SalomĂŁo Rovedo
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A estrela ambulante
e outros contos
Rio de Janeiro 2009
SalomĂŁo Rovedo
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A estrela ambulante e outros contos
Compilado em 1985 Digitalizado em 2009
ÍNDICE
Alerta, alerta, perigo, pg. 4 A última vez que vi o verde, pg. 16 A via crucis de Manfredo, mais conhecido pela alcunha de Xué, pg. 30 Banho de sangue, pg. 36 Estamos em guerra, pg. 40 Corpo morto, pg. 47 Eliza-Bete 45400Y, pg. 53 Esqueleto, pg. 66 A estrela ambulante, pg. 74 Jorginho, pg. 100 Mariínha, pg. 108 Morrendo, pg. 112 Notas do diário de Zeus, pg. 118 Os olhos oblíquos do Oriente, pg. 131 Resumo dos capítulos anteriores, pg. 138 (Último capítulo), pg. 141
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ALERTA, ALERTA, PERIGO! Madrugada. Hora que tudo parece sustar a vida por alguns minutos para depois acelerar como respiração ofegante. Tudo parece hipnotizado. Morto provisório. As luzes, reflexo de vida, permanecem opacas não mais que cumprindo o dever material. Se há lua, o clarão que dela espraia é morto. Os néons parecem focos vibrantes em última tentativa de fazer vida. Devido ao colorido e intermitente pisca-pisca é o último corpo que assemelha a vida ainda que em instantes finais. As árvores lançam inútil sombra e são iguais a edifícios cimentados em gigantesca estrutura, inertes. Madrugada. Hora em que o céu ameaça aclarar-se e surpreender a todos em meio ao pecado. Como se Deus de repente descobrisse nossas vergonhas. Fugiríamos? E os rostos? Os rostos são máscaras pálidas, sem nenhum sorriso a afrontar-lhe os lábios. E sorrindo não fará desaparecer a palidez que a madrugada pinta nas faces teatrais. Não nos pertence. Todos são rostos cansados de viver toda noite, em busca de quê? Caminham e falam
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coisas sem incomodar-se com o hálito de bebida disperso no ar. No ônibus, a luz semimorta. Corpos fatigados e curvos viajam. Destino: a cama, uma mulher talvez. Recuperação. 5
As cabeças, umas resistem em ereção mecânica, outras pendem serenas a dormir o sono provisório. Outras são incríveis pêndulos e circulam sobre o pescoço eixo, ameaçando cair momentaneamente e rolar pelo chão sem rumo. Perdidas cabeças sem dono, estão decapitadas do corpo. O ônibus voa, desliza ou dá enormes pulos ao ultrapassar as inconformidades das ruas. Às vezes pára e deixa cair algum passageiro no destino. Lá um ou outro toma assento e somente o motor se faz ouvir entremeado pelas conversas abstratas. Rostos deformados pela noite: do operário que inicia o labor e do boêmio que encerra a noite em gala. Tentativa frustrada de fazer noitada boêmia com todos os complementos, inclusive mulher. Andar por muitos inferninhos, boates e bares, aparentemente divertidos de
situações momentâneas. Beber bastante e das mais diversas bebidas, de gostos exóticos e ilusórios. A mulher ideal para fazer companhia e desaparecer sempre que conversa. Exploradoras, acompanhadas, intelectuais (estas quase ideais), ignorantes e mulheres burras, incrivelmente burras! Coitadas...
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E a noite foi indo, empurrada pelas horas, morrendo aos poucos até chegar ao momento supremo de inanição: a madrugada. A madrugada entrou assim, só. O olhar obsceno do meu vizinho às pernas da mulher que dorme à nossa frente bem à vontade, as violentas guinadas do motorista que mantém o cigarro queimando ao lado da boca, os sinais do trocador
em
pancadas
indecifráveis,
as
cabeças
desmembradas circulando em órbita ao redor do pescoço tentando cair e a madrugada que caminha para a claridade amorosa trazida pelo sol que não veremos. Saio cedo de casa isto é cinco e meia pras seis horas da matina ouvindo o bip-bip intermitente da rádio-relógio entremeado de vozes e publicidade. Até a estação de trem, quilômetro e meio mais ou menos, tudo pode acontecer. Algo. Sei. Como bicho que acuado pressente o perigo. Sei
é hora de marginais e bandidos voltarem pra toca desiludidos e famintos. Outro trabalhador noturno também, mas o bandidão retardatário mete muito medo. Depois da noitada mal sucedida, certamente acompanhada de espetacular e cinematográfica
perseguição
policial,
apenas
por
divertimento pode atacar no meio da rua diante de todo mundo perto do quartel da PM – saqueando violentamente – pra levar o quê? Hoje em dia não têm medo de mais nada. Se a vítima está sem dinheiro pior ainda: pode ganhar gratuitamente um tiro na barriga só pelo desaforo de andar por aí em terrível perrengue: duro e teso que nem peru de noivo. Como se mata! Digo sempre pra minha mulher – tenha sempre à mão vela e lençol branco. A qualquer momento como anjo anunciador a tragédia pode invadir a casa despudoradamente. Até agora, porém dizer que dei sorte. Cheguei à estação inteiro, intacto, somente o trem um pouco atrasado como coisa normal. Daqui a pouco vem cheio e na hora do empurra-empurra, entra-e-sai, é possível o mão levinha bater minha carteira ou outro objeto menos precioso qualquer. O chato não é o dinheiro que
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não tem – é tirar nova carteira no Félix Pacheco entrar na fila dar gorjeta, etc. A escolha do pilantra não obedece a rigores: a precaução exagerada do vitimado verdadeiramente nada protege e até atrai o marginal que vem farejando como sutil tamanduá. Estamos todos à mercê de tais vagabundos sejam gatunos ou traficantes de quinquilharias. Na boca dos trens ficam ali sorrateiros que nem gato atrás de rato parecendo saltar na próxima estação. Nunca saltam. Estão como escoteiros sempre alerta! Sobressaltados, aproveitando ao máximo qualquer deslize do incauto passageiro: cidadão sentado no banco próximo a porta conversava com o cônjuge quando malandreco raspou-lhe de macio o Mido Ocean Star. Só sentiu coceirinha tal água de rio no pulso. Ver hora? Só no relógio da Central! O trem partia da estação. Reclamou chorou relógio de outro só vi que era crioulo. Dizia pedindo consolo que ninguém deu. A turma que viaja todo dia já ta fria pra tais lamentações de muro. Um minuto de silêncio comenta entre papo e outro no fim a conversa voltando pro normal – futebol carnaval sexta-feira essas coisas. Um dia meti vale
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no emprego voltando pra casa fim de semana senti um risco na perna na altura do bolso. A grana já era! Hora de saltar. Passei sábado e domingo muito mocorongo sem cinema nem cigarro. Aprendi moitei malandro vou ficando. Isso se deu, mas como disse não é o pior tá? Entretanto o trem chegou, meti os peitos, fui invadindo até lugar melhor debaixo do ventilador na cuca pra esfriar verão sem maiores incidentes. Na Estação Dom Pedro II (Central) as coisas aparentam mais fáceis: deixa-se o grosso sair (ou parte na frente) de leve mansinho vai escorregando pra roleta sem perigo. Atravessar a Av. Presidente Vargas fora do sinal na hora do rush aí sim precisa tirar fora a canela. Chegar à Praça Mauá onde a luta é outra sem ser atropelado ou levar fino de raspão e xingamentos dirigidos à progenitora por motorista raivoso jamais. Todo dia mamãe sofre! Na tua já sabe o risco de ser assaltado permanece latente qualquer esquina em plena claridade, mas também há possibilidade de sofrer apenas sobra de perseguição a assaltante
de
banco
safando-se
dos
tiros
e
tiras
naturalmente. É emocionante! Mas cuidado com essa turma que lê jornal andando principalmente se tem caneta no bolso da camisa: a
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bichinha sai flutuando sem a menor saudade do exproprietário na ponta do jornal e você nem sente! Mulheres passam mal bocado com aquelas bolsonas arriadas no ombro, pois dá pra todo tipo de furto desde dedo leve até trombadinha ou gilete decepando tenazes alças e/ou fundos para liberar a que contém realmente algum. Lojas americanas e brasileiras ruas barateiras de comércio intenso ou supermercados são os locais preferidos da pivetagem. Ali é o seu Éden. Estreitas ruas de pedestres naquele esfrega e roça onde a alegria é aumentada por discos rodando em estereofônicos equipamentos tocados em alto e bom som desde Vivaldi até Jorginho Peçanha ou desde
Strauss até Dominguinhos da sanfona onde a gritaria dos camelôs não deixa margem a dúvidas sobre produtos de venda fácil onde cegos insistem vender gasparinhos lotéricos que não enxergam (taí a sorte grande!) – o pilantra se diverte praticando desde mais tenra idade o trivial variado do crime todo tipo de assalto alguns ineficazes porque nada rendem, mas executados apenas para manter boa forma com se fosse célebre atleta Olímpico. Por acaso em rotina de serviço diário percorri essa malha de malandros e pivetes conseguindo sair invicto com
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todos os objetos nos devidos lugares e de sobra como sobremesa o sorriso mui prometedor de mulata capaz de dar noitada de amor forrada ao estilo baiano não fosse aquele sinal quase inaudível que dizia em estranho Morse cuidado, cuidado alerta perigo, perigo como se fosse a própria rádio-relógio minuto a minuto a hora certa do Observatório Valongo. Às vezes tenho suprema vontade de largar todas essas medidas de segurança – porém reconhecendo como causadoras de ter chegado vivo ao 35º ano de existência – sujeitando-me a ser roubado até a última peça íntima na primeira esquina da Liberdade! O que me prende? O que me impede? Só esse sucesso de cadáver inesperado e só... No
escritório
onde
estou
agora
novamente
a
segurança não é tanta como parece. Sozinho corre-se o mesmo risco não sei qualquer sujeito por pensar eu o cofre anda cheio de dinheiro e – pior – que sei a combinação do dito cujo – não sei nada juro mesmo por Deus! Não atire sou pai de três filhos (duas meninas e um moleque que está fazendo três anos, sabido como só!). Ludmilla, Marcela e Carlos olhem pra cá o papai escrevendo! Carla,
