

firme. - Você foi de facto tocado pelo Dragão. Foi o contacto mais próximo que alguma vez vi. É tudo tão rápido que ainda vamos demorar algum tempo a conhecer cientificamente o que aconteceu, mas presumo que se o contacto tivesse de-


morado mais algumas décimas de milésimos de segundo, você estaria pronto para ir para o asilo dos loucos. Que tipo de gato tinha a combater à sua frente? Underhill sentiu as palavras a saírem-lhe lentamente da boca. As palavras davam tanto trabalho, quando comparadas com a alegria e velocidade do pensamento, que era rápido, preciso e claro, de mente para mente! A sua boca moveu-se lentamente enquanto articulava as palavras. - Não chame aos nossos Parceiros gatos. O termo correcto para nos dirigirmos a eles é Parceiros. Eles lutam por nós na equipa. Devia saber que lhes chamamos Parceiros, não gatos. Como está o meu? - Não sei – respondeu o médico pesaroso. – Mas vamos procurar saber para lhe dizer. Entretanto, meu velho, é melhor ter calma. A única coisa que o pode ajudar é o descanso. Consegue adormecer sozinho, ou gostaria que lhe déssemos algum tipo de sedativo? - Consigo dormir – disse Underhill. – Só quero saber como está Lady May. A enfermeira juntou-se a eles. Era um pouco antagónica. - Não quer antes saber como estão as outras pessoas? - Elas estão bem – disse Underhill. – Já o sabia antes de aqui ter chegado. Coçou os braços, fez uma careta e sorriu-lhes. Percebia que estavam a descontrair e começavam agora a tratá-lo como uma pessoa e não como um paciente. - Eu estou bem – disse. – Avisem-me apenas quando puder ver o meu Parceiro. Sentiu-se atingido por um novo pensamento. Olhou de modo esgazeado para o médico. - Eles não a mandaram embora juntamente com a nave, pois não? - Vou descobrir imediatamente – disse o médico. Depois deu a Underhill um reconfortante apertão no ombro e saiu do quarto. A enfermeira levantou o guardanapo que tapava um copo de sumo fresco de frutas.

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nderhill tentou sorrir-lhe. Não parecia haver nada de errado com a rapariga.

Desejou que ela se fosse embora. Inicialmente começara por se mostrar amistosa, mas agora estava novamente distante. Era uma maçada ser telepata, pensou. Uma pessoa estava sempre a tentar chegar até aos outros, mesmo quando não estabelecia contacto. Subitamente ela virou-se para ele. - Vocês agentes! Vocês e os vossos malditos gatos! No preciso instante em que ela se preparou para sair, ele entrou na mente dela. Viu a sua própria imagem reflectida como um herói radioso, vestido com o suave uniforme de camurça, com o dispositivo amplificador a brilhar como uma coroa cheia de antigas jóias reais no cimo da cabeça. Viu o seu próprio rosto, bonito e másculo, a brilhar da mente dela. Viu-se muito ao longe e viu também como ela o odiava. Ela odiava-o nos mais secretos confins da sua mente. Odiava-o porque ele era – achava ela – arrogante, estranho, rico, melhor e mais bonito que as pessoas como ela. Underhill afastou a imagem dela da sua cabeça e, enquanto enterrava o rosto na almofada, recebeu uma imagem de Lady May. - Ela é um gato – pensou. – É tudo o que ela é… um gato! Mas não era assim que a sua mente a via – mais rápida que qualquer sonho de velocidade, astuta, esperta, inacreditavelmente graciosa, linda, muda e pouco exigente. Onde poderia ele encontrar uma mulher que se lhe comparasse?

Cordwainer Smith (1913-1966), pseudónimo de Paul Linebarger, era escritor, professor universitário e militar especialista em assuntos do Extremo Oriente. Escreveu livros sobre guerra psicológica, com base na sua experiência militar, e a sua obra na ficção científica, apesar de não ser vasta, expandiu as fronteiras do género e é hoje considerada como uma das mais originais criações da literatura especulativa. BANG! /// 61


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unca houve tanta curiosidade pelo mundo da edição como agora. Talvez devido à massificação da Internet e com tudo o que isso implicou – a blogosfera, os fóruns, as redes sociais, os sites – os leitores nunca tiveram a possibilidade de contactar tão directamente as editoras como agora. E deste processo tem nascido uma curiosidade natural pela forma como se realiza a edição em Portugal. Como todos os negócios, tem os seus segredos que é preferível não revelar mas, de vez em quando, abrimos uma janela para o trabalho diário que fazemos, de modo a revelar alguns dos detalhes em torno da construção do nosso catálogo. A construção de um catálogo. Essas são as palavras mágicas que fascinam tanto qualquer editor com vocação para esse trabalho. Tem os seus espinhos e cada editor tem o seu próprio muro das lamentações por todos os fracassos e prejuízos. BANG! /// 63


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o entanto, no meio de um negócio cada vez mais competitivo, poder publicar um autor que gostamos é capaz de ser uma das maiores satisfações. E ter sucesso com um autor que gostamos e publicamos é a cereja em cima do bolo. Foi o que aconteceu com George R. R. Martin, o autor das Crónicas de Gelo e Fogo, cujo sucesso actual ajudou a garantir algum bem-estar à colecção Bang! Hoje fala-se em fenómeno George R. R. Martin, um sucesso à escala mundial, que conquistou leitores e livreiros. As encomendas de livros não param, e acreditamos que ainda estão longe de se esgotar. Dois factores combinaram-se para garantir este extraordinário ano a Martin: a estreia da série A Guerra dos Tronos, uma adaptação da HBO, que triunfou nas audiências, e a publicação do muito aguardado 5º (mas não último) volume das Crónicas de Gelo e Fogo, A Dance with Dragons (A Dança dos Dragões e Os Reinos do Caos). Se George R. R. Martin já era um nome consagrado nos reinos da literatura fantástica, explodiu para lá dos seus limites e, à semelhança da sua personagem Daenerys, conquistou leitores e espectadores uns atrás dos outros. Mas voltemos um

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pouco atrás no tempo para vos mostrar como tudo começou em Portugal, de modo a compreenderem o trabalho que envolveu da parte de todos os colaboradores, os riscos, os anos de espera e a fé que nunca foi perdida.

A história do editor contada pela sua assistente

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uitos sabem que a editora Saída de Emergência surgiu no mercado em 2004 criada por dois irmãos, Luís Corte Real e António Vilaça. Devido a uma conjunção de literatura comercial apelativa e sólida (e a exploração de um nicho muito alternativo, o fantástico), capas dinâmicas e uma boa distribuição, no espaço de um ano a editora tinha ganho solidez suficiente para os dois irmãos se dedicarem em exclusivo à editora. Muita paixão pelos livros e uma atitude muito mais transparente e próxima ao leitor marcaram a diferença. Não é uma editora conhecida pelos nomes das pessoas que editam, mas pelos autores que publica. Luís Corte Real era já um grande fã de George R. R. Martin muito antes de ter fundado a editora; uma viagem a Londres e a compra fortuita de Game of Thrones numa

mega-livraria londrina iniciou a descoberta deste autor ainda na década de noventa. Uma vez que parte do catálogo da SdE dedicava-se à literatura fantástica (H. P. Lovecraft e Edgar Allan Poe foram os primeiros nomes clássicos a serem publicados), os agentes faziam muitas ofertas de obras deste género ao editor. Em 2005, a agente espanhola de George R. R. Martin começa a realizar as primeiras propostas. Nas palavras do Luís, “ela estava desesperada para vender os direitos dos livros, ninguém queria aquilo”. E embora gostasse muito do autor, tinha noção de que o mercado português ainda não era capaz de absorver uma saga daquelas dimensões (cada livro a roçar 800 ou 1000 páginas na edição original) pelo que disse à agente para voltar a contactá-lo daqui a um ano.

