Salomão Rovedo - Em blog (2014 2015)

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SalomĂŁo Rovedo

...em Blog (2014/2015)

Rio de Janeiro 2016


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2014 ... em Blog Índice Pequena História da Feira de São Cristóvão, pg.3 Oliveiros Litrento, pg. 7 Balões – de folclore a crime, pg. 12 Scott Fitzgerald – O grande Gatsby, pg. 16 Fernando Braga – Magma (poesia), pg. 19 A fidelidade de Argos, o cão de Ulisses, pg. 23 Derek Walcott, pg. 29 Manu Bandeira – Carnaval, pg. 33 Malba Tahan – O homem que encantava, pg. 36 Jane Austen – Persuasão, pg. 40 O múltiplo Fernando Braga, pg. 43 Duayer – As histórias do meu avô, pg. 45 Onde andará Willy Ronis?, pg. 48 Chaplin – Uma vida, pg. 53 G. G. Márquez – Memoria de mis putas tristes, pg. 64 O futuro é ontem, pg. 69 Comensais apressados, pg. 73 Machado de Assis vs. Lima Barreto, pg. 76 Luar sobre Panacoatyra, pg. 81 Brasil abaixo de zero!, pg. 85 Índio não quer apito, quer demarcação, pg. 88 Clamor insano contra as “indenizações”, pg. 94 50 anos de ditadura musical, pg. 98


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Pequena história da Feira de São Cristóvão

É a feira nordestina Que é tradicional Desde quarenta e cinco Do nosso século atual Que funciona essa feira Ali naquele local. Apolônio Alves dos Santos no folheto “A feira dos nordestinos no Campo de São Cristóvão-RJ”, aparece como o primeiro poeta de cordel a historiar as origens daquele famoso reduto de poetas e cantadores no Leste do país, mesmo quando confrontada com os pontos de encontro de nordestinos e nortistas na Praça da República em São Paulo. Muitos outros poetas de cordel e folheteiros escreverem sobre o tema, nenhum com tanta fidelidade e felicidade como Apolônio, que residiu e viveu toda a passagem pelo Rio de Janeiro na Barreira do Vasco, sub bairro de São Cristóvão, ao lado do Estádio de São Januário, do Vasco da Gama. Na década de 1940 o Campo de São Cristóvão (ou Praia de São Cristóvão, como o local era mais conhecido), abrigava a quase totalidade das agências de transporte de carga e passageiros entre o Nordeste e o Rio de Janeiro. Mesmo os veículos – caminhões e ônibus – em trânsito para São Paulo faziam ali uma parada intermediária, pois sempre havia algum passageiro ou alguma carga em trânsito. Era, portanto, muito grande o vai e vem de emigrantes, recém-chegados, em trânsito, de carga e de bagagem, que descarregavam a todo instante, as encomendas ansiosamente


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esperadas, as remessas monetárias, feitas em confiança, que seguiam como pequeno adjutório aos que ficaram lá na terra distante. Muitos passageiros também se arrumavam nos caminhões de carga, que acabavam por se transformar em transporte misto. Felizardos entre a grande maioria eram os que chegavam de férias, viajantes de momento, que estavam apenas a cumprir visita, depois de longos anos, ou participar da despedida final de parentes recém-falecidos ou recém-nascidos, realizar os sonhos amorosos até para dirimir alguma querela familiar, para o quê sua presença era indispensável. O trocador de ônibus e bom poeta nas horas vagas, Cícero Vieira da Silva (Mocó) tem um folheto em que narra com felicidade a odisseia do nordestino. A chegada no sudeste é quase sempre assim: No Campo de São Cristóvão O pobre desce do carro E segue de rua a fora Sem ter no bolso um cigarro Com a maleta na Mao E a roupa da cor do barro. E segue desconfiado Como um pássaro que não voa E sai olhando pra ver Se avista uma pessoa Que lhe conhece do norte Não encontra, fica à toa. Cícero Vieira da Silva (Mocó) - “Os martírios do nortista viajando para o sul”

A movimentação no Campo de São Cristóvão era mais pronunciada justamente aos domingos, dia de chegada de vários ônibus e caminhões vindos das mais distantes regiões, empoeirados, pneus sujos de barro, trazendo como carga uma população até então estranha aos olhos do carioca. Esse deslocamento para o Campo de São Cristóvão oficial dos veículos vindos do Nordeste era o registro


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de uma das primeiras manifestações de discriminação ao paraíba e ao pau-de-arara, que se tornou proverbial não só naqueles dias remotos, mas atravessou os tempos e sobrevive ainda hoje. Eles eram os indesejáveis, expulsos do sertão pela “indústria da seca”, tocado para fora de suas terras, vencidos pela dificuldade de sobrevivência diante dos muitos percalços inventados pelos senhores feudais. Essa perseguição que vem desde os tempos das sesmarias, causou o êxodo dessa população itinerante, que chegava para criar e povoar as favelas do sudeste. Recorro mais uma vez ao poeta Apolônio Alves dos Santos, que registra em seu folheto, já citado: Porque todos nordestinos Todos domingos seguiam Pro Campo de São Cristóvão E ali se reuniam Mesmo sem haver a feira Era aonde apareciam. Centenas de pessoas de origem nordestina para ali se dirigiam em busca de conhecidos, parentes distantes, de alguma pessoa recomendada, para saber notícias da terra ou encomendar coisas e pessoas de alguém que lhe fora confiado. Todos sabemos que, para quem chega em busca de trabalho e estudo, a aventura dos primeiros dias são os mais difíceis, mas o conterrâneo que o recebe não o deixa na mão, chega com o apoio, o ânimo, divide o pouco que tem irmãmente. Aquele fluxo intermitente de pessoas acabava por se constituir num agradável encontro de gente que tinham algo em comum, mas que a vida agitada da metrópole torna difícil o convívio diário e os mantém afastados entre si. Mas esse encontro semanal trazia também a conveniência de provocar novas amizades, nascidas de uma conversa informal, isso porque em algum momento se descobriria que algo em comum viria a unir duas ou mais pessoas. Permanecendo essa população em trânsito ali, durante horas a fio, na expectativa da chegada de um ônibus ou caminhão, cujo atraso era histórico, também resultava


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que provocasse o nascimento de um comércio ambulante. Logo apareceram vendedores de comidas e lanches com sabores típicos do nordeste, o folheteiro com sua velha mala aberta no chão, o violeiro, o cantador, o repentista... Essa reunião semanal aguçou a veia, meio satírica, meio discriminatória, do carioca, que apelidou depreciativamente o Campo de São Cristóvão de “Aeroporto dos Nordestinos”. Na verdade as autoridades desviaram a chegada dos nordestinos para São Cristóvão para não macular a formosa Rodoviária Estadual – Terminal Rodoviário Mariano Procópio – inaugurado em 1950 na Praça Mauá. Pura discriminação. 19/12/2014


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Oliveiros Litrento

Romance - Prêmio da ABL 1982 Editora Numeriano - Maceió, AL - 2004

Conheci Oliveiros Litrento no Clube de Xadrez Guanabara, onde, é claro, a conversa raramente ultrapassava os limites dos tabuleiros e partidas. Muitos parceiros de jogo eram assim: maestros, militares, matemáticos, engenheiros, músicos, gente de toda classe frequentava o CXG – jogadores de xadrez também! Litrento foi o melhor dos companheiros: fala macia, sempre sorrindo, apaixonado por xadrez. Mas quando a conversa pulava a cerca além do jogo, a prosa fluía mansa e firme, cheia de conhecimento. Desviamos uma conversa ao acaso para literatura, pois no dia seguinte ele me presenteou com “Tempo de Cachoeira”, romance de sua terra natal - Alagoas. “Don’Ana, educada, falando com aquela deferência desembaraçada em movimentos, a arrastar o vestido comprido de punhos bordados, cabelos negros e longos, cuidadosamente enrodilhados em cocó, a filha mais velha do Coronel Chiquinho era tão bela como um passarinho de sua infância. Flores derramadas no caminho. Brancas. Vermelhas. Roxas. Uma senhora de engenho, casada, cujas belas feições guardara, parecia ter quase o mesmo rosto da namorada. O roçar do vestido, aproximando-se, fazia com que baixasse a vista, como se estivesse face a face com o andor de Nossa Senhora da Conceição. De olhos fechados, voltava aos passeios alegres da meninice”.


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Interessado em conhecê-lo melhor fui descobrindo uma obra gigante nas letras nacionais. Então aquele Oliveiros Litrento, jogador de xadrez a quem comove as belas jogadas, simples em gesto, fala e aparência, trazia a reboque importante carga de conhecimento, que, alegre e feliz, dividia com alunos, leitores e amigos, pois era professor de Direito Político e Internacional na UFRJ, Gama Filho e UERJ, de Direito Constitucional Penal Militar Internacional na AMAN, Perito e Doutor em Direito Internacional pela ONU. Tempo de Cachoeira é um romance que fala desse outro Oliveiros Litrento, de inspiração cuja utopia vira sonho e o sonho vira utopia: “Era Don’Ana o sol esquentando o rio, a chuva que gerava o canavial do engenho, a alegria da safra, o gosto de açúcar mascavo, a moça das toadas nostálgicas, com formosura de princesa, que os cegos cantavam nos abecês de feira e os almocreves repetiam, tangendo bestas, em longas e carregadas viagens, cansativas e solitárias. Cantigas de gajeiro. Cavalhada. Canavial gemendo. Fragmentos da Nau Catarineta. Os samburás com aguardente batendo. Argueiro no olho da poeira dos caminhos. A toalha leve, que se alongava na mesa, toda serpenteada de riscos azuis, lembrava o mar, que não conhecia, trazendo ruas daquele rio de janeiro, belo, misterioso e distante. E a moça quase não sorria. Mas o que dissesse era agradável de ser ouvido”. Na literatura, área de meu interesse, meu parceiro de xadrez foi laureado com os Prêmios Sílvio Romero, Olavo Bilac, Jorge de Lima, Paula Brito, Orlando Dantas e Silvio Romero, Oliveiros Litrento integrou o Conselho Superior do IAB, a Academia de Letras do Rio de Janeiro, de Alagoas e a Federação das Academias de Letras do Brasil. Oliveiros Litrento (São Luis de Quitunde, AL-1923 Rio de Janeiro - 2006), no romance Tempo de Cachoeira fala de sua terra, de suas memórias, mas relata em especial aspectos de todo o Nordeste: “Maria Rita, agora, era apenas uma sombra. Não voltaria mais. Tinha as pálpebras fechadas de sono. A longa cabeleira negra vinha do


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mar e o corpo era denso de noite. Resgatado às origens. Os olhos da adolescente subiram aos céus e piscam agora como estrelas distantes, guardando com ternura as águas que caem fragorosamente dos despenhadeiros selvagens de Cachoeira. Era como se magicamente tivesse regressado à infância para viver de novo na plumagem dos pássaros coloridos, no ruído leve das folhas acordadas pela madrugada, nas jangadas da manhã nascente, deixando de leve a praia de Pajuçara”. Que grande amigo eu tive! Amigo no tabuleiro, quando dividíamos comentários sobre os lances de uma partida de xadrez, escritor e poeta inspirado, Litrento escreveu em poesia: O soneto e a fábula; O leopardo azul; O astronauta marinho; 100 sonetos de amor; Orfeu e a Ninfa; Inquietação de Narciso. Em prosa: Pajuçara (novela); O cego e o mar (contos); Tempo de Cachoeira (romance); O dorso da pantera (romance). Deixou escritos de crítica literária, ensaios, literatura brasileira, história, além de estudos didáticos na área de direito internacional. O talento do meu parceiro de xadrez ficou claro quando li e reli esse romance maravilhoso: “Constatado o vazio da clareira, as árvores da mata, aturdidas e silenciosas, pareciam gigantes pesarosos, recusando a humilhação da ausência. Sugerindo que tudo não passava de uma brincadeira de mau gosto, pesada, mas efêmera. Tendo a imaginação tocada pelo delírio, Teodorico apeou-se, amarrando o cavalo solitário e foi encostar a cabeça no tronco daquela mesma árvore que havia abrigado o primeiro amor de sua juventude. E olhando para o chão de folhas, que já não era o mesmo, sentiu-se irrequieto com o espírito vagamente confuso”. A mesma mesa do Clube de Xadrez Guanabara em que disputávamos com ardor partidas rápidas amistosas, servia de palco para a conversa informal, mais intimista, direito que os amigos chegados possuem. Numa dessas conversas, Oliveiros Litrento comentou que já tinha concorrido a imortal na Academia Brasileira de Letras por várias vezes. Apesar de ter conseguido mais dez votos ele jamais foi eleito, mas continuava disposto a tentar alcançar esse sonho impossível. Mesmo tendo vários amigos na ABL e sendo rico


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em saber, Oliveiros Litrento não era milionário, senão da palavra. Para a ABL vale mais a riqueza do ouro, do que o ouro da palavra: “Era como se, no escuro, tivesse apagado o último fósforo, como se estivesse descendo as escadas de um subterrâneo com a atemorizante impressão de que pisava um chão de catacumbas. E naquelas formas impuras e incontroladas da existência, exalando vapores asfixiantes de cavernas, retornou vertiginosamente à vida através das águas claras de um mar de esmeraldas”. Litrento, dono de diplomas de várias entidades e academias, não realizou o sonho de entrar na ABL e eu não tive coragem para acordá-lo do que me parecia uma insensatez. Não tem como libertar o sonhador do sonho, só a morte pode fazê-lo. Quem seria eu, pobre mortal, para escurecer seus olhos verdes? Seria amigo se tentasse acordar os sentidos para uma realidade que matou já outros devaneadores? Ainda bem que em distante refúgio Oliveiros Litrento encontraria encanto e alento para tamanha frustração – tanto nas partidas de xadrez que jogava, quanto nas maravilhosas páginas que escrevia, extravasava inspiração, estro e entusiasmo criador: “Aquele instante, de expectativa e silêncio, era simultaneamente deslumbrante e sombrio. Havia um frescor de madrugada como se vovô Medeiros, Don’Ana e Maria Rita, todos estivessem apenas dormindo. Mergulhados em dias transparentes, que lembravam as conchas róseas e amigas de Pajuçara. Como voltando daqueles dias verdes. Assim, o homem grisalho intuiu que a morte era tão somente uma passagem, uma ponte para o outro lado do tempo”. Jogar xadrez é um delírio, tanto quanto o sonho, a utopia – debruçar-se entretido entre peças, perpetrando jogadas, realizando combinações, é o mesmo que sonhar com um Brasil melhor, com amar Maria Rita, dona do romance na imaginação do escritor. Tenho certeza que Oliveiros Litrento – o próprio – caminhou dentro das entrelinhas de Tempo de Cachoeira, romance que parece degraus de sua primeira existência, cheia de experiência e


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sabedoria, mas encharcado de sonhos e devaneios, alimento das aspirações ilusórias, das quimeras que se transformam em delírio: “Na manhã encantada, Cachoeira parecia um vilarejo mágico. Longe do crepúsculo e da morte, todos estavam vivos. A verdade era mentira. E tanto era mentira que Maria Rita chegou de leve, sem as algemas da noite, como subitamente despertada de profundo sono”. 02/12/2014


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Balões – de folclore a crime

Balão Felipinho http://felipewasser.blogspot.com.br

“Na noite escura, profundamente estrelada – a surpreendente beleza desse céu do sertão brasileiro! – balões sobem, aos boléus no vento, de formas impagáveis chameiam estrelinhas, esfuziam as rodinhas, lampejam os pistolões, as fogueiras ardem, piramidais, alumbradamente”. Assim Gastão de Bettencourt – escritor português apaixonado pelo folclore brasileiro – no livro “Os três santos de Junho no folclore brasílico” (Agir, Rio de Janeiro, 1947), inicia o capítulo dedicado aos balões coloridos, que um dia já iluminaram, sem o pecado da culpa, nossas Festas Juninas. Essa descrição “de um céu de beleza ímpar, iluminado pelos balões juninos”, hoje não se aceita mais – fabricar, portar ou soltar balões é crime! (Lei 9.605 de 12/02/1998 - Art. 42 – Fabricar, vender, transportar ou soltar balões que possam provocar incêndios nas florestas e demais formas de vegetação, em áreas urbanas ou qualquer tipo de assentamento humano: - Pena - detenção de um a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente). Os noticiários da TV gritam o decreto com tanta ênfase, com o tom de voz mais acusatório e ameaçador possível, fazendo o corpo do telespectador tremer, o sofá tremer, a sala toda tremer – pois o pavor de ser tachado de criminoso nele cai como uma carapuça, na


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medida. Porém, a tradição das Festas Juninas – aqui incluído o sagrado tríduo de Junho: São João, Santo Antônio, São Pedro – não deixa esquecer esse acessório que torna a noite de Junho mais lúdica e bonita, consagrado através dos tempos pela música, pelas de advinhas, cirandas e outros folguedos típicos da época. Que o diga o cancioneiro popular... “Cai, cai balão Você não deve subir Quem sobe muito Cai depressa sem sentir A ventania Da tua queda vai zombar Cai, cai balão Não deixa o vento te levar” (Assis Valente) “Olha pro céu meu amor Vê como ele está lindo Olha aquele balão multicolor Meu amor vê como no céu vai sumindo” (José Fernandes) “Meu balão azul Foi subindo devagar O vento soprou Meu sonho carregou Nem vais mais voltar” (Carlos Braga Alberto Ribeiro) É assim a cada ano, quando ressurgem as tradições do mês de Junho, assentado como o Mês do Folclore Brasileiro. Em toda a parte ardem fogueiras, sobem balões, dançam-se quadrilhas, girândolas e fogos rebentam no ar. Fogueiras e balões, fogos de artifício, sortes, adivinhas, canjica, pamonha, milho assado na brasa da fogueira, música ao som da viola e da sanfona, roupa colorida, lenço no pescoço, chapéu de palha, para dançar, ouvir cantoria,


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cirandar nas rodas. Na preparação tem o banho de cheiro, exposição de pássaros, dança de boi no terreiro, eis completado o emaranhado cultural que ocorre nos meses de Junho e Julho. O país é tomado de uma febril excitação, tanto o Norte/Nordeste quanto o Sudeste e tantas as terras que acoitaram emigrantes nordestinos. Paira no ar estagnado a mistura de aromas, o povo se confraterniza, a sanfona, a viola e o balão fazem o furor, nos terreiros a alegria se estampa. A Prefeitura Municipal de Nísia Floresta todos os anos divulga a programação para a Festa do Balão, em 2014 entrando na 9ª Edição! O evento acontece nos dias 28, 29 e 30 de agosto, com palco montado ao lado da igreja matriz de Nossa Senhora do Ó, situada no centro da cidade. Quem olhar para o céu nas noites dos festejos pode ver mais que estrelas e faíscas das fogueiras. É Dia de São João e os balões de festa junina – ou balões de São João – continuam colorindo o céu em todo o Brasil, apesar da proibição. Apesar de serem acusados de provocar incêndios e prejudicar a aviação. A tradição trazida de Portugal se mantém nos meses de inverno principalmente no Nordeste, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Sensível à questão, o Congresso analisa dois projetos de lei: um que aumenta a punição para quem solta balão e outro que regulamenta a soltura de balões. Os dois projetos foram apresentadas pelo mesmo parlamentar, deputado Hugo Leal (RJ). “Primeiro apresentei o projeto que aumenta as penas. Logo comecei a receber mensagens de várias pessoas, entidades, associações, todos os setores, até bombeiros. Estudei o assunto e apresentei o segundo projeto sem retirar o primeiro porque temos que diferenciar o balão criminoso, que muitas vezes carrega fogos de artifício, daquele balão de festejo, chamado japonês, o balão junino da cultura popular”. A Sociedade Amigos do Balão, do Rio de Janeiro, através do seu presidente Marcos Real, garante que os parâmetros propostos resultam em balões incapazes de causar incêndios. Ele estima que mais de 100 mil balões voam soltos nos céus do Brasil e não há um só registro de acidente aéreo causado por balão. “Em nenhum país


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do mundo existe proibição total como a que existe no Brasil. Agora em julho é realizado no México o Festival de Balões, com participantes de todo o mundo – o Brasil estará representado. Em Mianmar [antiga Birmânia], a soltura de balões faz parte do circuito turístico oficial”. O senador Humberto Costa (PT-PE) discorda dessa estimativa. Representante de um estado onde é forte a tradição das Festas Juninas (Pernambuco), ele garante que não vê ninguém soltando balões nessas ocasiões. “O projeto tenta se justificar apenas pela preservação da cultura popular, sem dados científicos sobre riscos”. Humberto Costa demonstra que sua herança está alinhada com a oligarquia e com os governos autoritários do passado. Não basta ostentar a estrela do PT para se considerar desvinculado do terror. Hoje em dia cada vez mais isso se apresenta como improvável. Ademais é pouco plausível que o deputado passe as Festas Juninas em Pernambuco – aposto mais na Avenue des Champs-Élysées. Já existem outras opções para manter essa tradição nas Festas Juninas: são os chamados “balões sem fogo”, já admitidos por leis municipais nas cidades de Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo e São João de Meriti (Rio de Janeiro) e Cerro Azul (Paraná). Em São Paulo, a ideia está sendo discutida. Não existe uma estatística que prove que a maioria de incêndios florestais tem como causa os balões. Quem incendeia floresta impunemente são madeireiros, plantadores de soja, criadores de gado, grileiros e invasores de terra. Também nunca li notícia que avião tenha caído, nem que uma refinaria de petróleo tenha se incendiado por causa de balões. A não ser na Síria, onde as refinarias de petróleo são bombardeadas pela França – em nome da Máfia Internacional dos Crimes Contra a Humanidade – a Coalizão. Pesquisa e parte dos textos são de: www.senado.gov.br www.brasilcultura.com.br www.nisiadigital.com.br

20/11/2014


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Scott Fitzgerald - O grande Gatsby

(Biblioteca O Globo, 2007 Trad. Brenno Silveira)

Estou relendo “O grande Gatsby” de Scott Fitzgerald. A edição é da Biblioteca O Globo, com tradução assinada por Brenno Silveira (quanto a isto, preciso do aval de Denise Bottman, consultora especial para assuntos de tradução honesta). Gosto de rever romances antigos, porque aguça a curiosidade a cada nova leitura. Tipo essa: “Numa banca de jornais, [Tom] comprou um exemplar do “Town Tattle” e uma revista de cinema e, numa drogaria da estação, um pote de Cold Cream e um pequeno frasco de perfume”. O que é Town Tattle? Agora sei que, como o nome diz, é uma revista de fofocas da década de 1920, igual à Broadway Tattler. Em nossa terra também tivemos um boom de revistas desse tipo – Revista do Rádio, TV Hora, Pop, Tititi, Paparazzi, Caras, Gente – que mudaram o denegrido “fofocas” por “celebridades”. Tais revistas – apoiadas pelos famosos fotógrafos paparazzi – volta e meia enfrentam processos judiciais por calúnia, difamação, exposição não autorizada, etc. E não só se expandiram do papel para programas de Rádio, faixas sensacionalistas da TV, como também invadiram a internet, resistindo a tudo e a todos.


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E “um pote de Cold Cream” – que diabo é isso? Por que o cara com a namorada a caminho do apartamento compra um creme? Pensei na Pomada Japonesa e no KY. A Pomada Japonesa é pra dor de cabeça e o KY é um gel pra ser usado quando se irá penetrar em locais apertados, mas que, depois, se vê que foi jogar dinheiro fora. Pois o Cold Cream (o nome vem da sensação de frio na epiderme) – emulsão de água, óleo, cera de abelha e perfume –, diz que é pra amaciar e limpar a cútis. No entanto é creme de múltiplo uso: remove maquiagem, limpa os olhos, enxágua o rosto, faz máscara facial, purifica a pele, alivia queimadura, e faz barba! Como se vê, o Cold Cream, a Pomada Japonesa e o KY têm lá suas afinidades... Scott Fitzgerald tem a sua permanência assegurada não só por registrar o retrato de uma época e de uma sociedade, mas porque, como uma máquina fotográfica, fixou imagens da cidade que crescia vertiginosa, bonita, feliz e cruel. A Nova York simbólica ficou afamada com tais descrições, retratada por imagens que se transformaram, mas permanecem, são atuais, estão ainda presentes entre o volume assimétrico das edificações modernas. Neste pequeno trecho vimos como F. Scott Fitzgerald se mostra observador do panorama de Nova York e adjacências, sem deixar de lado as mudanças e transformações sociais que se vislumbravam: “Atravessávamos, agora, a grande ponte, com a luz do sol, através das barras de aço, a lançar sombras palpitantes sobre os automóveis que passavam, enquanto a cidade se erguia, do outro lado do rio, em brancos montes de edifícios, construídos sem se levar em conta o dinheiro. A cidade, vista da Ponte Queensborough, é sempre uma cidade vista pela primeira vez, em sua primeira e violenta promessa de todo o mistério e de toda a beleza existente no mundo”. É o próprio repórter fotográfico que fixa a fotografia de dois mundos, tão próximos: a cidade campo de guerra e a vila da paz, aonde se recolhem os guerreiros após a refrega para o banquete, a


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dissipação e o consumo dos lucros obtidos com o butim às vítimas saqueadas. Por outro lado... “Ao atravessarmos Blackwell’s Island, uma limusine tomou-nos a dianteira, dirigida por um chofer branco, e nela se achavam três negras bem vestidas, dois sujeitos e uma menina. Ri às gargalhadas quando os seus olhos rolaram sobre nós em altiva rivalidade”. “Tudo pode acontecer, agora que deslizamos sobre esta ponte”, pensei. Tudo, absolutamente tudo...” Por outro lado não deixa de reparar com argúcia as mudanças políticas, as transformações, advindas com a profética ascensão de uma nova classe social, aquela que ainda sofre consequências de uma discriminação odiosa em terras do Sul e do Oeste. Na grande cidade, o acesso é permitido a todos que se propõem a realizar e a participar do seu engrandecimento, do seu progresso sem quaisquer barreiras. Nova York foi uma cidade preconcebida, primeiro como “porto livre” em que se permite liberdade de acesso e de se fixar residência, depois como “mercado livre”, quando o trabalho e o lucro são oferecidos abertamente – assim promoverá o progresso próprio, a ascensão da sociedade. O registro geográfico também é parte do romance. A ponte Queensboro (atual Ed Koch Queensboro), foi inaugurada em 1909, cruza a Ilha Roosevelt e liga Manhattan ao bairro Queens atravessando o West River. A ilha Blackwell (atualmente Roosevelt), é uma pequena faixa de terra entre Manhattan e o Queens – no passado foi chamada Minnehanonck pelos índios Delaware, Varkens Eylandt (Ilha dos Porcos) pelos neo-holandeses e durante a era colonial Blackwell. Por um tempo, quando era ocupada principalmente por hospitais, foi também chamada Welfare. Em 1971 a Blackwell de Fitzgerald foi renomeada Ilha Roosevelt, em homenagem a Franklin Delano Roosevelt. 17/11/2014


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Fernando Braga – Magma (poesia)

Fernando Braga – Magma Ed. Kelps (GO) 2014

Chegou MAGMA, de Fernando Braga. Veio escorrendo, líquido e poderoso, desde o planalto central. Fernando Braga é poeta que dorme com as palavras. Mas será verdade que o poeta não gosta de palavras? Que escreve pra se ver livre delas? Talvez. Como fica no talvez que a palavra torna o poeta pequeno. No abismo da morte o poeta escreve terra, palavra que ele se apega e suja a página. O poeta sangra, com raiva inicia a escrita. Cada palavra é vidro em que se corta (Couto). Com fúria e raiva o poeta acusa o demagogo, o capitalismo das palavras: é preciso saber que a palavra é sagrada, a ela o poeta deixa a alma confiada. Desde o início o homem soube de si pela palavra e nomeou a pedra, a flor, a água, e tudo emergiu. O homem se promove à sombra da palavra, da palavra faz poder e jogo, transforma palavras em moeda, como se faz com o trigo e a terra (Andersen). Tudo serve pra escamotear o vezo censório, a amperagem moralista contra as locuções chulas e o palavrão. Os deliciosos fonemas que nomeiam as partes pudendas, ignorando que não existe palavra impura (Barros). Não existe palavra nobre, sancionada pra a poesia, nem mesmo a proscrita do verso, que deveria ser escorraçada ao inferno da língua (Back). Certas palavras dormem à sombra do livro raro. É a senha da vida, a senha do mundo – buscada a vida inteira. Se tarda o encontro ou não a acho, não desanimo, procuro e a procura será a palavra. Certas palavras


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não podem ser ditas em qualquer lugar, em hora qualquer. São restritas, reservadas pra companheiros de confiança, devem ser sacralmente ditas, em tom especial, onde a polícia dos adultos não adivinha nem alcança. São palavras simples: definem partes do corpo, movimentos, atos do viver que a nós é defendido por sentença. Quando tudo é proibido, então falamos (Drummond). Não importa a palavra corriqueira: é esplêndido o caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”, o “o”, o “porém” e o “que”, compreensíveis muletas. Quem entende a linguagem entende Deus cujo Filho é o Verbo. A palavra é disfarce da coisa mais grave, surda-muda, inventada pra ser calada. Em momentos de graça se poderá apanhá-la: peixe vivo com a mão. Puro susto e terror (Prado). O que é a palavra descansada? Haverá sempre no mundo as palavras descansadas ou haverá ainda outras, as que não se cansam nunca, as mortas? As palavras morrem ou são esquecidas? As palavras que estão no dicionário, elas estão recuperadas, estão salvas ou apenas prisioneiras: quem terá interesse na prisão das palavras? As palavras simples navegam o mundo complicado com a verve de sempre ou perdem a compostura? Haverá, no meio delas, as tontas, as virgens, as palavras desavergonhadas, as vesgas? Existirá a palavra que tem em si a fuga dos sentidos e as que, resguardada do tédio, pode ministrar no silêncio a dor e a mentira? No sentido figurado, poesia é tudo aquilo que comove, sensibiliza e desperta sentimentos. É qualquer forma de arte: o ritmo, os versos, o som, a cor e as estrofes. Os versos livres têm liberdade pra definir o seu próprio ritmo e criar as próprias normas. A poesia é usada como forma de expressar sentimentos, como o amor, amizade, tristeza, saudade. A poesia é o espelho que torna bonito aquilo que é distorcido (Shelley), é a música da alma, sobretudo de almas grandes e sentimentais (Voltaire), é o eco da melodia do universo no coração humano (Tagore). A humilde canção popular é poesia (Croce), quando a emoção encontra o pensamento e o pensamento encontra a palavra (Frost), é o sentimento que enche o coração (Conde), é a religião sem esperança


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(Cocteau), é a arte de materializar sombras e dar existência ao nada (Burke), são pensamentos que respiram, palavras que queimam (Gray), está na alma, como o rouxinol nos ramos (Musset). A poesia genuína pode comunicar-se antes que se seja entendida (Eliot). Se alguém perguntar o que quiseste dizer com o poema, pergunta o que Deus quis dizer com o mundo (Quintana). Só os poetas têm autorização pra mentir (Plinio); o poeta nunca vive, morre aos pedaços (Félix); não há poema em si, mas em mim ou em ti (Paz); a poesia é ao mesmo tempo o esconderijo e o autofalante (Gordimer), é a metralhadora na mão do palhaço (Mattoso), a ilha cercada de palavras por todos os lados (Ricardo), a eterna Tomada da Bastilha, o eterno quebra-quebra, a queimação de Judas (Quintana). O poema está em tudo, tanto no amor como no chinelo, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas (Bandeira). Cadê a poesia? Indaga-se por toda parte. E a poesia vai à esquina comprar jornal (Gullar). Poesia é brincar com as palavras como se brinca com bola, papagaio, pião. Só que bola, papagaio, pião de tanto brincar se gastam. As palavras não (Paes). Eu faço versos como quem chora de desalento, desencanto. Fecha o meu livro, se por agora não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente, tristeza esparsa, remorso vão. Dói-me nas veias. Amargo e quente cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca assim dos lábios a vida corre, deixando o acre sabor na boca. – Eu faço versos como quem morre (Bandeira). O poema deve ser como a nódoa no brim: fazer o leitor satisfeito que dá desespero. A poesia é também orvalho. Mas este fica pra as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento, as amadas que envelhecem sem maldade (Bandeira). Escrever a água da palavra mar, o voo da palavra ave, o rio da palavra margem, o olho da palavra imagem, o oco da palavra nada (Maciel). Explicar a poesia ninguém consegue explicar. É mais pesada que o chumbo e leve igualmente ao ar. É fina como cabelo, é bela como o luar! Toca na alma da gente fazendo rir ou chorar. Faz a tristeza morrer e o sonho ressuscitar. A poesia é tão santa que, quando o poeta canta, Deus pára pra escutar! E pra terminar meu hino, a poesia seu


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menino, como tudo que é divino não dá pra gente pegar (Dedé). Quem faz o poema salva o afogado, abre a janela. O poema continua sempre, o poema que não ajuda a viver e não prepara pra a morte não tem sentido. Todo livro de poesia deve ter margens largas, páginas em branco, muito espaço pra a lágrima, o sorriso, a dor, a alegria e pra que as crianças possam encher de desenhos, gatos, homens, aviões, casas, chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, cavalos, bois, tranças, estrelas – que passarão a fazer parte dos poemas (Quintana). O poema é o mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor (Mallarmé). O poema nunca está acabado, somente abandonado (Valéry). O poema não deve significar, mas ser (McLeish). Os poemas têm direito à liberdade (Virgílio). Poemas não morrem (Ovídio). O que vou dizer da Poesia? O poeta não pode dizer nada da poesia. Nem tu, nem eu, nem poeta algum sabemos o que é a poesia (Lorca). Poeta Fernando Braga, é assim que dou recebimento de MAGMA, espelhando, com palavras alheias, por toda parte, o teu engenho e arte. Pra que gastar saliva? Os poetas que celebraram de outros a fama e a vitória, hoje cantam valor mais alto, que do planalto se alevanta. Nada mais justo, né? 05/11/2014


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A fidelidade de Argos, o cão de Ulisses

(Transcrição para prosa de excertos dos versos da Odisseia de HomeroTradução de Odorico Mendes- e outros escritos correlatos).