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cuidado com as crianças. Dá uma miradinha no canto dessa revista. Olha eu aqui! Se lembre das recomendações que deixei a respeito de raptores. Afinal não se sabe como farei para que acreditem que não tenho tostão para pagar o resgate dos filhos amados? Vão dizer: façam campanha na TV como pai do Carlinhos e o dinheiro logo aparecem, mas tenho
horror
à
televisão
rádio
esses
sistemas
de
comunicação que noticiam crimes, crimes, crimes. Afinal se não desligarem logo o telefone como nos filmes explicarei direitinho que sou trabalhador como qualquer outro operário que luta para sobreviver na selva de pedra. Sei a vida está difícil bem que poderia ser eu o seqüestrador ou assaltante acreditem não brincaria com caso sério desse afinal são filhos – maior riqueza da vida verdadeira razão da família da tribo sei lá. Não. Não convém puxar assunto problemático-familiar talvez não entendam. Bem mulher, se tivermos cuidado, como até hoje tivemos, talvez jamais seqüestrem os filhos. Afinal pra que? Eles sabem motivos. Mas, dinheiro mesmo não temos. Inda não seu nem pra comprar apartamento pela Caixa ou BNH. Mas, como
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dizia na segurança aparente do escritório tem também o descuidista esse cara que chega indagando por uma firma que ninguém ouviu falar. Se todo mundo estiver alerta muito bem recebe a resposta e sai de fininho, mas estando o pessoal distraído, num passe de mágica, coisas e objetos à mão do sujeito desaparecem. Pode se despedir, relógios e jóias nunca mais! Assim chega a hora de voltar e para evitar subterfúgios e riscos desnecessários ajo de modo diferente como tática: vou até sete e pouco quando malandrecos, pilantras e pivetes estão ocupados ou saturados na pilhagem de suas indefesas vítimas (otários) saio de leve olhando pros lados até o ponto final do ônibus evitando todos os escuros e viajo sentado. É verdade que o risco continua quase mesmo porque tem o cara tarado por assalto a ônibus, isto é, apaixonado por roubar logo onze ou dezenove passageiros embora a coleta seja fraca só duro e desesperado anda nesses ônibus fedorentos esbagaçados que ainda se dignam disputar corridas em alta velocidade somente superados pelos F1 embora a máxima seja estipulada sem sombra de dúvida em 60 km/h. Mesmo assim, com todos os retentores e limitadores de velocidade são capazes de correr mais
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que Copersucar-Fitti com vantagem de não bater no guard-
rail ou derrapar na Curva-3 ensaboada de óleo. Com imagem tão boa vou repetir: ensaboada de óleo. A viagem prossegue com todos sentados juntos unidos num banco apertado e permanentes inimigos. Ninguém ousa conversar com o passageiro do lado com medo de ser o próprio assaltante. Aproxima-se o ponto vou saltar, o Méier se mostra absolutamente igual, a mesma péssima
iluminação
embora
todos
tenham
pagado
religiosamente em dia a Light. Antes mesmo de vencer a conta! Reconheço, porém, o mesmo Méier de sempre apenas com alguns edifícios a mais. Salto no ponto, vou chegando em casa sem me benzer, orando por continuar vivo vivinho da silva. Respirando esse sujo ar cheirando o fedor do rio que passa no fundo do apartamento. E no entanto as borboletas voejam... Só resta chegar beijar a mulher e as crianças saber tudo bem tomar banho ler as cartas à minha espera muitas violadas pelo correio no afã de descobrir alguma subversão na correspondência que mantenho com o amigo Milian Gonzalez residente em Cuba que – como eu – é tarado por xadrez e escreve artigos para revistas do mundo todo. Aliás, vou mandar para ele aquele livro A Ilha que é muito bom.
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Amanhã vou sair de novo por volta das cinco e meia enfrentar o perigo numa sobra e outra lendo manchetes de mortes e assaltos do dia anterior (tragicomédia da qual por pouco escapei) bem delineada e diagramada bastante à vista nas capas de O Dia ou Luta Democrática ou Gazeta de Notícias. Quem sabe chego a tempo e vivo passando bem para assistir a novela Despedida de Solteiro antes que me transformem
num
boneco
ilustrador
de
títulos
sensacionalistas encontrados por aí, numa viela qualquer com a boa cheia de formigas.
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A ÚLTIMA VEZ QUE VI O VERDE
Chegado nesta idade perene – vivido tantos e tantos anos – minha distração predileta é arriar mansamente o peso numa espreguiçadeira e contar histórias para a criançada reunida. A partir daquele exato momento sou, sem tirar nem por, o deus maior daqueles meninos, o mágico e o trapezista de seus sonhos. De súbito sinto-me bastante importante ao constatar o meu corpanzil de quase 2m de altura cercado de moleques por todos os lados com os olhos pregados nos meus, o pensamento, mas que tenso – prisioneiro das palavras que vão saindo misteriosas, as vistas arregaladas, ofegantes, pela ânsia incontida de querer chegar ao fim da história antes mesmo do narrador. Vê-los assim e pensar que, no começo, nos momentos preliminares dos contos, todos discutem e brigam por um lugar mais cômodo, próximo do contador, correndo então alegações de quem havia chegado primeiro, anotando mesmo os minutos, segundos, na disputa de uma vaga bem junto das minhas pernonas – e eu muitas vezes sendo o juiz.
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Aquietam-se estirados ao longo da areia que nos serve de assento – o mar logo ali, jogando na beira da praia suas ondas barulhentas, impregnando o ambiente com o cheiro salgado da maresia. Agora poetas não são mais que estátuas petrificadas, mudas, só a mente a se movimentar frenética no trabalho incessante de maquinar extensões da história, excedendo-se nos exageros, ultrapassando as fronteiras do real e do possível, indo além – muito além – dos fantasmas milagrosos do imaginário. Somente o seu olhar consegue expressar algo mais visível: ora vivo e alegre em conseqüência das brincadeiras passadas nas aventuras; ora triste e pensativo por força das dúvidas e do entrechoque de idéias; ora lacrimoso, quase chorando, de viver na própria carne os dramas transitórios que ferem e magoam cada personagem da história. Seu corpo, imperceptível, vibra a cada emoção sentida, se agita internamente, corre com o herói, movimenta-se todo, mas nada demonstra de forma exagerada. Não terá sido criança completa aquele que jamais sentou no chão para escutar, viver histórias. Igualmente não será jamais homem integral aquele que morrer mudo,
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que não transmitir aventuras e fantasias às crianças, a seus filhos. Minhas narrativas não são extraídas de nenhum livro em especial, nem copiadas das histórias vividas, outras tantas imaginárias – total ou parcialmente – e outras ainda apenas relembramento de algum tempo remoto quando, criança, foram ouvidas do mesmo modo emocionante debaixo de uma mangueira, em lugar onde a luz elétrica ainda não tinha chegado, imunizando-o contra a invasão do rádio (acreditem – a TV ainda não havia sequer saído dos livros de Júlio Verne). As sombras bruxuleantes que a lamparina provocava com sua luz difusa matizavam drasticamente à imaginação do menino as cenas das histórias e, quanto mais emocionantes eram, mais arrepios provocavam diante da labareda que ameaçava apagar ante a mínima brisa que soprasse. Hoje também, antes ou depois de contar – qualquer aventura, as crianças agitam-se em comentários dos sucedidos, contando como poderá ter sido o enredo se tudo corresse de modo diferente penetrando no caminho da própria imaginação, esmiuçando as mínimas minudências
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ou querendo ir além do desenlace como se a história não tivesse começo-meio-fim. E é bem possível que na sua cabeça milagrosa não tenha mesmo – e todos os próximos passos sejam mais um lance a somar à narrativa. Outros, relembrando contos passados, insistem para repeti-los integralmente, muito embora já tenham sido contados mais de uma vez, em todas as suas variantes. É que tem sempre ouvido novo por perto que fica espicaçando de curiosidade provocada pelas citações particulares a respeito de outra ocorrência, que dá até pena não contá-la todinha. E a cada nova narração surge nos entremeios capítulos inéditos da história, acrescidos quase sempre dos comentários e lembranças dos ouvintes veteranos, que se transformam em contadores auxiliares em potencial. Entre essas mais solicitadas está o dramático conto da última vez que vi o verde que, independente, já corre mundo de boca em gozo e fama. E nesse terreno desnudo de vegetações, à beira de um mar poluído e sujo, cobertos – contador e assistentes – por um guarda-sol artificial e algumas árvores de plástico, amareladas e inodoras, atiro a
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memória para trás muito à vontade e cato nos recônditos da infância o cenário e inspiração da história. As
mesmas
mangueiras
que
emolduraram
as
fantásticas narrativas que me fizeram enfrentar e viver a vida com maior intensidade, resistir heroicamente diante da selva progressista de cimento, da investida letal da fumaça e produtos químicos que, enfim, tornaram a Terra como a vemos hoje, pálida, despida de qualquer vida que não a artificial, cadavericamente nua e quase morta física e espiritualmente. Posso assim, transmitir a eles o verde como era o verde, a natureza vívida e intensa – selvagem e autêntica – como era antigamente. Sinto que essa turma, num futuro não distante, é capaz de nem ter mais a imaginação necessária
para
relembrar
todo
esse
fantástico
e
maravilhoso mundo que transmito, pois, nesse futuro (que nem quero imaginar) sua mente pode estar tão embotada e estéril quanto às areias que ora pisamos nessa bola sem cor, desértica e árida chamada Terra. Existia um lugar, distante como outro planeta, que conheci quando jovem e tinha toda a extensão de suas terras