Marketing, a quanto obrigas

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uando a situação da editora começou a estabilizar em termos financeiros (e o mercado editorial ainda não tinha sofrido metade do que viria a sofrer desde 2008), Luís Corte Real sentiu que era o momento certo para apostar numa saga que até vendia bastante bem nos EUA e alguns

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Na série da HBO, a passar em Portugal no canal Syfy da Meo, Jason Mamoa interpreta o invencível Khal Drogo.

países europeus. Não foi uma decisão inteiramente movida por paixão, pois começaram os planos para uma campanha de marketing massiva em torno do lançamento do 1º livro. Jorge Candeias foi o tradutor requisitado para a tradução do 1º volume, divido em dois na edição portuguesa. A divisão em dois volumes tornava os livros muito mais fáceis de manusear, mais baratos e não afugentaria tanto os leitores. Enquanto o tradutor e revisora, Idalina Morgado, discutiam os termos e as opções linguísticas, a editora começou os planos de marketing e surgiu com ideias ambiciosas e inovadoras. Montras Bertrand foram requisitadas para a promoção do 1º volume e foram colocados um escudo, uma couraça, um montante e duas armações de veado, objectos que pertenciam ao próprio Luís Corte Real que os emprestou à Bertrand. Mas a estratégia que prometia dar mais que falar era, sem dúvida, o famoso cupão na badana que podia ser preenchido, recortado, enviado à editora e recebia-se assim a oferta de outro exemplar de A Guerra dos Tronos. Uma tiragem impressionante para a altura foi impressa e o livro foi lançado nas livrarias em Setembro de 2007. Escusado será dizer que o cupão e as montras causaram sensação. Sem exageros, a editora, ofereceu cerca de 2000 livros no âmbito dessa promoção. Ainda hoje, em 2011, recebemos um ou outro cupão a solicitar a oferta de mais um exemplar. Muitos leitores portugueses que se renderam pela primeira vez a George R. R. Martin já não se devem lembrar do posfácio escrito pelo editor, posfácio esse bastante revelador dos riscos inerentes a esta publicação: Portugal é um país pequeno e o mercado da literatura fantástica é marginal. Será possível levar esta série até ao fim? Farás sentido? Depois de muito equacionar, acreditamos que sim. E a prova é que já comprámos os direitos para toda a série e não apenas para o primeiro volume. O pedido por mais leitores é quase hilariante no último parágrafo: Obrigado/a por ter lido A Guerra dos Tronos. Fazemos votos para que esteja desejoso/a por ler o segundo volume e que nos ajude a fazer desta série um grande sucesso, convidando familiares, amigos, vizinhos e colegas a lerem-na. O ritmo de publicação foi essencial para que os leitores se mantivessem fiéis à série. O 2º volume, A Muralha de Gelo, foi lançado três meses depois, em Novembro de 2007. O terceiro volume, A Fúria dos Reis, em Fevereiro de 2008 e assim sucessivamente. A partir do 4º volume deu-se o inesperado: uma entrada fugaz nos tops que começou a provar que a série estava a demonstrar vendas sustentáveis.

Os primeiros frutos

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uma entrevista ao Diário Digital publicada online em Setembro de 2011, no âmbito do sucesso de George R. R. Martin em Portugal, Luís Corte Real revela que “na altura apostámos em capas distintas, marketing e promoções fortes, imensa promoção na internet e as vendas acabaram por ser boas”. BANG! /// 65


As vendas nunca foram más e provaram que uma estratégia bem planeada dá frutos a médio e longo prazo. Felizmente, não conheceu o mesmo destino que uma outra série de fantasia de sucesso internacional, A Roda do Tempo de Robert Jordan, que acabou por ver a sua publicação cancelada após quatro volumes. Em poucos meses, As Crónicas de Gelo e Fogo começaram a gerar uma base de fãs e foi a própria editora que os acolheu a todos e criou-lhes uma casa na Internet, no fórum George R. R. Martin (que mais tarde se expandiu para se tornar o fórum Bang!, o fórum oficial da colecção gerido pela editora). Abriu as portas em 2007 e a iniciativa ajudou a solidificar ainda mais a relação entre os leitores e a editora, ajudou a divulgar as novidades e a criar um ambiente entusiástico em torno desta saga. Nem tudo foi executado na perfeição; a 1ª edição do 4º volume tinha uma sinopse com spoilers que revelavam toda a história do livro (foi substituída numa edição posterior); esse 4º volume foi o que apresentou na lombada o título errado; o 6º volume foi impresso com o ISBN errado e foi necessário colar autocolantes com novo código de barras na tiragem. Todos os erros foram corrigidos, mas, na altura, foram fruto da pressa.

George R. R. Martin visita Portugal

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s minhas próprias memórias começam a infiltrar-se neste momento da narrativa. O ano de 2008 foi espectacular para a promoção desta saga por um motivo muito particular: o autor planeava uma tour europeia nesse ano e iria estar presente no evento da Semana Negra, em Gijón, Espanha. O Rogério Ribeiro e eu, organizadores do Fórum Fantástico, sabendo desse facto, começámos a colocar a hipótese de uma deslocação do autor a Portugal. 66 /// BANG!

Após obter patrocínios e garantir o apoio do Luís Corte Real, fizemos o convite ao autor que prontamente aceitou. Esse foi o ponto alto desse ano. Martin ainda não era um autor mega-bestseller nem muito conhecido fora da literatura fantástica e, embora já tivesse alcançado um bom patamar, ainda era considerado um escritor de nicho. A sua presença durou dez dias em Portugal, no pico de um mês de Julho muito quente. O 5º volume, A Tormenta de Espadas, iria ter um pré-lançamento na sala do El Corte Inglès, a 4 de Julho de 2008. E eu, que estava à beira de me demitir de um emprego lastimável na altura, tinha sido convidada para apresentar o autor e conversar com ele. Aceitei apenas porque julguei que falaríamos para uma plateia de dez a quinze pessoas. Os deuses decidiram rir-se da minha cara e encheram a sala com cerca de trezentos leitores muito entusiasmados. O choque foi geral. Deve ter sido então que nos apercebemos todos de como se criara uma comunidade de leitores e fãs muito forte em torno das Crónicas. Eu, o Rogério e o Luís temos excelentes memórias dessa semana com o George R. R. Martin. Uma pessoa afável, nada pretensiosa, imensamente talentosa com as palavras, entusiasmada, disponível para ser arrastado até ao topo do Castelo dos Mouros, em Sintra, ou a perder-se num carro às voltas, em direcção ao Porto. Conheceu Lisboa inteira sem um queixume, mesmo apesar de algumas das suas dificuldades em andar muito. É um homem com um espírito tremendamente aventureiro e a sua amizade tornou-se inestimável para todos nós. Nessa mesma semana perdi o meu emprego, mas graças ao meu envolvimento nos eventos, as portas da Saída de Emergência abriram-se para mim e, em Setembro de 2008, tornei-me assistente do Luís Corte Real.