Ali, deitado, um cão de orelhas hirtas levanta a cabeça. Se chamado, atenderá por Argos, mas hoje está fraco, exangue. E pensar que outrora o próprio Ulisses o alimentava, até o dia que embarcou. Argos era um animal esperto, costumava caçar pelas matas e campos nos arredores de Ítaca. Quando o seu dono partiu, foi repudiado pelos demais e viveu seus últimos dias fraco e quase cego, infestado de carrapatos, tendo como cama estercos de bois e burros. Mas assim que fareja a presença do seu dono, suas orelhas se eriçam, o corpo freme, agita leve o rabo. Agora Argos está tão fraco que não pode se aproximar, saltando sobre seu dono, como é comum aos cães. Eumeu, que recebe Ulisses anônimo, disfarçado de mendicante, enxuga uma lágrima às escondidas. Ulisses comentou: “Um cão tão belo, é de admirar que esteja nesse monturo. Com o garbo que aparenta ter, se vê que era um cão esperto e bem tratado”. “Pertenceu ao herói roubado à pátria”, disse Eumeu. “Sim, era ligeiro, forte e bonito. A caça avistada ou farejada dele não


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escapava. Porém, morto o dono, Argos ficou enfermo e débil, os criados negligentes nem pensam nele. Os escravos se furtam às obrigações, quando a voz do amo não ouve”. O homem que nem sempre gosta daquele animal que o defende e o acompanha fielmente, faz muito mal. Muitos bichos têm mais coração e bondade do que certos homens. Argos, o velho cão de Ulisses, era guarda constante do palácio do Herói desde pequeno. Mesmo agora, decrépito e enfraquecido, ainda se mantém de sentinela em frente ao seu pobre canil... O velho cão Argos, amigo de sempre, comoveu ao tentar se levantar sobre as patas trêmulas. Ulisses o deixou com imensa melancolia, no dia em que partiu para Tróia. Desde criança, o cão compartilhou todos os folguedos com o dono: corriam pelos campos, caçavam lebres, cabras selvagens, esquilos, veados. Ulisses dava-lhe de comer na mão e ai daquele que tocasse no menino. Logo o cão rosnava, ameaçava morder, ladrava decidido a afastar o agressor. Todos o estimavam pra valer: tinha o pêlo lustroso e escovado, jamais faltava comida. Era como se fosse membro da família Mas, como tratariam hoje o velho Argos? A grande aflição que reinava na alma de Penélope e de Telêmaco não os deixava - bem se via - cuidar do animal. Trôpego, lazarento, magro e sujo, o cão envelhecera depressa. Deitara-se fora do canil, em cima do estrume, devorado pelas pulgas, quase cego. Mas, ao ouvir a voz de Ulisses, mexeu a cauda, encolheu as orelhas, quis erguer-se. O coitado não teve forças para correr, latindo e saltando, ao encontro do dono. Quem sabe então se lembraria das brincadeiras doutro tempo, a impetuosa caçada aos bichos bravios, a força com que dominava ladrões perigosos, o entusiasmo que o deixava ofegante ao subir montanhas num abrir e fechar de olhos, saltar sobre as valas, atravessar bosques na pegada de algum roedor.


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Ulisses contemplou o cão prostrado e deu vontade de chorar. Ao menos, para consolação derradeira, iria abraçá-lo e afagá-lo ternamente. Acercou-se dele, estendeu a mão para acariciá-lo. Já não pôde tocar-lhe vivo. Ao senti-lo ao lado, o bom Argos, tentando ainda mover a cauda e segurar-se nas pernas débeis, caiu para sempre, com um ganido surdo. A emoção ao tornar a ver seu dono consumiu-lhe as últimas energias. Sofreu resistindo à dor de vinte anos de ausência. Mas não resistiu ao júbilo inesperado da presença de Ulisses. Reconheceu-o logo, tentou festejar o seu regresso, mas não tinha forças. Eumeu era amigo de Ulisses, Telêmaco era filho afetuoso e dedicado – mas perante o mendigo andrajoso não souberam adivinhar a verdade que, ainda que tonto e meio cego, o fiel Argos de imediato pressentiu. Nesse momento Argos, ao contemplar seu dono após vinte anos, morreu em paz. Ulisses pranteou a sua morte como se fosse a do seu melhor camarada. E mais tempo a lamentaria, decerto, se não se avizinhasse o momento do combate, da vitória e da justiça. Essa é a parte mais comovente da história (ou tragédia) da Odisseia, de Homero. Ela narra a chegada de Ulisses à sua terra Ítaca, anônimo, mas o fiel cão Argos o reconhece. A fatalidade com que o tempo apedreja o ser humano é chocante. Hoje essa inevitabilidade transporta Ítaca direto ao pesadelo interrompido, à metáfora da miragem, à terra que se alcançará somente pela utopia, miragem que apenas se descobrirá pelo tempo. Não está distante da nossa São Saruê nem da Parságada de Manuel Bandeira. Mas delas se descola porque Ítaca não será a terra da felicidade nem Ulisses será amigo do Rei. Em Odisseia a ventura chegará através da travessia, não da chega ao destino final. O poeta grego Konstantinos Kaváfis pegou o tema pelo cangote, quando escreveu o poema Ítaca, traduzido por José Paulo


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Paes. Ou você prefere a tradução mais abusada de Haroldo de Campos? Veja aí.

ÍTACA (Trad. José Paulo Paes) Se partires um dia rumo a Ítaca, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras, repleto de saber. Nem Lestrigões nem os Ciclopes nem o colérico Posídon te intimidem; eles no teu caminho jamais encontrarás se altivo for teu pensamento, se sutil emoção teu corpo e teu espírito tocar. Nem Lestrigões nem os Ciclopes nem o bravio Posídon hás de ver, se tu mesmo não os levares dentro da alma, se tua alma não os puser diante de ti. Faz votos de que o caminho seja longo. Numerosas serão as manhãs de verão nas quais, com que prazer, com que alegria, tu hás de entrar pela primeira vez um porto para correr as lojas dos fenícios e belas mercancias adquirir: madrepérolas, corais, âmbares, ébanos, e perfumes sensuais de toda espécie, quando houver de aromas deleitosos. A muitas cidades do Egito peregrina para aprender, para aprender dos doutos. Tem todo o tempo Ítaca na mente. Estás predestinado a ali chegar. Mas não apresses a viagem nunca. Melhor muitos anos levares de jornada e fundeares na ilha velho enfim, rico de quanto ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse.


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Uma bela viagem deu-te Ítaca. Sem ela não te ponhas a caminho. Mais do que isso não lhe cumpre dar-te. Ítaca não te iludiu, se a achas pobre. Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, e agora sabes o que significam Ítacas.

ÍTACA (Trad. Haroldo de Campos) Quando, de volta, viajares para Ítaca roga que tua rota seja longa, repleta de peripécias, repleta de conhecimentos. Aos Lestrigões, aos Cíclopes, ao colérico Posêidon, não temas: tais prodígios jamais encontrará em teu roteiro, se mantiveres altivo o pensamento e seleta a emoção que tocar teu alento e teu corpo. Nem Lestrigões nem Cíclopes, nem o áspero Posêidon encontrarás, se não os tiveres imbuído em teu espírito, se teu espírito não os suscitar diante de si. Roga que sua rota seja longa, que, múltiplas se sucedam as manhãs de verão. Com que euforia, com que júbilo extremo entrarás, pela primeira vez num porto ignoto. Faze escala nos empórios fenícios para arrematar mercadorias belas; madrepérolas e corais, âmbares e ébanos e voluptuosas essências aromáticas, várias, tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes achar. Detém-te nas cidades do Egito - nas muitas cidades para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos. Todo tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.


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Tua sina te assina esse destino, mas não busques apressar sua viagem. É bom que ela tenha uma crônica longa duradoura, que aportes velho, finalmente à ilha, rico do muito que ganhares no decurso do caminho, sem esperares de Ítaca riquezas. Ítaca te deu essa beleza de viagem. Sem ela não a terias empreendido. Nada mais precisa dar-te. Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu. Agora tão sábio, tão plenamente vivido, bem compreenderás o sentido das Ítacas. 29/10/2014


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Derek Walcott

Visitando alguns sites em busca de trabalhos da poeta argentina Sandra Pien, a quem admiro muito, encontrei uma referência ao poeta caribeño Derek Walcott, cuja obra até então era desconhecida para mim. Sandra Pien fez e publicou a tradução do poema Love After Love, um dos mais populares desse Prêmio Nobel de Literatura (1992). A obra de Derek Walcott é vasta, abrange não só poesia, mas roteiros, peças de teatro, ensaios, além dessa magnificência o poeta é também pintor, devido à sua primeira tendência artística. Me deixou surpreso o fato de que o poeta Derek Walcott seja tão pouco conhecido entre nós ou o seja a apenas alguns iniciados, como é comum. Reproduzo aqui o texto e a tradução de Sandra Pien, que tomei à liberdade de piratear, o poema Love After Love, de Derek Walcott, e uma pobre versão para o brasileiro deste que vos fala. “Recién ahora puedo poner el poema del sábado. Es de mi querido Derek Walcott, poeta y dramaturgo caribeño, nacido en la isla de Santa Lucía, (Castries, la capital de Santa Lucía, en las Antillas menores), que fue Premio Nobel de Literatura en 1992. Primero una traducción (mía) al castellano, y luego en inglés, la lengua en la que fue escrito (fíjate qué bella musicalidad tiene). Walcott es hijo de una mujer negra y de un británico blanco. Tiene 84 años, nació el 23 de enero de 1930, el mismo día que mi padre,


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aunque mi viejo era del ´20. Y ese título del poema es muchísimo más anterior, de los años ´60, que el de Fito Páez”. (Sandra Pien) Só agora posso por o poema de sábado. É do meu querido Derek Walcott, poeta e dramaturgo caribenho, nascido na ilha de Santa Lúcia (Castries, a Capital de Santa Lúcia, nas Pequenas Antilhas), que foi Prêmio Nobel de Literatura em 1992. Primeiro, uma tradução (minha) ao espanhol, e a seguir em inglês, a língua em que foi escrito (perceba que bela musicalidade tem). Walcott é filho de uma mulher negra e de um britânico branco. Tem 84 anos, nasceu em 23 de janeiro de 1930, no mesmo dia que meu pai, ainda que meu velho fosse dos ‖20. Esse título do poema é muito mais antigo, dos anos 60, que o de Fito Páez. (Sandra Pien) El amor después del amor Derek Walcott Un tiempo vendrá en el que, con gran alegría, te saludarás a ti mismo, al que llega a tu puerta, al que ves en tu espejo y cada uno sonreirá a la bienvenida del otro, y dirá, siéntate aquí. Come. Seguirás amando al extraño que fuiste tú mismo. Ofrece vino. Ofrece pan. Devuelve tu amor a ti mismo, al extraño que te amó toda tu vida, a quien no has conocido para conocer a otro corazón que te conoce de memoria. Recoge las cartas del escritorio, las fotografías, las desesperadas líneas, despega tu imagen del espejo. Siéntate. Celebra tu vida. (Trad. Sandra Pien)


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Love After Love Derek Walcott The time will come when, with elation you will greet yourself arriving at your own door, in your own mirror and each will smile at the other's welcome, and say, sit here. Eat. You will love again the stranger who was yourself. Give wine. Give bread. Give back your heart to itself, to the stranger who has loved you all your life, whom you ignored for another, who knows you by heart. Take down the love letters from the bookshelf, the photographs, the desperate notes, peel your own image from the mirror. Sit. Feast on your life. Amor Depois Amor Derek Walcott Tempo virá quando, com euforia, você irá se cumprimentar chegando, a sua própria porta, em seu próprio espelho e cada um sorrirá ao seja bem-vindo do outro e dirá, sente-se aqui. Coma. Você vai de novo amar o estranho que era você mesmo. Ofereça vinho. Ofereça pão. Devolva seu coração a si mesmo, para o estranho que amou você toda a sua vida, quem você ignorou por outro, que conhece você de coração. Derrube as cartas de amor da estante, as fotografias, as notas desesperadas,


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descasque sua prรณpria imagem do espelho. Sente-se. Celebre a sua vida. (Trad. Salomรฃo Rovedo) 18/10/2014


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Manu Bandeira: Carnaval

Primo Quincas. Vai este à moda das cartas de antigamente. Eis-me aqui me satisfazendo com a releitura dos velhos livros, sempre descobrindo coisas que passaram despercebidas. Inda agorinha mesmo, não foi ontem, pego o “Carnaval” de Manu Bandeira pra ler na sentina (meio de ocupar o tempo inútil e dar algum sentido às atividades fisiológicas), abro o livro ao léu e caio logo na página do poema que repito lá embaixo. Sabe o que achei? Que o Manu andou bem pertinho de Augusto dos Anjos (ou vice-versa), como que anunciando o vate paraibano. (É outro livro que releio sempre, o EU, de Augusto dos Anjos – que coloco a par de “Folhas de relva”, “As flores do mal” – entre outros. – Um portento! – como diria o Pereira, depois de beber umas e outras aqui no Bar do Geraldo). No caso do Manuel Bandeira, pelo amor de Deus! – não, não vá dizer aquele repetido: “o primo fescenino ataca novamente”, mas... “Não sei entre que astutos dedos Deixei a rosa da inocência.”


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Não é de beleza sutilíssima, não? E por que não atacam o velho Manu de ―pedófilo‖ – como está em moda no nosso país, que neste pleno século 21 tem leis proibindo até peidar em público, que, sonoro, será decretado crime ou infração com direito a multa – pois se enquadra aí quando ele escreveu: “Antes da minha puberscência Sabia todos os segredos...” E por o caminho das safadezas vai! Confesso: fiquei muito tempo de pé atrás sobre o significado e a qualidade de Manuel Bandeira, na poesia e na literatura brasileira, tantos elogios recebeu de seus pares, principalmente da turma do Modernismo, pensando “é coisa de compadre” (que ousadia!), mas com o tempo o pernambucano me derribou de joelhos. Mário de Andrade também deu conserto nessa minha bobagem, posto que foi não só amigo, mas aluno apaixonado pelo velho, não foi? Ainda bem, senão – é fato! – eu não teria por que passar entre meus pares por ser um ignorantaço, incapaz e incompetente, impossibilitado de cheirar o óbvio, bem debaixo do nariz? Comentando mais um bocadinho sobre o poema “Vulgívaga”, que está lá embaixo, repito, dá pra notar os muitos elementos de convivência cotidiana que serviram de motivo, datam dos dias em que Manuel Bandeira morava e frequentava a Lapa, bairro boêmio do Centro do Rio – de alta periculosidade à época, até hoje um pouquinho. “Não posso crer que se conceba do amor senão o gozo físico” – é regra geral que rege a profissão de prostituta. “O meu amante morreu bêbado, e meu marido morreu tísico” – indicam os motivos dramáticos capazes de levar uma mulher a “cair na vida” (viver na prostituição).


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A “mulher da vida” serve com frieza a todos os propósitos: “Aos velhos dou o meu engulho. Aos férvidos, o que os esfrie. A artistas, a coquetterie que inspira... E aos tímidos -o orgulho”. Depois de explorar a todos, ingênuos, fracos, bêbados, poetas e artistas a meretriz, defronta-a o cafetão: “E todavia se o primeiro que encontro, fere toda a lira, amanso. Tudo se me tira. Dou tudo. E mesmo... dou dinheiro...” 04/10/2014


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Malba Tahan – O homem que encantava

Malba Tahan – O homem que calculava – Editora Saraiva, 1938

Releio “O homem que calculava”, de Malba Tahan. Lá pelas tantas, ao jovem que recusa as honrarias oferecidas, diz o Vizir: “– Causa-me assombro tanto desdém e desamor aos bens materiais, ó jovem! A modéstia, quando excessiva, é como o vento que apaga o archote, cegando o viandante nas trevas de uma noite interminável. Para que possa o homem vencer os múltiplos obstáculos que se lhe deparam na vida, precisa ter o espírito preso às raízes de uma ambição que o impulsione a um ideal qualquer”. As mesmas palavras caberiam a mim – tenho a modéstia como vísceras. Mas ao invés de apagar a lanterna e sujeitar-me às “trevas de uma noite interminável”, a modéstia me deu alforria do egoísmo, me liberou do cárcere do preconceito, desatou-me a alma da ambição, livrou-me da toa, deu amizades e amores, tornou-me liberal. No entanto, o esboço biográfico do autor diz: “– Antes de morrer Malba Tahan pediu que seu enterro fosse simples, sem homenagens flores e coroas. A humildade foi uma constante na vida desse homem que escreveu sobre os árabes e nunca foi ao Oriente Médio. Carioca de família pobre, Júlio César de Melo e Souza (seu nome real) escreveu 115 livros”. Também quero um enterro assim. Agora, quanto aos 115 livros, estou longe, longe...


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Esse é um livro que li e reli desde moleque. São histórias contadas à moda de As mil e uma noites, com outros ingredientes: sai o erotismo, entra a matemática e outras ciências do cálculo. O homem que calculava é também um repositório de frases e pensamentos deixados por filósofos e matemáticos – ou geômetras, como o autor prefere. Esse e outros livros me deixaram marcas no miolo. Vou citar alguns, sem ordem cronológica, mas é certo que esquecerei outros: Miguel de Cervantes: Don Quixote; Mark Twain: As aventuras de Huckleberry Finn; Mário de Andrade: Macunaíma; José Cândido de Carvalho: O coronel e o lobisomem; Mário Palmério: Chapadão do Bugre; Josué Montello: A décima noite; Orígenes Lessa: Rua do Sol; João Mohana: Maria da Tempestade; José Mauro de Vasconcelos: Meu pé de laranja lima; Guimarães Rosa: Grande sertão veredas; Franz Kafka: Metamorfose; Leon Tolstoi: Guerra e paz; Maximo Gorki: A mãe; Ernest Hemingway: O velho e o mar; Virginia Woolf: Orlando; Stefan Zweig: Schachnovelle. E por aí vai, tem muitos, apenas para citar prosa. Livros de poesia são tantos que não cabe aqui. Muitos livros li por obrigação de aprender a escrever, de apreender a vida a ser vivida. Li O capital (Karl Marx), (acreditem!), a Bíblia, o Alcorão, As mil e uma noites, Os 120 dias de Sodoma (Sade), Decameron (Giovanni Bocaccio). Alguns eu não consegui ler, em especial Ulisses (James Joyce). Jamais passei do primeiro capítulo. Aquele negócio de inventar palavras e, depois, traduzir as invenções para outras invenções, bem isso não me atraiu. Dele prefiro Dublinenses e os poemas. Também não consegui ler O Alquimista (Paulo Coelho). E olha que gosto de ler autor porralouca: Sade, Charles Bukowski, Ernesto Bono, Giacomo Casanova (quando a segunda parte das ―Memórias‖ vai chegar ao Brasil?). Mas o livro de Malba Tahan é de releitura sempre prazerosa. Já perdi a conta de quantos exemplares comprei, dei, recomprei e doei de novo. Tão misterioso o autor quis que seu livro fosse, que O homem que calculava abre com uma dedicatória que alguns


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consideram enigmática, cheia de hermetismo, uma alegórica oferenda aos mestres, por isso muitos tentam interpretar essa emblemática introdução. Dedicatória À memória dos sete grandes geômetras cristãos ou agnósticos: Descartes, pascal, Newton, Leibniz, Euler, Lagrange, Comte, (Allah se compadeça desses infiéis), e à memória do inesquecível matemático, astrônomo e filósofo muçulmano, Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi, (Allah o tenha em sua glória!), e também a todos os que estudam, ensinam ou admiram a prodigiosa ciência das grandezas, das formas, dos números, das medidas, das funções, dos movimentos e das forças, eu, el-hadj, xerife, Ali Iezid Izz-Edim ibn Salim Hank Malba Tahan (crente de Allah e de seu santo profeta Maomé), dedico esta desvaliosa página de lenda e fantasia. Bagdá, 19 da Lua de Ramadã de 1321. O matemático Henrique de Oliveira Costa (1879-1949), catedrático no Colégio Pedro II, considerou essa dedicatória “a página mais original que se apresentou, até agora, no imenso campo literário da matemática”. Referindo-se à dedicatória de O homem que calculava, escreveu o erudito economista argentino, professor José Gonzalez Galé: “O conteúdo altamente filosófico dessa estranha dedicatória, pelos nomes famosos que envolve, é uma das lições mais surpreendentes de simplicidade e tolerância religiosa que tenho lido em toda a minha vida”. Dando exemplo de que os povos podem conviver tendo crenças e conceitos diferentes, os notáveis citados por Malba Tahan na dedicatória não foram assinalados pela fé, nacionalidade ou posição social: René Descartes (1595-1650), geômetra e filósofo francês (Geometria Analítica), era cristão. Blaise Pascal (1623-1662), geômetra e filósofo francês (Teorema de Pascal, Máquina de calcular, Cálculo das Probabilidades), era católico.


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Isaac Newton (1642-1727), geômetra e matemático inglês (Lei da Gravitação), era protestante. Gottfried von Leibniz (1646-1716), matemático e filósofo alemão (Cálculo Diferencial), era protestante. Leonhard Euler (1707-1783), matemático e físico suíço (Deixou mais de mil e duzentas questões sobre a ciência), era protestante. Joseph-Louis Lagrange (1736-1813), matemático francês (Mecânica Analítica), era católico. 03/09/2014


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Jane Austen - Persuasão

Jane Austen – Persuasão (romance) – Edição comentada, seguido de duas novelas inéditas em português (Lady Susan e Jack e Alice). Zahar, 2012 – Apresentação: Ricardo Lísias, Tradução: Fernanda Abreu, Notas: Fernanda Abreu e Juliana Romeiro.

Um verdadeiro séquito editorial acompanha esta edição de Persuasão, romance da mesma autora de “Razão e sensibilidade” (1811), “Orgulho e Preconceito” (1813) e “Mansfield Park” (1814). Mas o que faz um romance inglês originalmente publicado em 1817 percorrendo plagas brasileiras? Os romances de Jane Austen formam excelente material para filmes de época e séries de TV. É aquele chamado romance águacom-açúcar, uns bons, outros nem tanto. Essa é a principal razão de seus romances serem tão longevos. Outras editoras já os lançaram e relançaram entre nós: L&PM lançou Box com quatro romances em pocket book; Martin Claret editou o mesmo para livrarias e leitores de rodoviárias; Best Seller, ramo da Record, também tem a sua edição. E por aí vai... O autor da Apresentação (Jane Austen precisa mesmo de apresentação?), Ricardo Lísias derruba algumas árvores tentando tirar leite de pedra. Trabalho árduo. No entanto, deste texto pode-se depreender alguma coisa, face ao que está dito na página nove:


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“Assim como o cenário e as personagens, o estilo de Jane Austen não varia entre seus romances. Os textos são límpidos, redigidos de forma clara e sem sobressaltos. Às vezes, as descrições ameaçam exceder-se, mas o domínio técnico da autora, incomum e vistoso, interrompe-as antes do exagero. Normalmente ela faz isso utilizando o diálogo”. Mas logo no parágrafo seguinte o apresentador comete um exagero, talvez como obrigação técnica, quem sabe como um afago à editora ou ao provável leitor: “Como exímia estilista, Jane Austen conhecia a medida das coisas. A propósito, colocando-a como ‘clímax’ do romance do século XVIII (*), o crítico Ian Watt conclui o célebre estudo A ascensão do romance com Jane Austen, ressaltando a precisão de seus textos”. A seguir vem a citação de Ian Watt, que não é senão outra, similar à já reproduzida pelo próprio Ricardo Lísias. Mas nem mesmo Watt teve a coragem de intitular a romancista inglesa de “exímia estilista”, contradição visível ante o parágrafo anterior. Para completar, a marca (*) registra um ato falho, ou do Lísias ou do Watt, posto que a reputação como escritora coloca Jane Austen entre a geração do século XIX. Ricardo Lísias tem ampla razão. Esse estilo retilíneo, sem maiores sobressaltos, acompanha o romance de cabo a rabo, tanto deixa o apresentador quanto a tradutora na situação do fácil/difícil. A tradutora Fernanda Abreu – será a cantora ou xará da mesma? – deve ter tido muito trabalho para arrumar em brasileiro esse texto tão pífio. Mesmo assim sobraram algumas palavras repetidas na mesma frase, como se faltasse um dicionário de sinônimos – ou bons revisores. Os comentários, nos quais a tradutora foi auxiliada por Juliana Romeiro, não fedem nem cheiram – apenas chateiam o leitor que de vez em quando tem que desviar a atenção do enredo por aqueles números chatos, que irão levar a um comentário inútil e mais chato


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ainda. Será que serviria de ajuda aos editores afirmar que a busca da perfeição às vezes é um tiro pela culatra? Não acredito: editores brasileiros primeiro contabilizam os tostões que não pagariam, somados aos reais que receberão. Enfim, as “duas novelas inéditas em português” que encerram o volume na verdade se mostram dois contos (ou contecos, como dizia Mário de Andrade). No caso, “Lady Susan” é que mais se assemelha à novela, não obstante a temática carregar o texto para a categoria de conto. O estilo epistolar está bem próximo de “As ligações perigosas”, famoso romance de Choderlos de Laclos, publicado em 1782. A comparação é inevitável. Tanto a obra de Laclos quanto o texto de Austen retratam as relações de grupos de aristocratas, através das cartas trocadas entre si. Enquanto Choderlos de Laclos confronta nobres sem escrúpulos, de modo a destruírem-se mutuamente as próprias reputações, Jane Austen repete a tradição conservadora de seu tempo. Ainda que o enredo tenha como foco personas manipuladoras que se movem entre a intriga e a sedução, tudo é feito “sem sobressaltos”, ao estilo Austen. Ainda hoje se faz enorme confusão, cheia de regras e explicações mais estapafúrdias, sobre o que é romance, novela e conto. Na maioria das vezes – como no presente caso – cabe ao leitor deduzir por conta própria: “Persuasão” é romance ou novela? “Lady Susan” e “Jack e Alice”, são novelas ou contos? Você decide... 25/08/2014


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O múltiplo Fernando Braga

Não é todo dia que se recebe um correio tão bem nutrido quanto à remessa que o poeta, contista e ensaísta Fernando Braga me fez, em agradável surpresa. O magote de quatro volumes chegou da forma antiga: de jegue, pelo Correio – tão lenta anda a nossa ECT. Mas valeu pelo prazer múltiplo: receber o pacote, abrir com cuidado e folhear os livros, cada qual com singular dedicatória a este imerecido e tardio admirador. "Poemas do tempo comum” (2009) e “O puro longe” (2012), dois livros de poemas que vão me alimentar por um bom tempo, pois poesia é como vinho: merece maturação e degustação lenta. Menos por isso, não deixei de satisfazer a curiosidade, posto que também o leitor tenha seus defeitos – dei uma esticada de olhos nos volumes e foi aperitivo de sabor a tira-gosto. Instigado pela introdução de Nauro Machado, vou direto ao “Poema insulano”, pois o ser poeta não deixa de ser a própria terra – neste caso, a Ilha: “E o passado se fez de rima na poesia encardida nos azulejos, e na saudade de tudo quanto a vista alcança, e na lembrança do que ainda se desdobra, e na inteligência de crânios polidos que rolam à toa ao rés do chão. Morreram todos, dizem os cadeados nas cancelas!” Por ocasião das comemorações dos 400 anos da fundação de São Luís, não podia o poeta calar o amor à cidade símbolo da poesia.


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Fernando Braga homenageia a sua Ilha com “O puro longe”, onde lembranças históricas cimentam a memória mais recente, de que é contemporâneo. A homenagem cresce em importância quando se estende em ofertório decretado pelo poeta: “À memória de Afonso Amaral, meu cunhado e mestre”. Conheci o Dr. Afonso Amaral, médico e humanista (coisa rara em tempos de hoje), um mestre de vida, como bem destaca Fernando Braga. Dr. Afonso Amaral teve vida intensa dedicada à medicina pública, e não tivesse partido de modo inesperado, teria deixado em texto o legado da sua vívida experiência. Médicos que exercem como sacerdócio a profissão – como João Mohana e Pedro Nava – têm enriquecido a literatura brasileira. O Dr. Afonso Amaral era um grande contador de histórias, cuja memória prodigiosa teria produzido obra singular. Creio que posso roubar umas linhas de “O velho capitão”, poema que Fernando Braga brinda ao pai “o heroico feito”, para homenagear Dr. Afonso Amaral: “ele foi o capitão de seu navio, por mares em calmaria, até desaparecer no comando de sua alma, onde o vento sopra e impacientes estão as velas”. 14/08/2014


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Duayer – As histórias do meu avô

Duayer–As histórias do meu avô Secult–Vitória–ES–2014.