cobertas
de
espessa
e
contínua
vegetação,
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intensamente verdejante. Era a floresta. Suas árvores eram maiores que os prédios gigantescos hoje conhecidos (murmúrios de espanto) e o solo totalmente recoberto com uma grama mais macia eu a pluma do algodão, pontilhado de pequenas plantas, arbustos, que davam flores de plástico reunidas, somando também todo perfume criado pelo homem (sons de admiração). Todas as árvores davam frutos em grande quantidade, ao seu devido tempo, saborosos e sumarentos, fáceis de apanhar, cujas vitaminas continham mais saúde e vigor, provocando uma vida longa e saudável, superiores e todas as vitaminas, proteínas e sais minerais artificiais até hoje descobertos, sem a mínima necessidade de injeções ou prolongados tratamentos internados em hospitais. Os frutos eram tantos e tão abundantes que caíam sobre a cabeça dos – transeuntes à menor sacudidela dos galhos, provocando inúmeros incidentes. Era comum verem-se pessoas borradas de manga, algum ou outro equilibrando
sobre
o
chapéu
um
jenipapo,
gente
escorregando sobre as cascas de bananas e assim por diante. Dava constantemente e o único trabalho que se tinha para saboreá-los era cuidar sempre com carinho de suas árvores... E o de pôr na boca e mastigar c-a-d-a-q-u-
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a-l-m-a-i-s-g-o-s-t-o-s-o
que
outro
(desejos
múltiplos
demonstrados pela salivação excessiva). Naquela saudável selva verde animais andavam livremente sem temer – em sua selvageria – a caça puramente esportiva, que era terminantemente proibida e as autoridades exigiam da população que não os maltratassem – e assim todos viviam como bons amigos. Os bichos eram muitos e dos mais diversos: a onça superpintada que dava uns saltos de 50m de distância; pássaros multicores que mudavam sempre a cor, num lusco-fusco de penas
(dizem que foram eles que
inventaram o arco-íris); o papagaio auriverde-olho-de-fogo falador como o diabo que repetia tudo que se dizia em qualquer idioma conhecido ou desconhecido (exclamações de alegria e resmungos de dúvidas); e também o macaco travesso-de-rabo-de-aço que era bicho de subir em qualquer árvore de tamanho e altura (de tanto fazer pulitricas, diz-que foi quem ensinou aos trapezistas
a
carambola
e
o
salto-mortal
com
a
desenvoltura de quem sabe voar); o cachorro papão-do-mato que ganhava na força do próprio leão;
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o cavalo malheiro-velox que vencia na corrida o coelho; e muitas e muitas coisas que nem eu imaginava nem vocês jamais saberão, pois são antiguíssimas, misteriosas, tantas e incontáveis como os sóis. 23
Naquele
tempo,
sim,
vivia-se
fartamente,
despreocupado, estudando ou estudando, sentado nas gramas dos jardinas a descansar, admirando a maravilhosa floresta tropical, aspirando o perfume das flores, comendo frutos saborosos e espiando a vida alegre dos pássaros exóticos cantando as mais variadas melodias possíveis, a bicharada fantástica- um espetáculo à parte cada vez mais fazendo o absurdo, o impossível. Quase criança, eu via tudo e tudo guardava para contar depois para meus filhos, netos, para contar para vocês. Hoje é cada vez mais difícil a criança ver coisas guardar para contar depois – na verdade pouco tem o que se aproveite... Todos se sentiam à vontade, naturalmente como quem respira o ar puro da montanha, quando faziam essas pausas para ver o verde, admirar as planícies extensas, tão
extensas que sumiam da vista (olhos encolhidos como quem fita o horizonte longínquo). O importante é que todos viviam harmoniosamente, dentro de conceitos humanísticos, alimentando-se também espiritualmente e comendo apenas verdura verdadeira, cujo sabor até hoje os químicos não souberam reproduzir, cereais e leguminosas nascidos diretamente do solo sem necessidade
das
imensas
estufas
submarinas
e
subterrâneas utilizadas pelos contemporâneos para extrair algas alimentícias de sabor horrível, dos milhares de frutas que falei e que até hoje estou louco para voltar a comer (sensações multiplicadas de asco-algas – e desejo – frutas). Certa hora ao fim do dia já se tornara um hábito todos pararem de trabalhar, de estudar ou rezar – de fazer o que faziam – para o outro em profunda meditação, se comunicavam conversando, trocando palavras amáveis, como se fosse uma multidão de há muito conhecida – embora muitos se encontrassem ali pela primeira vez. Delicadeza e carinho para com o próximo, abraços, amor, felicidade, tudo encontravam admirando o verde, em busca de um lugar mentalmente mais verde ainda, mais
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intensamente
verde,
para
poder
fitar
as
folhagens
demoradamente em êxtase, como se adivinhassem – que tudo aquilo poderia desaparecer num repente, de hora para outra (olhos se aprofundando nos meus ante a intensidade da narrativa). 25
E depois iam homens, mulheres, crianças, velhinhos e decerto também os animais, se recolherem a seus lares sossegados, com a consciência tranqüila de ter visto o verde, tal e qual acontece com os anjos no céu: dizem que os anjos só ficam calmos e tranqüilos quando vem o branco em toda a sua alvura. Todos descansam, então, um profundo sono, de paz, do muito de paz que existia naquele mundo distante. Porém, pouco tempo depois começou a aumentar gradativamente o número de pessoas que deixavam de ver o verde, de amar a natureza. Não tinha (ou não encontravam) mais tempo para admirar os pássaros e os bichos alegres e aloucados pulando em piruetas nas selvas. Os homens, ao invés de procurar a natureza, preferiam agora ficar brigando entre si (coisa que nunca fizeram), discutindo sobre coisas menores, procurando
rixas
com
seus
semelhantes
por
tudo
de
menos
importância, tomando violentamente terras e pertences dos outros, matando e mandando matar adversários reais e imaginários – muitas vezes o próprio irmão, gente da mesma terra. 26
Ninguém mais possuía direito, era só a força a violência destruindo e matando a natureza, assassinando a fauna, extinguindo a flora, tudo para alçar ao poder, à glória.
O
resto
perdeu
o
significado
(tristezas
demonstradas). O verde – que um dia fora a própria bandeira do lugar, o símbolo e santo padroeiro – ninguém respeitava mais o verde. Cada vez mais nada em seu redor. Todos iniciaram através de feituras de decretos e editais, por intermédio de leis e regulamentos mesmo os mais absurdos, a busca doentia do poder, da fama, do dinheiro. O povo começou a pagar tudo, cada taxa com um nome de fantasia: taxa do verde, para quem ainda quisesse vê-lo; taxa do lixo, pagavam todos os que consumiam alguma coisa, taxas de oxigênio e espaço, para os que respiravam muito e caminhavam mais ainda, só faltava
mesmo uma taxa celestial, mas – diziam – já estava em preparação. Os mais puros preocuparam-se em fugir de tudo isso, das lutas insanas que ocorriam entre o povo sem qualquer aviso, a qualquer momento matando e arrasando tudo. 27
E não era somente matança de guerra (tremores internos em cada um dos ouvintes), utilizavam também lutas químicas, produtos das fábricas – que tomaram o lugar e o espaço do homem em nome do progresso; luta de idéias destrutivas das máquinas e dos arranha-céus contra a população, contra o cérebro, contra seu amor, sua alma. A confusão – chegou de súbito e tomou conta de tudo e de todos. E ninguém mais viu o verde... (soluços). Nesse desespero confuso eu também fui envolvido no caos, levado pela onda, esqueci completamente o verde. Abandonei toda riqueza adquirida na infância – de repente me tornei adulto, larguei de lado a grama na qual muitas vezes corri tentando abraçar o vento, correr mais que ele. Desisti de ver as flores se abrindo e tudo perfumando no mistério indecifrável da natureza, de cheirar o seu aroma, de admirar o incomparável colorido das pétalas e das folhas. Deixei afinal de apreciar e comer os frutos deliciosos e as verduras tenras.
Não mais tinha visto o bicho macaco repinicar de galho em galho nas altíssimas árvores, a onça correr em pulos quilométricos até a beira do rio para, sedenta, beber água unto com uma lebre, até o papagaio – falador de nascença e de costume parou de tagarelar, ficou mudo e triste. Quando tive tempo, um tempinho só roubado aos afazeres, e fui me mirar no reflexo das águas límpidas do rio o que vi? Os meus cabelos estavam brancos, minha pele se enrugava toda, meus braços pesados e cansados e as penas flácidas e sem força. De quê? Se eu não tinha mais corrido na relva? Se não tinha mais subido nas árvores
para
apanhar
frutas?
Se
não
tinha
mais
mergulhado nas águas – translúcidas dos rios e mares? De quê? Acordado desse jeito, brutalmente acordado de um pesadelo, voltei-me para a floresta querendo olhar tudo de novo e o que vi fez-me chorar. Naquele exato momento o verde
estava
desaparecendo
totalmente
(surpresa).
Primeiro as árvores foram ficando nuas, desfolhadas, os troncos
secos
como
os
braços
dum
esqueleto,
transformavam-se primeiro em rocha e depois as folhas
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amarelecidas e sem viço viravam pó; os frutos caíam desamparados e logo apodreciam exalando terrível mau cheiro. As flores? Nem se fala. Nenhuma tinha algum perfume para dar, sequer uma cor pálida para oferecer aos olhos cansados. A natureza toda morria. Os pássaros à toa desabavam no chão e ficavam tremelicando em estertor até morrer (lágrimas brotaram nos olhos). Os bichos, coitados, davam um passo e morriam, viravam pó no mesmo instante, a terra seca transformava as águas dos rios em vapor e todos foram secando, secando, secando (soluços demorados), tudo morrendo e desaparecendo da vista. Olhava para o céu, em redor, nada. Nenhum ser vivo, nenhuma cor, nenhum perfume, nenhum grito, tudo inanimado, nenhum verde... Foi aí nesse momento que alguns homens bons que sobraram se reuniram e num derradeiro esforço viajaram para esta terra numa caravela de prata.