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Já está em produção a 2ª temporada de A Guerra dos Tronos, a estrear em Abril de 2012, com todo um elenco de novas personagens a juntar-se aos protagonistas principais.

O actor Peter Dinklage venceu recentemente, nos EUA, o Prémio Emmy de Melhor Actor Secundário pelo seu desempenho da personagem Tyrion, o infame anão da casa Lannister.

A longa espera

séries, tornou-se rapidamente óbvio que esta seria uma das grandes apostas do canal para 2011. Ao lado de David Benioff e D. B. Weiss, George R. R. Martin trabalhou como produtor executivo e ajudou a mobilizar a sua massiva comunidade de fãs que manifestou todo o seu entusiasmo pela concretização da série. Ao mesmo tempo, começavam os rumores de que o autor estaria prestes a finalizar, após quase cinco anos, o manuscrito do próximo volume das Crónicas, A Dance with Dragons, um livro que sabíamos que iria retomar as aventuras de várias personagens cruciais como Tyrion Lannister, Daenerys Targaryen e Jon Snow. Por cá, as vendas continuavam ao mesmo ritmo moderado de sempre, alheias às movimentações dos produtores da série. A série tinha data de estreia marcada nos EUA para 17 de Abril de 2011 e a imprensa norte-americana não foi imune à intensidade dos fãs de Martin que juraram que era uma das melhores séries de fantasia de sempre.

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s livros continuavam a ser traduzidos incansavelmente pelo Jorge Candeias, sem nunca falhar um único prazo. O sucesso constrói-se com base no profissionalismo de todos os colaboradores e o nosso tradutor nunca soçobrou sob o peso dos calhamaços. O Festim dos Corvos e O Mar de Ferro foram lançados em 2009; chamo-lhes os livros da ressaca devido aos eventos culminantes de A Glória dos Traidores, um livro glorioso em todos os sentidos. E depois começou também a espera para os leitores portugueses. Como leitora, a desvantagem de ler uma excelente série é o facto de termos que esperar que o autor conclua o próximo volume. No caso de George R. R. Martin, a espera foi demorada para os leitores das edições inglesas, em parte devido ao facto de o enredo ter atingido um ponto crucial que necessitava de muito labor na escrita para ser ultrapassado. Muitos leitores americanos começavam a desesperar e a insultar o autor. Mas algo de sensacional estava em preparação. Em 2007, George R. R. Martin anunciara no seu blogue que os direitos de adaptação televisiva das Crónicas tinham sido comprados pelo canal norte-americano, a HBO. Foi só em 2010 que a febre pela série começou a atingir o pico quando se divulgaram os números envolvidos na produção e os nomes dos actores. Começou então um novo capítulo neste fenómeno.

A Guerra dos Tronos na televisão

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o ano de 2010, a HBO arrancou uma formidável máquina de marketing que iniciou a divulgação da série literária em todo um novo patamar. Sendo um canal norte-americano conhecido pela qualidade das suas

Os dragões voltam a voar As armas das principais famílias dos Sete Reinos

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27 de Abril de 2011, uma semana depois da estreia do episódio-piloto de Guerra dos Tronos, George R. R. Martin publica a foto de um King Kong morto no seu blogue. Era o anúncio tão desejado por milhares de leitores de que, finalmente, King Kong (o apelido “carinhoso” que George R. R. Martin deu ao seu livro das Crónicas) fora derrotado e a obra finalmente veria a luz do dia nesse mesmo ano. E esse dia lançou no caos parte do planeamento editorial da Saída de Emergência. Alterações tinham que ser feitas, dezenas de e-mails trocados com colaboradores, agentes e a distribuidora, planos de marketing teriam que ser pensados, uns livros adiados, outros antecipados para dar espaço ao King Kong. E era BANG! /// 67


imperativo obter o manuscrito com a maior brevidade possível, manuscrito esse que tinha data de publicação prevista a 12 de Julho. Após alguma insistência e muitas negociações, foi-nos cedido o ficheiro com a 1ª metade do livro na língua inglesa. Jorge Candeias lançou-se de corpo e alma à tradução, e nessa altura nós fomos literalmente afogados no sucesso da série televisiva que fez explodir as vendas em Portugal. A partir do mês de Junho, as encomendas dos 8 volumes das Crónicas não paravam e entraram num ritmo alucinante. Todos, de repente, queriam ler os livros. Tendo uma equipa editorial relativamente pequena, o impacto simultâneo da produção em tempo recorde de A Dança dos Dragões e o sucesso de vendas ascendente dos volumes anteriores tornou-se sufocante e brutal. Tivemos um Verão esplêndido de trabalho. Por essa altura, descobrimos que o canal Syfy Portugal tinha os direitos exclusivos de exibição da série no país e começaram os contactos e parcerias de forma a promover ainda mais este autor na imprensa nacional. A fantasia de repente ganhara uma nova expressão em Portugal e extrapolou as fronteiras do género. O trabalho de marketing foi também bastante exaustivo e obrigou a alguma criatividade para satisfazer as

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necessidades dos livreiros; marcadores, posters, promoções, descontos, ofertas de livros, etc, e todos os dias surgiam, e anda surgem, novas ideias. A nossa tradução do 9º volume foi lançada a 9 de Setembro de 2011, e foi a segunda tradução mais rápida a ser lançada no mundo depois da edição croata. A Dança dos Dragões entrou directamente para o primeiro lugar dos tops nacionais e já temos data de publicação do próximo volume, Os Reinos do Caos, marcada para 27 de Janeiro de 2012. Os timings foram infalíveis em todo este processo. Não tivesse sido o timing dos acontecimentos, muitas destas coisas não teriam acontecido. Neste Verão, o canal Syfy lançou a sua própria divulgação, preparando o terreno para a estreia da série em Portugal que aconteceu no dia 17 de Outubro, estreia essa que promete renovar o interesse de novos leitores. Os segredos que tornaram George R. R. Martin um bestseller em Portugal? Estão todos nesta história e basta lê-la com atenção. Houve uma dose de sorte, mas houve também imenso trabalho envolvido e boa vontade de todas as partes. O fenómeno ainda continua e não se irá esgotar tão cedo devido à continuação da série televisiva que irá estrear a 2ª temporada em Abril de 2012 e ao sucesso de uma boa história que ainda não foi concluída.


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SAÍDA DE EMERGÊNCIA: E O que faz os seus leitores gostarem tanto dos livros da série do Assassino? ROBIN HOBB: Não acredito que seja apenas uma coisa, pois acredito que cada livro fala a cada leitor de modo diferente. A maioria dos leitores que me escreve fala de como gostam das personagens da história. Penso que a evolução das relações entre elas é tão importante como o desenrolar dos acontecimentos. Portanto, se me basear nas respostas por e-mail, diria que os leitores que gostam dos meus livros são leitores que gostam de livros alicerçados em personagens. Mas na minha obra, as personagens moldam o enredo tanto quanto o enredo molda as personagens.

“Os leitores que gostam dos meus livros são leitores que gostam de livros alicerçados em personagens.”