Feliz de quem tem avô para ouvir dele as histórias que plantou por décadas na imaginação; feliz de quem tem neto para ouvir histórias, inventadas e vivenciadas, que se tornarão mais vívidas na imaginativa mente infantil. Duayer já havia lançado o livro Cartas, no qual faz importante elo de ligação entre a correspondência antiga que chegava nas mãos dos carteiros e o e-mail, correio eletrônico que vaga como uma nave estelar até chegar ao destinatário. Pois este “As histórias de meu avô” tem o mesmo valor daquele, mas desta vez é o tempo-espaço transfigurado, com datação, idade e período, trânsito de uma época, cuja atmosfera é necessário que se faça conhecer às novas gerações. Duayer teve a sabedoria de fazê-lo utilizando o mesmo jeito, pois era costume secular o encontro de gerações, na mesa, na varanda, sob uma árvore, para narrar e ouvir. Postura ancestral milenar que vem sido transmitida até hoje, as ―histórias de meu avô‖ é mais que gênero literário, é, sim, um modelo de qualidade cujo teor é o gotejar da lição imperceptível, aquela que se aprende com os ouvidos atentos e a expressão de espanto ante o inusitado – coisa que jamais se esquece.


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Marco Aurélio, Imperador de Roma, cujos pais morreram novos foi criado pelo avô, de quem ele fala com calor, afeto e respeito. Com o avô, teve uma infância feliz e de muito estudo. Entre os anos 170-180 – já Imperador – Marco Aurélio anotou conselhos e pensamentos para si mesmo. Esse ―diário‖ chegou até nós com o título “Meditações” e a primeira frase do livro registra a sua gratidão ao velho: “A cortesia e a serenidade, aprendi-as eu, primeiro, com o meu avô”. Em sua narrativa Duayer reflete o mesmo tipo de gratidão pelos dias que, menino, passava numa fazenda do interior mineiro: “Ah, quando me lembro do meu avô o coração sempre aperta”. É uma narrativa da memória que muitos escritores não conseguem esconder e um dia explode mundo a fora. Rachel de Queiroz também experimentou a mesma impossibilidade ao escrever com a irmã as histórias da fazenda “Não me deixes”, lá pras bandas de Quixadá. “Meu avô chegava sempre no fim da tarde. (...) Nós, meus irmãos e eu, corríamos para abraçá-lo (...) e esperávamos, impacientes, para ele nos dirigir sua atenção e nos segurar no colo para falar palavras de saudade”. Junto com as palavras vinham os contos de aventuras, as histórias assombradas e assombrosas, narrativas fantásticas que servem tanto para despertar a imaginação quanto para advertir sobre os males que a humanidade carrega escondidos, disfarçados de monstros. Desse medo que surgia a cada vírgula formava-se um escudo para defender as crianças em futuro vindouro. “Quando ele acabava suas histórias, seus olhos brilhantes cruzavam nossos olhares medrosos e sonolentos, nossos corpos sem gestos. Tinha a certeza que nos ensinara uma lição”.


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Gostaram? Procurem o Duayer por aí: ele estará de braços abertos esperando uma conversa, pois, tendo herdado os mesmos sintomas do avô, já conta aos netos as velhas aventuras, recicladas com novos assombros. 09/08/2014


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Onde andará Willy Ronis?

Joaquim Itapary - Onde andará Willy Ronis? (Crônicas) Edições Academia Sambentuense - São Luis – MA - 2014

Esta não será apenas mais uma apresentação pedante, cheia de gabolice, perfunctória – mesmo porque o autor não necessita de tais malabarismos. Espero, ao contrário, passar um texto claro e compreensível de modo que qualquer curioso pegue o livro e se transforme em leitor, que possa formar ideias ao primeiro olhar, sem lambanças nem puxa-saquismo. Portanto, desocupado leitor, a este blog coube prelecionar a primeira leitura deste “Onde andará Willy Ronis?” – livro saído do forno, que reúne as crônicas de Joaquim Itapary entre 2000/2007. Não me tocará de todo predizer a sua leitura, nem tampouco decifrá-lo ou decodificá-lo. O texto do cronista é de fácil entendimento, de interpretação cabal, de simples compreensão. Em cronologia se poderia pensar que o volume trata de temas esquecidos e obsoletos. Esquecidos talvez, obsoletos jamais. Além da crônica que dá título ao volume, Joaquim Itapary trata de temas da sua cidade – São Luís – mas não só. Aonde quer que vá o cronista, em qualquer ponto desta Terra, aparece o sinal, o relógio, a agenda ou diário (algo biológico, enfim), para fixar o momento exato que o registro deva surgir e passar ao papel.


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Nesse diapasão segue a cantoria e assim ele estabelece a cumplicidade necessária para que a leitura se derrame gostosa, apetitosa, fácil de saborear no pouco tempo que hoje sobra para a leitura: em casa, no ônibus, no avião, no terminal – em ambientes insulsos por natureza. A curiosidade primordial do livro será: Onde andará Willy Ronis? Partindo de caso fortuito, a crônica incute a necessidade de considerar o “incidental”, não apenas aleatório, casual, mas um imprevisto cuja eventualidade persistirá importante, cotidiana. “Toda vez que vejo um retrato de criança, menino qualquer, costumo perguntar a mim mesmo: Onde andará ele hoje? O que teria ele feito de sua vida? Ou, o que a vida teria feito dele? É sempre assim”. E será sempre assim: quando sentarmos ao sofá com um velho álbum de fotografias, coleção de recortes de revistas e jornais, as interrogações abancarão ao lado, impondo-se como companhias irreversíveis, para o bem ou para o mal. Derramar alguma lágrima, espantar do ambiente a tristeza, soltar gargalhadas com mel, meditar sobre a eventualidade da vida – algo nos ocorrerá, repleto de comoção! “Agora mesmo olho um retrato meu feito tem mais de sessenta anos. Sentado em pequena cadeira forrada de sola tingida de castanho, dessas que se abre e fecha para facilitar o transporte, baixa, quase a uns dois palmos do chão do grande quintal, cheio de fruteiras viçosas, da nossa bela e clara casa em São Bento, vejo-me vestido apenas de calções e sandálias, cabelos repartidos ao meio, enormes óculos de aro de tartaruga mal apoiados sobre o incipiente nariz, livro aberto sobre as coxas pequeninas, ar compenetrado de leitor imperturbável”. Em todas as crônicas deste livro haverá matéria para refletir, mas nem tudo será escuro, tenebroso. Não. Aqui terá o leitor companhia do contentamento, de frases que refletem o júbilo do instante, da situação que provocará o riso hilariante, fará passeios


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por avenidas e vielas inóspitas – são crônicas que trazem satisfação e jovialidade – porque nem só de tristeza é feita a vida, né? Para obter o livro basta escrever um e-mail ao autor: j.itapary@gmail.com. Como aperitivo vai uma crônica escolhida ao acaso... 29/07/2014 ********** Taririnha, o exemplar

Luís Gago

São Bento, bem ali do outro lado da baía de São Marcos, tranquilidade e paz seculares situadas sobre uma feliz ponta de terra antigamente coberta de altos matos, elevada apenas um pouco acima do nível da lâmina d‖água que periodicamente nutre os campos gerais da Baixada, é uma cidade singularíssima. Entre os costumes distintivos dos seus filhos há um excepcionalmente curioso: O de apelidar pessoas de maneira tão adequada que estas praticamente perdem o nome de batismo, incorpora o apelido aos nomes de família e o transmitem de geração em geração. Lá, por exemplo, há famílias Pisa Ouro, Bate Banha, Peixe Frito, Afoga Gato e outras de nomes até mais exóticos. Na década de 40, a segurança pública da cidade estava confiada ao honrado delegado de polícia Luís Reis, com casa de moradia ao lado da nossa na principal praça da cidade e que, por ser tatibitate, ficou mais conhecido pelo apelido de Luís Gago. Seus auxiliares eram os policiais Balbino, apelidado de Balbino Pernadura e um outro, conhecido por Taririnha, de quem o nome próprio até hoje ignoro.


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Balbino ganhou o apelido de “Perna-dura” muito em razão de que uma de suas pernas quase não se dobrava durante o caminhar. Foi, ao que suponho, o primeiro e único militar soldado incapaz para a marcha regular. Contudo, aquele modo diferente de caminhar não deixava de emprestar à sua alta e robusta figura um quê de solenidade, um ar de eminência. Tinha fama de sério e valente, cumpridor de ordens. Já o Taririnha era tipo mirrado, magro e pequenino, meio amarelento, condição física que ficava mais evidente quando os dois únicos militares da cidade caminhavam juntos. Naquele tempo, o uniforme da polícia era feito em tamanho único. Cabia ao militar mandar recortá-lo, se quisesse, por sua conta. Solene dólmã de caqui abotoado até o gogó, quatro enormes bolsos, cinto e talabarte de couro negro, quepe armado com pala e distintivo, calças folgadas enfiadas em perneiras de couro. Tudo em tamanho grande. Quando o fardamento chegava da capital, duas mudas para cada soldado, a gente logo sabia. Bastava ver o Balbino bem vestido, engomado, acessórios luzindo ao sol, farda bem caída sobre o corpo esbelto. Já o Taririnha, ao contrário, pobre demais, não tinha dinheiro para mandar que recortassem os uniformes recebidos. Sempre estava perdido dentro da farda enorme, olhos desaparecidos sob o quepe, três dedos maior do que a cabeça, pés 38 metidos em botas 44, braços sumidos no oco das mangas, apenas as unhas dos dedos médios subsaíndo no largo punho do dólmã. De tão folgado, o quepe de Taririnha não se movia mesmo quando ele bruscamente virava o rosto para os lados ou para trás; A pala, como agulha de marear, apontava sempre a mesma direção. Era uma boa pessoa. Mas o seu tipo não era o teoricamente adequado a um militar. Pois bem, certo dia, o delegado Luis Gago ordenou a Taririnha que, armado de fuzil, sabre e revólver, trouxesse à delegacia, vivo ou morto, um homicida e desordeiro que infernizava sossegado lugarejo. Deixando a cidade em suspense, o intrépido policial partiu em diligência. A expectativa era: como Taririnha trará o bandido, vivo ou morto? Duas noites e dois dias de ansiedade geral se passaram. Ao crepúsculo do terceiro dia de agônica espera, na ponta


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da Rua Grande surgem homens extenuados, ofegantes e calados, de vara aos ombros carregando uma rede toda ensanguentada. Logo, dezenas de curiosos acompanham o macabro cortejo que pára apenas à porta da Delegacia. Solene, Luis Gago abre a rede e fica estupefato; Lá no fundo, rosto arroxeado, corpo e membros como se moídos em poderosa engenhoca, completamente emplastrado de mastruço e sal-grosso estava o resultado de suas ordens terminantes: Taririnha, desacordado, abraçado a seu fuzil, mal respirava. (27/10/2005)


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Chaplin – Uma vida

Chaplin – Uma vida –Stephen Weissman Trad. Alexandre Martins – Ed. Lafonte, 2012

Deus meu! O que se terá para escrever ainda sobre Charles Chaplin? Pois saibam ainda tem gente que arrisca tempo e dinheiro para descobrir detalhes da vida de Carlitos, inéditos ou que ainda não foram esmiuçados de todo. Neste “Chaplin, Uma vida”, de Stephen Weissman, psiquiatra de formação, obrigou o autor a andar anos e anos cavoucando a vida de Chaplin em busca de aspectos ainda não enfocados em biografias anteriores, para isso voltando os holofotes e seus esforços justos para a área de sua especialidade. Teria Chaplin projetado em seus filmes aspectos de sua vida pessoal? Debaixo dessa interrogação Mr. Weissman utiliza-se do poder de seu cargo de professor da Washington School of Psychiatry e organiza um grupo de estudo para trabalhar essa particularidade da vida de Carlitos, que inclui um confronto entre textos biográficos, entrevistas, filmes e teatro, sem deixar de lado o monumental “My autobiography” publicada pela Simon and Schuster, New York 1964 – no Brasil saído em pela Editora José Olympio (1ª edição 1965), sob o título “História da minha vida”, com excelente tradução tripla de Raimundo Magalhães Jr., Rachel de Queiroz e Genolino Amado, prefácio de Octavio de Faria, que inclui a poesia “Canto ao homem do povo”, de Carlos Drummond de Andrade – coisa que não se verá jamais.


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Após esse calhamaço biográfico de quase 600 páginas, o que sobrará? O principal sustento do livro se baseia nas projeções autobiográficas atiradas por Charles Chaplin não só ao tipo que criou, como também aos enredos dos filmes dirigidos por ele na Keystone, que começou como subsidiária da New York Motion Picture Company. Ora, qualquer um que leia a biografia de Chaplin poderá chegar direto a essa conclusão, como fato irreversível. Chaplin teve uma infância que muitas vezes comparava à de Charles Dickens, tirando dele até exemplos para espelhar-se e direcionar sua própria vida. Assim, como é natural que Charles Chaplin tenha transposto os sofrimentos próprios para a tela, também é inequívoco o fato de que atores, precoces ou não, com certeza absoluta um dia irão mesclar a existência real com a interpretação em seus papeis e personagens do cinema. Todos hão de lembrar que o Presidente Ronald Reagan em seus discursos oficiais repetia frases inteiras das falas do Ator Ronald Reagan no cinema. Chaplin – Uma vida, de Stephen Weissman se resume a isso, sem delongas, mas poderia ser mais bem incrementado se o autor buscasse na própria psiquiatria descobrir verdades e mentiras sobre algumas acusações de pedofilia que pesam sobre Carlitos, aparecidas no livro “A Vida Íntima Sexual de Gente Famosa” (Record, 1981, trad. Vera Mary Whately), de Irving Wallace, Amy Wallace, David Wallechinsky e Sylvia Wallace. Que Chaplin era “espada” todo mundo sabe: teve centenas de esposas, mulheres, amantes, amores instantâneos e porrada de filhos. Até aí tudo bem, mas o custo de ser acusado de ―pedófilo‖ é toneladas e toneladas mais pesado que qualquer outra acusação. O que se deduz do livro da família Wallace é que tem algo de sensacionalismo nisso. A primeira vítima da ―pedofilia‖ de Chaplin é Mildred Harris de 15 anos, que acabou se casando com ele depois de, com interferência da mãe, anunciar uma falsa gravidez. Ou seja, foi na


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verdade um golpe... A segunda pretensa vítima, Lita Gray, confessou que Chaplin a perseguia e acabou por deflorá-la na sauna da residência dele. Lita Gray já estava com 16 anos e ficou grávida, por isso transformou-se na segunda esposa de Chaplin. Que diabo de pedófilo é esse que casa com as suas vítimas? Ora vejam que história! Ademais, o que uma menina de 16 anos fazia na sauna da casa de um homem de 35 anos? Dá pra relembrar aquele caso do Mike Tyson que foi condenado por estuprar uma moça que o acompanhou até seu apartamento às 4 horas da madrugada! Bem a história é rica desses casos, mas ainda assim acredito que em termos jurídicos de hoje não cabe acusação de pedofilia dentro dessa faixa de idade. Porém, não é disso que trata o livro do Dr. Weissman porque, em sendo, não teria jamais o aval de Geraldine Chaplin, com certeza, não. O que foi uma pena o Dr. Weissman saltar esse ponto da vida de Chaplin, em que caberiam muitos estudos psicanalíticos e psiquiátricos. Sobre a publicação da editora Lafonte há que se reclamar de falhas na tradução, bem encontráveis, ainda que não lesse o original. Parágrafos enormes, longos, em que não aparece uma vírgula sequer para que o leitor possa ao menos respirar. Palavras repetidas, repetidas, na mesma frase, por preguiça de consultar sinônimos. Por fim, é condenável a adoção do título de "Adorável Vagabundo”, pelo qual o personagem Carlitos é cunhado no livro – porém não aqui no Brasil! As expressões “adorable ragamuffin” ou “the adorable vagabond” foram cunhadas e são populares na Inglaterra e USA,. Aqui no Brasil o personagem de Chaplin foi adotado e conhecido como Carlitos – é sobre ele que depositamos todas as gargalhadas, toda a alegria, principalmente quando dá aquele pontapé tradicional na bunda do guarda, do polícia. Reproduzo a poesia de Carlos Drummond de Andrade, que pouco estava se importando com as diatribes que assacam post


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morten a Charles Chaplin, preferindo-o como aquele que alegrava o povo em lugar de despertá-lo para a lágrima da miséria. 25/07/2014 ****** Carlos Drummond de Andrade Canto ao homem do Povo - Charles Chaplin I Era preciso que um poeta brasileiro, não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa, girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos, era preciso que esse pequeno cantor teimoso, de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia, era preciso que um antigo rapaz de vinte anos, preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo, viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema. Para dizer-te como os brasileiros te amam e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos, vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,


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e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua. Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece, e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua, e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas, só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram. Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço, eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum, nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins. Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo, que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida, são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música, visitemos no escuro as imagens - e te descobriram e salvaram-se. Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração, os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os cismarentos, os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos. E falam as flores que tanto amas quando pisadas, falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões, os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas, cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam. II A noite banha tua roupa. Mal a disfarças no colete mosqueado,


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no gelado peitilho de baile, de um impossível baile sem orquídeas. És condenado ao negro. Tuas calças confundem-se com a treva. Teus sapatos inchados, no escuro do beco, são cogumelos noturnos. A quase cartola, sol negro, cobre tudo isto, sem raios. Assim, noturno cidadão de uma república enlutada, surges a nossos olhos pessimistas, que te inspecionam e meditam: Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado, o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde a um mundo muito velho. E a lua pousa em teu rosto. Branco, de morte caiado, que sepulcros evoca mas que hastes submarinas e álgidas e espelhos e lírios que o tirano decepou, e faces amortalhadas em farinha. O bigode negro cresce em ti como um aviso e logo se interrompe. É negro, curto, espesso. O rosto branco, de lunar matéria, face cortada em lençol, risco na parede, caderno de infância, apenas imagem entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe, sozinha, experiente, calada vem a boca sorrir, aurora, para todos. E já não sentimos a noite, e a morte nos evita, e diminuímos como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos ao país secreto onde dormem os meninos. Já não é o escritório e mil fichas, nem a garagem, a universidade, o alarme,


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é realmente a rua abolida, lojas repletas, e vamos contigo arrebentar vidraças, e vamos jogar o guarda no chão, e na pessoa humana vamos redescobrir aquele lugar - cuidado! - que atrai os pontapés: sentenças de uma justiça não oficial. III Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome dos que não foram chamados à ceia celeste ou industrial. Há ossos, há pudins de gelatina e cereja e chocolate e nuvens nas dobras do teu casaco. Estão guardados para uma criança ou um cão. Pois bem conheces a importância da comida, o gosto da carne, o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata, e sabes a arte sutil de transformar em macarrão o humilde cordão de teus sapatos. Mais uma vez jantaste: a vida é boa. Cabe um cigarro: e o tiras da lata de sardinhas. Não há muitos jantares no mundo, já sabias, e os mais belos frangos são protegidos em pratos chineses por vidros espessos. Há sempre o vidro, e não se quebra, há o aço, o amianto, a lei, há milícias inteiras protegendo o frango, e há uma fome que vem do Canadá, um vento, uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida que mal decifras o cristal infrangível. Entre a mão e a fome, os valos da lei, as léguas. Então te transformas tu mesmo no grande frango assado que flutua


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sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro e chama, comida geral, que tarda. IV O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas. No festim solitário teus dons se aguçam. És espiritual e dançarino e fluido, mas ninguém virá aqui saber como amas com fervor de diamante e delicadeza de alva, como, por tua mão a cabana se faz lua. Mundo de neve e sal, de gramofones roucos urrando longe o gozo de que não participas. Mundo fechado, que aprisiona as amadas e todo o desejo, na noite, de comunicação. Teu palácio se esvai, lambe-te o sono, ninguém te quis, todos possuem, tudo buscaste dar, não te tomaram. Então encaminhas no gelo e rondas o grito. Mas não tens gula de festa, nem orgulho nem ferida nem raiva nem malícia. És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa correndo, os copos voam, os corpos saltam rápido, as amadas te procuram na noite... e não te veem, tu pequeno, tu simples, tu qualquer. Ser tão sozinho em meio a tantos ombros, andar aos mil num corpo só, franzino, e ter braços enormes sobre as casas, ter um pé em Guerrero e outro no Texas, falar assim a chinês a maranhense, a russo, a negro: ser um só, de todos, sem palavra, sem filtro,


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sem opala: há uma cidade em ti, que não sabemos. V Uma cega te ama. Os olhos abrem-se. Não, não te ama. Um rico, em álcool, é teu amigo e lúcido repele tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos o que há de água, de sopro e de inocência no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos que cultuamos, falsos: flores pardas, anjos desleais, cofres redondos, arquejos poéticos acadêmicos; convenções do branco, azul e roxo; maquinismos, telegramas em série, e fábricas e fábricas e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras. Ficaste apenas um operário comandado pela voz colérica do megafone. És parafuso, gesto, esgar. Recolho teus pedaços: ainda vibram, lagarto mutilado. Colo teus pedaços. Unidade estranha é a tua, em mundo assim pulverizado. E nós, que a cada passo nos cobrimos e nos despimos e nos mascaramos, mal retemos em ti o mesmo homem, aprendiz bombeiro caixeiro doceiro emigrante forçado maquinista noivo patinador


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soldado músico peregrino artista de circo marquês marinheiro carregador de piano apenas sempre entretanto tu mesmo, o que não está de acordo e é meigo, o incapaz de propriedade, o pé errante, a estrada fugindo, o amigo que desejaríamos reter na chuva, no espelho, na memória e todavia perdemos VI Já não penso em ti. Penso no ofício a que te entregas. Estranho relojoeiro cheiras a peça desmontada: as molas unem-se, o tempo anda. És vidraceiro. Varres a rua. Não importa que o desejo de partir te roa; e a esquina faça de ti outro homem; e a lógica te afaste de seus frios privilégios. Há o trabalho em ti, mas caprichoso, mas benigno, e dele surgem artes não burguesas, produtos de ar e lágrimas, indumentos que nos dão asa ou pétalas, e trens e navios sem aço, onde os amigos fazendo roda viajam pelo tempo, livros se animam, quadros se conversam, e tudo libertado se resolve numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol.


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O ofício é o ofício que assim te põe no meio de nós todos, vagabundo entre dois horários; mão sabida no bater, no cortar, no fiar, no rebocar, o pé insiste em levar-te pelo mundo, a mão pega a ferramenta: é uma navalha, e ao compasso de Brahms fazes a barba neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos. Foi bom que te calasses. Meditavas na sombra das chaves, das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame, juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas, anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta de mil, os braços cruzados de mil. E nada dizias. E um bolo, um engulho formando-se. E as palavras subindo. Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo. Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos. Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo, crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores, ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e de esperança. (1945)


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Gabriel García Márquez Memoria de mis putas tristes

Primo Quincas. Escrevo-te para agradecer as imagens recebidas, em que fazes o registro fotográfico dos amanheceres mirados da tua janela aí em São Luís. Gritaria daqui: Bom dia, amigo sol! Pode entrar, a casa é sua! Esse é apenas um dos muitos e melhores trunfos que temos – os quase velhos – saber gozar o amanhecer, os primeiros raios da alvorada, constatar que ainda desta vez não ―acordamos mortos‖, que a indesejada anda longe, passou ao largo... que a vida segue. Imagina que estava remexendo na minha velha estante quando dei de cara com o livro de Gabo (Gabriel García Márquez), “Memoria de mis putas tristes” que já havia lido antes. Sem delongas achei por bem partir pra releitura. Se ler livros é bom para alguns tarados como nós, reler é mais melhor ainda, porque revemos o que não se tinha visto e saboreamos o que ficou virgem. É que nem uma segunda trepada, se a primeira foi boa... Estou lendo a primeira edição de 2004. García Márquez começa o conto assim: “El año de mis noventa años quise regalarme una noche de amor loco con una adolescente virgen”.


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Vê-se logo que García Márquez não quer mais praticar, nesta novela, aquela escrita com preocupações literárias, que este agora é o narrar de quem já largou a fama de lado e quer escrever por prazer, né? Uma escrita sincera – se podemos dizer assim. Notei algo que dá parecença com tuas (e minhas) manhãs; vem no relato lá mais um pouco pra frente, quando o velho descreve o próprio acordar (ao ler e lembrar, me ri de peidar): “El dia de mis noventa años había recordado, como siempre, a las cinco de la mañana. (...) Los síntomas del amanecer habían sido perfectos para no ser feliz: me dolían los huesos desde la madrugada, me ardía el culo, y había truenos de tormenta después de tres meses de sequia”. Esse ―perfectos para no ser feliz‖ é uma tirada, né? O detalhe é que, mesmo separado por vírgula, dá pra se ler nas entrelinhas que os “truenos de tormenta”, bem que poderiam ser, por analogia, ”truenos estomacales” ou de origem intestinal que costumam acometer os velhos vinte anos antes dos noventa. Mas a frase também rima igualzinho aos trovões que antecedem os temporais, tanto da Colômbia tropical, quanto de São Luís, aguaceiro que alaga tudo em minutos e logo depois se desmancham as nuvens negras, de repente o sol reaparece leonino e feroz. E assim estou já a meio livro. Em Gabo – principalmente neste raconto, que vaga entre memória e ficção – não dá nem se pode estar separando frases de efeito, pois tudo está sempre bem colocado. Taí um autor que não aparece muito nas redes sociais, em meio àquelas citações miraculosas, remédio pra tudo na vida. Mas em “Memoria de mis putas tristes” García Márquez sacaneia mais o leitor (e pior ainda: o tradutor), porque escreve em castelhano de Colômbia, caribenho, que é outra escrita dentro da escrita. Tem frases inteiras que não entendo nada sem recorrer à tradução, mesmo precária como a minha.


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Faço um parêntese para registrar o ponto pra mim: lembra que referi isso a você naquela cisma que tenho com Saramago e autores portugueses que têm a aquiescência maldosa do editor brasileiro e exigem, com arrogância, publicar suas obras aqui no Brasil em português “lusitano”? Por outro lado, já reparou que na internet os editores de texto especificam o espanhol para cada região, cada país, ao passo que o português é apenas “de Portugal” ou “brasileiro”? Onde foi parar a tal lusofonia que em tentativa insana praticou a farsa de propor a “unificação” do português? Caiu de podre, não foi? Isso depois de gastar alguns milhares de dólares com viagens, reuniões, publicações, etc. Ora, pois, pois. Em particular pra mim tem um fato que buliu comigo, nesta “Memoria de mis putas tristes”: é que a cafetina do conto de GGM tem o mesmo nome da ―fornecedora‖, amiga e cafetina, que conheci aqui no Rio de Janeiro, em tempos que essa profissão existia ainda. A Rosa Cabarcas aqui era Rosa e, por mistificar, codinome Rosalba. Pra esta escrevi um texto “Rosalba Romero sobe aos céus” e também um poema, depois que soube que tinha falecido (de cirrose). Uma oferenda merecida para Rosa, em memória de uma cafetina que me proporcionou horas e horas de prazer – mas nenhuma virgem, te garanto. Por outro lado, também fazer uma visita a ela só pra conversar era bom e prazeroso. Como Rosa Cabarcas, eu nunca soube a idade real desta Rosa, Rosalba, eis que mantinha sempre a pele fresca e lisa, loura, olhos verdes, de corpo mais pra magro – tratava-se muito bem. Ademais, Rosa tinha feito algumas operações plásticas, entre as quais, uma pra diminuir os enormes peitos, outra pra apertar a vagina. Os peitos ela me mostrava com orgulho: peitinhos de menina – dizia; a vagina, como pude constatar in loco, a operação surtira efeito – ficou superapertada sim, mas não diria – vagina de mocinha, não... Mas esta plástica deixou um defeito: já não se molhava, perdeu o húmus, a umidade líquida que faz a gente deslizar pra dentro como um mergulho no mar.


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A paixão dela – além da profissão de fé, a cafetinagem, à qual tinha aderido por legítima vocação missionária – era beber um bom uísque, chocolates, flores – presente que não faltava em todas as minhas visitas. Também gostava de fumar cigarros americanos. Deveria me bater o remorso por causa da cirrose, mas não o sinto porque beber uísque, fumar e cafetinar eram vício inato nela. Talvez usasse esse artifício para esconder certa tristeza, sempre presente em seus olhos de musgo, melancólicos, que se transfiguravam em prazer, alegria, risos, quando eu chegava com seus presentes preferidos. Rosas vermelhas, perfume, chocolate, cigarro e uísque – não se pode falar mal da mulher que tem tais gostos. Além do mais, quando eu chegava de surpresa e não tinha nenhuma ―novidade‖ feminina, os presentes, o litro de blended, as rosas, o chocolate, o cigarro, tudo servia de desculpa e acabávamos na cama dando umas folladas, como deves imaginar. Como vês, também já tive pelo menos uma “puta triste”. Voltando ao “Memoria de mis putas tristes”, observo que, pra quem escreve, porém, nem tudo são flores, nem mesmo pra García Márquez, posto que lá pelas tantas ele solta um pum literário, comete uma ingratidão a seus leitores, me desdiz, quando afirmei que não era escritor de frases feitas: “Nunca olvidé su mirada sombría mientras desayunábamos: ¿Por qué me conociste tan viejo? Le contesté la verdad: La edad no es la que uno tiene sino la que uno siente.” ¡Que mierda, Gabo! ¿Qué pasó? ¡Carajo! Cair na velha armadilha das frases de almanac, não é mesmo primo Quincas? A idade não é a que se tem, mas a que se sente. Francamente. Ora bolas! Enfim, por quem sois, tudo perdoamos a todos – por que não a Gabriel García Márquez, que nos deixou tanta fartura e alegria em seus escritos, em suas vidas? Como ainda não terminei a releitura, por enquanto é só. Abraço-te, etc.


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PS: Em tempo lembro-me de exaltar a capa, ilustrada com fotografia de Luis Miguel Palomares, em que Gabo aparece de costas, cabelos alvos, caminha com os braรงos soltos, inicia uma passada, veste sua roupa favorita: calรงa e camisa de linho branco. ร uma imagem feliz como um amanhecer, pra se guardar na lembranรงa... 06/06/2014.


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O futuro é ontem

No dia 10/05/2014 recebi do primo Quincas Oliveira o texto “Direito mastigado e literatura facilitada: agora vai!”, de Lenio Streck. É um texto que se propõe doutrinário, mas, pensando bem, vejo que apenas reflete o pensamento que herdamos da Idade Média: não conseguimos entender nem ouvir as novas gerações, não conseguimos compreender nem avaliar o novo mundo; e nessa frase se substituirmos o não conseguimos por nos recusamos, verá que também é justo o que ocorre. Por ventura da humanidade, ninguém se coloca diante da situação atual, na qual vive a própria existência. A celeridade do tempo e da vida muda à velocidade tal que não conseguimos perceber o que está milímetro adiante. A vida nos impõe tantos transtornos – uns felizes, outros indigentes – com a exata rapidez de não permitir que os contemporâneos tenham como absorvê-la, entendê-la. Mudar isso é impossível. A teia do tempo (posso dizer: da tecnologia) pegou o Lenio Steck, autor do artigo, pelo gasganete, não foi o primeiro nem será o último. O seu ponto de vista exposto sob a ótica do jargão “jurisprudês”, sendo Procurador por profissão, contraria a própria estética que critica, macula o texto. A sociedade – simbolismo de raça humana – tenta assimilar de imediato, mais do que nunca, que o tempo voa, nos arremessa junto, que, portanto, a juventude está tão distante de nós que não chegamos a seus calcanhares.