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A VIA CRUCIS DE MANFREDO PINTO, MAIS CONHECIDO PELA ALCUNHA DE XUÉ Conheci Manfredo, ou Xué, se preferirem, de um modo curioso: ele tentou bater minha carteira quando eu subia para o ônibus. Ri e falei algo assim como que é isso cara, também tou numa de pior e ele também riu, disfarçou, foi saindo de fininho. Depois, muitas vezes o encontrei se virando na punga. Volta e meia a gente se esbarrava, ele livrando a minha cara e eu entendendo porque ele dava essas tremendas cambalhotas. Entre um pinote e outro, paramos lado a lado num bar e tomamos alguns chopes. Provoquei Manfredo (não consigo chamá-lo Xué...) sobre sua vida. Ele riu, cheio de trejeitos e gírias, ora minha vida, chapinha, é como a vida de inúmeros pivetes que se defendem da vida por aí. Na verdade ele começou na Praça XV vendendo balas, mariolas, amendoim, nos ônibus e nas filas. Ajudava a mãe com aquela mixaria, que não dava nem pro leite, mas ajudava pensando estar no caminho. Afinal, vários
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colegas seus também vendiam balas pros outros, alguns eram explorados por maiores e daí por diante. Em resumo, Xué ficou nessa vida até os sete ou oito anos, quando um moleque ponderou com ele, cara, isso não é vida, você ficar dando essas mixarias pra sua mãe enquanto os gordos andam por aí com as carteiras recheadas de barão. Manfredo foi e se juntou a um grupo de pivetes para trombar os coroas pelas ruas. Andavam em enxames escolhendo as vítimas. Os mais idosos eram eleitos porque a reação é mínima. O grupo cercava o banqueiro em brincadeiras, um agarrava os braços do otário, outro metia a não nos bolsos e tirava fora o cofre receado de grana. Corriam em desabalada carreira por entre os carros do trânsito intenso, onde ninguém mais se arriscaria, e a reação se limitava a lamentos, foi aquele, foi esse, roubaram, bateram a carteira. Daqui a minutos o grupo tinha sumido no lusco-fusco à cata de uma nova vítima, feita a racha em partes iguais para todos.
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A coisa ficou preta pro lado dele quando um dos moleques usou um canivete para quebrar a resistência de um velho, não era tão velho assim. O velho recebeu a cutilada, bambeou prum lado e pro outro, e só então largou a carteira. 32
O corre-corre do grupo foi mais agitado, cada um por si diante da gritaria de transeuntes. Um dos pivetes não conseguiu fugir e foi massacrado pela multidão. Xué dias mais tarde foi preso, alegou ser menor de idade, mas antes que provasse qualquer coisa levou mais uns catiripapos dos tiras, uns sugeriram até o pau-de-arara. Foi mandado pra FUNABEM. Antes de ser corrigido, antes de aprender qualquer ofício, como dizem, fugiu. E fugiu de modo clássico, sem atropelos, pela porta principal, com um monte de jornal velho debaixo do braço, com uma farda da Casa dos Pequenos Jornaleiros. Ainda teve o desplante de oferecer um jornal pro guarda da guarita ler, que aceitou sorrindo. Daí em diante, de novo livre, resolveu agir por conta própria,
dando
pequenos
golpes,
pequenos,
mas
garantidos e sem grandes riscos. A punga, um ou outro
furto pequeno, puxar carangos. Nas horas difíceis teve mesmo de pedir comida. Outra vez foi preso, teve que subornar o guarda, mesmo assim levou umas bordoadas pelo chavelho antes de ser solto. Um dia qualquer, resolveu voltar pra casa, deixar algumas poucas coisas pra velha mãe. Evitava voltar a casa justamente por estar prejudicada, certamente vigiada pelo pessoal da FUNABEM. Mas mirou pelas redondezas, não viu tira nem sujeito suspeito e arriscou. Soube pelos novos moradores do barraco que a velha tinha morrido e sido enterrada como indigente. Sacudiu os braços indiferentes, aceitou o cafezinho oferecido e deixou alguma grana pro pessoal mesmo, gente da igualha da mãe, da família. Pela audácia e segurança andou pintando nas páginas policiais dos jornais especializados. Primeiro surgiu o provavelmente alcunhado de Xué, depois foi identificado e o seu boneco apareceu radiante num canto da página criminal Alguém tentou incriminá-lo com assassinato, mas ele pediu prum amigo fazer uma carta pro jornal desmentindo
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tudo. No seu modo de agir, nada de violência, nada de mortes. (Confessou-me, porém, que um dia teve de dar porrada num cara, mas para se defender. Era eu ou ele). A liberdade entre os marginais é vendida caro, bem caro mesmo. Para não se preso tem de dar propina pra guarda, polícia, delegado. Para se solto tem de morrer nas mãos dum advogado qualquer, desses que ganham a vida soltando criminosos. De um modo ou de outro, melhor é não se preso. Hoje Manfredo vive bem vestido, não me contou os golpes que ele anda dando por aí. Bem vestido em termos, em comparação com os velhos tempos da Praça XV, Lapa, Praça Mauá e adjacências, Morro da saúde, e das fugas para os bairros distantes, Jardim América, Austin, São João de Meriti, até as coisas esfriarem. Volta e meia é apanhado, levado prum canto da cidade e surrado, roubado, até que os policiais que o prenderam resolvam largá-lo num beco qualquer, em lastimável estado. Uma vez andou toda a noite dentro de um camburão.
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Pensou se era coisa do esquadrão da Morte, se iam largá-lo perfurado que nem peneira lá pras bandas do Estado do Rio, Nova Iguaçu, por aí, pendurado num cartaz de caveira, talvez com montão de dizeres indecentes. Esse não rouba mais nem estupra mocinhas. Eu era puxador de carros: não roubo mais. Não farei mais viciados na família brasileira. Coisas tais. Aí então será manchete de jornal. Mais que uma foto num cantinho qualquer, o corpo perfurado, sangrando, a boca cheia de formigas. Duas, três, colunas unicamente dedicadas ao seu currículo, o passado de menino sem pai, o pivete atrevido, a fuga ousada da FUNABEM, as outras fugas, as torturas sofridas, o fim. Pra quem num tem nada na vida, até que não é mal, diz com um sorriso e sai gingando malandramente o corpo. Tchau Xué!
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BANHO DE SANGUE As notícias dos jornais dizem que estamos em guerra. Ao meu lado rasteja um companheiro na lama. Outros avançam lado a lado. De repente uma explosão terrível e na cegueira da lama todos desaparecem. Fui salvo por um pedaço velho de ferro que protegeu o meu corpo. Misturadas com a lama, vísceras e pedaços de carne envolvem-me a cara e me sujam a roupa mais ainda. Passo a mão e vou em frente. O sol reflete na banca onde revistas e notícias são consumidas pelo povo que passa. Uma senhora já de idade tenta atravessar a rua naquele local e é atropelada por um caminhão que prossegue velozmente. O seu corpo ainda estremece. Fazem roda em torno do cadáver, tudo circula à minha frente e se confunde com a página de crimes dos jornais. Pela manhã no bar a classe média se acotovela pra tomar café com leite, pão e manteiga. Os carros já estão estacionados nas calçadas e os guardadores fazem a vida. Os primeiros jornais e revistas tomam lugar nas bancas de lata. Foi um corpo que caiu do décimo quinto andar do edifício sobre o bar. Todos se voltam em direção à porta e
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lá está o corpo espremido entre dois veículos. Corre-corre, gritaria. Incólume do vômito bebo o meu café e parto apressado. É hora de assinar o ponto. 37
As fotos coloridas enviadas do Vietnã tornam comum à nossa distante visão as chuvas de bombas, balas, torturas e corpos lacerados sem distinção de sexo ou idade. Mas jamais saberemos da dor, pois não é na nossa própria carne. O trem parte veloz das estações, cada vez mais carregado de passageiros. É comum ler durante a viagem, mesmo em pé, segurando o jornal com uma só mão. As notícias voam como os vagões. O ritmo é o mesmo durante todo o percurso. Só se ouve o pacatá, pacatá, pacatá das rodas sobre o trilho de aço. Passou rápido pela estação de Todos os Santos. Ao pé do poste, na calçada, ficou um corpo estirado. A dois metros uma banda de cabeça, no corpo o cérebro esbranquiçado exposto. Na estação de São Cristóvão, dois, trens superlotados se cruzaram. O barulho constante não deixou ouvir o baque dos corpos.
Eles caem silenciosamente como anjos. Quando os trens desapareceram na curva ficou uma estrada de corpos, pernas e braços separados, troncos desfeitos, cabeças despedaçadas no encontro violento com as pedras do chão, no choque anormal do corpo com o aço. O trem seguiu viagem. Comi feijão no jantar e tive um sono agitado. Perseguições, facadas, cabeças decepadas coando em câmera lenta numa Praça de Bagdá. Meu filho, que está na idade de subir em todos os lugares, foi até a janela e despencou lá embaixo. No telhado de amianto ficou somente uma mancha vermelha. De manhã felizmente ele acordou a todos nós gritando do berço, como é normal. Na cabeça, uma dor de cabeça... No espelho a minha cara arruinada alertava para o cansaço de tudo. Ao fazer a barba, cortei-me com a gilete: o sangue pingou na pia e foi levado pela água velozmente. Na trilha do rumo para o serviço um videoteipe nos acompanha até a cidade (corpos estendidos na via férrea como roupas nos varais). Um operário de construção não espera o repórter e cai do undécimo andar logo no começo
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da manhã. É uma notícia ao vivo que os leitores de jornal de banca lêem na horinha. Três assaltantes tentam roubar uma joalheria: dois ficam estirados, um morto outro ferido e xingado. O terceiro, um japonês, conseguiu fugir com todo o roubo. Um guarda de segurança baleado recebe uma miséria por mês. Um atropelado, um pouco menos.
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ESTAMOS EM GUERRA! Afirmam garrafais as manchetes penduradas na bancas.
Será essa a guerra? Em Miami um negro
entrincheira-se num telhado e começa a matar os brancos que passam. Cercado pela polícia resiste até a morte. Matou dois policiais e vário transeuntes. Foi fuzilado e até hoje a polícia – não crendo que um homem só pudesse fazer tudo aquilo, busca dois supostos cúmplices. Nova York. Três negros são surpreendidos num assalto a uma loja de artigos esportivos. Bem municiados sustentam violento tiroteio com a polícia e só se entregaram quando um companheiro morreu e a polícia garantiu um tratamento mais humano, que certamente não terão. Em Topeka um negro bate nas residências de porta em porta toda a extensão da rua. Mata sem explicação todas as pessoas que atendem ao chamado. No fim da rua, sem contar o número de vítimas, enfia uma bala na cabeça. Estes fatos aparentemente isolados são elos de uma cadeia e prenunciam uma nova era nas violentíssimas relações entre negros e brancos americanos.