SdE: A maioria dos seus leitores portugueses tem elogiado a narrativa pela primeira pessoa que desenvolveu na série do Assassino. Não será a abordagem mais fácil mas houve alguma razão em particular para escrever a história de Fitz na primeira pessoa? RH: Acredito que a narrativa na primeira pessoa consiste na forma mais natural de contar histórias. Quando estamos com a nossa família e amigos ao fim do dia, e lhes contamos como correu o nosso dia, contamos sempre do nosso ponto de vista. Por isso, acho que escrever na primeira pessoa é uma forma de tornar o livro uma espécie de conversa com o leitor. É como se Fitz falasse directamente para o leitor e acabasse por partilhar uma amizade em que conta os seus segredos e sentimentos mais profundos. Penso que funciona bem para este tipo de história. Dá ao leitor uma oportunidade de conhecer a personagem de forma íntima. SdE: É impossível não notar a beleza dos profundos laços gerados pela Manha que descreve nos seus livros entre homem e animal, e é o que considero uma das suas maiores qualidades. No entanto, Fitz é desprezado pela sua habilidade na Manha e nunca realmente dominou bem a magia do Talento. A magia é uma maldição ou bênção para Fitz?

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A primeira saga, intitulada “A Saga do Assassino”, tem cinco volumes. As ilustrações das capas são da responsabilidade de John Howe, ilustrador oficial de Tolkien e colaborador fundamental de Peter Jackson na trilogia de “O Senhor dos Anéis” bem como no futuro “Hobbit”

RH: A magia, como qualquer outra habilidade, é tanto uma maldição como uma bênção, e varia de dia para dia. Penso que isso seja verdade acerca de qualquer habilidade que uma pessoa tenha. O homem que possui um charme especial descobre que isso o livra de problemas mas no dia seguinte, só o afunda ainda mais. Todas as paixões têm um lado perigoso, um que pode colocar-nos em risco mas que também nos pode elevar a grandes alturas. Para Fitz, ambas as suas magias têm perigos e benefícios. Tem que trilhar o seu caminho com muito cuidado entre ambas as magias se quer sobreviver. SdE: Quais são as cenas mais difíceis e as cenas mais fáceis de escrever na série do Assassino? RH: A resposta pode surpreender os leitores. Todas as cenas são difíceis quando estou a construí-las, palavra por palavra, na página em branco do monitor. Essa é sempre a pior parte. Depois vem a parte da reescrita que eu adoro. Compor é muito complicado, enquan-

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to que elaborar e melhorar a cena torna-se a parte mais divertida. Quando era jovem e um professor obrigava-me a reescrever um ensaio, odiava tal coisa. Mas na ficção podemos tornar os diálogos mais inteligentes, tornar uma cena mais subtil ou acrescentar um toque de emoção. Por isso, nenhuma cena é fácil para mim quando está a ser escrita pela primeira vez. São sempre mais fáceis quando as reescrevo. SdE: Disse uma vez que a personagem do Bobo é a personagem que mais se recusa a seguir os seus planos e manifesta vontade própria. São as personagens que a conduzem pela estrada que desejam tomar? RH: De certa forma, todas as minhas personagens têm livre-arbítrio, mas nenhuma goza dessa vantagem tanto quanto o Bobo. Ele era tanto difícil como surpreendente na medida em que transformava cenas sem qualquer respeito pelo meu enredo. O meu objectivo com as personagens é colocá-las em situações e depois obter reacções de acordo com a sua natureza. Às vezes uma personagem como o Bobo segue o

Com capas apelativas e mais adultas, o design da segunda saga (O Regresso do Assassino) procura reflectir o amadurecimento da trama e o crescimento da personagem principal que, no início da primeira saga, é apenas uma criança

seu próprio caminho e deixa-me a pensar o que irá acontecer a seguir na história. Ele foi difícil, mas nunca aborrecido. SdE: As suas personagens são submetidas, por vezes, a situações muito angustiantes. A fantasia da demanda exige sempre uma necessidade por redenção através de sacrifício, um pouco à semelhança do que aconteceu com Frodo, Sam ou Aragorn em O Senhor dos Anéis? Tornam-se melhores personagens no fim? RH: Não tenho bem a certeza de que circunstâncias adversas nos tornam melhores pessoas. Penso que algumas pessoas exibem as suas melhores qualidades quando são confrontadas com uma crise. E em grande parte dos casos, o auto-sacrifício é o que define um herói. Se posso salvar-te sem qualquer custo para mim, será isso heróico? Por outro lado, se não me custa salvar-te, e recusar-me a fazê-lo, então estamos próximos de um certo tipo de vilania. Ouço frequentemente da parte dos meus leitores de que sou “cruel” para com as personagens pelas ad-

versidades que enfrentam. Mas é esse tipo de desafios que tornam uma história boa. Uma história onde nada de errado acontece, e os heróis nunca precisam de enfrentar grandes desafios ou decisões não seria uma grande história. SdE: Em Portugal, os contos ainda são uma forma literária desprezada, ignorada e considerada pouco lucrativa. A maioria dos nossos escritores dedica-se a romances e evita a escrita de contos. A Robin tem romances muito longos mas também escreve contos com o pseudónimo Megan Lindholm. Como efectua a transição entre um e outro? RH: Os contos são muito difíceis de escrever para mim, e tenho alguns por publicar no meu computador. O problema é o facto de requererem habilidades especiais, um pouco como polir um diamante. Tudo o que é excessivo deve ser cortado até restar apenas a ideia da história que brilha. Posso escrever um romance por ano, mas duvido que conseguisse escrever doze excelentes contos no mesmo período de tempo. Es-

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crevo-as quando tenho uma excelente ideia mas que não é suficiente para sustentar um romance. Algumas ideias têm maior impacto numa forma mais curta. Continuam a ser muito difíceis para mim. Nos EUA, o conto literário ainda é muito importante para nós e são muito frequentes nas revistas de ficção científica e fantasia. Muitas vezes é onde os escritores fazem experiências e novos escritores se tornam conhecidos. Nos EUA, se já tivermos publicado vários contos é uma excelente credencial para apresentar a um editor. Encaramos o conto como algo muito americano, e reconhecemos Edgar Allan Poe como o “pai do conto americano”. SdE: Nos últimos dez anos, o género da fantasia ganhou mais leitores graças a Harry Potter, J. R. R. Tolkien (e talvez agora George R. R. Martin), mas começou a escrever fantasia muito antes disso. Esta nova vaga de leitores de fantasia afectou a sua carreira de escritora? Mudou para melhor? RH: É muito difícil responder a essa pergunta. O sucesso na carreira de um escritor é uma coisa difícil de medir. Terei passado a vender mais livros porque tornei-me uma melhor escritora, ou porque mudei as capas ou porque o género se tornou mais popular? Poderá alguém ter certezas? Penso que tudo o que um escritor pode fazer é concentrar-se em contar as melhores histórias que uma pessoa possa imaginar, e esperar que os leitores regressem e tragam amigos. Se me preocupar com forças exteriores que não posso controlar, então nunca conseguirei concluir a minha escrita. E o processo de escrever os livros é a coisa mais importante a fazer. SdE: Em Portugal, acabámos de publicar Golden Fool (Dilemas do Assassino e Sangue do Assassino). O que pode contar aos seus leitores sobre o livro? Decidimos publicar a série Regresso do Assassino logo a seguir à primeira série do Assassino. RH: Em termos cronológicos, a trilogia The Liveship Traders existe entre a série do Assassino e a série do Regresso do Assassino. Por isso, há alguns acontecimentos que podem deixar os leitores um pouco perplexos. Mas falei com muitos leitores americanos que só leram The Liveship Traders só no fim e não deixaram de gostar muito. SdE: Está satisfeita com as suas capas? Tem alguma favorita entre as edições inglesas e estrangeiras? RH: Tenho sido abençoada com capas maravilhosas para os meus livros. Entre os artistas que já ilustraram capas para mim temos John Howe, Jackie Morris, Max, Michael Whelan e Gilles Francescano. E essa é apenas uma amostra. Muitas vezes só vejo a capa depois da publicação e por vezes não sei o nome dos artistas. As capas variam imenso de país para país, com cada tipo de leitor a preferir um certo tipo de capa. Fico satisfeita por