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Porém, esse bigbang da informática que ora ocorre, que não tem como ser evitado (efeito e causa do artigo citado), veio bem a tempo de impedir que toda a humanidade fique impassível nas mãos desses loucos que dirigem os países, Putins, Obamas, todos pequenos e grandes ditadores de nós, humanos e malditos. Isso porque o movimento gerado pela comunicação digital é a reação inevitável e simples, é também – graças a Deus! – incontrolável: a Internet, o monstro que ―eles‖ criaram, torna-se O Robô, que pensa, tem vida própria e liberdade suprema. É o Frankenstein moderno. É a lenda contemporânea do Superman: cultura, folclore, mitologia, fábula, história. Tudo que o tempo coloca à frente, hoje e sempre, estará acima da nossa compreensão, do entendimento dos que estão a bordo da nave, mas nem por isso devemos ignorar ou nos mostrar refratários, como fez o douto Lenio Steck, sem pioneirismo, porque tem milhares de artigos circulando por aí com o mesmo espírito e teor. Embora nem todos carreguem na alma a paz, o desejo de liberdade no coração, nem qualquer respeito, antes, tratam no íntimo como se fosse simples anedota, facécia ou gracejo. Isso sim seria piada de mau gosto. Para que nosso olhar não se perca, desejaria que pudessem todos assistir, juntos e maravilhados, ao milagre prodigioso que ora se materializa debaixo de nossos narizes. É o futuro que jamais imaginamos, o repeteco do milagre de Cristo, Sócrates, Copérnico, Galileu, Magalhães, Gagárin – número infindável de feiticeiros que produziram o mesmo efeito com o passar do tempo não cronológico – algo a ser vivido em carne e alma. Um parêntese quanto à correção do texto de Machado de Assis (também aventada no mesmo artigo): o tema foi objeto de blog que escrevi alhures, não só sobre o tamanhão de importância que dão a Machado de Assis, quanto a deterioração e o bolor que cai sobre suas obras. É tamanha a relevância e reverência à obra de Machado de Assis, que fica difícil encontrar outro exemplo universal de escritor ao qual ele se possa igualar!


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Pelo menos nesse ponto Lenio Streck pensa igual sobre a velhice previsível de seus contos, romances e crônicas. Ou seja, não há como evitar a atualização ortográfica dos escritos: por causa dessa visão obstrutiva de falso purismo que está inteira no artigo que me enviaste, crucificaram Camões, Monteiro Lobato, etc. lembra? Assim entendi... Se “la donna è mobili”, podemos dizer que “la scrittura è anche mobili” e o que assemelha à situação apresentada é que a escrita não precisa de ―acordos ortográficos‖: ela tem vida própria e, mutante, se recria a cada instante. No entanto, no artigo, isso é o de menos: o mais importante é a cegueira que acomete pessoas possuídas de alto nível cultural sobre o que agora ocorre no universo que nos cerca, globalizado, sim, mas tão fragmentado quanto fractal, isto é, a supremacia da desordem organizada. Precisamos nos vacinar urgente contra o vírus da alienação ou nos tornamos aliens em nossa própria terra. Será que teremos de nos obrigar a implantar aquele terceiro olho hindu, o sexto chakra, para que nos expanda o grau de percepção a nível imperativo, para abarcarmos e gozarmos de toda a maravilha em que o mundo se transforma diante de nosso espanto? É burrice perder tempo oferecendo resistência, não aceitação, intransigência e qualquer obstáculo ao que está ocorrendo – ou não aprendemos nada? Caro Quincas Oliveira, lembra-me surpreender o teu semblante melancólico ao desfrutarmos, sós, a sala maravilhosa que cuidaste de arquitetar em teu apartamento para recepcionar amigos, quando te veio a imagem daquele mesmo ambiente, um dia repleto de convivas, cheio de luz, sussurro de falas, tintilar de taças. As visitas eram tantas que tiveste necessidade de improvisar assentos. E o jeito amoroso com que descrevias as reuniões prenhes de amigos e de assuntos, pejadas de sorrisos felizes porque, sendo o homem – como os cães – espécie de convivência em matilha, só vive bem em grupo.


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É triste: não existe mais a sala de recepção, as reuniões se tornaram virtuais, ninguém visita ninguém, somos párias dos monitores, portanto, entes menores. Ah, com tal analogia, de repente me encheu o saco essa digressão! Poderia juntar aqui um monte de lugares-comuns: o tempo voa, a vida passa, mas de que adianta se não percebemos que a celeridade é que atropelou nosso olhar, nosso pensamento, de tal modo imperceptível, igual ao átomo que ninguém pode controlar? “Não falo a néscios” (repito o sábio), por isso o que posso desejar – palavra de primo-ermão – é que a percepção desse novo olhar se reflita em teus escritos, nas leituras e atitudes, de tal modo prismatizado, que tenha a envergadura de interferir na vida de teus leitores. Não há tempo a perder. Pois hás de te lembrar do artigo em que comentei o quebra-quebra nacional de outro dia – que irá se repetir, como repercutem os cometas – pois somos passageiros do mesmo trem. 15/05/2014


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Comensais apressados

Ora, gente, comer não é apenas apear à mesa e avançar no arroz de cuxá, catraio à cabidela, uma salada de folhas partidas à mão. Nada disso. Nem somente embevecer-se com o feijão vinagreira, farofa de ovos, mexidão desfiado, essas coisas todas enfim – pra depois de um cafezinho emborcar numa rede e desmaiar até que as moscas intermitentes acordem o indigitado de sono tão traiçoeiro. Comer é permanecer atracado à mesa fazendo companhia às moscas, sem ligar para o olhar pidão de quem ofereceu o banquete e agora só pensa em desmanchar a mesa, arriar o esqueleto num colchão macio pra revigorar as forças. Só que estou falando de um dia em que dois de todos os comensais eram do tipo que descreve o parágrafo acima e, portanto nasceram como que grudados à comida de modo tal que nem a sobremesa de geleia de goiabada com queijo de São Bento nem os pigarros inconvenientes da dona da casa foram capazes de fazer com que levantassem o corpanzil da cadeira. Foi assim que a mesa se tornou deserta e o que ecoava era a história da família, armazenada com cuidados especiais nas cabeças dos dois reminiscentes. Quincas, por ter a despensa da vida bem mais cheia que esta que vos fala, tomou a dianteira da narrativa que veio a enriquecer o papo, tanto mais quanto enriqueceu a cabeça do Rei Xariar os contos de Sherazade, que acabou por se tornar “O livro das mil e uma noites”.


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A salada era de brócolis, alface, pepino, rúcula e nacos de queijo de São Bento, espalhados aqui e ali, mui bem regada com ótimo azeite, mais vinagre de vinho tinto, acetificado de modo caseiro mesmo. À bombordo da mesa um saco de chá verde desmanchava-se numa xícara de água quente, tomava cor exalando o leve aroma oriental. Sob a batuta de Quincas Oliveira pude navegar por terras do Oriente – Líbano, Zahle, Amã, Beirute, Jordânia e cercanias – terras de nossos antepassados, onde não faltou a marca temerária da metralha dos fedayin que rodeava a casa de um dos nossos primos. Quincas foi e esteve lá – eu não – apenas pude arregalar os olhos ante a história que também era um bocado minha, desfrutando um “St. Costone 2011 Sangiovese Superiore”, que ostentava o diploma de “denominazione di origine controlata”, mas que bem poderia ter feito uma escala no Paraguay, posto que era bem fraquinho, o bordô e o olor de frutas tão distantes como a Cochinchina, onde o Diabo perdeu as botas, lá mesmo onde o vento faz a curva, pra lá da Patagônia! Quincas me contou de como atravessou desertos indomáveis entre tamareiras e oásis, cortando ruínas romanas, agarrando-se à mochila com medo de ser furtado por um mero camelo, daqueles tais que ameaçam fugir a qualquer espirro que soa! O fato é que sobreviveu e pousou em Amã, depois na Palestina e de novo em Beirute, de onde pegou voo para outras terras até aportar nesta terra de São Luís e me contar toda essa história, justo após desfrutarmos conjuntamente juntos um catráio de cabidela – ou a molho pardo, se preferem – mesmo ele xingando descaradamente o St. Costone, que prometeu nunca mais encarar. Então minha gente, como disse lá em cima, comer não é apear à mesa como um troglodita, avançar no arroz de cuxá, no catraio à cabidela, numa salada de folhas partidas à mão como gente das cavernas. Nada disso! Nem somente embevecer-se com a tigela de feijão vinagreira, a travessa de farofa de ovos (com farinha d‖água), mexidão desfiado com jongôme, essas coisas todas enfim – para


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depois curtir um cafezinho e se emborcar numa rede, desmaiar até que os ataques das moscas intermitentes ou das muriçocas asiáticas acordem o indigitado de sono com picadas traiçoeiras. Comer é permanecer atracado à mesa fazendo companhia às moscas e sobreviver. É estar ali sem ligar para o olhar pidão de quem ofereceu o banquete e agora só pensa em desmanchar a mesa, arriar o esqueleto num colchão macio pra revigorar as forças. Se o ato de comer não trouxer consigo todos esses ingredientes, não tem razão. Não tem razão de viver quem não aproveita a mesa de comer. Sobre o tema, no meu espaço do facebook, em 22/04/2014, publiquei o seguinte texto: “Meu primo Joaquim – como eu – gosta de vinhos. Não somos expertos, nem enólogos metidos a besta: apreciamos, é simples. Dia desses ao almoço ele abriu a garrafa de um tinto italiano. Não era um Valentini ou um Poggio, nem tão encorpado quanto o Malbec mendocino, ou o Rioja, de Álava, mas era sanguíneo, com transparência mediterrânea. O primo não gostou – e quando não gosta, condena-o a vinagre, sem dó nem piedade. Terminado o almoço puxa assunto aqui e acolá, fomos levando a conversa para tons gostosos, enquanto chegava a sobremesa, até mesmo depois quando os pratos, travessas, talheres sumiram da mesa, tanto quanto o líquido esvaeceu da garrafa. Joaquim socorreu-se de uma tapuiranas pra dissipar o apetite. Eu fiquei só diante da garrafa, vazia e grata a mim – por tê-la livrado do pior dos destinos do seu nobre conteúdo: virar vinagre”. 27/03/2014.


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Machado de Assis vs. Lima Barreto

Acabo de assistir ao filme “Policarpo Quaresma – Herói do Brasil” (1998), baseado no romance de Lima Barreto “O triste fim de Policarpo Quaresma”, direção de Paulo Thiago. A filmografia brasileira tem aproveitado em bom nível a literatura, pois romances de Machado de Assis foram bem realizados quando transpostos aos telões. Dom Casmurro, outro bom trabalho dirigido por Paulo César Saraceni, saiu com o título de “Capitu”, em 1968. Ambos refletem fidelidade às ideias centrais dos romances, sem temor de que ambos se transformassem, para usar o jargão, em meros filmes de época. Duas belas realizações da cinematografia nacional que se juntam ao monstro de Joaquim Pedro de Andrade chamado “Macunaíma” (1969), da sinfonia de Mário de Andrade. Duas coisas, porém, não irei fazer aqui: crítica literária, muito menos de cinema. O paralelo que me vem à cabeça é sobre o significado dos trabalhos de Machado de Assis e Lima Barreto quando traduzidos em roteiro e imagens, encaminhados, nessa condição, ao espectador. Essa compreensão se faz necessária porque é a que toca à vida de hoje, conquanto que os autores sejam lembrados nas elites literárias de modo apaixonado ou somente como modelos teóricos da literatura nacional. Machado de Assis, filho de mulatos, nasceu no Morro do Livramento de família pobre, estudou em escola pública, mas em nenhuma universidade. Querendo ter acesso à boemia e namorar a corte, estudou sozinho e sozinho se tornou intelectual. Assumiu cargos públicos e conseguiu notoriedade nos jornais para os quais escreveu poesias e crônicas. Já famoso na maturidade, reuniu


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colegas e escritores para fundar e presidir a Academia Brasileira de Letras. Lima Barreto também era filho de mulatos. Seu pai foi tipógrafo e a mãe, educada com maior esmero, chegou a lecionar o primeiro grau. Ela faleceu quando o menino tinha apenas seis anos, obrigando-o a trabalhar muito para sustentar os quatro irmãos, filhos do casal, nada lhe valendo o fato de ser afilhado do visconde de Ouro Preto (alguma suspeita de filiação?). Essa condição, cujo cotidiano ligava ao fim da monarquia, bem como as lembranças negativas da Abolição da Escravatura – dizem – exerceram forte influência nas críticas cáusticas ao regime republicano. Aqui cabe um parêntese para registrar que o mulato foi o primeiro mestiço a ser aceito pela sociedade escravocrata – depois republicana. Tanto o homem quanto a mulher mulata tiveram tratamento diferenciado do negro puro, ascendendo em escala social e intelectual. Gilberto Freyre bem que reparou nisso: muitos mulatos tiveram acesso à banca de advocacia, a cargos públicos, ao jornalismo, à literatura e às artes em geral. As mulatas, “de pés compridos” (GF), alcançaram notoriedade pela beleza peculiar e não tiveram problemas em estudar, se formar em professoras, até mesmo em namorar e casar com brancos, de família tradicional ou não. Em contrapartida, foram vítimas de estupros e segundas mulheres dos amos devassos. De Machado de Assis já se disse tudo e são tantas as louvações, as influências, as imitações literárias, a grandeza das influências que a ele imputam, que é impossível falar mal desse desgraçado, um tiquinho que seja. Com efeito, como levantar a voz contra aquele de quem se diz que “a revolução modernista se aproveitou da obra de Machado em objetivos da vanguarda?” E de que estudos da sexualidade, da psique humana e do existencialismo, “atribuiu-se certo psicologismo às suas obras, muitas vezes comparando-as com as de Freud e Sartre”? Como contestar a declaração de que “nos últimos tempos, com recentes traduções


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para outras línguas, Machado de Assis tem sido considerado, por críticos e artistas do mundo inteiro, um gênio injustamente relegado à negligência mundial?” E o que dizer de Harold Bloom, que o posicionou “entre os 100 maiores gênios da literatura universal e o maior literato negro surgido até o presente"? De Lima Barreto, falam pouco – e o que dizem é que também foi um dos que tiveram a obra influenciada por Machado de Assis. No entanto, uma pequena frase distingue muito bem Lima Barreto de Machado de Assis: “Ele foi o maior escritor libertário do Brasil”. Talvez essa tenha sido uma das razões de Lima Barreto ter colocado como citação ao seu Policarpo Quaresma: “O maior inconveniente da vida, que a faz insuportável ao homem superior, é que, se ele for um visionário, as qualidades se tornam defeitos, de modo que muitas vezes, embora realizado, tem menos sucesso do que aqueles motivados pelo egoísmo e pelo hábito vulgar”. Essa paráfrase tem a assinatura “Renan, Marc-Auréle” (citação do livro “Marco Aurélio”, imperador romano biografado por Ernest Renan), reflete sua própria amargura, já que Lima Barreto não teve a mesma sorte de Machado de Assis, embora tenha galgado a mesma culminância na arte de escrever. Não está em má companhia, pois muitos outros escritores provaram do mesmo fel, inclusive Cervantes. Talvez, por isso, Lima Barreto pudesse também parafrasear o próprio Renan, repetindo: “Os maiores acontecimentos da minha vida foram muitos pensamentos, leituras, alguns pores-desol à beira-mar e palestras com amigos”. E lembrar-se, como o citado Marco Aurélio, estoico na plena acepção da palavra, quando disse em suas “Meditações”: “O homem cujo coração palpita pela fama depois da morte não pensa que todos aqueles que se lembrarem dele em breve estarão também mortos, e que, com o correr do tempo, geração após geração, até ao fim, depois de sucessivamente cintilar e se sumir, a centelha final da memória se extingue”.


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Voltando à vaca fria (ou revenons à nos moutons), falávamos de filmes brasileiros sobre romances brasileiros, e o que deduzi é que tanto “Capitu”, quanto “Policarpo Quaresma, herói do Brasil” são ótimas realizações sobre o Brasil, mas de destinos tão desiguais que cravam em nosso peito a mesma dor que sofreu Lima Barreto. Como traduzir em poucas palavras a vida de dois seres cujos bisavôs foram pretos escravizados, grandes escritores brasileiros, mas cujas vidas tomaram rumo tão dessemelhante? Já que li os livros e assisti aos filmes, posso tentar fazer uma comparação, mas de jeito não tão técnico como douto escritor faria. Machado de Assis teve vida longeva de classe média, fundou, presidiu e pertenceu à Academia Brasileira de Letras, trabalhou e progrediu em seus empregos, tornou-se jornalista e escritor famoso. A página que lhe dedica a Wikipédia é enorme, como é grande a sua fortuna crítica, seus livros foram traduzidos para centenas de idiomas, vários romances foram escritos sob a inspiração de seus textos, estudos, continuações, os volumes inspirados em sua obra já a ultrapassam em número e quantidade. Nomes importantes da literatura universal, em razão disso, trataram-no como igual, um par, membro do clã. Machado de Assis foi, enfim, como diria a minha avó, um preto de alma branca – portanto, inserido no contexto e aceito pela sociedade. E Lima Barreto? Se em algo superou a Machado de Assis foi o próprio nome, pois a maioria prefere referir-se a ele como Afonso Henriques de Lima Barreto – coisa que, por princípio (acho), ele mesmo depreciaria. Lima Barreto tentou várias vezes ser membro da Academia Brasileira de Letras, mas sempre seu nome foi rejeitado. Como a instituição de elite republicana poderia aceitar como membro um contra, alcoólatra e louco? A sua página na Wikipédia é tão mísera que nela se podem contar as linhas, a fortuna crítica que lhe dedicam é maior acentuada na sua vida recheada de desgraças do que em sua obra, os livros que falam dele são poucos e seus romances só inspiram alguns loucos, revoltosos e visionários, como a refletir a própria imagem.


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Machado de Assis era Freud, Lima Barreto era Nietzsche. Machado de Assis nos endereçou às enfermidades de uma sociedade mestiça e triste – mazelas que nos acompanham até hoje; Lima Barreto nos ensinou a rebeldia, o não conformismo – que os cara pintadas e baderneiros honram ao mantê-los de pé. Machado de Assis era a assimilação, Lima Barreto era a anarquia. Ambos também se desigualam no endereço do pó: seus ossos e almas jazem no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro: – os de Machado de Assis entre sábios fraternos, no mausoléu de ouro e mármore da Academia Brasileira de Letras; – os de Lima Barreto junto ao populacho, misturados a cantores, artistas, santas, palhaços, anjinhos milagrosos e ilustres desconhecidos. Agora adivinhem com quem eu fico? Com a dúvida que nos deixou Machado de Assis: a formosa Capitu (com “aqueles olhos de cigana oblíqua e dissimulada” e que já “aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas”), foi ou não foi comida pelo malandro Bentinho? Doutor Santiago é ou não é um chifrudo? Ou estarei ao lado do louco visionário Lima Barreto, que teve a audácia de atacar os republicanos, de sacrificar o personagem do romance a balaços, fazendo com que Policarpo Quaresma, amado por duas belas heroínas, seja fuzilado pelo chumbo da República (que nos governa até hoje), bradando, de braços ao alto: – Viva o povo brasileiro! De que lado ficarei, hem, hem? 18/04/2014


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Luar sobre Panacoatyra

Foto: Joaquim Itapary

Caro cronista Joaquim Itapary. Instado pela leitura de suas crônicas, confesso, resolvi incluir a Ilha do Maranhão no meu roteiro de férias, para finalmente conhecer a cidade que, sob sua pena, embora não esconda as próprias mazelas, muitas belezas tem: São Luís. Constatei in loco que tudo que está em seus escritos é verdadeiro, que também é verdadeiro o sentimento de paixão e ira que permeia suas palavras quando vê a cidade querida maltratada pelos administradores, que deveriam governar com equidade, mas não o fazem. Visitei muitos dos lugares a que você alude nas crônicas e, ajudado pelos roteiros e dicas que deixa entrever nas entrelinhas, descobri belezas e fealdades, escondidas dos folders e das reportagens turísticas que costumam ser e divulgados nos hotéis. Que fazer? Paris, Nova York, Buenos Ayres, Xangai – são cidades belas, mas também escondem as mazelas e maldades de toda cidade do mundo. São Luís não poderia ser diferente... Ou poderia? No fim de semana meus anfitriões tinham me prometido visita a um lugar ainda selvagem, recém-desvendado e que se transformou no mais novo balneário da cidade, local da moda, onde as primeiras moradias começam a ser erguidas, de nome para mim estranho, pois nunca o li em qualquer de suas crônicas: Panacoatyra.


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A descrição subjetiva era a promessa de casa ampla e confortável, bem em frente ao mar – o que me fez imaginar um descanso de pernas esticadas e copo à mão, ouvindo o som e assustado com o respingo das ondas quebrando a meus pés. Qual não foi minha surpresa ao chegar, não pela casa, que era realmente ampla e confortável, de acomodações aconchegantes, mas pela ausência do mar. Quilômetros e quilômetros de areia dura como asfalto se estendiam praia afora a perder de vista – mas nada de mar, nada de ondas e nada da vasa que vara as narinas, salobras, insinuantes, almiscaradas, saborosas até. A pergunta veio direta e seca: – Cadê o mar? Espanto geral, olhares insinuantes, risos contidos. – Então, não está vendo? Lá. Olhei o local indicado e o que vi foi uma fímbria de água, longínqua, brumosa, igual às que se vê nos cinemas – uma miragem no deserto, distante mais de quilômetro da varanda, das pernas esticadas, do copo de uísque com água de coco. Ante o meu silêncio espantado, mais risos, mais aquele tisc tisc tisc, só faltaram debochar da minha ignorância. Meia hora depois os copos começaram a tintilar, o cheiro de carne principiou a fugir da churrasqueira, os peixes e crustáceos marinavam em poças de alho, limão e cheiro verde e logo após já estavam sendo servidos os aperitivos, uísque, cachaça e essa coisa esquisita chamada tiquira – tudo isso, somado à palestra amena e agradável dos anfitriões, me fez esquecer a distância que me separava do mar, que passou a ser parte secundária da história. Fato é, caro cronista, que, estando abancado à frente da casa, esquecido de todos, mas bem abastecido de bebidas e acepipes, pude assistir ao pôr-do-sol e ver o véu da noite deitar-se sobre Panacoatyra, de tal modo em sequência volumosa, tão ágil e imperceptível quanto à sombra do álcool nublava minha mente e meus olhos.


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De repente, sem mais nem menos, um tremor saído assim do nada, abalou os alicerces da casa, a varanda começou a se mover. Um ruído misto de motor de trem e marulho do mar encheu o ambiente, como máquina fantástica saída das histórias de Jules Verne, me vi transportado adiante, não em pequena velocidade. Em verdade não sei quem se movia mais rápido, o mar ou a casa, mas o fato é que se não houvesse como parar essa loucura, um choque inevitável entre ambos se daria. A única coisa sincera que havia era uma lua cheia que varava as nuvens cinzentas, espelhando sobre as águas uma estrada infinita de prata e contas de pedras preciosas, um colar para enfeitar o colo de Panacoatyra. Esperei corajosamente agarrado ao copo de uísque – o mar que vinha e a casa que se atirava à frente, como o Titanic e o iceberg. Não rezei nem para São José de Ribamar, nem para Iemanjá ou para Netuno, o rei do mar. “Me arranjo aqui mesmo com a tiquira de Santa Quitéria, o camarão seco, mais o uísque Brown Label, dito escocês” – disse à minha alma compreensiva, já que ninguém me socorria. Essa tutaméia durou alguns segundos, não mais, para arrematar desse susto sem tamanho, ficou tudo estagnado – a casa e o mar, frente a frente – como se dois titãs olhassem um ao outro em desafio. Dei um grogue na tiquira, mordi um camarão e fiquei ali, o cu pequenininho, esperando o choque fatal. Mas nada aconteceu, ou melhor, o que ocorreu é que a casa começou a vibrar de novo e o mar borbulhar de refluxo, ambos se afastando um do outro. Em poucos minutos estava tudo tal e qual começou: o mar virou miragem apenas. E foi assim que me encontraram, lá na varanda, sozinho, as calças molhadas (uns dizem que era mijo outros, que foi água do mar), lívido como a tiquira, uma cabeça de camarão esquecida entre os lábios, a expressão de alegria, olhos sorridentes como um devasso.


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O fato é que, caro cronista, de hora em diante prefiro ir conhecendo sua terra na leitura dessas maravilhosas crônicas que saem semanais, assim não gasto passagem, nem hotéis, nem corro o risco de ser convidado a lugares misteriosos e fantásticos que nem essa tal de Panacoatyra...

etc.

Dê cá um abraço a seu fiel e agradecido leitor, despeço-me,

17/03/2014


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Brasil abaixo de zero!

Todo mundo assistiu “Jamaica abaixo de zero” (Cool Runnings), uma comédia da Walt Disney (1993), dirigida por Jon Turteltaub. O filme é baseado na história da equipe de bobsleigh da Jamaica nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1988 em Calgary, Canadá e faz piadas sobre a participação de países tropicais, onde nunca pingou um cristal de neve, em esportes de inverno – aqueles que são disputados no gelo das grandes montanhas. Verdade ou ficção, o certo é que a equipe jamaicana está representada em Sochi, Rússia, agora em 2014. Além disso, outros países abaixo do Equador e Caribe – alguns sem qualquer expressão esportiva nem no gelo nem em terra nem no mar – estão listados nas Olimpíadas de Inverno de Sochi.ru: Argentina, Bermudas, Ilhas Cayman, Chile, Ilha de Dominica, a já citada Jamaica, Paraguai, Peru, Venezuela, as duas Ilhas Virgens. É ou não é querer ser ridicularizado? Grosso modo, as equipes desses países (inclusive do Brasil), ao que se viu, são formadas por atletas aliciados de modalidades esportivas mais ou menos parecidas, disputadas em terra firme, ou seja, as agora chamadas, por oposição, Olimpíadas de Verão.


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Pois justo agora que se realizam os Jogos de Inverno em Sochi, Rússia, nossa equipe da mesma modalidade daquela jamaicana que deu origem ao filme, é notícia, não do tipo comédia, mas quase trágica pela capotagem espetacular ocorrida num treino. A piloto Fabiana Santos e a companheira Larissa Antunes, do bobsleigh, sofreram grave acidente na curva 11 da pista de Sanki Sliding As duas saíram caminhando, uma mancava muito, passaram por exames e depois declararam que estão em condições de competir. Sinceramente, parecia que eu estava assistindo a um remake daquele filme, desastre total. Já tendo ocorrido outro acidente – esse realmente trágico – com a competidora de esqui Laís Souza, é tempo de começar a se questionar a participação nacional nessas competições esdrúxulas, que não tem nada a ver com a tradição esportiva brasileira. Laís Souza – lembra? – era da equipe de ginástica artística dos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008. Entre 2006 e 2008 esteve ao lado das melhores atletas brasileiras, como Daiane dos Santos, Jade Barbosa e Danielle Hipólito, quando ganhou medalhas de ouro, prata e bronze em várias competições nacionais e internacionais. O estado da Laís Souza é gravíssimo, mas as autoridades do desporto brasileiro, do Ministério dos Esportes, nem da imprensa, não estão nem aí. A atleta estreou no esqui no ano passado, isto é, sem experiência alguma, mesmo assim foi selecionada pela CBDN para competir em Sochi. Agora se sabe que já existe uma Confederação Brasileira de Desportos na Neve, isto é, os cartolas de novo! Está na hora de se apurar responsabilidades. Laís Souza treinava com Joselene Santos quando caiu e se chocou com uma árvore. Que porra de treinador é esse que manda esquiador treinar entre árvores? Foi assim, aliás, que o Michael Schumacher se arrebentou outro dia! Ambos tiveram lesões graves e irrecuperáveis. Na queda que sofreu, Laís teve fratura e deslocamento da vértebra, levada ao hospital submeteu-se a cirurgia e foi transferida para Miami, onde continua em tratamento.


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Laís Souza perdeu os movimentos dos braços e pernas, precisa de aparelhos para respirar e suas chances de recuperar a mobilidade, segundo os médicos, estão próximas à zero. Depois do acidente, o silêncio – o silêncio criminoso. Êi, cadê todo mundo? Êi turma das redes sociais, cadê vocês? Cadê – principalmente – a família? Quem tirou Laís Souza dos ginásios e botou na neve? Não houve sequer menção do nome da atleta na página oficial do Brasil. Silêncio absoluto. Pode-se confirmar em: http://www.sochi2014.com. O nome de Laís Souza poderia e deveria ter sido mencionado, ao menos como sincera homenagem à atleta que ficou de fora da equipe por uma fatalidade. Mas não, preferiu-se o silêncio covarde e irresponsável – além do que, a retirada do nome da atleta da equipe equivale a ―tirar o corpo fora‖ em futuras reivindicações sobre os tratamentos médicos, atuais e futuros, a que Laís Souza deve se submeter. Os fãs de Laís Souza devem se mobilizar e sua família que abra o olho, para não cair em mais uma esparrela que esses órgãos “sem fins lucrativos” (mas terríveis aliciadores) costumam aplicar, quando querem fugir da responsabilidade. E, pelo menos neste caso, a CBDN está totalmente abaixo de zero. 17/02/2014


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Índio não quer apito, quer demarcação

Já estou de saco cheio! Acabo de ouvir um índio na TV. Ele está num bom pedaço de terra, por detrás corre um rio, crianças brincam no terreiro, árvores por todo lado. Ele diz: “Há mais de vinte anos os nossos antepassados estão sepultados aqui; não é ali, nem lá, é aqui. Então essa terra onde nossos ascendentes estão enterrados é nossa, por isso lutamos pela sua demarcação”. Há tempo essa teoria me irrita, me tira do sério, o mesmo se dá com a aceitação oficial e unânime dessa regra burra. Ora, senão vejamos: grosso modo, em geral tudo que está debaixo da terra é fóssil. Nós construímos nossas cidades sobre cemitérios, por cima de cadáveres em decomposição. Todos nossos avôs, bisavôs, tataravôs, estão debaixo de nossas casas. Isso é parte da história da humanidade. Então, por que se aceita um argumento tão simplório para ―demarcar‖ as terras indígenas? Nossos antepassados também estão enterrados aqui, Brasil afora, os antepassados negros, os judeus, os antepassados árabes, os chineses, os japoneses, os antepassados dos antepassados, o homem das cavernas. E daí? A terra é de todos, a terra é sagrada. Índios, quilombolas, caiçaras, negros escravizados, chinas, carcamanos, japas, todos temos ascendentes que hoje estrumam as terras para uma boa safra de soja e milho. E daí? Se formos seguir esse argumento o certo é devolver todo o Brasil aos índios, né?