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Obrigado a recorrer cada vez mais ao extremismo, ao radicalismo, para fazer valer seus direitos e aspirações, o negro expõe assim a falta de crença nas promessas sempre renovadas do poder branco que, não podendo apelar para o extermínio indiscriminado. O negro – ao contrário do índio – aonde chega impõe seus costumes, sua música, sua presença enfim. Utiliza-se uma contínua repressão e opressão sociais para mantê-lo no seu lugar. Com a assinatura do acordo de paz no Vietnã e a conseqüente retirada dos contingentes americanos, os EUA deverão sofrer uma incontrolável poderosa onda de violência negra; os soldados negros não receberão da sociedade a que serviram algo que signifique recompensa ou honesta compensação pelos serviços prestados a Tio Sam, nos campos de batalha. Sem acreditar (muitas vezes sem mesmo aceitar) que as perspectivas modifiquem o status; sofrer na carne o problema do desemprego, opressão agressiva, fome, marginalização; adquirir consciência da sua força e de que, pelo menos na guerra, foi considerado igual ao branco; falta de meios para expandir a força e a virilidade próprias da raça, são problemas que o negro dá e que a
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administração Nixon terá de enfrentar a partir da próxima primavera. O acordo de paz para o Vietnã repatriará os soldados negros
americanos.
Que
encontrarão?
A
família
eternamente em dificuldade financeira, a vida difícil, mais um ou dois delinqüentes, viciados, a indiscriminação cada vez mais sólida e sanguinária. Eles não acreditam mais em garantia individuais, tratamento mais humano ou na igualdade sócio-racial – velhos jargões empregados para adiar indefinidamente o racismo. Como no Vietnã, o negro vai partir para a luta de vida ou morte. Os soldados negros retornarão aos EUA no próximo verão – e com eles a violência sem tréguas (até a morte)... E o fogo. Eis que estou na guerra. Obuses e bombas passam sobre mim, luminosas, para logo depois explodir. É noite. Estilhaços e detritos caem e por vezes me machucam. Algumas bombas zunem e soltam um apito como as de São João. Porém, têm uma explosão muito mais violenta e destruidora. A noite quase se faz dia com tanta iluminação.
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Estou encolhido, o capacete como que protegendo o corpo todo. Raramente abro os olhos e quando o faço vejo meus colegas ao lado igualmente procurando proteção. A qualquer momento um daquelas bombas pode cair em cima da gente. Pum! E voamos pelos ares em peças miúdas. Agora temos que avançar um pouco. Não tenho a mínima coragem de me mover. Sinto-me enregelado, duro. Vejo meus colegas deslizando como cobras, o que me anima a avançar. Não sei se o medo de ficar atrás só ou se o desejo de igualar-me a eles. Avanço. Na frente diviso algumas trincheiras cavadas na terra. Uns mais adiantados já dão uns passos rápidos e atiram-se dentro delas. Somos poucos os retardados. Estou a poucos metros da vala à minha frente. Consigo apoiar o cotovelo, levanto-me rápido e logo estou abrigado dos estilhaços. Somente, porque a ameaça da bomba cair é a mesma. Ainda bem que ninguém tem coragem de lançar uma bomba atômica.
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Sinto arrepios e mais medo. Conversam. Não sei como conseguem abrir a boca. Um fuma. A coisa ta preta! Vem o sargento e ordena que a gente avance. Reconheço que consegui descansar um pouco. Demoro. Logo saio e de novo o ribombo se faz presente e mais real. Vamos agora, fuzil na mão, andando a passos largos, rumo a um matagal que está à nossa direita. Alcançamos o nosso objetivo e penetramos dez metros adentro. Súbito um metralhar sobressai-se aos ruídos fazendo-nos jogar o corpo de encontro ao solo, como que colado. Um companheiro demora a cair. Está morto. Mantemos silêncio. Alguém nos vê sem ser visto e leva esta vantagem. Agora o medo desaparece e a mecanização do cérebro funciona. Procuramos nos abrigar para que o movimento do corpo seja livre. Alguns se levantam e avançam lentamente. Logo após estamos todos nos movendo à procura do livre-atirador. De novo o metralhar que já não nos pega de surpresa e sim prevenidos. O fogo se fez ver através da folhagem e
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é para lá que dirigimos toda nossa artilharia. Outros aproveitam e aproximam-se cercando todo o local. Cessamos o ataque, pois já estamos na área inimiga e não se ouviu outra reação qualquer. Localizamos os cadáveres fuzilados. São três e mais uma metralhadora pesada. Pode haver outros, mas geralmente são deixados pequenos grupos para retardarem o avanço de tropas. Julgamos se dessa classe os mortos, sem abandonar a cautela. O sargento manda parar. Escolhe três soldados e um cabo para um exame da região. Duzentos e trezentos metros á frente. Ficamos à vontade. Ordem pra fumar escondido. O sargento também fuma. Alguns já cochilam encostados nas árvores. Estamos longe de nossa terra nata. Lá é paz. A lembrança às vezes nos faz chorar. A terra aqui é diferente, o povo é diferente. Os campos são alagados e o solo é todo úmido e fofo. Algum ou outro arrozal, sempre extenso, faz-nos lembrar a pátria. O arrozal lembra outro arrozal, um milharal ou um canavial.
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Víamos tudo isso, cada um em sua região em nossa terra que dá de tudo. A gente daqui é esquisita e não entendemos o que eles falam. Parecem amistosos, mas são por vezes estúpidos e brutos. É a eles que defendemos e lutamos e morremos. Por isso é insuportável que alguns deles alimentem ódio por nós. Esses têm da gente a mesma idéia que nós temos do inimigo. O inimigo é de pedra. Estamos isolados do mundo. Agora mais isolados ainda. Somente o nosso rádio se comunica com o acampamento central, que deve estar longe. Nada nos autoriza ao retorno. Voltar para onde se a nossa retaguarda é só desolação? No acampamento, me lembro, a gente recebia cartas. Muitos choravam, outros riam. Não eu, que não recebia carta, não chorava nem ria. Pelo menos fazia parte da tristeza e alegria dos outros. Hoje, duas semanas fora de lá, estávamos mais desanimados quanto a um retorno breve.
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CORPO MORTO Todos os dias de manhã cedo meu corpo se levanta, cansado, murrinhando o lamento de abandonar os lençóis amarrotados. Reclamando, às vezes dolorido, o corpo vai ao banheiro, joga água e sabonete no rosto para despertar mais completamente, mira no espelho a cara de sempre, como todos os defeitos à vista. A língua com a superfície esbranquiçada por uma pasta amarga que sobe do estômago reflete as revoluções, logo traduzidas em arrotos, que vêm da barriga. Esfrega, contrariado, uma escova com pasta dental na boca e repentinamente o amargor se transforma num gosto ácido perene. O corpo caminha para a mesa onde está servido o café com leite, pão e manteiga. O radinho de pilha transmite a voz apressada de um locutor madrugador que a todo instante dá horas. Agora é o gosto do café com leite e o ruído intermitente do rádio que ocupa todo o espaço e comanda os reflexos do corpo. O corpo arruma-se para sair, os pés caminham apresados demais, além do exigido. O corpo já é dono de
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si mesmo, sabe todos os itinerários a percorrer diariamente que, com pequenas variações, são exatamente os mesmo. À porta o corpo dá um beijo na mulher que fica acenando um adeus de até logo mais. Depois disso, mais ou menos um quilômetro de calçada é percorrido até chegar ao ponto do ônibus. Já foi tempo que o corpo andava mais um pouco, até a gare do trem, para encarar o difícil trajeto para o trabalho. Agora, o corpo mata o trânsito viajando de ônibus com as dificuldades, somente um pouco atenuadas pela limitação do veículo, e a viagem é feita em uma hora, num percurso que normalmente seria coberto em trinta ou quarenta minutos. A monotonia da paisagem estratifica o corpo até seu destino. Ali o corpo salta e vai caminhar mais um quilômetro e meio em busca da inconfortável cadeira onde, diante
da
máquina
de
escrever,
ele
esquecerá
o
desconforto de viajar em pé, levando empurrões e sacolejos, tenso, ante a expectativa de poder sentar um pouquinho só para relaxar as pernas e os braços.
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Antes de subir o corpo toma mais um estimulante cafezinho. Mais uma vez o estômago é sacudido pelo líquido preto e reage em revoluções que o corpo aceita normalmente. Agora é o elevador velho de madeira, a porta batendo violentamente toda vez que abre e fecha, os comentários despropositados que são obrigados a escutar, um cigarro difícil de aturar num recinto tão diminuto. No ônibus já fora violentado pela fumaça dos cigarros. E no elevador, como no ônibus, as proibições são afixadas à vista de todos. Corpo nenhum quer saber de punições; se pedir com carinho e malícia, todo corpo cai no engodo, mas, se vier com ameaças, a reação prontamente se faz sentir. O jeito então é agüentar a fumaça e ainda chegar relativamente bem disposto no escritório. No escritório: escreve, escreve, fala ao telefone, fala ao telefone ouve os carros buzinando e os motores roncando lá embaixo, motores roncando e buzinas tocando, fala com os chefes e patrões, fala com os colegas, escreve, escreve.
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Ao meio-dia (ou mais ou menos), ao corpo sofredor, é o jeito ariscar a vida numa lanchonete qualquer onde os pratos comerciais sempre são azia, indisposição, má digestão, que o corpo galhardamente absorve numa química que atravessa os séculos sempre em contínua mutação.
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Graças a essa persistência o corpo tem mantido seu formato humanídeo, mas sua vida a cada século que passa vai
diminuindo:
já
não
se
vive
100
anos
como
antigamente... Novamente um cafezinho encerra a missa: andar, andar, andar. O corpo anda até retornar ao escritório. Ali a prisão está conformada, o confinamento oficializado
pelos
horários,
a
condenação
cumprida
lentamente pelas obrigações. É o corpo perdendo o poder, entregando a direção a terceiros. O corpo diz que manda, mas na realidade oculta mau e porcamente a sua eterna fraqueza. Escreve, escreve, escuta o tintinlar das campainhas telefônicas, tintinlar, trimtrim-trim, lá embaixo o ruído, subindo lentamente agarrado nas paredes precipiciais dos edifícios, ruído, ruído, subindo, fumaça, fumaça, subindo. Passa assim meu corpo toda a tarde todo o dia. Lá pras cinco, seis ou sete horas o corpo tenta por em ordem a desarrumação até o dia seguinte.