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poder confiar nas decisões das pessoas que sabem mais do que sobre arte e marketing. SdE: Existem escritores de fantasia recentes ou séries que gostasse de recomendar aos nossos leitores? RH: Claro que não posso deixar de nomear George R. R. Martin! Mas também gostaria de chamar a vossa atenção para a série Mistborn de Brandon Sanderson, os livros de Dianna Wynne Jones, Lynn Flewelling, e Blake Charlton, por exemplo. Gostei de um novo escritor chamado Mark Lawrence, autor de Prince of Thorns. Há demasiadas boas séries e livros por aí e não consigo nomeá-los todos. Mas é lamentável que muitos autores americanos estejam disponíveis para tradução mas que tão poucos autores europeus sejam traduzidos para os leitores americanos. SdE: Quais os próximos projectos que poderemos aguardar da sua parte? RH: Estou a esforçar-me para terminar os últimos dois livros da Rain WIld Chronicles. Estas são as sequelas de Dragon Keeper e Dragon Haven, dois livros já publicados nos EUA e Reino Unido. Irei manter-me concentrada nestes livros até terminá-los, e depois irei pensar no que vem a seguir. Obrigado, Robin, pela gentileza e pelas suas respostas.

Robin Hobb nasceu na Califórnia em 1952. Sabia desde tenra idade que queria ser escritora mas era realista o suficiente para perceber que muito poucos são capazes de se sustentarem financeiramente apenas através da escrita. Todavia, lutou pelo seu sonho e preparouse para desempenhar outras profissões enquanto se dedicava à escrita. Aos nove anos de idade, Robin e a família deixaram Califórnia para viver no Alasca. Foi aqui que conheceu o seu primeiro amigo e companheiro, um híbrido de cão e lobo chamado Bruno, que a acompanhava nas suas explorações nas florestas que rodeavam a sua casa de família. Devido a este modo de vida auto-suficiente e básico, tornou-se especialista em canalização e electricidade. Depois de se licenciar na Universidade de Denver, regressou ao Alasca e casou-se com um pescador. Foram viver numa pequena ilha na costa do Alasca chamada Kodiak e têm vivido junto ao mar desde então. No decurso de dez anos, Robin Hobb teve três filhos e nesse tempo conseguiu também continuar a escrever histórias e enviá-las para revistas. Em 1982, publicou o seu primeiro livro e seguiram-se três outros com as mesmas personagens. Estas obras foram escritas com o pseudónimo Megan Lindholm e, embora tivessem obtido críticas positivas, a fama e fortuna ainda estavam muito distantes. Depois de várias colaborações e outras obras publicadas, decidiu sentar-se e começar a escrever algo diferente, um livro que ia escrevendo sob o nome “Bastardo de Cavalaria”, e que era contado na primeira pessoa, uma técnica pouco comum. Foi por esta altura, em conversa com o seu agente, que decidiu criar um novo pseudónimo que se adequasse a este novo estilo de escrita - o andrógino Robin Hobb foi escolhido, pois Robin tanto podia ser o nome de um homem ou de uma mulher e Hobb era usado devido à sua semelhança com personagens de fantasia como Hobbits e Hobgoblins. A série de fantasia mais popular de Robin Hobb é A SAGA DO ASSASSINO. A ideia para a saga surgiu num pedaço de papel que conservava numa gaveta e que dizia simplesmente “E se a magia fosse viciante?” e “E se a magia fosse destrutiva ou degenerativa?”. Constituída por cinco volumes em português, o enredo segue as aventuras de um assassino treinado de nome Fitz. Alguns anos depois a personagem teve direito a uma nova saga O REGRESSO DO ASSASSINO. Ninguém pode dizer que Fitz não é uma das personagens mais interessantes de toda a literatura fantástica.


anĂşncio Assassino

Venha ler excertos das duas sagas do Assassino em W W W. S A I DA D E E M E R G E N C I A . C O M

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A

pós a Segunda Guerra Mundial, Stephen Huxley regressa à casa de infância na orla do misterioso Ryhope Wood, o bosque de carvalhos que consumiu a existência do pai George e atrai inexoravelmente o irmão Christian. Também Stephen acabará imerso nos mecanismos do bosque, apaixonado por Guiwenneth, obsessão dos homens Huxley e personagem mitológica, um mitago. Publicado em 1984, Mythago Wood desenvolve-se sobre a premissa de um bosque primordial, resistente à exploração e em última análise inconquistável, onde se geram representações carnais das figuras do imaginário colectivo britânico provenientes das mais diversas épocas: mitagos. Ainda que os Huxley procurem entender os mecanismos deste processo, limitamse sempre a aflorar a questão. Por muito que desenvolvam as explicações e as dotem de um certo cunho científico, não conseguem controlar a situação nem compreender até que ponto as suas histórias se relacionam e ligam com as dos mitagos. O bosque reina sobre tudo e todos os que o rodeiam, afirmando-se como um protagonista em si mesmo, algo que a sequência narrativa evidencia. Quando Stephen e Christian se esforçam por descobrir respostas, nunca as 74 /// BANG!

encontram; elas chegam a um ritmo e sentido de oportunidade próprios. Ademais, o bosque actua sobre os humanos que com ele se relacionam, modificando-os e até incorporando-os. Prevalece sempre a vontade da terra. Robert Holdstock condiciona a maioria da história ao ponto de vista de Stephen, mas ao adoptar uma estrutura narrativa que se serve dde cartas e ddiários de terceiros, ir s p rmi permite uma compreensão ampla ddas personagens. Além disso, eestas crescem, modificam-se, im impedindo definições fixas e contradizendo tanto preco conceitos quanto expectativvas. De modo semelhante, o en enredo avança em cadências al alternadas, ora calmas ora ap apressadas, que, conjugadas co com uma linguagem cuidada e escorreita, ajudam à imersã são nos eventos e conflitos. M Mythago Wood respira mitologia celta se sem se esgotar nela e embora evite os usos habituais deste tipo de temáticas não tenciona negá-los, preferindo reinventá-los. O resultado é uma obra original, surpreendente, prenhe de maravilhoso e interesse. / Inês Botelho