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Em documentário o índio defende a tese de que o Brasil não foi ―descoberto‖, mas ―invadido‖. Nem um nem outro meu caro tocador de apito. Temos que ver como a sociedade e o estado estavam constituídos na época. Nos anos 1.500 o mundo já estava organizado socialmente, seja como reinado ou nação e o conceito de pátria não era arraigado, mas existia, apesar de feudal. As terras ao sul do Equador, principalmente no que viria a ser o Brasil, não tinham a mesma forma de governo - alguns, como em Pindorama, nem governo tinham. Os impérios inca e asteca eram organizados por políticas originais típicas: os fundamentos de domínio eram a religião e o poder opressor. Aqui entre nós, esse lado bobo da história indígena começou quando o marechal Cândido Rondon organizou e chefiou a famosa expedição desbravadora, com a finalidade principal de implantar linhas de telégrafos Brasil afora, invadindo florestas, atravessando pântanos, morrendo de doenças, flechas envenenadas, onças e jacarés, comendo macaco e pegando malária. A finalidade sub-reptícia – o plano secreto – era mesmo subjugar os índios ―civilizando-os‖, inserindo-os na sociedade. Foi por isso que o marechal Rondon introduziu a política de tutelar o índio, difundido a imagem de que se tratava de povos primitivos, ingênuos como anjos celestiais, inocentes como Adão e Eva no paraíso, carecendo, pois, da proteção do Estado. Esse roteiro foi seguido pela maioria de nossos indigenistas. Como se viu pouco depois, o índio era mesmo um povo primitivo, ingênuo como anjos celestiais, inocente como Adão e Eva no paraíso, que Rondon nos fez imaginar – mas apenas em seu gene, pois não tinha nenhuma imunidade contra doenças dos ―brancos‖ – a cada contato, centenas foram dizimados por tifo, diarreia, gripe, pneumonia, um resfriado simples. Morte que as roupas brancas com que Rondon vestia as tribos não conseguiram evitar... Todo esse paternalismo foi apadrinhado pela frase positivista (ou cabotinista?):


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– “Morrer se preciso for, matar nunca!” Foi essa frase que serviu para incutir um conceito de ―pena‖ que merecia o índio brasileiro, sendo assim apresentado à sociedade, que deveria acolhê-lo como pessoa ingênua e desamparada. Darcy Ribeiro pôde convencer o presidente Getúlio Vargas para ver o sonho de uma grande reserva indígena ser criada, como de fato se deu e hoje é o Parque Nacional do Xingu, palco de filmes, romances de cavalaria e novelas. Darcy defendeu por muito tempo a tese de que ninguém melhor que o índio poderia preservar e cuidar das florestas, seu elemento natural. Felizmente o caboclo de Maricá não sobreviveu para assistir aos índios de outras reservas negociando com madeireiras e mineradoras, com a ambição de um grileiro qualquer, que invade a terra da união para arrasá-la, depois sair sem deixar um benefício sequer. Já viajei muito pelo interior do país (pelo chão e não via aérea), peguei muita estrada, engoli muita poeira, atravessei reservas indígenas sem pagar pedágio e acredite, nunca encontrei um índio, um caboclo, um quilombola que fosse bobo, ingênuo e inocente como Adão e Eva no paraíso. A cara sim é de ingênuo, os gestos e a fala malandra, de quem finge não conhecer o mundo, o olhar de espanto: – É mesmo? – num teatro que a vida ensinou ante a cruel esperteza de quem chegou ali antes, arrasando, matando e roubando. Os interioranos aprenderam a lição. Nessa andança esbarrei com pobres e com a pobreza, conversei com gente que não sabia ler e gente letrada, com família que comia pouco e se vestia simples, outros, mais abastados, na moda, mas nunca topei com um bobo, um trouxa, um otário. Muito pelo contrário, quando eu dava mole eles me comiam com casca e tudo: que o diga a dúzia de abacaxis docinhos que comprei na beira da estrada, mas que depois em casa milagrosamente se transformaram em ananás. Aquele ser ingênuo que aparecia nos filmes em preto e branco desapareceu há muito, quiçá jamais existiu. Depois de tanto ser


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enganado – como o foram os incas e os astecas –, depois de trocar ouro e prata por vidrilhos, depois de oferecer as donzelas e “suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras”, esse ser se transformou em Macunaíma, que o diga Mario de Andrade! O Jeca Tatu de Monteiro Lobato virou Mazzaropi, o jeca filho de emigrantes que se fingia de bobo, mas ao fim vencia todas. Agora, essa reserva de autoproteção tem seus fundamentos. Basta ver o lado político da coisa, pois está claro que as terras ―demarcadas‖ na verdade será propriedade do governo, do Estado. Assim, ao retomar as terras indígenas invadidas por grileiros – grandes fazendeiros e plantadores de grãos – para depois ―demarcálas‖ e transformar em reserva indígena, na verdade o que o governo faz é ―desgrilar‖ a terra, retornando-a ao poder público, como também as suas riquezas a serem exploradas, dependendo de qual pirata estiver no Palácio do Planalto, em Brasília. Isso não diminui a minha irritação, meu pré-infarto. Ainda acho que ir à TV dizer que “os nossos antepassados estão sepultados aqui, então essa terra é nossa” é uma mentira deslavada, pano de fundo para ambições, dinheiro e política; conversa mole pra boi dormir. Uma curiosidade é que não se vê registro de nenhum conflito entre os grupos que fazem a reivindicação: as terras a serem demarcadas para o índio nunca estão em Quilombos, os quilombolas jamais reivindicam terras reclamadas pelos índios. Mas a história desmente esse fato: escravos fugidos buscavam refúgio em tabas, eram bem acolhidos, ficavam amigos e até casavam com índias. Isso porque o índio brasileiro sempre foi um povo nômade, por vários motivos. Primeiro, tinham toda a terra disponível para si e viviam em pêndulo de acordo com as condições climáticas. Segundo, os inimigos eram poucos, as guerras se travavam justamente em disputa pela terra mais fértil. Agora estamos na modernidade, mas a ambição política é a mesma desde Brutus, Maquiavel, Bush, Putim, Lula. Nós (e vocês) somos apenas bucha de canhão. Nosso latifúndio mede apenas sete palmos de fundura, ou um retângulo nas paredes dos cemitérios superlotados.


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Então esse refrão repetido por índios, quilombolas, caiçaras e outros ―povos‖ que querem as ―suas‖ terras de volta, fiquem sabendo: a terra só foi de vocês antes de Cabral aportar e trazer a reboque as piores quadrilhas da Europa, da qual herdamos todas as podridões políticas – coisa que nem Shakespeare poderia imaginar. Acho bom o índio retornar aos velhos costumes e se satisfazer com apitos, colares de vidro, facas e panelas. Nos quilombos sei que não faltará um bom terreiro, Linha branca, Nagô, Mina, onde – ao som do xeroquerê, do agogô, dos atabaques e ganzás, do afoxé e adjá – possam cultuar suas entidades, os Caboclos, Pretos Velhos, os Exus, as Pombas Giras Ogum – e também o Zé Pelintra – melhor símbolo do esperto não há! Que seja assim, em paz, que se enfeite o país com suas tradições, sem precisar formar currais onde se isolem prostituídas as gentes que fizeram a amada terra desigual chamada Brasil. Fazer o jogo do poder é retornar à servidão mais cruel por onde todas as gerações transitaram, para um dia pensar em liberdade. Fazer o jogo do poder é eternizar a separação de tipos, de religião, de tradição e do bem cultural. Fazer o jogo do poder é perder a identidade, o caráter; foi essa a razão porque Macunaíma, desencantado, ficou triste e doente. É esse o retrato do Brasil – que Mário de Andrade previu – agora querem repetir? “Macunaíma amanheceu com muita tosse. Maanape desconfiou que o herói estava hético. Era impaludismo e tosse, por causa da laringite que a gente carrega de São Paulo. Macunaíma passava horas deitado de borco na proa da igarité, nunca mais havia de sarar. No outro dia atingiram as cabeceiras do rio e escutaram perto o ruidejar do Uraricoera. Era ali. Um passarinho sirigaita trepado na munguba,


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enxergando o farrancho gritou logo: - Sinhá dona do porto, dá caminho pra mim passar! Macunaíma agradeceu feliz. De pé ele assuntava a paisagem passando. Afinal ficou tudo conhecidíssimo. Enxergou o cerro manso que fora mãe um dia, no lugar chamado Pai da Tocandeira, enxergou o pauê trapacento malhado de vitórias-régias escondendo os poraquês e os pitiús e pra diante do bebedouro da anta se viu o roçado velho agora uma tiguera e a maloca velha agora uma tapera. Macunaíma chorou”. 06/02/2014


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Clamor Insano contra as “indenizações”

Carlos Heitor Cony

Não sei o que significa o clamor nacional que se levantou contra Ziraldo e Jaguar sobre a inclusão e aceitação deles no recebimento das múltiplas e milionárias indenizações para reparar ―danos‖ sofridos no período do regime militar. Para condenar tais indenizações seria preciso, primeiro, que elas não existissem, mas os Amigos Dos Amigos (ADA) – facção muito conhecida nos Três Poderes (com ramificação em todas as casinhas legislativas) – tiveram a luminosa idéia de produzir a inseminação, o parto e a criação dessa fera. Pois agora está de fato escrito na forma da Lei – dura lex, sed lex.

Jaguar

Como coisas desses tipos são figuras alienígenas, isto é, sabese que existem, mas ninguém conhece-lhes a forma, a canoa vaga de acordo com a interpretação de cada um, atrelada ao interesse de outro um. Algo assim como aquela anistia ―ampla, geral, irrestrita‖ – que todos abonamos por julgá-la democrática em tese – mas que


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agora abominamos, porque a irrestrição serve igual a torturadores e assassinos.

Genoíno

Fica evidente que se houvesse o julgamento que a História exige, muitos desses maus elementos não estariam agora acobertados sob o manto do mandato parlamentar, que não só os protege da espada da Lei, como também decreta o perdão e escancara a porta do Paraíso, onde todos passarão incólumes. Não sem tempo – ou em todos os tempos – a História deu e dá exemplos: desde Nuremberg aos comandados de Hitler, até o Tribunal Internacional, aos aloprados daquele general sérvio porralouca Radovan Karadzic – como também dos casos regionais exemplares ocorridos no Chile e na Argentina. Se algumas omissões ocorreram, tais como a falta de condenação aos comandados de Franco, Salazar e Il Ducce, mais justiça que injustiça se fez.

Karadzic


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Este caso ocorrido aqui em nossa taba consiste em que TODOS sofreram de algum modo com a Ditadura Militar. Alguns de nós sofremos mais ou menos, outros quase nada, além dos que foram prejudicados. Se o houvesse um ―medidor de sofrimento‖ capaz de dimensionar o nível de cada qual, a escala maior caberia ao torturado. Mas quem seria capaz de pensar que também o torturador teve seu nível de sofrimento, se fizermos uma triagem dos que torturaram com prazer, daqueles que o fizeram para ―cumprir ordens‖? Jaguar e Ziraldo (os mais citados), são lugar comum, a ponta do iceberg. Outras decisões alopradas desse Conselho Papai Noel, que distribui milhões a torto e a direito, foram tomadas e executadas em absoluto silêncio. Sim, uma e outra aparecem no noticiário, mas logo se afundam no silêncio do pântano que habitamos: Artur da Távola, Carlos Heitor Cony e mais algumas léguas de etcéteras.

Ziraldo

Tenho certeza que todos os indenizados aceitam os milhões oferecidos pela viúva apenas por uma questão de justiça, já que, pelo menos os aqui citados nomine (inclusive os fundadores do Pasquim), vieram de berço de ouro, são ricos de nascença e certamente vão doar grande parte do que receberam aos mais necessitados. Por outro lado, precisamos saber também quanto ganharam – ou aqueles que NÃO ganharam, ou aqueles que NÃO aceitaram – muitos dos brasileiros notórios, para que, pelo menos, eles sejam julgados como heróis pela sociedade que os admira ou danados ao


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fogo dos infernos pela corja de pobres que também sofreu sob os tacões da Redentora e recebeu só pontapé na bunda e porrada no cocoruto como indenização...

Artur da Távola

Só para encerrar, convém lembrar que também os órgãos e entidades de direito público, as defensorias, as procuradorias, os tribunais superiores, também eles têm obrigação de inquirir qual a razão desse desperdício do dinheiro que muita falta faz para debelar a dengue, a febre amarela, a tuberculose, para escolas e hospitais. Então, por que o silêncio? 09/01/2014


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50 anos de ditadura musical!

Estava finalizando este artigo quando descobri o interessante texto de Marcos Napolitano, que complementa o meu escrito: “O campo social da vigilância e do controle, dentro da lógica da segurança nacional implantada pelo golpe militar de 1964, era enorme: entidades da sociedade civil, espaços de sociabilidade e cultura, atuação pública de personalidades críticas, todo o tecido social e os espaços públicos eram virtualmente vigiados (...) a vigilância sobre a sociedade civil era constante”. “Um outro caso de suspeita muito peculiar foi o de Caetano Veloso. As posições políticas de Caetano, sempre críticas em relação à arte engajada de esquerda, já conhecidas no final dos anos 60, acabaram gerando uma série de conflitos entre sua personalidade pública e o público de esquerda, que o qualificava como “alienado”. [Marcos Napolitano - Departamento de História - UFPR - A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981) - Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 47, p.103-126 – 2004]

Cinquenta anos que começaram nos famosos festivais da canção da TV Record e depois da TV Globo. Esses festivais que mobilizaram a população cultural da época foram bem canalizados pela mídia, rádio, jornais, TV e revistas se uniram num só grupo


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empresarial para explorar a mina de ouro em que se transformaram. Quando a míngua chegou – era de se esperar – sobreviveram apenas àqueles mais cruéis, os predadores, apoiados pelos mais frios e calculistas empresários, caçadores de sucesso, fabricantes de mais vendidos, donos ou representantes de gravadoras internacionais, que abocanharam também as rádios, as revistas ―especializadas‖, os jornais. Por trás dessa cruel ditadura musical ficou o rasto de terra arrasada, jovens cadáveres, dizimados pelas drogas, pela depressão, pelo álcool, abandonados pelo simples desprezo, o esquecimento conveniente, as traições. Todos os que estavam bem ali, ao lado, dando o apoio, trabalhando duro nos anos difíceis, nos atropelos do começo de carreira, da sacrificada luta pela sobrevivência, se viram um dia defenestrados, atropelados pela máquina cruel da ambição, destrambelhados pela ausência de princípios morais, éticos, de amizade e até de religiosidade, inexistentes no meio em que viviam. Em sequência, alguns muitos vieram a mamar nas tetas do dinheiro público, seja por meio de amizade, seja por meio da aderência ao sistema, usando o poder de governos – ditatoriais e democráticos (a ambição não tem ideologia) – elegeram-se deputados, senadores, assumiram secretarias, ministérios, outros ocuparam cargos praticamente invisíveis, mas sempre com salários altíssimos, tudo remunerado e sustentado com nosso dinheiro, o dinheiro público, quer dizer, com a miséria de muitos. 50 anos de ditadura musical – demorada, mas rentável – mais, muito mais, do que durou a ditadura militar; mais, muito mais, do que demoraram os governos de milicos africanos, dos quais todos nós reclamamos e lutamos para extinguir. Todos os chefes desse implacável assenhoramento da nossa música são hoje dignos, ricos e eloquentes septuagenários – além do ganho com a ditadura musical abocanharam também grandes bocados das ―indenizações‖ com que o governo brindou os perseguidos pela redentora – mesmo sabendo de que todos nós


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fomos perseguidos, vigiados, doentes de depressão, de diarreia, de dengue, dor de cabeça, sofremos desemprego – as causas e os efeitos da ditadura atingiram a todos, sem distinção. Quem não se enturmou ficou à margem, foi vender água de coco na praia, foi vender livros nos bares e boates da noite, enrustidos com medo do pau de arara. Ah, sim, eles também infernizaram os nossos pobres ouvidos com algumas músicas bem podres, além de deixar de fora, com o conluio de produtores, gravadoras e rádios e tevês, os novos sons que apareciam em nosso rico país, porque talento nós temos de sobra. Os sons novos e experimentais, que deveriam nos levar ao futuro da música, ficaram para alegrar os anjos no paraíso. Charlatães do labirinto das palavras, letra e música, dos sons repetidos à exaustão, mágicos, ilusionistas, nos fizeram de bobos, nos fizeram acreditar que era música a cantilena monocórdia que hipnotizou por mais de 50 anos toda a população brasileira, num casamento infernal contratado como núpcias interioranas: com a declaração formal “até que a morte nos separe”. Ah sim, eles infernizaram milhões de ouvidos, deixando de fora os novos compositores que traziam a esperança de salvação de nossas almas penalizadas. Aproveitando-se da fama de ―perseguido pela ditadura‖, erigiram e solidificaram a carreira com base nesse renome, posando de vítimas ad-æternum, subterfúgio inventado pela mídia por interesse financeiro, apenas pra faturar, apenas pra fazer o pé-demeia crescer e crescer e crescer. Ao mandar para a câmara de gás, para o limbo do purgatório, aquelas vozes que realmente traziam algo de novo, ideal como idealizamos o som novo, a música do tempo hoje, enterrando para sempre a ilusão da palavra e do som mexido como flautas indianas que enfeitiçam serpentes, atraparam o modernismo da MPB que foi preterido sempre, sempre com a anuência dos donos de nossos


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destinos, como uma repetição saatiana, enterrando-nos na préhistória da música do século XX, porque de lá eles nunca saíram. Muitos irão me repudiar, lembrando que eles nos legaram belas canções – é verdade. Mas a que custo? E o quanto essas canções se transformaram em canto de sereia? As sereias eram entidades capazes de encantar qualquer um com o seu canto. Diz a lenda que os marinheiros que ouviam seu mavioso e hipnótico canto, perdiam o rumo, o tino e assim descuidados naufragavam. O sábio Homero afirmou que elas podiam prever o futuro, o que condiz com a minha indignação. Nós nos deixamos enfeitiçar? Nós sucumbimos ao canto das sereias? Então tudo aquilo era fingimento? Isso porque, quando o futuro chegou, nos demos conta de que também nossos cantores e compositores ―perseguidos‖ pela ditadura, como as sereias, anteciparam de maneira sábia o que viria ocorrer: mesmo que a maioria deles não precisasse, porque vinda de berço de ouro, o futuro lhes trouxe muita e muita grana... Para o resto, os demais, os jovens descendentes, as “entidades da sociedade civil, espaços de sociabilidade e cultura, atuação pública de personalidades críticas, todo o tecido social e os espaços públicos [que] eram virtualmente vigiados, [pois] a vigilância sobre a sociedade civil era constante”, ficou a estranha sensação de que serviu apenas de pano de fundo para essa tragicomédia sem fim que os governos militares legaram ao teatro de nossa existência. 02/02/2014


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2015 ... em Blog Índice

Murillo Boabaid – 90 anos, pg. 103 Nauro Machado, pg. 109 Poesia escrachada, pg. 116 Joaquim Itapary, cronista por inteiro, pg. 119 Literatura de cordel – Patrimônio Imaterial, pg. 122 Valsa pra Joaquim Itapary, pg. 125 Relato da viagem que fez o cronista Quincas Oliveira à fermosa cidade carioca no ano de 2015, pg. 129 Oh Captain! My Captain!, pg. 132 Uma carta de 1999, pg. 135 O milongueiro Arrabal, pg. 145 A epopeia de Waldemar Costa, pg. 155 O Quixote de Avellaneda, pg. 158


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Murillo Boabaid: 90 anos

Aniversários são gerações. Cada qual com sua historieta que nem sempre será contada. Certa família de sírios (sírio-libanês, como se dizia), de sobrenome Abu Obeyd ou Obu Obeid, certo dia resolveu largar as múltiplas estações de Zahlé, que culminam com inverno rigoroso, e partir para a América – oásis onde o mel jorrava aos borbotões, o ouro surgia das corredeiras dos rios, jogado à margem, os diamantes faiscavam nas areias das praias – segundo a fama que corria nas mentes aventureiras. E mais ainda: naquelas terras reinava a paz e as filhas dela eram belas, tinham olhos amendoados como as tâmaras, caminhavam flutuando, o corpo serpenteava tal e qual as odaliscas das mil e uma noites – eram ricas como as princesas huris. Quem faz o Paraíso e o Inferno é a imaginação aventureira de cada qual, não é? E assim parte dessa numerosa família veio aportar mais ao sul das terras brasileiras. Alguns se enamoraram do litoral, que não tinham algum diamante senão a própria beleza das areias e do mar de águas ora azulina, ora esverdeada, outros partiram para o interior mapeando outras aventuras, terras férteis, montanhas de jade. Por obra e graça da fala portuguesa (começando a abrasileirar), os Abu Obeyd e Obu Obeyd, passada a informação boca a boca, se transformaram em Boabaid, Boabayd ou Boabeyd, conforme o verbo soasse na memória rítmica, nos ouvidos e na fala sonora dos funcionários da emigração ou escrivães dos poucos cartórios. Muitos outros repetiram a dissonância: Oaquim, Wakim, Uakim, Waquim – tantos e tantos outros – somente o bíblico sábio


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Salomão se manteve íntegro por conta da fama de bom juiz – mesmo assim de vez em quando ainda chegam os Suleiman. Irmãos e primos da família emigrante se disseminaram por Santa Catarina, estendendo as pegadas até os pagos mato-grossenses e gauchos. Mas jamais nas ilhas, que aos povos do deserto acendem recordações de contos espantosos: sempre a terra firme, continental, quando as passadas não se detêm por conta de algum mar ou disparatado rio de águas profundas – a terra firme na qual se pode caminhar em andança sem fim, até descobrir um descanso sombreado ou um colo poderoso da mulher amada. Alguns, sentindo as agruras do frio cortante com que o minuano às vezes vergasta as terras do sul, voltaram-se para o nordeste e mais adentro, perto das matas verdes, rios, banhados, a misteriosa Amazônia botava nas mentes espantadas. Era certa natureza que se choca com as areias dos desertos da infância, como a Vila de Rosário, interior mais próximo da Capital São Luís que, como disse, por ser ilha não foi tocada senão para chegar à terra prometida, cercada de palmeirais incríveis. Pois é desse Abu Obeid – já mitificado para o sonoro Boabaid – que gostaria de narrar a vida na estreiteza de um conto ou crônica, embora me falte mais ofício do que arte. Mas não falo, porque nada sei: faz apenas duas ou três gerações e a descendência já ignora o passado. Nada sei… Pois daquele Jorge Salomão Boabaid sabe-se o quê? Quase nada, pois o que dirão algumas poucas fotografias ou a estória mal contada pelos ventos silenciosos? Descontados, ainda mais, o que deixou de ser contado e cantado, o primogênito que repetiu o nome Salomão Jorge, mas que carregou por igual o gene melancólico? Esse seria poeta e por ser poeta morreu jovem definhado pela tuberculose. Do patriarca sabe-se que encontrou ali naquelas sertãs louras de Santa Catarina a alvura da pele, o olhar misto verde, dourado e azul – principalmente topou com a firmeza de propósito e caráter


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da mulher forte. Tanto era segurança de sentimento, que ambos assumiram compromisso ao primeiro encontro. Assim, sem raptos nem sequestros, sem galopes de trem, nem montaria de cavalos, casaram-se na paróquia Nossa Senhora da Piedade, Jorge Salomão Boabaid e Adília Cascaes, em cerimônia singela, na Matriz de Nossa Senhora do Rosário, em dia que o cronista não conhece. Certamente o sol brilhou entre nuvens, o vento fresco, temperado pelas águas plácidas do Rio Tubarão, sacudiu a folhagem, embora tivesse caído faz pouco a chuva certeira do inverno. Ao fim da tarde os passarinhos retornavam aos ninhos. Mas agora, que o padre encerra a cerimônia sacramentando o casal, é de tarde, o luminoso raio roxo ainda rasga o céu em estrias, a brisa se acomoda, não levanta a poeira que viesse macular o vestido branco, simples, rendado, cuja extremidade desce até o chão. De longe soa o apito intransigente do trem que viaja para o sul. Naquele momento em que caminha o casal para sair da igreja e marchar a pé até a nova casa da família, assiste com alguma surpresa o murmúrio crescer, algumas palmas, muitos sorrisos, abraços e vozes de parabéns, de felicidades. Não só a nave, mas por igual todo o adro da igreja estava agora apinhado, cheio de rostos conhecidos, outros nem tanto, refletindo a felicidade que fluía do casal. É que naquela hora o comércio ia acabando de fechar as portas e as pessoas, empregados e patrões, em vez de correr às suas casas, como de praxe, estavam ansiosas para assistir ao casamento de Salomão e Adília, cujo namoro perdera a aparência anônima para se transformar em conto de fadas. Embora se julgasse que nesse dia feliz terminaria para sempre a peregrinação de Jorge Salomão Boabaid, que partiu incerto dia de Zahlé para se acastelar nas ancas fartas de Adília Cascaes, promessa de prole alvissareira – não foi assim. Algo dizia àquele libanês que em algum lugar mais ao norte, de certa outra vila ouviria o chamado.


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Passado esse misterioso introito, como faziam os narradores árabes e persas, chegamos intactos ao ano da glória de 2015. Estamos numa casa aprazível de jardins gramados onde se homenageia os 90 anos de um dos troncos dessa árvore, Murillo Boabaid, que aportou no Rio de Janeiro para fazer-se arquiteto. Ali fez-se também amigo e companheiro de Sérgio Bernardes, num momento em que a arquitetura brasileira crescia e impunha o seu anseio universal ao aqui agora, mirando o amanhã como alvo. Murillo Boabaid foi fiel companheiro de trabalho de Sérgio Bernardes por bem quatro décadas, tendo participado da maioria dos projetos da equipe, como os pavilhões da Companhia Siderúrgica Nacional no Parque Ibirapuera (SP), da Exposição Internacional de Bruxelas (Bélgica) e São Cristóvão (RJ), verdadeiras preciosidades da arquitetura moderna, que deram notoriedade à equipe. A história do Pavilhão de São Cristóvão – hoje Centro de Tradições Nordestinas – começa quando Sérgio Bernardes pelo empresário Joaquim Rolas, para erigir no Campo de São Cristóvão, um pavilhão para atividades comerciais – como que prenunciando os modernos shopping center. Dois problemas tiveram solução bem nossa. 1) A forma elíptica do terreno, resolvida com a estrutura de concreto em onda, a cobertura suspensa em cabos de aço tensionados – experimento da arquitetura brasileira e base do que seria a ponte estaiada. 2) O calor da região: sendo os grandes vazios preenchidos com tijolos de saibro, permitiram a ventilação cruzada através do vão, tornando o ambiente agradável. Eis como se erigiu o Pavilhão de São Cristóvão que, assim como os tradicionais postos de salvamento das praias, se tornaram obras populares, enraizando-se na alma e no dia a dia do carioca, como era a ideia do arquiteto mais modernista do Rio de Janeiro. Os Postos da orla carioca viraram ponto de referência e de encontros amorosos – muitas paixões nasceram em encontros marcados nos Postos, que estavam assim programados: Leme e Copacabana – Postos 1 a 6; Arpoador, Ipanema e Leblon – Postos 7 a 12; São


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Conrado – Posto 13; Barra, Recreio, Prainha e Grumari – Postos 14 a 27. O entrelaçamento do Boabaid com Cascaes, já estaqueados em terras catarinenses, resultou em gene vivaz e longevo, pois esses e mais outros de gerações passadas e recentes, parentes e aparentados, não se vexam de ultrapassar com naturalidade a barreira dos oitenta e noventa anos, como a maioria das mulheres da família. Especialmente para a ocasião chegou ao Rio de Janeiro caravana comandada por Joaquim Itapary, que aqui chegado promoveu uma prévia com convidados especiais. Para resumir esse aporte, eis como a notícia saiu no Estado do Maranhão, em 15/7/2015, homiziada na notável página de PH: A mesa maranhense celebrada no Rio Com sua requintada e inimitável arte, sobretudo no trato de pescados e frutos do mar, a mesa maranhense, na sua mais genuína tradição familiar, acompanhou meus amigos Joaquim e Edna Itapary para ser celebrada em Copacabana. Celebração que ganhou a forma de um almoço dos deuses, com produtos levados da terra e preparados por uma artista da gastronomia sofisticada – a conterrânea Ângela. Uma catedrática do paladar. A tradução desse almoço suntuoso se expressou concretamente na salada puxada a camarão, na excelência da torta de camarão seco (cada vez mais difícil de ser apreciada na falência global em curso da memória do gosto), no arroz de cuxá, aromático, de textura delicada e no delicioso peixe frito, desidratado de toda gordura, sem ficar ressequido, sem perder a consistência macia, que afaga e reverencia as papilas. A mágica de um ponto de fritura que só a cozinha maranhense sabe alcançar. Mágica democratizada, um bem cultural popular, pois ele se exerce também nas barracas de praia. O que tanto encanta os europeus em veraneio pela terra. Na sobremesa, foram servidos as nossas compotas de doce, com um queijo de São Bento feito a capricho e creme de bacuri. Não foi menor a imaginação, o espírito e o bom humor do papo que balizaram o almoço, tendo como convivas Dayse e Murillo


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Boabaid (tio de Joaquim, artista plástico e arquiteto); Luis Eduardo Homem de Carvalho; o jornalista Napoleão Saboia e o escritor Salomão Rovedo; a médica Luzia Abreu, além de Márcia e Marko, filhos dos nossos Edna e Quincas. Quem esteve presente conta que nas despedidas, o abraço mais apertado foi para Ângela, a grande artífice do que serviu de carro-chefe de um momento inesquecível de prazer. Assim é que estivemos reunidos para celebrar a vida de Murillo – como eu também um Boabaid – que chegou aos noventa anos pautada em tornar a existência do homem simples e objetiva. Por isso estão os amigos reunidos – sob a batuta do casal Márcio e Lúcia – todos de copo nas mãos, alegres, conversando e sorrindo, gente que há tempos não se via, em comunhão e abraço, porque esse é também sempre foi um dos ideais desse semeador de concreto, madeira, sonho. 15/12/2015


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Nauro Machado atravessa o Estriges

O primo Quincas manda de São Luís uma mensagem aflita: “Nesta madrugada, Nauro Machado faleceu em um hospital. Triste. O Maranhão vai a cada dia ficando mais miserável cultural, moral e economicamente”. Logo depois outro e-mail, desta vez do Fernando Braga, confirma a tragédia e dá “Adeus a Naurito”. Uma tragédia, sim. Era sexta-feira, 28 de novembro de 2015. Só agora, alguns dias depois, consigo me refazer da agonia de todos nós, admiradores e amigos de Nauro Machado: perdê-lo assim de modo inesperado, mesmo tendo ele somado agorinha mesmo os 80 anos de idade. Disse de modo inesperado e assim foi. Ora, o poeta acabara de superar um câncer no esôfago, o que significa uma vitória, como quem diz: dona morte, vai te catar! Passa depois… Mas não, logo deram jeito de pegar o corpo fragilizado do poeta, cuja única vitamina de longevidade é a poesia, e metê-lo num hospital para outro procedimento. Ó humana burrice, quem se aventurará aos 80 anos na loucura de uma anestesia geral nessa idade? Quem ousará se internar nesses hotéis em que são hóspedes vírus e bactérias tão letais que derrotam a penicilina e todos os modernos antibióticos? Meu testamento tem um só parágrafo: – Não me interne em hospital. Nem faz um mês contei a Quincas como conheci o lendário crítico e polemista Agripino Grieco, já beirando os 90 anos. Agripino vivia numa casa amarela, na Rua Aristides Caire, no Méier, cercado