Uma breve arrumação na aparência também é efetuada. E o elevador repete inversamente o disparo matinal:
15-14-13-12-11-10-9-8-7-6-5-4-3-2-1.
O
corpo
novamente arrisca a vida, aumenta o desgaste físico enfrentando o adversário matinal – o ônibus. Parece que tudo ocorre ao contrário. Agora a viagem é noturna, mas o veículo continua cheio, o trânsito insuportável, os ruídos ameaçadores, freadas bruscas, solavancos, sacudidas pra lá e pra cá, os pés doloridos e quentes, o corpo clamando por um chuveiro, água abundante, uma comida singela, o carinho da mulher e a cama. Finalmente a cama já de reparar parcialmente as energias dispersas pelo mundo, mas, antes, o corpo ainda tem de aturar todos os noticiários da TV, as novelas mágicas como gêmeas, os filmes em c-a-p-í-t-u-l-o-s intercalados por intermináveis propagandas. Fustigado na rua, fustigado desde que desperta, o corpo tem medalhas heróicas pregadas no couro do peito. Só um refinado herói pode resistir a todas as torturas que lhe são oferecidas, começando pelo despertador.
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Depois o ônibus, os jornais, a política que maltrata os corpos, os homens, os olhos, depois o escritório, o trabalho e a política que explora os corpos, depois um breve almoço (passo certo para o cemitério), uma breve sobremesa, um breve cafezinho, e a volta ao escritório – onde todos os males renascem, depois de uma tarde, de novo o ônibus, o retorno, as fotos andando de trás para frente, depois, em casa, o banho, a TV, o jantar, o café, os filmes, os comentários breves, a cama. O amor. Enfim, o corpo ama, o corpo ama. Difícil descobrir o percentual de amor consumido pelo corpo, estatisticamente, durante a existência. O amor. O amor. O amor...
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ELIZA – BETE 45400Y (UM PASSO CURTO PARA O FUTURO) Eliza-Bete 45400Y dirige-se cadenciada pela esteira luzsegurança até o Ponto OE-3, ônibus elevado, a caminho de retorno para seu ovóide. Contatou o marcador espaçotempo individual e atestou um registro: estava adiantada fração secundária em relação ao horário fixo do OE. Era uma lástima ter que expor-se assim, se sujeitando a sofrer acidentes, etc. As divergências de horário-tempo desobrigam o indivíduo da proteção oficial. Toda vez que visitava sua superiora-mãe Eliza-Bete 45400Y sofria percalços no trajeto, naturais na vida atual, culpa do Governo Geral que ainda mantinha cúmulos residenciais fora das cúpulas cidades. De
repente,
sem
que
houvesse
aviso-alarma
antecipado, um foco luminoso lilás vindo de algum lugar superior cercou-a. Imobilizada, Eliza-Bete45400Y iniciou ascensão espiralada corporal antes que tentasse ameaçar qualquer protesto de defesa. Não teve tempo sequer de utilizar
as
botas
permanente ao solo.
de
sola
magnética
para
fixação
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Já no alto, em lenta e continuada subida, Eliza-Bete 45400Y apelou para o sistema primário de socorro. Estava neutralizado. Acionou o canal de alarmas para qualquer situação sem nada conseguir de positivo. A ação tinha sido eficientemente preparada e quem estivesse por detrás disso tudo conhecia perfeitamente todas as técnicas individuais defensivas da Terra. Arrependeu-se de não ter solicitado imediatamente ET, Emergência Total, pois não avaliava mesmo a extensão do perigo, quando teve plena consciência de sua vulnerabilidade. A Regra Geral de Salvamento ordena rigorosamente a seqüência de apelações em caso do socorro e quem desobedece ao número de continuidade acaba multado e ficando sem proteção oficial do estado durante 1,869 tempo/hora ininterruptamente. Pânico parcial. Lembrou a respeito uma antiqüíssima portaria – Legal cuja brutalidade de texto abandonava os pedestres à mercê dos motoristas, inocentando estes totalmente de crime de morte por atropelamento, quando o sinal verde autorizava o livre trânsito aos veículos rasteiros
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de quatro rodas, mesmo se o pedestre caminhava sobre faixas de segurança (?)... Eliza-Bete 45400Y completou vôo dando entrada num veículo espacial até agora mantido fora de visão e oculto as esteiras de fog. Olhou uma última vez a Terra envolta na atmosfera
poluidora
(o
OE
neste
momento
parava
automaticamente no Ponto OE-3 atraído ainda pelo calor do corpo de Eliza-Bete 45400Y), lamentando mais esta inconseqüente visita à sua superiora-mãe – pobre, viúva, desconhecida, que vive obrigatoriamente no ambiente selvagem, mortalmente hostil, fora das cúpulas cidades. Uma última esperança mantinha Eliza-Bete 45400Y ativa: o pedido ET, emergência total, permanece captável durante uma semana-tempo na superfície terrena. Depois os sinais são eliminados pela destruidora poluição sonora. Eliza-Bete 45400Y acompanhou passiva um falso sistema diário manhã-tarde-noite e quando a escuridão artificial chegou adormeceu profundamente. Acordou de um sono tranqüilo e reparador de emoções num ovóide idêntico ao seu, em todos os pormenores, o que a fez agir imitando os cotidianos dias
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terrenos. Após a preparação mental matinal, acompanhou os sinais de ginástica emitidos por um receptor vídeo TV; em seguida tomou uma ducha monazítica quente-fria simultânea; logo depois à refeição-1. Tudo como em seu ovóide. 56
Ninguém apareceu para falar o que deveria fazer ou para servir alimentação. Tudo ia surgindo em seu tempo eletrônico-automático através do som direcional. A mesma transmissão autorizava Eliza-Bete 45400Y a agir com paciência, passiva e obediente. A seguir, recebeu vestuário pessoal e foi levada a passeio pelas salas de saúde. O trânsito compreendia limpeza corporal, purificação da mente e primeiros contatos com a natureza controlada e ar purificado artificialmente. Estava num mundo parecido com o seu, numa perfeita reprodução, sem dúvida. Entardecia (sistema normal manhã-tarde-noite) quando Eliza-Bete 45400Y retornou ao seu ovóide, tendo feito as refeições 2-3-4 em locais diferentes. A comida era gostosa, com o sabor levemente picante, como a comida do antigo território do Suriname... A refeição pré-noturna teve som direcional livre e Eliza-Bete 45400Y pode escolher música, cores e sons de
seu gosto. O prato predileto – paella com mariscos naturais, lulas plásticas espanholas e frango artificial primitivo, teve acompanhamento de vinho rosado velho, safra 1900, época em que as videiras estavam a caminho da primeira mutação, desde milênios, Ainda podia lembrar o sabor natural do vinho, do qual o Museu da Forma e Sabor
possuía
espécimes
catalogados
e
diversas
variações. Eliza-Bete 45400Y ficou feliz por não ser obrigado a beber o acre resultado emitido pelos repetidores químicos. Depois da refeição #5 acompanhou o noticiário do vídeo TV. Era notícias terrenas atualizadas transmitidas pelo Canal Oficial, o que deixou Eliza-Bete 45400Y ainda mais intrigada sobre o que iria acontecer em seguida. Até agora permanecia na total ignorância. O noticiário universal não anunciou qualquer nova beligerância contra os terrenos nem qualquer invasão da Terra por parte de seres guerreiros. Um ou outro Conselho Universal participava de reuniões e expedições científicas para normais e almas-físicas, todas pacíficas e em cooperação.
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Quem quer que fosse a havia raptado com violência, mas até agora não tinha demonstrado nenhum sentido belicista no tratamento. Parecia mais que tinha sido convocada para alguma experiência ultra, mesmo uma pesquisa perigosa poderia estar sendo feita ou alguma missão que exigisse sua presença, embora não tivesse oferecido voluntariedade alguma. Casos idênticos tinham ocorrido e muitos eram levados a debate nas sessões de Direito Individual. Nessas ocasiões sempre eram criados novos artigos nas leis de Direitos humanos, os quais logo seriam desrespeitados. Poderia mesmo estar a serviço de terrenos, não obstante o risco que corriam à vista de rígidas punições com que eram ameaçados. Tentou se lembrar dos inimigos da Terra e deparou com mais de uma dezena – dos conhecidos e desistiu de saber qual deles era o responsável pelo rapto. O melhor mesmo seria deixar as coisas acontecerem até surgir algo, uma oportunidade de livrar-se daquele pesadelo, levá-la a alguma saída. A esse respeito fora instruída rigorosamente e assim deveria agir. Lembrou-se das aulas e conferências sobre o controle dos sentimentos individuais e ficou mais dona de si.
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Ao correr do pensamento vieram as discussões em que o tema versava a respeito do amor, sentimentos paralelos. Todos chegavam à conclusão que o amor era um problema superado – um sentimento cuja decadência atingiria o mais baixo grau. Não preocuparia a humanidade mais que o ódio, a aversão, o egoísmo, a repulsa, a ganância
e
outros
sentimentos
cuja
periculosidade
fustigava constantemente a turbulenta Terra. Por isso, Eliza-Bete 45400Y nada sentiu durante o rapto,
permanecendo
no
ovóide
e
no
mundo
do
conquistador tranquilamente. Não reagiu com palavras e gesto violento não tentou uma fuga desesperada. Todos os gestos eram frios, medidos, na busca de uma solução que lhe fosse favorável. Antes de se deitar Eliza-Bete 45400Y tomou mais um banho (desta vez espontânea). Acomodou-se e já havia relaxado pra o sono quando começou a acontecer algo. Os sentidos, que Eliza-Bete 45400Y mantinha em constante alerta (não podendo recorrer a expedientes artificiais utilizava formas primitivas que fugiam ao controle técnico), foram distraídos pela música direcional lânguida que havia sido introduzida na sala sub-repticiamente.