Para a maioria o nome Fernando Ribei-

ro é associado apenas com a banda portuguesa Moonspell. Alguns recordarão elementos mais literários na sua carreira como a tradução de uma banda desenhada ou a participação numa antologia. Mas até estes últimos poderão ser agradavelmente surpreendidos com os dois contos de Senhora Vingança. A primeira história, TRVE, explora a corrupção comercial do vampiro, a transformação de um ser macabro em jovem romântico, alvo das paixões dos adolescentes. Desconstruindo a realidade, o conto segue os preparativos para o maior evento literário do ano, o lançamento do próximo livro da escritora que terá iniciado a moda vampírica. Esboçando algum sarcasmo, é uma descrição mordaz dos mecanismos publicitários, em que se sacrifica a qualidade pela venda de milhões de cópias. Um relato onde se intercala a ganância dos que exploram o marketing do evento, com a ofuscação da multidão. O objectivo do evento, inebriar a audiência, torna-se irónico quando um grupo de jovens decide sabotar o evento, um teor de violência com efeito libertador. Apesar de compreensível, o desfecho não me agradou totalmente. Mas o que gostei foi de uma história fechada, composta e balanceada, sem descrições desnecessárias. A segunda história, Exercício de cidadania, explora a temática da vingança de forma distinta, mas também violenta. A personagem principal é um assassino em série, que escolhe como alvo os homens que, exercendo cargos poderosos, enriqueceram ilicitamente, recorrendo à corrupção, à burla ou à vigarice. Entre a objectividade e a frieza do assassino assistimos a pequenos momentos de


humor negro, resultado da mistura entre a ironia das mortes e o comportamento relaxado do assassino. Ainda que a premissa do segundo conto me tenha agradado mais, senti uma estrutura mais relaxada, com episódios desnecessários. Sem chegar à categoria do excelente, a leitura é rápida e aprazível, e as histórias apresentam-se compostas, pensadas e com grande dose de ironia. / Cristina Alves

O circo ambulante capturou a imaginação de muitos autores e cineastas desde que surgiram os primeiros empresas de Carnival ambulantes nos EUA no início do século XX. Circo sempre foi sinónimo de marginais e freaks que operam maravilhas e exibem características excêntricas que chocam os espectadores. O mundo do circo é uma realidade alternativa em que operam forças desconhecidas e nele a arte do entretenimento atinge o rubro. Desde Freaks de Todd Browning até aos muitos actos circenses que povoam os filmes de Fellini, nunca o circo e os seus habitantes deixaram de fascinar os intelectuais e artistas em ambos os lados do Atlântico. Na literatura, o circo também se fez representar condignamente. Como não mencionar o grande clássico de Ray Bradbury, provavelmente a sua obra-prima, Something Wicked this Way Comes? (a ser publicado pela SdE em 2012). Na melhor tradição literária norte-americana, Ray Bradbury evoca a difícil passagem da adolescência para a idade adulta numa voz poética que parece despertar os mais antigos instintos primordiais do Homem. A curiosidade de dois rapazes por um estranho circo que visita a sua vila no mês de Outubro desencadeia uma série de eventos em que irão terminar a lutar pe-

las suas vidas contra as forças malignas do circo. O Homem Ilustrado, Mr. Dark, lidera esta estranha congregação de almas e, quando mais ninguém suspeita, um carrossel gira em sentido contrário rejuvenescendo todos os que se atreverem a montá-lo. O sonho cede ao pesadelo e o que aparenta ser uma feira de entretenimento torna-se uma entidade perseguidora de duas crianças aterrorizadas por coisas que nunca deviam ter visto. Mas é a poesia negra e sedutora de Bradbury que torna este clássico tão inesquecível; a lírica poderosa invade todas as esquinas e ruelas desta história, tornando-a muito mais do que uma mera evocação nostálgica da adolescência. Neste bizarro carnival de freaks condenados à danação, o mal é tão velho como o diabo e o pecado. E é apenas a pureza de coração de duas crianças e um velho que servem como única arma contra essa coisa malévola que se aproxima. Inesquecível a cena da biblioteca onde se desenrola um dos principais confrontos do livro. Enquanto Bradbury explora as trevas em torno do circo, um outro romance, de uma estreante norte-americana, redescobre o circo como palco de ilusões, atingindo estas todo um novo patamar. The Night Circus de Erin Morgenstern é bem capaz de ser um das leituras mais refrescantes e surpreendentes desde que Susanna Clarke surgiu em cena com os seus cavalheiros vitorianos. Muito à semelhança de O Prestígio de Cristopher Priest, também estamos perante a rivalidade de dois mágicos de palco. Mas ao contrário das personagens de Priest, os mágicos de Morgenstern são verdadeiramente capazes de actos de magia. A sua rivalidade não se exprime através da grandiosidade dos seus actos de ilusão, mas na selecção de discípulos que irão disputar um antigo jogo de contornos vagos e enigmáticos. Celia Bowen e Marco Alisdair apenas sabem que foram seleccionados enquanto crianças e estão a ser preparados para o jogo onde as suas habilidades na magia serão testadas até ao limite. E como palco desta demonstração de talentos foi escolhido Le Cirque du Rêves, o circo dos sonhos, uma criação deslumbrante que apenas existe para testemunhar o con-

fronto entre estes dois concorrentes que desconhecem a identidade um do outro. O verdadeiro teste consiste em disfarçar a magia como acto de ilusão perante os olhares dos comuns mortais. O circo ambulante ganha em complexidade à medida que mais tendas vão sendo adicionadas, fruto do talento de ambos os rivais. A sua fama chega a todos os cantos do mundo e muitos são os espectadores que entram nele e são transformados para sempre pela experiência. Incapazes de esquecer as maravilhas que viram, tornam-se os Revêurs, pessoas que perseguem o circo e o acompanham na sua viagem. A delicadeza e elegância da escrita de Erin Morgenstern presta-lhe um excelente serviço ao criar a atmosfera certa que enleia o leitor. As descrições nunca são entediantes e as tendas tornam-se peças bem arquitectadas muito fáceis de imaginar. O jogo prossegue ao longo dos anos, mas a imprevisibilidade da natureza humana prega uma partida a todos os envolvidos e escolhas terão que ser feitas que podem destruir ou não o trabalho de duas vidas ligadas por uma competição mortal. A surpreendente maturidade deste romance de estreia torna-o uma leitura certamente recomendada. São estas duas abordagens – uma clássica e outra muto recente – que me levam a concluir que o fascínio pelo circo nunca se desvaneceu e nunca esteve tão vivo como agora. / Safaa Dib

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lguma vez leram um livro e gostaram tanto dele que não conseguiam pensar em outra coisa? Gostaram tanto desse livro que tiveram que o reler para repetir a sensação de maravilha e descoberta que se apoderou da mente e coração. E quem diz livros, diz também filmes, jogos ou séries televisivas. O gosto transforma-se numa forma de obsessão e surge uma imperiosa necessidade de partilha com alguém que compreenda o entusiasmo e o intenso prazer de ler, jogar, ver algo que nos tocou de uma forma particularmente profunda. A comunhão entre pessoas que partilham o mesmo objecto de devoção é o que gera as comunidades denominadas de fandoms. E esta palavra ganha muito mais importância no 76 /// BANG!

género fantástico com um muito maior pendor para a formação destas pequenas comunidades. Talvez pela sua natureza propícia a nichos, é neste tipo de literatura que se concentram alguns dos mais fandoms mais populares e intensos na sua dedicação. Portugal também tem a sua dose de fãs e quatro deles foram convidados para esta Távola. O veterano fã da ficção científica, João Barreiros, uma fã de Sangue Fresco (livros e série), Telma Teixeira, Catarina C. que se autodenomina uma Potterhead (fã do universo Harry Potter), e João Oliveira, que vive muitas paixões, mas se tivermos que identificar uma delas terá que ser o universo Star Trek.