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de 40 mil livros. Desde a primeira vez que fui vê-lo, caía uma garoa gélida de umedecer os ossos, ele estimulou novas conversas. Disselhe que iria levar um gravador para registrar os encontros, a modo de entrevista. “Não precisa gravador, ele me disse, guarde de memória. Escreva. O que não lembrar, invente”. A última vez que o vi estava se preparando para operar: Agripino Grieco era rendido, como se diz popularmente, não sei se em causa de hidroceles ou hérnia. Eu fiquei obtuso com isso. Ele me disse que não tinha jeito, os médicos insistiram, os filhos viram como única solução, etc. etc. Nem preciso dizer que ele morreu no hospital. Ah, porra, já tinha 91 anos… é essa a justificativa de sempre. E foi assim que os hospitais viraram açougues, câmaras mortuárias. Nunca fui íntimo de Nauro Machado, nem poderia, ele em São Luís, eu no Cachambi. Mas sua poesia sempre me acompanhou através dos livros que conseguia adquirir por encomenda aos livreiros seu Alberto ou seu Carlos, da Livraria Padrão, Travessa Miguel Couto, no Rio. Os livros de Nauro “Do frustrado órfico”, “Noite ambulatória”, depois “O calcanhar do humano”, a alentada “Antologia Poética”, da Editora Quíron e “Apicerum da clausura”, foram lidos e relidos. Eles me serviram de base e estímulo para o artigo “Poesia Maranhense – a Atenas renascida” que escrevi para o Jornal DO Cultura (São Paulo, 1986). Para dirimir o mal do exílio, algumas vezes vou à ilha de São Luís visitar o primo Quincas, o mano João, a grande parentada que me enche de saudade, pois a cada visita a recepção se esmera. Duas ou três vezes no intercurso dessas viagens tive a sorte de esbarrar corpo a corpo com o poeta. Nem sempre lhe dirigi a palavra: muitas vezes preferi acompanhar a figura esbelta e pacífica que descia flutuando a Rua do Sol. Quando essa coincidência se deu no Centro Cultural Odylo Costa Filho, na Praia Grande, me acometeu uma crise de riso, meio lacrimoso: a maravilhosa emoção de ver os poucos cabelos brancos


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do poeta emergindo da multidão de jovens estudantes que o cercavam, não só para ouvir, mas para dirigir-lhe a palavra de igual para igual. Eram, poeta e leitores, irmãos que acaloravam a conversação, animando o silêncio do salão cultural. E os olhinhos do poeta? Brilhavam como quem se diverte, reconhecido e venerado, por quem deve verdadeiramente venerar e reconhecer o intérprete de seu tempo, da sua cidade. Houve um momento em que pensei estar ali o poeta que emudeceria a poesia de outro grande poeta maranhense: Bandeira Tribuzi. Mas esse não era algum plano do próprio Nauro Machado e o que se deu foi uma transição pacífica e sequencial. Entre a poesia agitada de Bandeira Tribuzi e a calmaria que representa os versos de Nauro Machado, existiu apenas uma ponte: e era o José Chagas que estava ali, espiando... Noutro dia espiei o poeta caminhando em direção à Praça João Lisboa. Deixei-o seguir o curso e passei direto para a Benedito Leite, que ali tem, ou tinha, um vendedor de sapotis maravilhosas, cuja polpa cede ao aperto mais leve e, ao ser mordida, transforma em mel a saliva que escorre pelo canto da boca. Depois de tanto prazer, segui em frente pela Av. Pedro II, aonde está o Palácio dos Leões que, recém-saído de uma reforma, reluzia ao sol em alvura mediterrânea. Lá adiante a maré cheia chacoalhava nos muros e rampas. Aí eu entrava pelas ruas Nazaré, Djalma Dutra, Portugal, até desembocar na Praia Grande, com a boca salivando e a garganta ressecada. Direto ao Mercado a fazer o teste das tiquiras e camarão seco. Refeito da caminhada, seguia sozinho tal qual um espião, olhando lojas, redes, artesanato. De novo entrava no centro cultural que era certo estar ali o poeta. Nesse segundo encontro, como o assédio da estudantada não era tão acachapante, me aproximei e após os cumprimentos de praxe disse de supetão:


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– Poeta você me deve 15 reais! Nauro Machado, naturalmente espantado ante a inusitada cobrança, com o olhar exigiu explicações – e eu dei: – É que passando pela João Lisboa vi um livro de poesia numa banca de jornal. Na orelha você recomendava a poesia do fulano e eu comprei. Mas quando li… Nauro, era cabra difícil de rir, mas quando ouviu meus comentários sobre a poesia e o poeta do livro, quase deu uma gargalhada. Só aquele riso valeu a brincadeira, que não carecia ser contestada. Mas ele ainda me disse ao pé do ouvido: – Aquele rapaz é muito esforçado, dono de uma gráfica. Eu devo a ele muitos favores e sou agradecido. Por que não? Nada errado. Eu e também os milhares de seus admiradores somos muito gratos a Nauro Machado pela poesia que a nós oferenda. Nauro Machado é um poeta difícil? Já ouvi dizer. Nauro Machado é um poeta hermético? Já li por aí. Baboseira de intelectuais, críticos e ensaístas – a popularidade que Nauro Machado alcançou em sua terra, principalmente entre os jovens, é o contraditório de tais descobertas oriundas de banca universitária. Seus leitores repudiam tantas teses e desse modo carimbam o passaporte para que sua poesia alcance o universo. É também uma resposta cabal a quem prefere cultuá-lo no limbo da “poesia para poetas”, na neblina cega da linguagem dos labirintos. 01/12/2015

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Fernando Braga: Adeus a Naurito Perdeu o Brasil e, principalmente o Maranhão, um dos seus maiores poetas e ensaístas... Um homem de cultura feita. Um estróina de talento, um perdulário de sensibilidade... “O Esôfago Terminal”, fora o seu último canto publicado, e o que, infelizmente, o matou... Nauro deixa, além de muitos livros publicados, uma bagagem muito grande de inéditos... Deixa viúva a escritora Arlete Nogueira da Cruz, um único filho, Frederico, e duas netinhas... Este dedo de prosa abaixo foi o último que escrevi para e sobre ele... Perdi um dos meus maiores e queridos amigos de ofício e de coração. A nossa São Luis está a partir de hoje mais vazia e muito mais triste... Morreu Nauro, e o que dizer agora? Vai, meu poeta, vai Naurito fazer versos no Céu... Adeus! Percurso de sombras É bem difícil ficar-se sem dizer nada diante da beleza estéticoformal contida na poemática de Nauro Machado. Acabo de receber “Percurso de Sombras”, que só pelo oferecimento a mim dirigido pela generosidade do poeta, já quebraria por si, qualquer resistência de silêncio... Irresistível provocação sentimental de um irmão de estrada, de sombrios sonhos e de terríveis sombras, a chagar minha saudade de tantas lonjuras... Apressei-me de logo e registrar a nascença de seu livro em minha página no facebook, sem a surpresa de continuar a ver o poeta ainda em seu barro cru, como se recém saído de uma olaria de pesadelos... E uterino como sempre em seu estar-se divino, o satânico sobrepõe-se e faz-me publicar “Réquiem para uma Mãe”: “Tudo já entrado em ti, tudo, / enfim estás em ti, / como os pés nos seus sapatos, / dizendo ser a tua morte. / Viúva da eternidade / a se


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fazer como um sonho / da carne imune ao real. / Dor: arranca a tampa da água / a um náufrago marinheiro, / e o telegrama do fêmur /à volúpia do ovário, / morto ventre de onde eu vim / com meus calos e naufrágios. / Dor: inverte os lábios da água / dando de beber à mãe / pela boca de um cadáver”. A lavoura do léxico nauromachadiano a todos nos atordoa pela sua precisão e pelo seu fôlego a resistir seu canto-lógico e a dispor-se cartesiano, quando, assim, tira a prova dos “Noves fora”: Não necessariamente / é igual uma cama / a outra cama, como / uma noite é de outra / feita a mesma noite [...] E até mesmo à soma / que nos subtrai, / nós, humanamente, / somos desiguais.” E o poeta segue pelos becos e ladeiras de São Luis a soltar balões de eternas infâncias, pelas sombras das noites, balões que se soltam de suas mãos carregadas de trevas e furadas pelos pregos do tempo, até chegar a um dezembro festivo a renascer no peito ferido do poeta, onde se aninham flores no seu esôfago, como se fossem miolos de um pão sagrado que Nauro tivera de engolir um dia, para arrebentar-lhe e arrematar-lhe o grito: “Minhas netas da luz, / do meu filho o retrato, / iluminando os olhos / da minha mãe sem pálpebras.” E sereno continua a ouvir as “Vozes do Natal” que lhe chegam assim: “Cristo do anverso, / em minha costa, / durante séculos / dizendo a Lázaro: / --Vem para fora! / --Vem para fora!...” E ainda no percurso do Advento, clama aos “Milagres Natalinos”: “Porque só tu não me apartas, / boneca da minha mãe, / da infância do meu pai / imputrescível nos anos [...] “Todo Natal, como mar, / volta sempre à mesma praia, / enchendo as eternas águas / com o choro dos meus pais...” Assim o “Pássaro de Deus” alça vôo para o percurso das sombras, como se bebesse o nepente benfazejo para esquecer, não a


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imagem de Lenora, mas “as cáries da carne na boca dos vocábulos” e ainda com o mesmo ritornelo canto igual ao daquele corvo agourento, pousa nos umbrais do poeta Nauro Machado para ouvilo dizer que “há coisas que assustam / sem palavra alguma, / assim como as há, / como nossos cúmplices, / pela indiferença / na boca de um morto” [...] “quebrei-as nas mãos / desse estéril poema / de cisne nenhum, / entre o pão e o vocábulo / as virtudes dos pássaros / de nossa inocência”. E diante da “Praça de um poeta” onde se materializa sua memória de carne e verbo, há tempos, périplo indesejável entre esse espaço e a “Casa das Tulhas”, solene no seu comum de “Feira da Praia Grande”, Nauro revive o cancro de dolorosos dias a ressuscitar quase apodrecido pelos muitos açoites que o fazem agora justificarse diante de um vazio que lhe deflora: “Sabendo olhar / na escuridão, / o povo vê / que não sou nada, / e nem serei / até morrer. / E embora diga / o inverso disso, / o povo sabe / que sou igual / ao mais comum / de todos eles... [...] “Alguma coisa, / depois de eu morto, / me habitará / vivendo ainda”. Naurito velho de guerra, enfim chegamos naquele estágio em que não mais reconhecemos nossas visões, porque nosso passado não é mais nosso companheiro, parafraseando Mário de Andrade... Aqui estão alguns traços sobre o belo miolo do teu livro, muito bem apanhado graficamente pelas ilustrações do artista Pedro Meyer... Dize-me que Deus haverá de salvar-te, ainda que andes pelo vale das trevas... É belo o salmodear de David quando se tem coragem, principalmente embalado pela fé que tens... Agradeço-te o alimento espiritual que tanto agradaria a Verlaine ou a Paul Valéry, tenho certeza, porque mesmo na brenha de um “percurso de sombras”, os teus cantos “são enredos de aranhas costurando os verbos...” [*] Fernando Braga, publicado no jornal “O Estado do Maranhão”, 4 de janeiro de 2014.


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Poesia escrachada

Surdo Enigma Ó dúvida atroz! Diga-me: foi Beethoven um cagão? Poderia ter avançado mais se não fosse um frouxo? Ele estava com tudo na mão, chamavam-no louco, famoso, mais surdo que um tijolo, era vantagem para declarar: – Foda-se! Foda-se o mundo! E ao fim compor algo além daquelas Sonatas arrombadas e alguns miseráveis Quartetos. Que serviram apenas para ser lembrado como um Gênio, deixar os ouvintes maníacos e inventar posições tântricas...


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Bíblica dúvida Quando Maria Madalena, a bíblica puritana, se ajoelhou aos pés de Jesus para agradecer por tê-la salvo da violenta morte a pedradas (que bem merecia por ter corneado o marido), enfim, lavou-lhe os pés ou fez-lhe um broche?

F’rnão P’ssoa (Para ser lido com sotaque lusitano) Que tratante foste, hem F‖rnão? Um sacanão! E que herança nos deixa além da magia negra? Com o seudónimo bobo de Álvaro de Campos, tal qual Walt Whitman, fizeste poemas futuristas. Por outro lado, assinaste o nome de Ricardo Reis nas odes, nas elegias e no trobar português/galego. Sob a alcunha de Alberto Caeiro é que traduziste o prazer, a sensação, a ironia, o gozo: foste hedonista. – Um qualira, tal D. H. Lawrence metido à bosta. Só para foder nossa paciência, ainda quiseste nos emocionar sendo tu mesmo, o próprio F‖rnão P‖ssoa? Além do mais escreveste o Livro do Desassossego já alma morta, difunta d‖além, ó Bernardo Soares? Ó P‖ssoa, dá-me um tempo, caralho! Ninguém merece! Viadão! Será somente o vício da poesia que padeces? – Com que heterônimo afinal entocavas rolas pelo reto?


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O Poeta Aproveitando que é bem apessoado um poeta notório aqui bem ao lado (do qual só vos digo as iniciais: JRFG), arrumou uma bela gatinha para ler-lhe poesias à noitinha por conta de ensinar-lhe os beabás. Mas a danada – que não é trouxa –, aproveitando o estado quase broxa que acompanha toda senectude, do mestre destilou bem toda a lição: hoje faz versos belos, de montão, mostrando o quão sábia é a juventude... (Ressuscitado de 20/2/2004) 03/9/2015


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Joaquim Itapary, cronista por inteiro

Joaquim Itapary-Armário de Palavras (Crônicas) Edições AML, São Luís, 2015

A crônica, dizem os entendidos, é o gênero literário mais dinâmico, porque está localizado entre o jornalismo e a história: é o relato mais objetivo possível de um acontecimento, no tempo que ocorreu. Na verdade, a crônica hoje em dia tornou-se um gênero literário indefinido, assim como a novela, o conto, o romance. E para finalizar esta introdução, toda a literatura tá um cu-de-boi danado! Então, crônica é aquilo que o autor chama de crônica… Há décadas que Joaquim Itapary anda de mãos dadas com a crônica semanal, mas demorou algum tempo para que assumisse de vez a crônica como gênero literário de sua preferência. Se isso ocorreu, diga-se, não foi por escolha própria, ao contrário, foi a crônica que o nomeou seu intérprete, assim como os espíritos elegeram Chico Xavier para narrar as histórias de outras vidas. São mistérios… Ocorre que a crônica é um tipo de literatura cheia de pegadinhas, que começa desde o dia em que é enviada aos redatores, continua quando o leitor acaba de ler, segue quando o


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diário vai para o lixo e termina nas mãos do peixeiro ao embrulhar a pescada – se não lhe for dado destino menos nobre… Nenhum cronista nem daqui nem d‖alhures ousaria imaginar uma trajetória além desse circuito de vida tão curta e de pouca fama. Assim sendo, correria risco de ser xingado de pedante, metido a besta e outros adjetivos impublicáveis. E como tiro de misericórdia, lerá a crítica demolidora que decreta a sentença de morte da crônica no dia que sai no jornal. Por isso disse acima que a crônica é um tipo de literatura cheia de pegadinhas e armadilhas que põe a biografia do cronista em constante risco de vida. Certo dia, porém, Joaquim Itapary dormiu e acordou com a ideia fervendo na cabeça: por que não publicar as crônicas em livro? Aí foi um deus me acuda! Opiniões a favor, palpites contrários, nada fez o cronista desistir do intento. Centenas de folhas espalhadas pela mesa de trabalho obrigaram-no a pedir arrego. A papelada teimava em não se organizar ao molde do autor. Jogou tudo nas mãos de organizadores. As crônicas foram escolhidas por temática, outras pelo belo simples, mais algumas pela importância do assunto. Algum tempo depois, a maçaroca foilhe devolvida acompanhada de relatório, índice, colofão, notas explicativas, essas coisas feitas com profissionalismo e dedicação. Mas qual nada! O cronista Joaquim Itapary, acostumado ao rigor das lutas pessoais, não se deixou tombar pelo canto das sereias. Tomou o leme nas mãos, imaginou as crônicas recitando os nobres versos de Walt Whitman: – Ó Comandante! Meu Comandante! – como se a ele fizessem o apelo definitivo: – Por favor, guie-nos! Desde que a primeira coletânea foi publicada (“Sob o sol”, 2000), estaria entregue aos leitores com recomendação de que seria a crônica o principal veio comunicador de Joaquim Itapary, embora


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não lhe falte talento nem competência para outras estiradas, como assim atesta a sua bibliografia. Em 2007 Joaquim repetiu o feito, desta vez declarando amor perpétuo à cidade de São Bento, que idolatra desde a infância e não deixa de visitar várias vezes por ano, assim que o tempo permite. Agora que deixou as Folias de Momo de lado, deu conta de que as festividades carnavalescas andam muito desvirtuadas – como confirmam as crônicas Primeira, Segunda e Última do Carnaval, encontradas neste Armário de Palavras. Fugindo da folia, Joaquim Itapary arruma a mala e parte para a terra querida em busca da refrescância da alma, dos prazeres do corpo e da memória. Assim nasceu o segundo livro de crônicas “Tapuiranas” (2007). Como a experiência seguiu o mesmo ritmo de “Sob o sol” (2000), em 2014 uma nova juntada se fez, estreando no volume a crônica de sabor universal que dá nome ao livro: “Onde andará Willy Ronis?”. Ambos foram publicados pelo autor, mas sob a chancela da Academia Sambentuense, da qual Joaquim Itapary é membro. Com “Armário de palavras”, saído neste ano de 2015, em coedição do autor com a Academia Maranhense de Letras, Joaquim Itapary prossegue no afã de resguardar um importante ciclo da história cotidiana de São Luís e do Maranhão, embora o cronista não deixe de lado o universo que cerca a Ilha Rebelde e de vez em quando traz para seus leitores notícia d‖além mar. É pegar e ler. 01/10/2015


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Literatura de cordel – Patrimônio Imaterial

Finalmente a inclusão da Literatura de Cordel na biblioteca de patrimônios culturais brasileiros toma forma. Já não era sem tempo, porque desde muito se ouvia o reclamo dos poetas populares na busca de espaço próprio para formalizar a convivência entre os demais bens culturais já reconhecidos. A premência se fazia desde a criação, em 2004, do Departamento do Patrimônio Imaterial, sob a batuta do Iphan e do Centro de Folclore e Cultura Popular. As raízes desse reconhecimento remontam ao movimento modernista que aflorou nos anos 1920, que deve a Mário de Andrade a iniciativa: ele que intuiu a necessidade de incorporar a cultura popular em meio ao fluxo da agitação que se dava naquele momento. Com intuição visionária Mário de Andrade soube atrair um grupo para embarcar no trem da cultura popular e logo no percurso aderiram ao agito Luis Saia, Oneyda Alvarenga, Câmara Cascudo, entre outros. Além do mais, com o poder de persuasão e sedução que possuía, Mário de Andrade conseguiu tirar o jovem Luís da Câmara Cascudo dos caminhos naturais da literatura, fazendo convergir seu


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interesse em torno da cultura popular nordestina. Com isso só o país ganhou... Entre idas e vindas toda essa discussão – como é habitual no Brasil – ficou em banho-maria, vindo ressuscitar em 1988, na bíblica Constituição Cidadã (no dizer de Ulisses Guimarães), que em seu artigo 216 define como patrimônio cultural “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Ainda assim, só alguns anos depois o país veio ratificar a Convenção da UNESCO para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2006). Determinar os bens de natureza imaterial, no entanto, se converte em penoso labirinto no qual o interessado em desvendá-lo se emaranha faz muito tempo. É uma construção tijolo a tijolo, pedra a pedra... Seguir à risca o texto do artigo 216 é uma aventura à parte, pois lá “os bens de natureza material e imaterial” estão assim fixados: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Como se vê, é difícil achar uma brecha para incluir a Literatura de Cordel, embora se saiba que não há dúvida em considerá-la um patrimônio do nosso povo – como também de muitos povos latinoamericanos. É caso a se tratar com a mesma tenacidade com que Mário de Andrade cuidou, com esforço sem esmorecimento, muitas vezes pregação no deserto, como alguns muitos cordelistas vêm fazendo em todos os rincões em que a Literatura de Cordel prospera.


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Agora é hora dos moços entrarem em ação. Com o advento da internet o Brasil se coalhou de sites de cordelistas que não só divulgam a própria produção, como reacende a história percorrendo o caminho dos pioneiros, propalam suas raízes, anunciando a boa nova aos quatro cantos. Os jovens poetas de cordel estão disseminados em todo o país. A fronteira nordestina da Literatura de Cordel se moveu até são Paulo, cidade em que os descendentes de emigrantes daquela região apregoam a poesia popular, espalham as novas publicações, expressam e noticiam os temas mais atuais na rima fácil das sextilhas. São muitas as vozes que proclamam, propagam, descobrem e desvendam para os calouros os segredos de sua cantoria. Um novo ciclo começa nos novos autores que agarram com unhas de caranguejo os ares da modernidade que a internet trouxe, criam espaços inéditos para mostrar e publicar todo o conhecimento que adquiriram, tanto em estudo próprio como em reminiscência hereditária, e assim revelam um abundante material, rico e sólido, capaz de enterrar de vez o ciclo de morte e ressurreição que aterroriza a Literatura de Cordel desde sempre. Porém a batalha só começou. Para culminar com o reconhecimento da Literatura de Cordel como bem imaterial existe uma longa estrada a percorrer. Todo esforço dos cordelistas deve se voltar para esse objetivo, divulgando, acumulando, protegendo e encaminhando para pesq.foclore@iphan.gov.br as informações pessoais, o legado de conhecimento, itens de acervo, elementos comprobatórios e subsídios. Mesmo aqueles detalhes considerados sem importância terão acolhimento, pois têm valimento na instauração do pedido e obtenção do título de Patrimônio Imaterial para a Literatura de Cordel. No Rio de Janeiro a burocracia está sendo enfrentada com denodo, garra e coragem pela equipe do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular - CNFCP (Setor de Pesquisa) - Rua do Catete, 179 - Rio de Janeiro (RJ) - CEP 22220-000 - Tel.: (21) 3826-4317 e (21)


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3826-6930. Liga pra lá e procura a Ana Carolina! Para melhor informação, visite o site: http://www.cnfcp.gov.br. 15/08/2015

Valsa pra Joaquim Itapary

São Luís (MA) - Centro histórico http://www.periodicoseletronicos.ufma.br

Lá vai Joaquim Itapary pela beira da calçada com seu passo de quelônio... Diz-que vai caminhar, diz-que é bom pra saúde, mas aquecido sob o sovaco leva o livro das aventuras do cavaleiro catalão Tirant Le Blanch. O padre Antônio Vieira viu-se assim destituído pelo tal Johanot Martorell, pois remexeu a ossada no túmulo. – Estará ele pensando nos desígnios da humanidade? Lá vai Joaquim Itapary, o cronista mal amado com seu passo de Juriti... Diz-que vai por aí levando Antônio Vieira debaixo do braço. Cada passo que ele dá é uma nota que solfeja e se uma pipira apurar bem os ouvidos vai logo descobrir que se trata de uma arte de Bach ou Mendelssohn decantada pelo arco de Pau Brasil que decola do cello majestoso de Antonio Meneses.


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– Rejubila-se pela fumaça branca que elegeu o Papa Francisco? Lá vai Joaquim Itapary, arqueado mas solene como o Jaburu pantaneiro... Apertado junto ao peito carrega um livro de crônicas de Lago Burnett. Entre o nadir e o zênite vagabundeia o pensamento fluido do cronista e vai. Entre netos avós tios irmãos e primos tudo se materializa nas aventuras do cavaleiro da triste figura que risca a vida entre porcos, donzelas, bandidos e moinhos. – As passadas militares, solenes, se queixarão das mazelas de São Luís? Lá vai Joaquim Itapary – o ex-sermonário das formigas e dos peixes... Ora nomeado seresteiro de incelenças e réquiens: – ao Rio Pimenta Olho d‖Água e Rio Anil. – às ladeiras lodosas de mijo e cocô – às praias ferventes de coliformes fecais – à natureza morta da cidade-porto que o lançou cronista. – Irá dar a volta ao mundo tal Marco Polo tardio? Lá vai Joaquim Itapary a passo e canto de siricora... Com seu olhar sagaz, aquilino, com seu destino de Sísifo montado no rocim tordilho Mercedes-Benz, levado de roldão por toda São Luis farejando amores e ódios, ração para uma crônica de flor e sangue. – Esse íntimo sorriso é pelo florescer dos descendentes queridos? Lá vai Joaquim Itapary o cronista felino, sagaz como a suçuarana... Tento dissuadir o cronista enfezado a trocar o instilado fel das agruras inusitadas


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pelo destilado malte produto das highlands escocesas ou pela tiquira de Barreirinha, por uma cachacinha vinda lá de São Bento ou por um Casillero del Diablo – todas essas maravilhas inventadas pelo bicho homem que entre rosas e açucenas nos guardam e nos protegem de todos os males amém. – Pensará no Muçum regado com pimenta e azeite da querida São Bento? Lá vai Joaquim Itapary no compasso, com seu andar mocorongo... Vai tourear a vida como o toureiro toureia o touro na arena de Sevilha, vai botar cabresto na palavra como a muleta perversa que espicaça o lombo do miúra. Com pensamentos mais profundos ele pensa consertar o mundo com ares de salvador da pátria guerreia o vento as ondas as pedras a caatinga, mas o que deseja mesmo é o porto a rede enseada entre coxas, a restinga... – Ainda não imagina o Paraíso – mas pensará com saudade do abraço caloroso? Lá vai Joaquim Itapary, santarrão disfarçado, com passo de calango... Os joanetes assimétricos, aquela curvatura que leve assoma às costas não é o peso das asas é também o peso da vida – que não lhe mete medo mais do que dor de dente, vai o cronista matutando um sermão às saúvas, pelejando pela remissão irrestrita dos pecados da carne humana, na perpétua Ressurreição da alma, na vida eterna, amém.


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– Pensará na falta que faz as tapuiranas e o queijo de São Bento? Lá vai Joaquim Itapary com seu passo de jaboti... Andar triste, desinfeliz por sua amada São Luís, mas a sua carapaça é tão mais leve como o algodão-doce, doçura de dar inveja e deixar saudades. Portanto deste Rio de Janeiro em pleno mês de março e calor de 40 graus, debaixo de um aguaceiro guaçu, mando um guaçu abraço e ponto final. Ciao! 06/08/2015


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Relato da viagem que fez o cronista Quincas Oliveira à fermosa cidade carioca no ano de 2015

O cronista a bordo

Eia, pois, que estando anunciada a chegada do cronista por estas terras desde logo me apressei a antever intensas confabulações entremeadas por pratos típicos maranhenses, incrementadas pela espirituosa tiquira de Santa Quitéria, em que pese os males do cianeto que nela contém. A vida é risco… Porém ainda não era tempo do cronista chegar: costumava por aqui aportar ao sabor das correntes marítimas de águas frias que trazem os meses de setembro outubro, mas ainda era julho, temporada cuja datação oficial dava como invernosa. Mas navegou mesmo com o látego apontando o costaneiro… E chegou apetrechado: além da companheira fiel trouxe a condessa, o conde e também Raimunda, uma roxa natural da ilha que sabe tudo sobre culinária maranhense e, como ninguém, tem gosto em preparar o arroz de cuxá com a mesma receita que aprendeu da avó centenária. Ou seja, o cronista fez barba, cabelo e bigode… Assim provido atracou em Copacabana sendo recebido pela sazonal névoa densa que traz a vasa úmida espessada com


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salinidade excessiva – fruto do veranico da época quando o calor de trinta e tantos graus após a meia-noite se choca com o frio das águas e das correntes antárticas. De noite ainda se ouve leve o mar, o sobe e desce das ondas na alva areia. Sol pra quê?… Mas o tempo das viagens ao redor do mundo deu ao cronista a receita para tirar proveito de tais circunstâncias. Não seria assim uma neblina qualquer capaz de solapar sua peripécia anual: posto que o aventureiro afrontasse pela proa da vida outras tantas cerrações, pesados nevoeiros, tempestades e garoas glaciais. Nem o ermo lamento crebro das gaivotas que procuram calor no interior. Ao contrário: tudo seria crônica… Assim foi que logo ligou a máquina notebook para gravar em letras as primeiras vicissitudes – mas qual nada – o bichão negou fogo, piscou, morreu, apagou, acendeu, piscou, morreu, sem penitência, o que negou ao cronista dedilhar qualquer coisa em respeito à obrigação de cumprir a presença semanal no periódico em que tem assento. O frio ardeu os dedos, a ciática latejou… Procurou e achou um doutor em computadores, deixou aquele corpo inútil aos cuidados do especialista e tratou de cumprir agenda de visitas, comilanças e bebelanças, ainda que em cada delas houvesse pequenos entraves: neste ano de 2015 o Rio de Janeiro é um imenso canteiro de obras, tudo cheira a poeira, engarrafamento de trânsito, ruas inacessíveis, travessas impenetráveis, tudo com vistas às Olimpíadas. Ano que vem… A saborear, por isso, o que for prazeroso, deleitar-se descobrindo recônditos despoluídos, regozijar-se degustando uma panelada de frutos do mar no Albamar, libar um glorioso vinho alentejano, para depois jactar-se do triunfo, ufanar-se dos moinhos que derribou, vangloriar-se em suas crônicas e enfim gozar. Tema para as crônicas terá em demasia. Comprazer-se com a pedra, com a dor na coluna que o deixa muitos segundos entrevado…


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Assim se sentia um poucadinho feliz, pensando-se escudado. Mas nada terá para protegê-lo do terror que advém: a máquina notebook retorna com alta do doutor técnico, mas ao primeiro teste sucumbe à temível recaída! Vixe! Tudo volta à estaca zero. Em breve os assuntos serão uma pilha de cadáveres em decomposição, pois ao cronista tudo se desmancha no ar se não tiver proveito a tempo. A névoa cinzenta cobre a cabeça quente, deixa o lombo travado… O fato é que o tempo se esgotou, a agenda de visitas e libações fora cumprida apesar dos pesares, a passagem aérea estava marcada e isso é tudo que não se pode adiar, pois a fila anda, a vida segue, a maré sobe e baixa. O cronista deixou para trás as aporrinhações, menos uma, eis que o reparo da máquina notebook não ficou pronto e foi aí quando este escrevinhador entrou em cena para fechar o ciclo. Sem nenhum remédio para a coluna, mas bem disposto ao arroz de cuxá… Mal o Comandante da aeronave autorizou o travamento das portas, principiou os movimentos para taxiar, mal o Airbus apontou a direção dos céus ao final da pista já na Ponta do Calabouço, eis que soa a voz do doutor técnico em informática ao telefone apenas para avisar que a máquina notebook estava pronta. Coisa que nem não narrei ao cronista, para não ouvir desaforo, carão, poucas e boas. Se a coluna melhorou? Não sei… 11/08/2015.


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Oh Captain! My Captain!

Walt Whitman (1887) por George Collins Cox

Tenho lido várias traduções para o brasileiro deste belíssimo poema de Walt Whitman, escrito em memória de Abraham Lincoln e citado no filme “Sociedade dos Poetas Mortos” (1989) de Peter Weir. Quanto ao título, eco principal do poema, as traduções – inclusive as referências no filme – são literais. Ó Capitão, meu Capitão! – diz o refrão, a princípio em tom exclamativo, mas que aos poucos irá se transformando num lamento. Entretanto, discordo dessa tradução literal. Aqui no Brasil ao Capitão de um navio, nave ou aeronave – figura principal do poema – dá-se o nome de Comandante, coisa que enriqueceria em muito a tradução. Apesar do tom eloquente e chamativo que tem “Ó Capitão, meu Capitão!”, entre nós essa expressão remete imediatamente à patente militar – que não seria a intenção do poeta. Então, Capitão é o militar. Já o Comandante é o líder que arrebata, aquele que dirige, que manda, é o chefe que ordena e governa.