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Agora um perfume erótico começava a invadir o ambiente e seu corpo era envolvido por esferas invisíveis de carícias. Há muito Eliza-Bete 45400Y não sentia tais sensações. A educação central eliminava totalmente a carícia quando da campanha universal de controle da população. Uma onda de calor percorreu todo o corpo como se fosse uma labareda de fogo, uma língua ardente. ElizaBete 45400Y estava sendo excitada para o amor de uma maneira desusada, através do despertar erótico-sensual: som, perfume, carícias, beijos. Apesar de ter recebido instruções de defesa para neutralizar tais ações, sua resistência fraquejava ante o inesperado ímpeto do ataque. Estava se tornando um simples animal, como os/as putas homossexuais. Novamente tudo apontava um especialista. No íntimo, Eliza-Bete 45400Y confessava gostar de tudo aquilo e o corpo respondia positivamente se enrolando e se contorcendo numa agitação frenética. O incompreensível naquele emaranhado de falsas imagens era que o aposento continuava vazio, não se via nada, ninguém mostrava sinais de vida, mas Eliza-Bete
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45400Y sentia a presença, a forma de um ente e seu corpo instintivamente também acusava a mesma existência. Na força do ataque que recebia reconhecia nele (era macho) um ser de forma primitiva, mas normal: apenas transparente, líquido, inócuo – mas com alguma formação e existência viva. Ela várias vezes teve a sensação de sentir braços envolvendo-a fortemente (eram braços), dedos delicados roçarem com leveza a superfície da pele (eram dedos), lábios percorrendo toda a extensão de seu corpo (lábios), extremo a extremo. Numa reação incontrolável Eliza-Bete 45400Y devolvia tudo, quando estendia os braços em busca de algum modo de resposta, encontrava o nada. As carícias chegaram ao ápice, Eliza-Bete 45400Y sentiu algo incontrolável entrando, penetrando seu corpo, sua alma, com um poder dominador absoluto, não tendo tempo sequer de raciocinar direito. Alguém a estava possuindo brutalmente, de modo sensual sem meios termos,
obrigando-a
a
permanecer
passivamente
desfrutando como um animal aquele momento. Com toda força desligou-se de tudo abandonando as defesas psicotécnicas e se entregou ao amor físico de
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modo como jamais experimentara. Naquele momento ElizaBete 45400Y se tornou mulher, de novo pôde sentir o que somente as heroínas dos romances antigos sentiam. Num curto espaço de tempo um jato quente foi atirado em suas entranhas e a resposta veio rápida, traduzida por um espasmo ativo, um grito gutural e suave. Depois
tudo
ficou
sereno,
o
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corpo
flutuando
abandonado em languidez. Um fino suor cobria a sua pele. A respiração voltou a um ritmo normal, os músculos relaxaram, o coração agitou-se num passo cadenciado. Eliza-Bete 45400Y procurou um sono terno e tranqüilo. Nos dias seguintes os fatos se repetiram com pequenas variações. Eliza-Bete 45400Y passeava – quase livre, em vários outros lugares, se acostumando à vida que levava, amando aquele local estranho, embora continuasse tão desconhecida quanto antes. Sozinha, era a dona do Paraíso. Pôde então admirar cuidadosamente todas as belezas locais e ver maravilhada a chuva imponderável. As gotas d’água desciam e subiam indefinidamente: a luz laser acompanhava multicor o vai-e-vem dos pingos transformando-os
em
milhares
e
cintilantes
cristais
flutuantes. A conjugação amor-felicidade que dominava
todas suas atitudes, modificou também o modo de ver as coisas fazendo-a abandonar a frieza que apreendera na cruel vida terrena. Um ser oculto estava sendo ativado dentro dela, conseqüência de todos aqueles acontecimentos. A vaidade tomou parte de seus hábitos e constantemente o espelho era visitado, por uma mulher cada vez mais linda e consciente da atração pessoal, da feminilidade sempre desperta, da excitabilidade sensual que alertava uma força sexual vibrante, ampla e sem barreira: o sexo total. A
cada
novo
dia
seu
amante
fazia
novas
demonstrações de potencialidade e vigor. A resposta não se
fazia
esperar:
pois
Eliza-Bete
45400Y
amava
verdadeiramente àquele invisível, mas presente ser. Com um amor desconhecido, pela bizarria, mas respeitado pelo poder e alma que possuía. A transparência daquela forma ultra-humana não impedia qualquer contato nem evitava que o amor tomasse conta dos seres. Como todo Humano terreno, Eliza-Bete 45400Y adaptou-se à nova situação. E durante uma semana de 30 dias amou e conheceu o Paraíso que jamais abandonaria. As coisas mais uma vez, porém, não ocorreram conforme seu desejo. Um dia a
63
semana temporal se completava, Eliza-Bete 45400Y foi transportada pelo facho espiralado lilás para o mesmo local de onde fora requisitada. Novamente as reações foram controladas, os sentidos abandonados: Eliza-Bete 45400Y sentiu leve pressão em seus lábios – um beijo; braços fortes envolveram seu corpo fortemente – um abraço. Foi assim a despedida. Eliza-Bete 45400Y
teve
outra
reação
obsoleta
e
seus
olhos
despejaram lágrimas. Se a rua não estivesse deserta certamente os passantes parariam para ver a mulher que chorava. Admirados uns, rindo e debochando outros, todos, porém, comentariam o fenômeno e olhariam curiosos as gotas de água desabarem no rosto de Eliza-Bete 45400Y. Cinco meses depois
Eliza-Bete 45400Y
estava
virtualmente impedida de caminhar livremente pela cúpula sem ser censurada. Todos olhavam curiosamente o formato
de
sua
barriga,
muitos
a
condenavam.
Repreendiam o seu volumoso ventre – gravidez condenada e amaldiçoada pelos governos, religiões e sociedades.
64
Deveria ter-se submetido à aprovação legal, controle e implantação uterina do feto. Sem essas precauções era uma marginalizada, ninguém jamais se responsabilizaria pelo que acontecesse. Porém a altivez e a decisão com que enfrentou a tudo e a todos, tornava Eliza-Bete 45400Y imbatível. Ela mesma oficializou uma defesa pessoal justificando a gravidez e acusando as autoridades terrenas de opressão humana ao manter um rígido esquema de pedido de socorro sem dar aos seres a oportunidade de defesa instintiva. Descreveu o rapto merecendo o apoio e o respeito de alguns intelectuais. Mesmo assim a gente da rua desprezava a gravidez que trará mais uma boca ao mundo já escasso de alimentos, algum ser desconhecido, inumano, prejudicial à Terra. Enfrentaria a todos como o fez com a Saúde Nacional impedindo a extração do feto. Seu dilatado ventre guardava algo que fazia parte de sua carne e do ente que nela soubera despertar o amor primeiro. Algo que Eliza-Bete 45400Y protegeria com a alma e a própria vida.
65
ESQUELETO
$00
=
Relatório
do
tecnomestre
de
subsolos
e
maxiantiguidades, doutor Anhém 01 Vieira, 74500 de todas as unidades estudantis, 84500 das Universidades e 94500 dos cursos Super Superiores. Relatou o dito doutor que baixou às terras inundadas, proibidas a leigos, cuja região é mui utilizada por subversivos da ordem e guerrilheiros contestadores, permanecendo ele ali vários dias e semanas em pesquisas científicas, acompanhado tão somente de seus imediatos 435, 567 e 680, equipamento científico, armas pequenodefensivas. Localizou o grupo lá pelos baixios do antigo local denominado Rio de Jan Eiro terrenos submergidos nos bianos Cal Grego 1980/1990 decenais, quando o Co Meta chamado Corru Tec desviou ou teve propositadamente desviada, por fins desconhecidos) sua trajetória Sol Ar, provocando inúmeras inundações, degelos, cataclismos, nos quais a maioria das gentes de todos os baixios teve morte por asfixia aquosa e destruição completa.
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§ 01 = Verificado: alguns dos seres sobreviventes aprenderam a viver no mar de lama que então se transformou aquele local (todo o Rio de Jan Eiro), cuja manutenção como reserva ecológica permitiu a mutação que fez nascer guelras e outras formas de adaptação semimarinha, para poderem as criaturas subsistir, sobrevir. § 02 = Pôde o tecnoprofessor doutor Anhém 01 Vieira revelar ao mundo científico que a excursão programada teve alento em virtude da considerável baixa verificada na água-lama, deixando à mostra milhares de esqueletos, tanto naturais quanto artificiais, ainda não identificados. Teme o doutor professor que se trata de antigos monstros petrificados de medo ante o furacão de horror provocado pela proximidade do terrível Corru Tec, suas mortíferas armas de Nêutron, seus supostos tripulantes, dos quais não se teve notícia nem confirmação científica. § 03 = Ali, entre milhares de horrendos esqueletos, vivem os demônios da lama, com suas guelras expostas em busca permanente de ar (ou ar puro?) e o tecnomestre Anhém 01 Vieira experimentou uma convivência com os mesmos! Assegurou o doutor que as criaturas têm resquícios de inteligência (surpresa científica!) e pontos
67
visíveis de contato com antepassados humanos mais longínquos. Recomendação: O tecnoprofessor doutor Anhém 01 Vieira faz vigorosa recomendação no sentido de se absterem todos de industrializarem e comer a carne de agradável sabor dessas criaturas, tida como iguaria inimitável
e
paladar
sofisticado,
para
que
possam
sobreviver, reproduzirem-se e evoluir para emergirem da vida submersa e da via de extinção rápida em que no momento se encontram. milenar poluição daquele local (na qual não se sobrevive por muito tempo sem renovar o oxigênio puro), conseguiu o decano doutor amostras de vários esqueletos para exame e, posteriormente, de sua definição atômica Mole Cular. § 05 = A princípio acredita-se que o doutor senhor descobriu que a parte mais íntima do esqueleto é formada por ossos metalizados revestidos de outros detritos concretados que formam uma gigantesca parede protetora onde,
algum
civilizadamente
dia os
num
passado
seres
chamamos demônios da lama.
que
remoto,
hoje
viveram
indevidamente
68
Fala gravada do tecnomestre: Só assim puderam as criaturas resistir heroicamente a tantas batalhas que lhes infligiram os eternos inimigos da Natu Reza terrena, que, tais como hoje ameaçam, insistiram em multiplicar as fábricas, as armas letais, os produtos químicos, numa determinação suicida de repetir a História. Observações: Partes a, b, c, d, y, k, e tecnofotos agregadas. Part one, three, six and nine-one. Spars parts. Models,
and
so
one.