A discussão na presente Távola abre com a inevitável pergunta: o que é um fandom? As respostas são consensuais ao afirmarem tratar-se de uma comunidade de “pessoas que se reúnem em redor de um objecto de devoção”, para citar a Catarina. Na perspectiva de Telma Teixeira, “têm um forte desejo de informar, estarem informados e sobreanalisarem tudo até à exaustão”. João Oliveira vai mais longe e considera os fandoms como uma celebração de uma obra de arte ou autor, “uma experiência única e enriquecedora se for aproximada com a mente aberta”. E nessa defesa à causa, João Barreiros afirma que quase tudo é permitido, “os fandomistas vestem-se, falam e comportam-se

como as suas personagens favoritas, sejam elas retiradas de comics, ou das séries de TV. Chegam mesmo a traduzir a Bíblia para Klingon.” Refere o caso extremo de um fã, na presença do Stephen King, que “chegou mesmo a cortar os pulsos para que este autografasse em sangue o novo livro”. Quando se aperceberam os nossos convidados de que se tinha tornado mais do que um gosto, e sim uma paixão? Telma diz que demorou uns bons meses a reconhecer a sua obsessão em relação à saga Sangue Fresco, mas “quando fiquei acordada pela primeira vez até às 3 da manhã para ver um episódio em directo foi um forte indicador de que a minha rotina normal se tinha alterado”. Finalmente aceitou o facto de pertencer a um fandom quando a Saída de Emergência a convidou a gerir os conteúdos do blogue Sangue Fresco. João Oliveira indica o moBANG! /// 77


mento em que a Internet foi instalada pela primeira vez em casa como determinante para aderir a fandoms, “com a vinda da Internet descobri que existiam grupos inteiros que giravam à volta dos livros que lia, e foi um género de revelação”. Em relação à sua paixão por Harry Potter, Catarina apercebeu-se de que, ao contrário dos amigos, o seu entusiasmo não esmorecia e lia vezes sem conta os livros. João Barreiros diz não ser capaz de pertencer a nenhum tipo específico de fandom e gosta de consumir um pouco de tudo, mas a grande paixão que despertou as suas endorfinas terá sido, sem dúvida, a literatura de ficção científica. A paixão começou a com a descoberta em miúdo dos livros da Argonauta, do Salgari, do Wells e Burroughs. “A descoberta da FC mudou tudo na minha vida. Os meus afectos. Os meus amigos. A aprendizagem de duas ou mesmo três línguas diferentes”.

Uma pessoa não pode deixar de se interrogar se existem vantagens associadas a este tipo de comunidades. Apesar de consumirem muito tempo diário, o contacto com outras pessoas que partilham a mesma devoção “tornou-se importante, quase essencial” para Catarina que cresceu numa pequena cidade onde pouca gente partilhava os seus gostos literários. Telma comunga da mesma ideia, “a grande vantagem foi não me sentir sozinha. Havia alguém numa parte qualquer do mundo que compreendia e partilhava a minha paixão e com quem eu podia trocar ideias sobre isso”.Oliveira diz que passou a ter um lugar para discutir as suas estranhas escolhas de passar o tempo com outras pessoas, mesmo que vivessem noutra parte do

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mundo e não conhecesse os seus nomes verdadeiros, e essas discussões passaram a ser praticamente rotina”. João Barreiros só se apercebeu de que havia outras pessoas com os mesmos gostos muito mais tarde e refere que “se os fandoms fossem grupos bem organizados, o resultado seria ideal. Seria como um pedacinho de céu na triste melancolia deste nosso inferno”. Neste ponto já se tornou óbvio constatar o papel vital da Internet no desenvolvimento de fandoms. Foi apenas através do recurso à Internet, seja para contactar outros fãs, seja para procurar mais informação, que os nossos convidados tiveram a oportunidade para se dedicarem em pleno às suas obsessões. João Oliveira admite que “sou culpado de passar tempo extra à frente de um computador e sempre preferi ter mais livros e afins para poder acompanhar o que falavam na Internet. Essas horas enriqueceram a minha vida, descobri livros e filmes que se calhar nunca teria descoberto e hoje considero-me uma melhor pessoa por tal.” Não deixa, no entanto, de avisar contra o excesso da Internet, “é preciso saber quando está na hora de ir offline, e lembrar que existe mais no mundo e na vida”. Catarina também admite que se tornou uma utilizadora intensiva da Internet devido às suas paixões pelos livros, sendo “muito compensador o estabelecimento de uma rede social de contactos, que mesmo do outro lado do mundo, compreendem as nossas alegrias e desgostos em relação àquele livro que tanto adoramos.” Telma menciona as pessoas com quem contacta diariamente sobre Sangue Fresco como “os meus amigos da terapia” e considera a Internet como a “única forma que o fã tem de obter informação ou discutir ideias com outros fãs”.

Curiosamente, se a vontade de socializar se tornou mais forte para alguns, para outros só conduziu ao oposto. João Barreiros admite que os seus gostos tiveram como consequência o isolamento, “não falo de futebol. Não falo de pedagogia. Detesto a conversa de treta que versa sobre coisa nenhuma. Não há pachorra para a seriedade e absoluta falta de humor. Não há pachorra para as almas sensíveis e para os tecnofobos da esquerda miserabilista. Não há pachorra para a estupidez. Diz-se que a tolerância aumenta com a idade, mas é falso. Quanto mais velho sou, menos paciência tenho.” Felizmente que para o João Barreiros este isolamento não implicou perder todas as características de sociabilidade. Mas todos nós conhecemos histórias do lado negro da Internet, do nerd que não tem vida social ou é incapaz de interagir socialmente. Será essa personagem um cliché? Catarina acha que existe essa realidade, mas tem a ideia que é cada vez menos frequente e que, hoje em dia, “a informação está cada vez mais acessível a toda a gente e na própria Internet há cada vez mais lugar para a socialização”. Para a Telma, apesar de se parecer que se perde muito tempo isolado, “a verdade é que o fã esteve a socializar, só que usando formas diferentes de o fazer. Além disso, muitos fandoms dão origem a encontros na vida real, o que significa que há uma vontade real de socializar offline.” Oliveira crê que o geek que não tem vida é um estereótipo bastante infeliz e não é a norma, mas “os estereótipos são baseados em alguma coisa. É bastante fácil uma pessoa perder-se e esquecer-se que existe mais na vida que fazer parte de um grupo dedicado a uma obra de ficção científica. Fazer parte de


um fandom é algo extremamente bom, desde que seja em moderação.” João Barreiros encara isso como consequência dos jogos online e de uma certa cultura nipónica, mas “não somos Otakus. Pelo menos eu não sou”.