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Aproveitando várias traduções lidas, compus uma versão livre, que vai a seguir, acentuando essa diferença. Oh Captain! My Captain! O Captain! my Captain! our fearful trip is done, The ship has weather‖d every rack, the prize we sought is won, The port is near, the bells I hear, the people all exulting, While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring; But O heart! heart! heart! O the bleeding drops of red, Where on the deck my Captain lies, Fallen cold and dead. O Captain! my Captain! rise up and hear the bells; Rise up—for you the flag is flung—for you the bugle trills, For you bouquets and ribbon‖d wreaths—for you the shores acrowding, For you they call, the swaying mass, their eager faces turning; Here Captain! dear father! This arm beneath your head! It is some dream that on the deck, You‖ve fallen cold and dead. My Captain does not answer, his lips are pale and still, My father does not feel my arm, he has no pulse nor will, The ship is anchor‖d safe and sound, its voyage closed and done, From fearful trip the victor ship comes in with object won; Exult O shores, and ring O bells! But I with mournful tread, Walk the deck my Captain lies, Fallen cold and dead.


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Ó Comandante! Meu Comandante! Ó Comandante! Meu Comandante! A terrível viagem terminou; Bem dirigida a nave venceu a tormenta, o triunfo ansiado chegou; O porto está próximo, lá longe ouço os sinos, o povo todo exulta, Enquanto fixa o olhar confiante na quilha do navio raivoso e audaz; Mas ó coração! Coração! Coração! Ó gotas vermelhas, sangrento horto, No convés o meu Comandante jaz, Está caído frio e morto. Ó Comandante! Meu Comandante! Levanta-te e ouve os sinos; Levanta-te – a bandeira tremula para ti – soam para ti os clarins, Para ti láureas e buquês com fitas – para ti o povo nas ruas; Por ti todos celebram, a multidão vibra com os rostos ansiosos; Aqui Comandante! Querido pai! Eis sob a cabeça algum conforto! É um pesadelo ver que no convés, Tu estás caído frio e morto. Meu Comandante não responde, seus lábios estão pálidos e hirtos; Meu pai não sente o meu braço, não tem mais pulso nem alento; O navio está ancorado a salvo e seguro, o trajeto findo e terminado; Da tétrica viagem a audaz nave chega com o desígnio alcançado; Exulta ó cercania, e repiquem ó sinos! Mas eu amargurado de passo absorto, Vagueio no convés onde meu Comandante Repousa caído frio e morto. Source: Leaves of Grass (David McKay, 1891) Versão livre: Salomão Rovedo 15/07/2015


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Uma carta de 1999

Rio de Janeiro, 1999. Caro poeta. Tomo a liberdade de escrever a você após temporada em São Luís e ter tido a felicidade de ser hóspede da tua turma. Todos são pessoas boníssimas, cultas, inteligentes e foi um prazer conhecêlos. Conheci também o grupo periférico, menos um mais descolado, que só vi uma vez e não tive tempo de bater um papo mais demorado. Uma grande família – pode crer. Para nós, que somos exilados (moro no Rio desde 1963), voltar a São Luís é sempre um choque. Choque porque tudo aquilo é muito diferente da realidade à qual ficamos acostumados. Falo por mim, que sempre vivi no eixo Rio - São Paulo, mas acredito que com todo mundo é igual. Parece outro país remoto que não aquele guardado na distância dos nossos sonhos... A turma me encheu de livros e foi assim que conheci a antologia “A Poesia Maranhense no Século XX”, de Assis Brasil. Alegria grande confirmar que a nossa poesia está entre as melhores, sem falso louvor. É claro que apenas um volume, apesar de alentado, não dá para comportar a poesia de um século (ainda mais do Maranhão, onde todo dia nasce poeta), mas é o que se pode ter no momento e ficou ótimo. Quem sabe no futuro não caberá um volume mais para contemplar os esquecidos?


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Isso me anima, me deixa otimista com a literatura maranhense que, da década de 40 para cá, foi lastreada no fazer poético. Mas a poesia é assim mesmo. Todo escritor, mesmo o prosador, não deixa de cometer os seus versinhos, de ter o ócio poético. Acho que até mesmo nosso romancista gaulês Josué Montello há de ter seus poemas avaramente ocultos nalgum baú. O que senti também é que São Luís está pedindo uma revista de poesia. Primeiro pensei em Revista de Literatura, depois fui mais ousado: só de poesia mesmo! Fiquei vidrado pela ideia, minha cabeça ficou quente, fumegando. Pensei até num título, pensei em NORTE, depois achei que NOR ficaria bem mais poético e misterioso. Se tiver mais tempo irei trocar ideias com algumas pessoas para tentar levar a publicação adiante. Mas ler a Antologia foi um deleite! Os senões são devidos mais à torcida que temos dos nossos favoritos (talvez à assessoria que o Assis Brasil teve). Por exemplo, (só exemplo): Manuel Caetano Bandeira de Melo, poeta fantástico, na grandeza de João Cabral de Melo Neto e de Carlos Drummond de Andrade, teve poucas poesias, não as mais representativas, aliás, comprimidas em duas páginas, já Dagmar Desterro ganhou seis alentadas páginas! E acredito que ainda assim não tivemos a melhor Dagmar Desterro. Também foi ótimo conhecer Laura Amélia Damous – que concisão! Que poeta, que poetisa! Ler o incrível Alberico Carneiro, cujo “A Dama Negra em Noite de Núpcias” transporta-nos à de (s) composição exaustiva, à fragmentação extremada, levada às últimas consequências. E ler outros, e outros, e muitos outros! Dou rápida passagem, sem mencionar os mais próximos, já consagrados: Bandeira Tribuzi, Nauro Machado, Carlos Chagas, Dagmar Desterro, Ferreira Gullar, Nascimento Moraes, Lago Burnett – que ficou muito tempo longe dos livros, etc. Nem quero falar de você, que, ademais de ser suspeito por fã, é chover no molhado. Alex Brasil, Rossini Corrêa e Luís Augusto Cassas também estão carimbados.


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Dos mais novos, Roberto Kenard e Wanda Cristina, demonstram que são poetas até a medula. Paulo Melo Souza, poeta de raiz, dono de sonoridade e inventiva. César William confessa nos versos fontes populares (cordelistas), próprias da poesia falada e Luís Inácio Araújo, talentoso, mas mal antologiado, porque os quatro poemas publicados falam da mesma temática: os próprios poemas, a arte de fazê-los, etc. Fora isso, Assis Brasil acertou em cheio. Em cada antologiado, abre-se o capítulo com uma citação, seja do escolhido, seja de outrem a respeito do poeta. Lá pelas tantas, reparo numa referência de Nauro Machado, na apresentação de Nascimento Moraes Filho: “Espírito aberto às reivindicações do tempo presente, das quais não pode fugir pela sua origem e pela sua formação, voz inata de condoreiro, sem, contudo, o rimário fácil e ilusório que invalida algumas tentativas de poetas historicamente ultrapassados”. Sublinhei essa parte final porque é uma faceta do Nauro Machado que eu não conhecia: o lado crítico, aliás, nada corporativista. Sabe que uma das poucas classes artística não corporativista é a dos poetas? Por quê? Porque tem muito poeta. Tanto e tanto que temos de criar “ismos” a todo instante, composições e decomposições, que modificar a linguagem da poesia para que ela se torne mais restrita e mais restrita. Lembra o caso daquele ator que assassina uma jovem atriz, ambos em início de carreira. Uma tragédia amorosa que Nélson Rodrigues poderia assinar, incluir em “A vida como ela é”. Os colegas saíram a acusá-lo: “Ele não é do nosso meio, não é da nossa classe”. Isto é: bastou transformar-se num assassino para ser execrado, excluído. Como quem diz: “Um ator nunca pode ser um assassino.” Mas o mesmo não se deu com a atriz que matou a tiros o marido, não ator. Essa, mesmo condenada, foi perdoada pela classe. Hoje, idosa e sem trabalho, vive de benemerência no Retiro dos Artistas.


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Voltando ao “rimário fácil” – que todos criticam mas não larga mão: penso que estará eternamente vinculado à própria poesia, como elemento associativo, de fixação oral, de memória, facilitando o modo pelo qual a poesia se difunde, inclusive como notícia ou elemento de interligação cultural. Enfim, rima, ritmo, cadência, sonoridade, são elementos necessários e, pode se dizer, nativos da poesia. Mas são como a tiquira: uma dose vai bem, não pode é abusar. Fico repelindo o meu lado apimentado, que está provocando para perguntar: “Será que o próprio Nauro Machado não se dá conta de que ele mesmo é usuário profícuo dos dicionários de rimas fáceis e ilusórias?” Bom, deixa para lá. Voltemos a falar de poesia. Tenho pena de quem não tem prazer de ler, principalmente ler poesia. Escrever, escrevo por vício, mas não seria nada sem o prazer orgânico de ler. É engraçado – já reparou? – todos nós temos esforçadas receitas para fazer com que os outros compreendam e amem a poesia. Cheguei a receitar em algum verso: “De como te ler poesia,/ sem ter flatulência ou azia.” Uma boa memória sobre o tema é o poema “Safra”, de Bandeira Tribuzi. Temos todos nós o receituário, mas nunca a bula se esgota. Isso é que é fantástico na poesia, não é? Falar nisso, é claro que a minha estada em São Luís me provocou uma enxurrada de anotações, que acabou se transformando no feixe de escritos que estou ajuntando agora e vou mandar uma cópia para você, desde já pedindo vênia pela falta de revisão e da operação cirúrgica que toda escrita merece, ou seja: revisar gramaticalmente; executar a poda dos excessos; extirpar protuberâncias; seguir, enfim, a lição de CDA e eliminar tudo aquilo que a emoção nos leva a cometer. É meu calcanhar de Aquiles, a dosagem de preguiça. Quando o texto vai para publicação, peço para alguém fazê-lo. Quando é para leitura de amigos, conto com a compreensão deles. Ademais, sou escravo passivo das emoções. Viver sem elas é impossível, porque a


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emoção maior é aquela que traz a mais gostosa e pecaminosa coisa da vida: a Paixão. Estou lendo um número da revista “Caros Amigos” que ficou excelente, principalmente por uma entrevista inédita de Carlos Drummond de Andrade. Mas não se deve perder também a voz dessa magnífica Marilena Chauí, lúcida e lúdica, mas de pé no chão, como sempre. Imperdível. Carlos Drummond de Andrade, lá pelas tantas, sobre a produção literária entre os 22 e 82 anos de idade, diz: “(...) agora escrevo com mais consciência e também com mais dificuldade, porque passei a ter uma noção mais íntima da língua em que escrevo e das dificuldades que ela tem, uma certa preocupação maior de usar a palavra própria, o termo adequado, e não um termo aproximado ou um termo impressionista como então eu fazia, porque eu cuidava mais dos adjetivos, cuidava mais de uma forma de exprimir minhas emoções, do que propriamente de construir uma obra literária correta e com conhecimento das particularidades da língua e também com a preocupação de dizer alguma coisa que não fosse exclusivamente emocional, e sim uma coisa que envolvesse uma visão mais ou menos crítica da vida”. Está claríssimo, porém, não sou contra em se dizer alguma coisa “exclusivamente emocional”. Aliás, no prefácio que Assis Brasil faz na “Antologia” ele registra que o Romantismo no Brasil durou mais de 100 anos. Eu diria mais: no Maranhão (e por extensão no Norte), o Romantismo durou 200 anos – ou mais! Acho que os brasileiros, aqueles que não têm o privilégio de viver geminados às culturas europeias, ficam imunes à passagem do tempo e continuam cultuando as paixões românticas. Eu mesmo confesso ser admirador dos dramas relatados por tangos, boleros e fados da vida, as lamentações de raízes árabes do flamenco e do nosso samba-canção, que deve ser a reunião de tudo isso. Sem esquecer as músicas caipiras, que também têm um cunho eminentemente saudosista e melancólico. Por isso mesmo o brasileiro é um povo diferente. Claro que falo daquele que não tem o


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privilégio de se educar em culturas avançadas, porque se deixa influenciar e aí perde as raízes. Mário de Andrade se orgulhava de ter tomado a decisão de não viajar para Europa – como era moda da época – porque tinha medo de “perder a brasilidade”. Há nisso certa dose de exagero, mas está correto. A gente perde um pouco, quando não sabe somar. Porque eu estive uma única vez por aquelas bandas e quando baixei na Galícia fiquei tonto. Ali está a raiz das nossas falas, ou da fala brasileira, como dizia o próprio Mário de Andrade. O galego é uma linguagem saborosa. É claro que eles próprios assimilaram muita coisa do castelão e também, depois, do árabe. Mas ainda assim é uma bela curiosidade. Estava conversando com o amigo galego, Luiz Varela, quando ele usou a expressão “mixaria” – que eu supunha gíria bem nossa, talvez carioca. Indaguei o significado: pois era o mesmo usado aqui! Depois, andando por aquelas vilas interioranas, assim, sem mais nem menos, topei com um grupo dançando pelas ruas ao som de tamborins, violão e outros instrumentos de percussão. Que é isso? É a micareta – disse-me o Luiz. Sim, micareta, que é o nosso carnaval de entremeio, brincado em localidades onde não existe o festejo tradicional de fevereiro/março. E logo veio a conexão linguística: Mi Careta – a máscara. Eis as raízes de nossa herança – em criança eu ria ao ouvir dos caboclos adonde, dacolá, e outras expressões, pensando ser falar errado. Sobre poesia e tempo, Carlos Drummond de Andrade diz: “A poesia que nós fazemos, mesmo não parecendo referir-se a esse tempo, ela traz a marca do tempo que nós vivemos, mesmo não sendo uma poesia estritamente temporal (...). Mas a poesia, a meu ver, se considerada na sua expressão mais pura, ela transcende o tempo, é exatamente uma das formas de transcendência do tempo, como a arte em geral, porque a ciência já não é assim”.


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Vale lembrar que a entrevista é transcrição de fitas, por isso está assim, com parágrafos longos e toneladas de vírgulas colocadas pelos que fizeram a transcrição (posso escrever transcrissores ou transgressores?). Segue Carlos Drummond de Andrade: “Então, a poesia refletindo isso, ela por sua vez é eterna. Também porque nós precisamos às vezes de um certo refúgio contra o tempo, queremos nos libertar, queremos ficar livres da pressão demasiada dos acontecimentos. Onde nós procuramos? Nós procuramos na música, nas artes plásticas, ou procuramos na poesia, são formas de transcender o imediato e o real e fugir a ele, nos elevando acima dele”. Rapaz, acho melhor você comprar a revista (se é que já não a tem), porque a entrevista está ótima. Aliás, essa entrevista me tirou uma dúvida que eu tinha a respeito da morte de Pedro Nava. Para mim era um mistério: a notícia dava que ele recebeu um telefonema, saiu de casa e depois foi encontrado morto sentado ao pé de uma figueira na Praça Paris. Pelas notícias – elas jamais dizem toda a verdade – a coisa ficou para mim meio que misteriosa, tipo conto de Edgard Alan Poe, filme de Alfred Hitchcock. Carlos Drummond de Andrade esclarece: “Então, foi uma resolução a meu ver súbita, num momento de solidão em que ele não estava apoiado em nenhum amigo, nenhuma força solidária que pudesse demovê-lo dessa ideia, ele então, num momento de desespero, resolveu se eliminar”. Engraçado como eu tenho a mesma ideia a respeito do suicídio, tirando, claro, esse num momento de desespero, porque sempre atinei com a ideia de que o suicídio não é nada heroico, nada covarde nem mesmo desespero. É apenas um momento – e como é fatalidade, não há retorno nem explicação, nem esclarecimento.


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Seguindo CDA: “Ele foi à casa desse amigo altas horas da noite, chamado pelo amigo, aliás, e tomou o revólver que ele tinha no quarto e intimou-o com a maior severidade a tratar-se, a reagir contra a depressão. Salvou a vida desse nosso amigo e não salvou a sua própria. Mas acho, continuo achando, que o homem é dono do seu destino, é dono da sua vida, não posso acusá-lo”. Apesar de elucidar alguma coisa no todo, a atitude de Pedro Nava continua muito Agatha Christie, não é? Será que ele assimilou tanto o problema do amigo, mas tanto, tanto, que resolveu ele sim se suicidar para salvar o amigo? Tudo se pode considerar, ainda mais sabendo que o Pedro Nava era médico e, portanto, sujeito a juramento de solidariedade, etc. etc. E, afinal, quem era esse amigo? Apenas para concluir vou citar mais uma vez o Carlos Drummond de Andrade na entrevista, a respeito de Mário de Andrade e do Modernismo, que só tardiamente influenciou a literatura maranhense: “Ele (Mário de Andrade) pessoalmente achou que o modernismo era um movimento ultrapassado e que ele tinha falhado, porque não tinha dado um caráter mais permanente à sua obra. Mas as conquistas, digamos assim, técnicas do modernismo, culturais do modernismo, a atualização da inteligência brasileira, por assim dizer, embora pareça pretensioso, o fato de o modernismo ter trazido um novo estilo literário, um estilo que ficou até hoje, porque todas as liberdades que até hoje se usa e se abusa na literatura, todas elas são fruto do modernismo. A desarticulação da sintaxe clássica sem desrespeito naturalmente ao fio condutor do pensamento, que nada tem a ver com as formas gramaticais rígidas, é uma conquista do modernismo. É um pensamento mais livre. O Brasil se libertou de uma poesia, de uma literatura copiada, imitada de cânones que ninguém mais nem cogitava”. Sobre as vanguardas: “Se nós queremos desarticular a linguagem a um ponto em que só restam palavras ou meias palavras, o resto são sons, ou meras consoantes ou meras vogais, então nós estamos


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desarticulando um trabalho que durante milhares e milhares de anos o homem fez para compor uma linguagem equilibrada e artisticamente válida”. E, para encerrar, esta pérola (a gente costuma cunhar a expressão pérola de modo irônico, mas aqui ela é verdadeira): “Eu acho que a história da literatura não é a história da vanguarda.” É claro que, publicada em vida, essa entrevista provocaria complicadas controvérsias, logo numa época em que estavam ressuscitando os arqueólogos irmãos Campos, Augusto e Haroldo... A respeito do nome da revista — NOR — abuso da sua paciência só mais um poucadinho, para falar da ojeriza que nós maranhenses temos de ser nordestinos. Por isso, estranhei a nova expressão que está sendo cunhada lá pelas bandas da Ilha: MeioNorte. Em outras palavras, dividiram o ponto cardeal como se divide uma laranja. Por que ser nordestino ainda hoje nos envergonha? Passei por cidades lindíssimas e sem nada a dever às capitais do suleste. Por outro lado, se a gente chegar mais um bucadinho pro Norte mesmo, vamos esbarrar com o Pará, cuja fama de coronelismo não anda lá essas coisas. Sinuca... Mais uma coisa sobre revistas. Leio sempre que posso a revista CULT, muito boa, mas tem um senão: é feita por uma meia dúzia de paulista metido a besta, dono da verdade, sabe-tudo. Fora isso até que é um alento saber que CULT existe. Pelas as coisas que acontecem no Rio, até que agosto/setembro está sendo uma época particularmente feliz: no MAM, exposição de Picasso (a única que eu vi foi aqui mesmo no Rio - resultou no livro “Suíte Picasso”); no Paço Imperial recebemos a visita dos mexicanos (Orozco, Kahlo, Rivera, Siqueiros, etc.); a Prefeitura anuncia Mostra de Gravura, que vai de Miró a Fayga Ostrower; Arnaldo Cohen toca no Municipal. Por que você não vem passear e ver tudo isso? Assim teria tempo pra esticar o papo...


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Bem, vou ficando por aqui, pedindo desculpas pela extensão desta e pelas chatices comentadas. Enfim, o que mais interessou transmitir a você foi o ânimo de fazer uma revista de poesia. Vocês (estou pensando em você, em Joaquim Itapary, Jomar Moraes e principalmente nos poetas novos), que têm o poder de realizar coisas, é que deveriam se animar mais do que eu, um quase oitentão, pobre, pobre de marré, marré, marré... 19/05/2015


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O milongueiro Arrabal

Logo no “Prólogo ao ocupado leitor” dá para reparar que Fernando Arrabal, ao escrever “Um escravo chamado Cervantes – Um retrato do criador de Dom Quixote”, compôs um texto polêmico a seu jeito e perfil. Desta vez a convite dos organizadores do I Congresso Internacional de Cervantistas, realizado em 1988 na cidade de Alcalá de Henares, terra de Cervantes. Portanto, seria texto para ser lido no congresso cervantista, oportunidade que Arrabal – ele mesmo o Salvador Dali das letras – não deixaria passar em brancas nuvens. Fernando Arrabal aproveitou a espetacular oportunidade que lhe ofereceu o “destino caprichoso, quase prodigioso!” para especular sobre um documento que havia sido recém-descoberto – a “Ordem de Captura” contra “um Myguel de Cerbantes” (sic). Ora, escrever um texto para ser lido não é o mesmo que escrever um texto para ser publicado em livro. A oratória dá uma eloquência ao texto que a impressão não tem. É como tese de mestrado (sempre acompanhada do chatíssimo abstract), feita com base em estética pretensa acadêmica, com linguagem e itens obrigatórios, agradecimentos inclusive.


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Assim é como fica uma palestra quando passa para a impressão, ademais de ter sido classificada como biografia pela editora – coisa que não é. Arrabal escreveu um texto especulativo e para isso recorreu à ficção. Para justificar a ousadia que permeia o texto, Fernando Arrabal se sustenta em obras e autores similares: “Ruth Reichelberg estuda-lhe as origens em “Dom Quixote ou O romance dum judeu disfarçado”; Louis Combet examina-lhe a homossexualidade e o masoquismo em “Cervantes ou As incertezas do desejo”; Rosa Rossi analisa-lhe a personalidade e as raízes em “Escutar Cervantes”. Arrabal cita também outros autores: Sarah Leibovici (1921-1991), verdadeira caçadora de judeus e sefarditas: “Mosaiques de notre memoire: les judéo espagnols du Maroc” (1982), “Noces judéo-espagnoles. Nuestras bodas en Tetuan” (1983), “Chronique des Juifs de Tétouan: 1860-1896” (1984), “Christophe Colomb juif” (1986). Dominique Aubier (1922-2014), autora de “Don Quichotte prophète d'Israël” (1966), primeira obra a evocar a presença de tradições judaicas no Dom Quixote. No entanto, Aubier não encontrou apoio para sua tese, que foi refutada por Selon Ruth Fine, da Universidade de Jerusalém, afirmando que textos da tradição hebraica não estavam acessíveis à época de Cervantes. O professor Fine acha impossível que Cervantes tenha tido acesso à Cabala e à tradição esotérica judaica em época de Inquisição. Em análise feita entre o texto de Dom Quixote e as bíblias (hebraica e católica), Selon Fine chegou à conclusão que Cervantes usou a vulgata em sua versão tridentina. Marthe Robert (1914-1996), autora que pesquisa Cervantes sob a ótica e ética psicanalítica em “Robisonadas e quixoterias”:


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“Para que o romance abandone as franjas feéricas a que foi por muito tempo confinado, convém claramente que a Criança Perdida desperte para as exigências mais realistas do Bastardo edipiano, de tal modo que aprenda a ver o mundo como se apresenta e, voluntariamente ou não, dirija um olhar interessado às coisas do presente. Ele é Robinson, ou Dom Quixote, segundo tome um dos dois caminhos possíveis; na verdade sempre um pouco de ambos, ora mais lúcido, ora mais perplexo, um Robinson quixotesco ou um Dom Quixote náufrago. Porém, seja como for, o romance não existe mais sem a fissura que deve agora enfrentar; pelo menos não há mais história pretensa que não escolha como tema os conflitos do herói consigo mesmo no aprendizado da vida”. Victor Malka (1938), escritor que já publicou centenas de livros de história, de anedotas e do folclore judaico; Leandro Rodríguez (1934), espanhol cervantista, escreveu: “Miguel, Judío de Cervantes” (1978), “La vía de Don Quijote en Sanabria” (1981), “Documentos de crianza del sanabrés Don Quijote” (1983), “Cervantes en Sanabria”, “Ruta de Don Quijote de la Mancha” (2004), etc. O marroquino Fernando Arrabal tampouco tenta dissimular a vaidade (logo quem!): “E, quando mais exposto me julgava, aplaudiram-me de pé brilhantes eruditos: de Jean Canavaggio a Martín de Riquer, aos quais tanto li, com os quais, se me permitem, tanto amei” – diz ele ao fim do prólogo. Jean Canavaggio (1936) é um famoso e premiado cervantista francês, enquanto que Martín de Riquer (1914-2013) foi um escritor catalão, que lutou ao lado do tenente nazista Francisco Franco na Guerra Civil espanhola e foi premiado com cargos públicos. Amigo de Arrabal, pois. Escreveu sobre Dom Quixote, Tirant lo Blanc, Amadis de Gaula e o trovadorismo espanhol.


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Em não sendo caso para tratar neste artigo, a querela Antonio de Segura versus Miguel de Cervantes, está muito documentada, especulada e difundida, pode ser lida em milhares de textos históricos e fictícios pelo mundo afora. Só que Fernando Arrabal, muito esperto, separa a pena do crime. O crime: “haver dado certas feridas a Antonio de Sigura, andante nestas cortes”. A pena: “sobre o qual o dito Miguel de Cerbantes, foi condenado a com vergonha pública ter cortada a mão direita e em desterro de nossos Reinos por o tempo de dez anos e em outras penas contidas na dita sentença”. O duelo entre Cervantes e Segura é fato histórico sobejamente conhecido e se a condenação parece desproporcional é porque Antonio de Segura (*) era pessoa importante. O tema foi romanceado por Luis Garcia Jambrina, escritor contemporâneo, no romance histórico “La sombra del otro”, que enfoca a vida de Cervantes, desta vez sob a visão de Antonio Segura. O romance, sem disfarçar o pêndulo do favoritismo para Miguel de Cervantes, começa cercando-se de verossimilhança: “Numa livraria de Toledo, um professor de literatura encontra, por acaso, uns papeis antigos escritos em caracteres arábicos. Tratase da “confissão” de Antonio de Segura, inimigo dissimulado de Miguel de Cervantes, a quem inveja com toda sua alma e persegue de maneira implacável com a intenção de destruí-lo. Nela, Segura nos relata, do cárcere, como conheceu Cervantes na sua juventude e como foi ferido por ele durante um duelo, fato que mudará para sempre o destino de ambos”. A cena faz parte das entrevistas dadas por Luis Garcia Jambrina, mas ninguém ficou curioso de perguntar por que Antonio de Segura estava “em cana” (desde la cárcel) – fato não biográfico, ao que parece. Seria uma imitação subliminar da cena de Cervantes escrevendo o Quixote desde la cárcel?


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“Aqui [na Plaza de Oriente] estava o Alcázar de Madrid, onde se encontra o Palácio do Oriente; em seu entorno, era crime desembainhar a espada. Cervantes o fez num duelo contra Antonio de Segura, a quem deixou gravemente ferido. Por este motivo o escritor de Dom Quixote teve que fugir para a Itália”. Arrabal desvirtua a pena, levando-a para a legislação sobre homossexualidade, que condena a ser cortada a mão direita daquele que for condenado por sodomia. O livro todo é cheio de convites para crítica, mas é esse mesmo o estilo Arrabal: oferecer o rosto à tapas e bofetões... Cismei também com a tradução de Carlos Nougué que, juro de mãos postas, a princípio julguei ter sido feita através da tradumática, recurso muito usado em tempos de informática. Diante da crítica à tradução uma aluna do professor Carlos Nougué veio em sua defesa, mas eu não pude replicar porque o danado do livro simplesmente sumiu de minha vista. Agora, remexendo papeis velhos, o dito cujo apareceu e só então posso justificar o motivo do meu aborrecimento quanto à tradução. Tenho a impressão que os tradutores se perdem ao esquecer que estão transferindo um texto estrangeiro para leitores comuns, não para seus próprios pares. Mas esse destino parece inevitável em literatura e nas artes em geral: poeta escreve para poetas, pintores pintam para pintores, músicos compõem para músicos , tradutores traduzem para tradutores – e todos vão discutir seus feitos geniais no Bar Luís, na Casa Cavé, na Confeitaria Colombo... Carlos Nougué está na internet onde propaga o seu trabalho: “Professor Carlos Augusto Ancêde Nougué. Professor de Filosofia. Professor de Tradução e de Língua Portuguesa em nível Pósgraduação (UGF), Lexicógrafo, Prêmio Jabuti de Tradução 1993”. A página também dá notícia sobre o curso: “Por uma filosofia tomista. Primeiro curso realizado pela CONTEMPLATIO. Curso on-line de 60


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horas ministrado por CARLOS NOUGUÉ. As inscrições vão de 18 de setembro a 10 de outubro de 2013”. Obs.: Por quais razões um beneditino, cujo princípio fundamental é “ora et labora” – reza e trabalha – bandeou para os complexos labirintos do tomismo? O tomismo é tratado como filosofia, mesmo contrariando os princípios de São Tomás de Aquino, que tinha por finalidade conciliar, teologicamente, a filosofia grega e o cristianismo. Da impossibilidade de alcançar esse objetivo é que sobrevivem, 750 anos depois, tais cursos... São Bento abandonou todos os mosteiros que dirigiu. Por ser rigoroso quanto ao comportamento ético, muitos atentaram contra sua (dele) vida. Foi resgatado do deserto onde vivia como eremita para ter seu conhecimento adotado e reconhecido. As figuras de São Bento mostram, junto com o Santo, o livro “Regra”, o cálice quebrado pela serpente e um corvo, lembrando o pão envenenado e outros atentados que recebeu de monges invejosos. Outro site www.questoesgramaticais.com.br, publica: Para bem escrever na língua portuguesa: Curso online do professor Carlos Nougué. Alimenta a propaganda as citações: A gramática de uma língua é a arte de [escrever e, pois de] falar corretamente. – Andrés Bello A gramática é a arte de levantar as dificuldades de uma língua; mas é preciso que a alavanca não seja mais pesada que o fardo. – Antoine Rivarol Mas a minha bronca com o professor Carlos Nougué – que traz no lombo a responsabilidade de ter sido educado no Colégio São Bento, o melhor do país – não tem caráter filosófico, apenas cismei


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com algumas frases que li no livro mal vertidas para o brasileiro, com inversões desnecessárias. Exemplifico: pg. 21 – Miguel de Cervantes batizado foi; pg. 25 – Os tetravós de Cervantes convencidos estavam; pg. 26 – Precursor do nazismo foi; pg. 31 – o mais quixotesco de todos, da fogueira não pôde escapar; pg. 32 – em razão de eu ter escrito dissidente dedicatória; pg. 32 – a castração, longe de intimidar, a rebeldes asas lhes dá; pg. 35 – E faltar não podia. E assim segue a carruagem, até o final do volume. Ora, a tradução de um texto em prosa não exige figura retórica, não tem imagem poética, são frases curtas, de expressão direta, sem outras interpretações. O brasileiro não se expressa assim, como o professor acha. O brasileiro lê e diz: foi batizado, estavam convencidos, Foi precursor do nazismo; não pôde escapar da fogueira; dedicatória dissidente; dá asas a rebeldes; E não podia faltar, etc. etc. etc. Neste caso faltou à educação do Carlos Nougué uma leitura dos modernistas, desde Menotti Del Picchia e Manuel Bandeira, a Mário e Oswald de Andrade – ou lá distante, no brasileirismo índio de Gonçalves Dias e, mais atrás, de José de Anchieta – fontes nas quais poderia beber sobre o falar e o escrever brasileiro. Alguém poderá dizer: – Mas, e se o Arrabal tivesse escrito dessa maneira? Eu responderia: – Ainda assim, em não sendo livro que exija interpretação, o tradutor teria que escrever de modo que o leitor brasileiro entenda. Traduzir é trazer para a língua local o que foi escrito noutra língua de modo mais fiel, igual e inteligível. Tirante isso calo-me porque vejo que o professor Carlos Nougué já arranjou muita sarna pra se coçar, quando caiu em polêmica com o velho Olavo de Carvalho. Quem tem um inimigo como Olavo de Carvalho, não precisa polemizar com um pé-rapado como eu. Vejam “Resposta a Carlos Nougué” – Olavo de Carvalho, em http://www.midiasemmascara.org.