Muitos fandoms em Portugal surgiram com o boom da fantasia na última década em Portugal. Nasceram muitas comunidades online compostas por uma faixa etária predominantemente jovem. Recordo-me muito bem de ter acompanhado, desde 2001, fandoms em torno de J. R. R. Tolkien, Robert Jordan, Filipe Faria, George R. R. Martin, mas havia outros em torno de Juliet Marillier e Harry Potter. Em ficção científica existia desde há muito mais tempo o grupo da FC composto por uma faixa etária mais velha, ranzinza e masculina. Se há algo em comum que posso apontar a todos eles é o facto de se terem iniciado com muito entusiasmo e boas intenções, deram lugar a fortes amizades e inimizades que perduraram ao longo dos tempos, mas progrediram em direcção a um certo desencanto devido a falta de interesse no foco de devoção ou a conflitos sociais internos no fandom. Flame-wars tornaram-se um termo popular entre os fandoms, significando uma discussão exacerbada entre participantes que muitas das vezes terminava em insultos, posts apagados e muitos egos amachucados. Quantos destes fandoms prejudicaram-se ao recusarem-se a aceitar ver para além do seu objecto de obsessão? Catarina afirma que “talvez em proporção ao grau de devoção/obsessão, surja por vezes um grau de intolerância, por vezes agressivo, em relação a novas pessoas, como também em relação a outros focos de fandom”. João Barreiros tem a im-

pressão que lá fora “os trekkis só comunicam com outros trekkies e só lêem trequices. Que as vampiras adolescentes só falam do angst de ter de crescer e verem a luz do dia. Que os infanto-fantasistas só querem saber de combates às espadas contra as Forças da Noite. Nenhum destes grupos vai ler livros pertencentes a outras tribos”. Telma refere o caso dos “serial fandom fans que transferem a sua obsessão de fandom em fandom”, um dos casos que acha pouco saudáveis porque acha que “tentam colmatar algo que lhes falta na vida real.” João Oliveira pensa que “irá sempre existir aqueles que não conseguem ir mais além, pois para estas pessoas admitir que possa existir algo melhor que aquilo que elas veneram é impossível. E tal como o geek sem vida, não é uma consequência de fazer parte de um fandom, mas de não saber largar.”

Como terão evoluído os fandoms em Portugal? João Barreiros diz que são tribos às quais resolveu deixar de pertencer. “O nosso país é muito pequeno. Os territórios demasiado limitados. As invejas e dores de corno são demasiado poderosas. Há quem opte por estar horas na Internet a dizer mal dos outros.” Telma nota que os fãs portugueses são apaixonados, mas comentam pouco e evitam comentários negativos, mesmo que tenham argumentos válidos. A situação mais negativa que teve que enfrentar foi “um caso de um blogue que copiou durante algum tempo os textos que eram publicados no Sangue Fresco”. Catarina sempre lidou com fandoms num contexto mais internacional, através da Internet, “e das poucas vezes que me envolvi em comunidades portuguesas acabei por me afastar. Talvez por ser mais nova na altura, achei que eram grupos muito fechados, e pouco noob friendly (pouco simpáticos para com os novatos que ainda se estavam a identificar com os fandoms).” No entanto, nem tudo é negativo e refere que neste momento “já se encontram comunidades mais abertas e tolerantes, mas penso que ainda é pos-

sível melhorar um conceito que se quer saudável”. João Oliveira acredita que os fandoms estão a ganhar mais fãs em Portugal “mas acho que ainda falta que ficção científica e fantasia passem a ser mais mainstream em Portugal. Não falo de obras estrangeiras, mas obras Made in Portugal para fornecer uma identidade ao fantástico português e por si aos fandoms portugueses. Já existem autores com algum sucesso e é só caso de continuar a divulgar e dar oportunidade”. Fechamos a távola pedindo aos nossos convidados que nos descrevam o seu ideal de fandom. “Gostava de ter uma comunidade fandom mais sólida e participativa, aberta a novas pessoas, com mais eventos organizados. Em vez de ser uma coisa maioritariamente online e conflituosa como tem sido”, comenta Catarina. Telma refere ser a favor da criação de mais “blogues, fóruns e outros espaços em que os fãs criem os seus próprios conteúdos e façam eles mesmos as traduções”, de modo a criar um “fandom apaixonado, participativo, uma comunidade que troca ideias e discute teorias respeitando aqueles que têm opiniões diferentes das suas”. João Barreiros termina com uma citação de Wittgenstein, talvez fruto do seu desencanto com as comunidades fandom portugueses, “sobre o que não se pode falar, importa calar.” Ainda assim, todos os dias nasce um novo fã com uma grande paixão por exprimir. Torna-o mais feliz. Torna-o uma pessoa mais interessada na vida. Torna-se um vício, mas em muitos casos é um bom vício e pode mesmo dar lugar a oportunidades sensacionais. Novos fandoms irão surgir todos os dias em grau proporcional a novos autores e fenómenos de culto. No fundo, cada fã enfrenta a mesma escolha de Alice, a de seguir (ou não) o coelho branco e cair bem fundo na sua toca para descobrir o país das maravilhas.

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s criaturas de Bosch estão a ser avistadas nas ruínas do Convento do Carmo, em Lisboa. Criaturas de pesadelo que se libertaram de pinturas demoníacas e que fazem questão de estar presentes para anunciar mais uma edição do Fórum Fantástico, a convenção do género fantástico que se realiza este ano de 18 a 20 de Novembro, na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Telheiras. O espanhol Félix Palma, autor de O Mapa do Tempo, e Victor Mesquita, autor português da mítica série de banda desenhada Eternus 9 (Gradiva) serão alguns dos convidados desta edição. Juntando-se a eles, teremos diversos intervenientes do género fantástico com participações nos vários painéis de debate e apresentações. Os professores Maria do Rosário Monteiro, Jorge Martins Rosa e João Lin Yun representam o universo académico e discutirão o ensino da ficção científica. O tratamento do género na literatura fantástica será um dos painéis do dia de sexta-feira com a presença de Daniel Car-

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doso e Inês Rolo, e os autores Madalena Santos (1001 Mundos, Asa), Bruno Martins Soares (SdE) e Pedro Ventura (Presença). Conspirações e Apocalipses serão outros dos temas abordados por alguns autores nacionais com obras recentes publicadas, entre eles, Renato Carreira (SdE) e João Leal (Quetzal). O autor David Soares encenará no evento uma peça de spoken word, com música ao vivo de Charles Sangnoir. As antologias fantásticas nacionais marcam uma forte presença nesta edição e terão direito a um painel, bem como apresentações, com destaque para três antologias que têm dado que falar: Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa (SdE) organizada por Luís Filipe Silva e Luís Corte Real, Lisboa Electropunk (SdE) organizada por João Barreiros e Antologia de Contos de FC do Fantasporto 2012 (1001 Mundos – Asa), organizada por Rogério Ribei-

ro, esta com direito a anúncio exclusivo dos vencedores do concurso. João Monteiro, organizador do Festival MotelX, irá estar presente para falar do seu novo projecto relacionado com a carreira cinematográfica de António de Macedo, também um dos ilustres convidados desta edição. Filipe Melo marca presença no início do dia de Domingo com a apresentação do seu mais recente volume de BD, Dog Mendonça – Apocalipse (Tinta da China). De resto, será um dia com uma forte representação da Banda-Desenhada portuguesa e muitos dos seus artistas mais reputados. Não faltarão outros debates, actividades, surpresas e muito convívio de bastidores para tornar esta edição do Fórum Fantástico mais uma vez memorável. BANG!




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