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E por que disse ali atrás que Arrabal tinha escrito uma ficção e não uma biografia de fato? Respondo com outra pergunta: – O que haverá de ter ainda para escrever sobre Cervantes? Por exemplo: Arrabal cita um sem número de cidades espanholas que avocam para elas, em vão, o registro do nascimento de Cervantes. Diz Arrabal sobre isso: “Luís López Fernández, mais conhecido por ―doutor póstumo‖, assegura que em registros de batismos e de herança se encontram documentos com o nome Cervantes: ―Homônimos, tão frequentes em sobrenomes patronímicos‖”. Então me pergunto por que também não seria um desses casos a ordem de prisão que deu o pontapé inicial para o livro de Arrabal? Logo de início se pescam duas divergências nos nomes: My[i]guel de Cerb[v]antes e Antonio de Si[e]gura. É cada uma que me aparece! Ademais, Arrabal transita pelos séculos como se estivesse atravessando um sinal de pedestre. Personagens do Século XVI confraternizam com outros dos Séculos XIX e XX, fazendo com que se compreenda cada vez mais a intencionalidade (e vacuidade) com que Arrabal compôs o seu texto – brincando de pique-esconde com fatos, pessoas, histórias. Mas, enfim, estava eu aqui matutando sobre isso quando dou de cara com o texto “La supuesta homosexualidad de Cervantes”, de Daniel Eisenberg (Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2003) para ficar com a estranha sensação de estar enxugando gelo. Ai meu Deus! Todo mundo já mexeu nisso! Mas foi bom, até justo, porque, já tendo o Olavo de Carvalho para cuidar de Carlos Nougé, agora encontro o Daniel Eisenberg para tratar de Fernando Arrabal. O artigo de Daniel Eisenberg vem a respeito da discussão sobre a ―suposta‖ homossexualidade de Cervantes – uma heresia para todos os cervantistas do mundo! – tema que surgiu primeiro em artigo de autor inglês – os espanhóis engoliram a provocação em


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silêncio. Daniel Eisenberg constata: “O único autor espanhol que se atreveu a tocar no tema plenamente é o repugnante – nesse aspecto – Arrabal”. De fato, é ignóbil alguém supor que o ídolo e gênio da literatura espanhola seja um maricón. Para reafirmar o massacre a Fernando Arrabal, Daniel Eisenberg, se apossa das notas de Urbina y Diez para baixa o pau no livro “Um escravo chamado Cervantes”: “Los errores y manipulaciones en el libro de Arrabal, analizado por Urbina y Diez, son espeluznantes. Según él [Arrabal] – y no hay documentación de ninguna de estas afirmaciones: a) Cervantes fue desterrado por pecado nefando, b) los padres de Cervantes montaron en Madrid una casa de prostitución, c) el maestro López de Hoyos enseñaba a sus párvulos la filosofía hispanomusulmana del siglo XII, e) Cervantes tenía mucho interés en las figuras de Buda y Confucio, f) Carlos V escribió un libro de caballerías. Especialmente quisiera señalar que Arrabal no clausuró el I Congreso de la Asociación de Cervantistas, y que no le aplaudieron de pie Martín de Riquer y Jean Canavaggio, como ha sido confirmado directamente por este último”. Mas – ¡carajo! – quem não conhece Arrabal? Quem não sabe a biografia de Arrabal, que desde os primórdios da carreira escolheu o campo da polêmica, da invenção e da mentira para se expressar? 90% do que Arrabal fez e escreveu são invenções – só 10% são mentiras! (obrigado Manuel de Barros). Dessa maneira, estando tudo explicado, tudo em seu devido lugar, tiro o peso do lombo e vou cuidar de outras coisas mais amenas.

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(*) Antonio Segura - Pintor de la corte de Filipe II. El Padre Zarco, en su obra Pintores españoles en San Lorenzo el Real de El Escorial, refiere a «Antonio de Segura, pintor, natural de San Millán de la Cogolla, en La Rioxa». Astrana Marín cuenta que el autor del Quijote, hacia el año 1568, en una reyerta causó varias heridas a un andante en corte llamado Antonio de Sigura. Cervantes, para huir de la justicia, marchó a Italia. Declarado rebelde, se le condenó a que le fuese cortada la mano derecha y a destierro del reino por diez años. Carlos V en su codicilo había dejado encargado que se hiciera el retablo de la capilla mayor del Monasterio de Yuste. Antonio de Segura se compromete a ejecutarlo tal y como lo desea el rey don Filipe II. El rey loa y confirma y tiene por bueno el contrato celebrado entre Antonio de Segura y Martín de Gaztelu. El retablo ha de ser de madera, de la altura y tamaño señalados por Juan de Herrera. Ha de representar el juicio final conforme a la pintura de Tiziano que está en El Escorial. Tendrá cuatro columnas corintias con su pedestal. Sobre éste habrá una custodia y en el frontispicio un escudo con las armas del Emperador. Ha de pintar, dorar y estofar el retablo. Además se compromete a labrarlo en el Monasterio de El Escorial, conducirlo al Monasterio de Yuste y colocarlo en la capilla mayor. Todo lo ejecutó Antonio de Segura a satisfacción del rey, el cual, según Ceán Bermúdez, le nombró maestro mayor del Alcázar de Madrid, del Pardo y de la Casa de Campo en las enfermedades y ausencias de Francisco de Mora. Añade el Padre Zarco que Antonio de Segura murió en Madrid en 1605 y que Filipe III concedió a la mujer del artista dos reales diarios, pensión que, a la muerte de ésta, otorgó luego a María de Segura, su hija. (In “Riojanos Ilustres”)

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A epopeia de Waldemar Costa

Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez 1927-2008 Editora Solis – 2009

Os primeiros dias de janeiro de 2015 me deram a alegria de reencontrar um grande amigo: Waldemar Costa, jornalista, historiador e romancista – que durante décadas fez parte da equipe do Jornal dos Sports (o ―cor-de-rosa‖), de Mário Filho onde, extrapauta, assinava uma coluna diária de xadrez, sempre carente na imprensa. Editou por anos a Revista Caissa e o semanário Xadrez Expresso. Além disso Waldemar Costa ainda encontra tempo e joga xadrez, participa da Federação, dirige o Departamento de Xadrez do Jacarepaguá Tênis Clube, e foi co-fundador do Praça Seca Xadrez Clube. Waldemar Costa, bairrista por excelência, nasceu em Jacarepaguá e ali vive até hoje, sem perder nenhuma oportunidade de divulgar a história de seu lugar. Sobre o bairro já publicou os livros “O Vale do Marangá” e “Imagens de Jacarepaguá”. Na sua página na internet, http://www.wsc.jor.br, Waldemar Costa historiou os “Governantes de Jacarepaguá”, a “Paróquia de N. S. de Loreto”, recuperou as fotos antigas do bairro em “Imagens de Jacarepaguá” e desvendou o “Significado dos nomes das ruas de


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Jacarepaguá”. Quer dizer, em http://www.wsc.jor.br se encontra um verdadeiro manancial de informações sobre o bairro de Jacarepaguá e adjacências, onde Waldemar Costa nasceu, estudou, cresceu e sempre residiu. Como romancista Waldemar Costa já publicou “O Estigma da Cruz de Rubis”, “O Paraíso Azul” e “O Ferrador”, romance de época que daria excelente série ou filme ou novela, se os diretores não fossem tão corporativistas e burros, laureando-se mutuamente, sem olhar em volta. O xadrez nos uniu em grande amizade e foi visitando a Associação Shalom Aleichem, que realizava o Torneio Aberto da Fexerj 2015, onde o reencontro se deu. Waldemar Costa divulgava ali a 2ª edição do livro “Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez 1927-2008” (Editora Solis 2009), que, por inexplicável que seja, permanecia engavetado na editora, sem distribuição. Antes que apodrecesse Waldemar Costa resgatou a publicação que está sendo avidamente comprada pelos xadrezistas e se esgotará em pouco tempo. Empresários brasileiros... Para Waldemar Costa a republicação de “Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez 1927-2008” guarda, no íntimo, outra emoção que não seja o significado do fato em si. É que a 1ª edição do livro (saída em dois pequenos volumes em edição limitada), teve e participação e atuação decisiva de dona Lina de Mello Costa, mãe do autor, que atuou como pesquisadora, na editoração e como revisora. Além disso, dona Lina não hesitava em ―agredir‖ o filho com o indispensável e rigoroso estímulo, instigando-o à persistência num tempo em que não existia internet. Esse trabalho minucioso, de formiga, foi bem descrito pelo Campeão Brasileiro de Xadrez, Hermann Claudius van Riemsdijk, no Prefácio ao volume. Por que os livros feitos à moda antiga, isto é, em papel, letras e tinta, são e serão importantes? Porque as informações contidas em “Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez 1927-2008” não se encontra em outra parte, inclusive na internet. Precisava ver como os participantes do torneio se aproximaram do livro de


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Waldemar Costa, folhearam as páginas, devorando, comiam as informações enciclopédicas e, por fim, não se importando com a idade da pedra do livro de papel, compraram e carregaram como tesouro, preciosidade. Em pouco tempo o estoque acabou e não tinha mais nenhum – Waldemar Costa voltou com a mochila vazia. O livro está cheio de informações históricas, ali estão os campeões do passado, é narrada uma pré-história do xadrez aqui no Brasil, que Waldemar Costa situa no século XIX. Tenho cá minhas dúvidas, pois o tabuleiro de xadrez era – junto com o baralho – peça indispensável nos baús, porque serviria para distrair a tripulação do estresse de que era vítima nas caravelas de antanho. É caso para pesquisar. Para mim “Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez 1927-2008” trouxe outras emoções. Li nele informações, as imagens, as partidas de xadrez e muitas notícias sobre pessoas amigas com as quais tive o prazer da convivência durante a participação dos torneios. Amigos que não estão mais entre nós, amigos que estão dispersos pelo sopro dos tempos, cada qual levado pelas responsabilidades da vida. Entre muitos deles minha lembrança caiu em José Soares Másculo, jovem Campeão Brasileiro Juvenil, 5º lugar invicto no 44º Campeonato Brasileiro de 1978. Além das qualidades enxadrísticas, Másculo também era, apesar de jovem, muito responsável com a ética no esporte. Pelo seu talento, José Soares Másculo teria pela frente não só o título de Grande Mestre, como também o futuro como dirigente, capaz de elevar com responsabilidade o nome do xadrez brasileiro. Abatido por doença grave, José Soares Másculo teve a carreira enxadrística interrompida prematuramente... E agora que fiquei chateado, triste com essa lembrança, não conto mais nada. Quem quiser saber mais ou adquirir “Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez 1927-2008”, entre em contato com Waldemar Costa e corra porque a edição está acabando. 27/01/2015


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O Quixote de Avellaneda

Alonso Fernández de Avellaneda Segundo Tomo del Ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha (1614) Editora Itatiaia - Belo Horizonte, 1989

Vale a pena ler esse maravilhoso romance ―apócrifo‖, que descreve com humor e ligeireza a continuação das façanhas de Dom Quixote, até então escamoteadas pelo seu criador Miguel de Cervantes. Essa publicação veio cair sobre a cabeça de Cervantes, como se fosse a estrela anunciadora do nascimento de Cristo. O milagre se deu: nenhuma campanha publicitária serviria tanto aos propósitos de exorcizar o estresse e a depressão que naquele momento abatia Cervantes, deixando-o derrotado para a arte de escrever. Depois disso Cervantes despertou mais gênio do que nunca, completou o Dom Quixote, sem deixar de se mostrar exímio espadachim – duelou com Avellaneda com honra e glória. Sabiamente, preservou o Dom Quixote ―apócrifo‖ de maior dano (que poderia advir com algum processo) e assim protegeu o seu romance, legando para a posteridade o tríptico literário de maior genialidade erigido até hoje. Hoje o Dom Quixote de Cervantes só


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deve ser lido tendo de entremeio o livro de Alonso Fernández de Avellaneda. Isso porque, tecnicamente falando, o Dom Quixote de Alonso Fernández de Avellaneda não deixa a desejar a nenhuma das publicações da época. Quem escreveu, ao contrário do que dizem alguns críticos, conhecia a técnica dos textos produzidos num tempo em que a novela crescia, tornava-se adulta, paria o romance, “gênero literário de natureza narrativa, do grupo ficção, em que se narra um episodio ou incidente da vida, em geral fictício”. (Afrânio Coutinho). Além das raízes mais antigas (a epopéia e as gestas medievais), o romance moderno firmou-se esteticamente submetendo-se ao poder da novella italiana de Bocaccio, Bandello, Fiorentino e Masuccio, desembocando no romance picaresco (Lazarillo de Tormes, Guzmán de Alfarache, el Bucón, El diablo cojuelo), que definitivamente são as fontes do romance de costumes e de aventura tais como Dom Quixote, de Cervantes, o Gargântua, de Rabelais, Astreé, de Honoré d‖Urfé e por aí afora. Pois o livro apócrifo de Dom Quixote enquadra-se perfeitamente na estética daquela época, fato reconhecido por Miguel de Cervantes, cujas críticas ao volume foram amenas. Na tradução brasileira o crítico Lucílio Mariano Jr. em nota de orelha, observa esse detalhe: “O livro apócrifo, sem ter a genialidade do modelo, possui inegável valor literário, desde que considerado como uma farsa, uma paródia da história escrita pelo “manco de Lepanto”. Suas situações são sem dúvida hilariantes, além de possuírem como marca registrada o tempero forte de uma linguagem bem mais desabusada, que às vezes atinge níveis rabelaisianos de grotesco e de “grossura”. Pode-se acrescentar que a “dureza de pedra” à qual Cervantes alude no texto de Avellaneda, deve-se ao fato do mesmo ter sido obrigado a seguir o roteiro previsto no tomo I, o que limita o campo


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de ação do narrador e dos personagens. Voltando a Lucílio Mariano Jr.: “Alguém asseverou certa vez que o livro de Avellaneda seria considerado uma verdadeira obra de arte... se nunca tivesse havido o livro de Cervantes. (...) é um livro bem escrito – isto é fora de questão.” Lucílio Mariano Jr. observa a falta de grandiosidade em Dom Quixote o a ausência de pureza em Sancho Pança, “mas isto é porque Avellaneda (...) preferiu realçar o lado pior de ambos, acentuando a loucura do fidalgo e tornando Sancho um misto de bufão e de glutão”. E para concluir: “Se o dramático saiu perdendo, o cômico pôde ser potencializado, sucedendo-se situações engraçadíssimas, uma após outra”. Como Cervantes reagiu ao romance? Vejamos como o livro de Avellaneda se encaixou bem no espírito de Cervantes. Logo de cara serviu de provocação e estímulo para que ele mesmo saísse da letargia e partisse para pôr no papel a segunda parte da história, que havia prometido ao encerramento do primeiro romance, “a fim de tirar a náusea causada por outro Dom Quixote, que, com o nome de segunda parte, se disfarçou e correu pelo orbe”. Cervantes, que andava demasiado inepto, enclausurado nos limites das suas moléstias, deu graças a Deus ter surgido, assim do nada, um motivo para reviver as aventuras de Dom Quixote, cujas edições se expandiram e replicaram rápido, como fogo na palha, por toda a Ibéria, Portugal, França, Itália e Inglaterra. A continuação do Quixote medrava em sua cabeça como erva no campo. Não só o Dom Quixote II foi assim induzido ao sucesso. Cervantes não deixou passar em branco a menção às Novelas Exemplares e replicou a lembrança: “Mas, efetivamente, agradeço a este senhor o dizer que as minhas novelas são mais satíricas do que exemplares, porque isto mostra que são boas e não o poderiam ser se não tivessem de tudo”.


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Tudo é publicidade... bem sei que são tentações do Demônio, que uma das maiores é meter-se-lhe a um homem na cabeça que pode compor e imprimir um livro com que ganhe tanta fama como dinheiro e tanto dinheiro como fama Talvez aconteça o mesmo a este historiador, que não se atreva a tornar a soltar a presa do seu engenho em livros que, em sendo maus, são mais duros que pedras. e pouco me importa que haja ou não haja imprensas no mundo e que se imprimam ou não contra mim mais livros do que letras têm as coplas de Mingo Revulgo. Não se parecerem com as dele são as razões desta história, que se prossegue com a autoridade com a qual ele começou, e com a cópia de fiéis relatos chegados a sua mão. mas que se queixe de meu trabalho pelo ganho que lhe tiro de sua segunda parte; pois não poderá, pelo menos, deixar de confessa termos ambos o mesmo fim, qual seja o de desterrar a perniciosa lição dos vãos livros de cavalaria, tão encontradiça em gente rústica e ociosa Não só tomei por meio entremear a presente comédia com as ingenuidades de Sancho Pança, evitando ofender a quem quer que seja ou fazer ostentação de sinônimos desnecessários, embora pudesse fazer bem o segundo, e mal o primeiro. Só digo que ninguém deve espantar-se de pertencer a autor diferente esta segunda parte, pois não é novidade pessoas diferentes prosseguirem a mesma história. Quantos não trataram dos amores de Angélica e de seus sucessos? As Arcádias, diversos as descreveram. A Diana não é toda de uma só mão. Em algo esta segunda parte se diferencia da sua primeira, porquanto tenho humor oposto ao seu, e, em matéria de opiniões quanto às coisas da História – e tão autênticas quanto esta – cada qual pode dar as que melhores lhe parecerem, mormente se para tanto lhe


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abre campo dilatado a cáfila dos papéis que para compô-la ele leu, e que são tantos como os que deixei de ler. Não me venha quem quer que seja murmurar que não deveria permitir a impressão de semelhantes livros, pois este não ensina a ser desonesto, ma sim a não ser louco. E permitindo-se tantas Celestinas, que já andam mãe e filha pelas praças, bem s pode permitir pelos campos um Dom Quixote e um Sancho Pança, a quem jamais se conheceu vício; antes mui bons desejos de desagravar órfãs, desfazer tortos, etc. Com esse prólogo cheio de prevenções contra o que viesse de ataques ao seu atrevimento, Alonso Fernández de Avellaneda inicia o livro, sabendo de antemão que deveria a obra ter a mesma altura do talento e simplicidade de Cervantes. E assim foi. Não é mau o livro, diverte, é fiel, espalha-se derramando as aventuras como se o Quixote tivesse dois pais, iguais em talento. Debate entre Cervantes e Avellaneda Avellaneda: – Como é quase comédia a história de Dom Quixote de La Mancha, não pode nem deve sair sem prólogo. Assim, no princípio desta segunda parte de suas façanhas, sai este, menos cacarejado e menos agressor de seus leitores do que aquele que na primeira parte escreveu Miguel de Cervantes Saavedra e mais humilde do que aquele saído em suas novelas, mais satíricas que exemplares, se bem que não pouco engenhosas. Cervantes: – Valha-me Deus! Com quanta vontade deves estar esperando agora leitor, ilustre ou plebeu, este prólogo, julgando achar nele vinganças, pugnas e vitupérios contra o autor do segundo Dom Quixote; quero dizer, contra aquele que foi gerado em Tordesilhas e nasceu em Tarragona! Pois em verdade te digo que não hei de te dar esse contentamento, pois ainda que os agravos despertam a cólera nos mais humildes peitos, no meu há de ter exceção esta regra. Quererias que eu lhe chamasse asno, atrevido e mentecapto, mas tal coisa não me passa pelo pensamento.


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Castigue-o seu pecado, engula-o a seu bel prazer e que não lhe provoque engulhos. Avellaneda: – Não será estranho a ele o tom e as razões desta história, que se continua com a autoridade que ela a começou, com a cópia de fiéis relatos que à sua mão chegaram. E digo mão, pois confessa de si que tem só uma. E falando tanto de todos, vamos dizer dele que, como soldado tão velho em anos quanto moço em brios, tem mais línguas que mãos. Porém é certo se queixar do meu trabalho pelo ganho que dele tiro da sua segunda parte... Cervantes: – O que não pude deixar de sentir foi que me chamasse de manco e velho, como se estivesse na minha mão retardar o tempo, fazer que parasse para mim ou como se tivesse saído manco de alguma rixa de botequim e não do mais nobre feito que viram os séculos passados, presentes e esperam ver os vindouros. Se as minhas feridas não resplandecem aos olhos de quem as mira, são estimadas, pelo menos, por aqueles que sabem onde se ganharam. Que ao soldado melhor parece morto na batalha do que livre na fuga. E tanto sinto isto que digo que, se agora me propusessem e facilitassem o impossível, antes quisera ter estado naquela peleja prodigiosa, do que curado das minhas feridas sem lá ter ido. As cicatrizes que o soldado ostenta no rosto e no peito são estrelas que guiam os outros ao céu da honra e ao desejar justo louvor. Avellaneda: – Uma coisa não poderá, pelo menos, deixar de confessar: que temos ambos um fim, que é desterrar a perniciosa lição dos vazios livros de cavalarias, tão comum na gente rústica e caseira. Se bem que nos meios diferenciamos, pois justamente tais livros celebram as nações mais estrangeiras e a nossa deve tanto a eles, por haver entretido, honestíssima e fecundamente tantos anos os teatros da Espanha com estupendas e inumeráveis comédias, com o rigor da arte que pede o mundo, com a segurança e limpeza que de um ministro do Santo Ofício da Inquisição se deve esperar.


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Cervantes: – Sendo assim como é não tenho motivo para perseguir nenhum sacerdote que, de mais a mais, seja também familiar do Santo Ofício da Inquisição. E se ele o disse referindo-se a quem parece [Lope de Vega], de todo em todo se enganou, que desse tal adoro eu o engenho, admiro as obras e a ocupação contínua e virtuosa. Mas, efetivamente, agradeço a este senhor dizer que as minhas novelas são mais satíricas do que exemplares, porque isto mostra que são boas e não o poderiam ser se não tivessem de tudo. Avellaneda: – Não só tomei por meio entremesar a presente comédia com as simplicidades de Sancho Pança, fugindo de ofender alguém e de fazer ostentação de sinônimos inventados, apesar de saber fazer muito bem o segundo e mal o primeiro. Peço que ninguém se espante de ver sair de diferente autor esta segunda parte, pois não é novidade o prosseguir uma história diferentes pessoas. Quantos têm falado dos amores de Angélica e suas aventuras? As Arcádias, diferentes autores têm escrito. A Diana não é toda de uma só mão. Cervantes: – Sabendo que não se deve acrescentar mais aflições ao aflito e as que este senhor deve ter são enormes sem dúvida, pois não se atreve a aparecer em campo aberto e com céu claro, encobrindo o seu nome e falseando a sua terra como se tivesse feito alguma traição de lesa-majestade. Da minha parte não me tenho por agravado, bem sei que são as tentações do Demônio e uma das maiores é meter na cabeça de alguém que pode compor e imprimir um livro com que ganhe tanta fama como dinheiro e tanto dinheiro como fama. E para confirmação disto quero que com todo o donaire e graça lhe contes este conto: "Havia em Sevilha um doido que deu no mais gracioso disparate e teima que nunca se viu. Fez um canudo de cana pontiagudo e apanhando um cão na rua ou em qualquer outra parte, prendia uma pata com os pés, com a mão levantava a outra e, como podia, lá lhe adaptava o canudo no lugar em que, soprando, o deixava redondo como uma bola. Quando ficava desse jeito dava duas palmadinhas na barriga e soltava dizendo aos circunstantes, que sempre eram muitos: – Pensarão


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agora vocês que é pouco trabalho inchar assim um cão?" – Pensará agora você que é pouco trabalho fazer um livro? Avellaneda: – Também Miguel de Cervantes, já tão velho como o castelo de São Cervantes, anda pelos anos tão descontente, que tudo e todos o enfadam. Por isso está tão carente de amigos que, quando quiser adornar seus livros com sonetos campanudos, terá de solicitá-los - como ele mesmo diz - ao Preste João das Índias ou ao Imperador de Trapizonda, porque não encontrará autor, quiçá em toda a Espanha, que não se ofenda de que mencione seu nome. Como permitirão tantos ter os seus versos no princípio dos livros do autor de quem murmura? Rogue a Deus que também o deixe, agora que se recolheu à Igreja e foi consagrado! Contente-se com a sua Galatea e as comédias em prosa, que apenas isso é a maioria de suas novelas. Cervantes: – Dizes que ando muito acanhado e que me mantenho demasiadamente dentro dos limites da minha modéstia. Convém advertir que não se escreve com cabelos brancos, mas sim com o entendimento, que costuma aprimorar-se com os anos. Se este conto não se enquadrou, conto outro que também é de orate e de cão: "Havia em Córdoba um doido que tinha por costume carregar na cabeça uma pedra de mármore ou um pedregulho. Ao topar com algum cão descuidado, aproximava-se e deixava cair o peso em cima dele. O cachorro se machucava e ladrando e ganindo corria tanto que não parava nem em três ruas. Acontece que entre os cães atacados um deles era o cão dum chapeleiro, que o estimava muito. O doido atirou a pedra na cabeça do cão que desatou a ganir dolorido, quando o dono viu tudo e tudo sentiu, agarrou na vara de medição, foi ter com o doido e não lhe deixou uma costela inteira. A cada paulada que lhe dava, dizia: – Ah! ladrão! Ah! cachorro! Pois não viste, cruel, que o meu cão era podengo? E repetindo o nome “podengo” muitas vezes, enfim largou o louco, depois de ter deixado seus ossos num feixe só. Se lamentando da sova que levou, o doido sumiu e por mais de mês não saiu à praça. Ao cabo desse tempo voltou com a mesma invenção e com maior carga. Chegava aos cães, olhava fixo para eles por muito tempo e sem querer nem se


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atrever a descarregar a pedrada, dizia: – Este é podengo! Cautela!" E efetivamente, quantos cães topava, ainda que fossem sadios e fortes, dizia que eram podengos e nunca mais disparou o pedregulho. Talvez aconteça o mesmo a este historiador: que não se atreva a tornar a soltar a presa do seu engenho em livros que, em sendo maus, são mais duros que pedras. Avellaneda: – Não me canses. São Tomás ensina que a inveja é a tristeza do bem e do progresso alheio, doutrina que tomou de São João Damasceno. A este vício dá por filhos São Gregório na exposição e detração do próximo, gozo dos pesares e pesar das alegrias. E bem se chama este pecado inveja a non videndo, quia invidus non potest videre bona aliorum. Efeitos todos tão infernais como sua causa, tão contrários aos da caridade cristã, de quem disse São Paulo, charitas patiens est benigna est, non emulatur; non agit perperam, non inflatur, non est ambitiosa, congaudet, veritati. Desculpem os erros das citações da primeira parte, porque o fato dele tê-la escrito entre companheiros de cárcere, não pôde deixar de sair tisnada deles, nem menos queixosa, murmuradora, impaciente e colérica, igual ficam todos os presos. Cervantes: – Senti também que me chamasse invejoso e me descrevesse como a um ignorante. Qualquer coisa que seja a inveja, verdade, verdade, de duas que há eu só conheço a santa, a nobre e a bem-intencionada. Viva o grande Conde de Lemos, cuja cristandade e liberdade bem conhecida, contra todos os golpes da minha aziaga fortuna, me conserva de pé. E viva para mim também a suma caridade do ilustríssimo [Cardeal-arcebispo] de Toledo. Pouco me importa que haja ou não haja imprensas no mundo, que se imprimam ou não contra mim mais livros do que letras têm as coplas de Mingo Revulgo. Estes dois príncipes, sem que a minha adulação solicite, nem outro gênero de aplauso, só por sua bondade tomaram a seu encargo favorecer-me. E nisso me tenho por mais ditoso e mais rico do que se a fortuna pelos caminhos ordinários me tivesse posto no pináculo.


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Avellaneda: – Em algo diferencia esta parte da primeira sua; porque tenho o humor também contrário ao seu. E em matéria de opiniões em coisas de história, tão autêntica como esta, cada qual pode caminhar por onde melhor pareça. Ainda mais dando para ele tão dilatado campo, a cáfila dos papéis são tantas, tanto quanto os que deixei de ler. Cervantes: – Digo-lhe também que a ameaça que me faz, de que me há de tirar os lucros com seu livro, nada se me dá que, acomodando-me ao entremez famoso de A Perendenga, respondo que viva para mim o vinte e quatro meu senhor e Cristo para todos. Avellaneda: – Não me murmure nada de que se permitam impressões de semelhantes livros, pois este não ensina a ser desonesto e sim a não ficar louco. E permitindo-se tantas Celestinas, que já andam mãe e filha pelas praças, bem se pode permitir pelos campos um Dom Quixote e um Sancho Pança, dos quais jamais se conheceu algum vício, antes somente muitos desejos de desagravar órfãos e desfazer os tortos da vida. Cervantes: – A honra pode-a ter o pobre, mas não o vicioso. Pobreza pode enevoar a fidalguia, mas não escurecê-la de todo. Mas como a virtude dá alguma luz de si, ainda que seja pelos inconvenientes e vestígios da estreiteza, vem a ser estimada pelos altos e nobres espíritos e, portanto, favorecida. E eu quero dizer mais a ti leitor, senão advertir-te, que esta segunda parte de Dom Quixote que te ofereço é cortada pelo mesmo oficial e no mesmo pano que a primeira e que te dou nela Dom Quixote dilatado e finalmente morto e sepultado, para que ninguém se atreva a levantar-lhe novos testemunhos, pois já bastam os passados e basta também que um homem honrado desse notícia destas discretas loucuras, sem querer de novo entrar com elas. A abundância das coisas, ainda que sejam boas, faz com que se não estimem e a carência, ainda que das más, alguma coisa se estima. 08/01/2015


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O autor Salomão Rovedo (1942), formação cultural em São Luis (MA), reside no Cachambi, Rio de Janeiro. Poeta, escritor, participou dos movimentos poéticos e políticos nas décadas 1960/1970/1980, tempos do mimeógrafo, das bancas nas praças, das manifestações em teatros, bares, praias e espaços públicos. Textos publicados em diversos jornais, sites e antologias. Escreveu Literatura de Cordel com o pseudônimo “Sá de João Pessoa”. Os e-books estão disponíveis em diversos sites de depósito de arquivos. Site: www.dominiopublico.gov.br. e-mail: rovedod10@hotmail.com Blog: www.salomaorovedo.blospot.com.br Blog: www.rovedod10.wordpress.com Wikipedia: www.pt.wikipedia.org/wiki/SalomãoRovedo

Foto: Priscila Rovedo

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