Resultados
clinoquímicos
e
ultralaboratoriais 1-2-3-4-5 e 99. Fitas Magnetocass Etes grilaterais canoras, trilhas I/II/III/IV – CMM. Vozes gravadas no local. Vozes do tecnomestre doutor Anhém 01 Vieira e demais imediatos. Ruídos, suspiros, gemidos, sons, emitidos pelas criaturas. Finis partes §00 hasta §05. 2ª parte Conclusões
de
outros
exames
dos
materiais
requisitados pelo tecnoprofessor doutor Anhém 01 Vieira (Vide parte um (part one, three, six and nine-one – Itens a, b, c, y, k, tecnofotos agregadas, fitas magnetocass Etes trilaterais, vide ademais partes 00-01-02, comentários, and
so and.).
69
Continuando: Em conclusões, citou o doutormestre Anhém 01 Vieira, verdade uma para duni: os seres hoje considerados monstros animalescos, que, entretanto nos alimentam com agradável carne e saborosas vísceras, são na realidade os antigos humanóides que dá notícia as lendas indígenas e alienígenas; teriam a nossa forma atual identidade humana, não fossem as terríveis catástrofes provocadas em conseqüência do apocalipse trazido pelo Corru tec. São seres mutantes (ousaria reconhecê-los nossos antepassados, numa atrevida teoria) que, apesar de constante perseguição e caça a que estão submetidos por elementos
predatórios
clandestinos
e
da
emanação
contínua e secular de gases letais ocorrida em seu habitat natural, possuem maior resistência orgânica que nós Omens; seu Organ Ismo pode suportar muito mais, se assim o for exigido. E, finalmente, se toda a catástrofe se repetisse com toda a violência, ainda assim sua espécie não seria exterminada. Verdade dui para tre: os esqueletos gigantescos são realmente antigas construções piramidais, cuja técnica é,
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surpreendentemente, às vezes superior à nossa; as residências
atingem
grandes
altitudes,
pavimentos
sobrepostos, salões contínuos, instalações subterrâneas, famílias inexplicavelmente numerosas ante registros de controle da natalidade que conhecemos nas antigas civilizações de todas as épocas.
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Verdade tre para quatri: tecnografias unicelulares, que conseguem penetrar profundamente nas camadas terrenas registram o mais grandioso e absurdo intrincado de esqueletos, túneis, estruturas submersas, milhares de fundações,
jamais
encontrados
em
nenhuma
outra
civilização. Possível é supor-se que algum (ou alguns) deus interestelar visitou a Terra e Civilizações dos seres hoje considerados
monstros,
ensinando-lhes
avançadas
técnicas de construção e sobrevivência. Todos os testes comprovaram não serem tais obras da Natu Reza, porque existem alguns elementos físicos cuja liga somente é obtida após anos e anos de evolução tecnológica racional, e tal segredo até hoje desconhecemos. Bem visível nas tecnofografias um imenso subtúnel cujas veias são formadas por milhares de filetes de aço
paralelos, como se fossem transmissores ou condutores de algum modo de vida ou de energia. Uma
simbologia
desconhecida,
mas
encontrada
paralelamente em outras civilizações (estudos tradutórios nos Centros de Computação Y Tradución 1-12-81) constam das paredes do subtúnel, cuadros e painéis, algumas bocas tais respiradouros ameaçam sair à superfície e tantos outros detalhes fazem pensar tratar-se realmente do absurdo e ousado metrô, que levou séculos consumindo a tecnologia e força dos antepassados e jamais funcionou, porque quando finalmente ficou pronto estava superado, inviável, completamente sujeito à inundação que houve! Palavra do tecnomestre: Nada mais me surpreende ao estudar nossos remotos antepassados, diante de tanta maravilha apresentada. Lastimável que entre tantas belezas pudessem inda pensar em fabricar e utilizar letais bombas de átomos, hidrogênio e nêutrons; que não soubessem proteger com maior dedicação os poderosos arsenais da Natu Reza, deixando tudo à mercê de violenta poluição, exploração predatória, etc. Verdade quatri para qüinti: (última) assegura o doutoprofessor Anhém 01 Vieira ter estabelecido início de
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contato oral com as ditas criaturas semisubmersas, obtendo já informações mais precisas sobre a catástrofe do Co Meta Corru Tec, a vida sofrida a que estavam submetidos, sua história, evolução, como as narinas deles aos poucos se transformaram em resistentes e antitóxicas guelras, as pernas se uniram numa só peça achatada e uniforme, os dedos se transformaram em membranas escamadas, as peles endureceram a ponto de resistir ao ataque de armas violentas (tais como o Ar Pão Atômico). Voz do tecnomestre gravada no local, como toda emotividade provocada pelo contato: Sinto-me como se estivesse neste momento mastigando meu próprio-pai, representado aqui por este tenro e saboroso pedaço daquelas admiráveis criaturas que amo e estudo, que adoro como se fossem nossos irmãos. Finis partis 2ª, agregados documentos, depoimentos, tecnofografias unicelulares, registros, estudos dos Na Cal Gregos 1973/1961, microassinatura do tec prof mestre doutor Anhém 01 Vieira e respectivos imediatos 435, 566 e 680.
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A ESTRELA AMBULANTE
Más allá de los pájaros, más allá de las iluvias, más allá de los vientos, hay una gran estrella que nos aguarda. J.J. Tharats – Carta a Charles Conrad 74
UM A pequena localidade de Vila Felicidade tinha os dias passados como folhas de calendário: arrancados do tempo de simplesmente atirados fora. A renovação de sua gente humanamente bíblica – Felizmino de Maria filho de dona Antonieta, a que quando nova era de olhos azuis e cabelos louros, estupidamente louros, cuja lisura ia até os pés. A mulher do Ribamar. Com aqueles cabelos dourados dona Antonieta era capaz de entrar nos céus levando de quebra uma porrada de pecados, toda a filharada e parentes.. Portanto, pouca gente há de saber como surgiram os primeiros comentários murmurosos a respeito das coisas iniciadas a acontecer em Vila Felicidade ou quem ou o quê era culpado disso. Alguém, qualquer dia fora da folhinha, teve visão de pequenina luz flutuante, longínqua pena luminosa solta no
espaço, tal a lentidão do andar, tal a leveza baleresca com que nadava no seu lugar nativo. (Antes
de
conhecerem
as
atuações
mágicas
pensaram todos se tratar de satélite artificial desses que os homens estão lançando, em busca de que? - Desde que passaram a mexer com luas e céus muita coisa de esquisito e de ruim tem ocorrido. Bulir com objetos de Deus...). Os boquiabertos assistentes antes a confirmação dada várias vezes e assegurada mediante testemunho juramento; a mudez inicial dos temerosos frente ao mágico poder do sobrenatural; o convite feito a um, dois, três amigos e em pouco tempo toda a Vila reagia positivamente às fantásticas e contínuas aparições. A gente de fé ficava reunida a espera da luz ressurgir vitoriosamente boiando no espaço sobre suas cabeças – olho do universo a furar qualquer pensamento. A gente temerosa mantinha a vida escondida, luzes apagadas e velas acendidas nos cantos da casa, apenas o breve ver entre frestas a confirmar se a estrela seguira outros mares e destinos.
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E foi lépida a fama. À simples menção de seu nome os mais valentes e destemidos cabras tremem dos pés ao cabelo.
Pessoas
influentes,
ricas,
fazem
muxoxo,
desdenham das superstições caboclas, mas os semblantes registram temos. Para conhecer a força estelar é só correr o sertão bravo, e não apenas Vila Felicidade, indagando o de mau e de bom que fez para se acolhida como veneranda em todos os corações. Atenta aos menores detalhes da vida comum é certeira em ação. Temida e respeitada até nos secretos terreiros de umbanda e tambor de mina, nos candomblés tem a representação de uma estrela de seis pontas (roubo e cópia do armarinho do judeu), tendo no centro a suástica do caboclo vira-mundo cruzada por uma flecha (agoié), tratada
cm
privilégio
fora
do
normal,
ladeando
simbolicamente o supremo orixalá do dia. Entre os homens de fé floresceu a seguinte lei e entendimento: se o tratamento e as ações eram pro bem, fazia clarão de dia no céu, era a estrela lua e sol noturno, sua luminosidade igual a um dia de vários sóis. Sobre a terra o vento corria aragem límpida entre árvores. O sorriso pairava nas bocas do povo... Se a justiça era condenatória,
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porte, o firmamento se tornava de horrível negregor, nuvens revoltosas surgiam quem sabe de onde? E os trovões semelhando a tiros de canhão em luta de guerra. O povo não se entendia, esganando que nem cão danado e nenhuma gota d’água caía pra justificar tanta revolução da natureza. Durante a noite em Vila felicidade há apenas escuridão. Uma lâmpada amarelada de quilômetro a quilômetro ou nas casas das autoridades e dos mais abastados. As pobres cabanas de sopapo se contentam com lamparinas e as quitandas e barracões de pinga com lampiões de querosene ou petromáx. As pessoas mais corajosas que nada temem e não devem nem na terra nem no céu se reúnem no terreiro de terra batida frente à igreja fumando cigarro feito de torcido, ou mascando em tablete, fumo-de-rolo gostoso! Como de costume as rodadas tradicionais de caninha aumentam consideravelmente – a garrafa festejando mão em não, o fumo mascado como demorado sabor (as cusparadas pardacentas provam), o pito e o cigarro tragados com arte – um rito.
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Ao som indistinto das vozes cruzadas do bate-papo sob a mangueira, aguardam pacientemente a hora da luz aparecer. Conversam respeitosamente baixo e contando histórias sérias comentam épocas de roçado, de plantio e colheita. 78
Tempo de chuva e seca, maré-de-lua, hora pra boa pescaria: tarrafas, arrastões, atirados no mar da praia. Falam das riquezas e das pobrezas, do grande comércio engolidor e ruim pra diabo, do muito trabalhar até morrer dum mal qualquer, do raro descanso e do vier difícil. Horas de lançar arroz no alagado, os prejuízos, o milharal e as hortas verdinhas – quando chovia. Os moços da cidade, em férias, destruindo tudo pela frente. Abandonando depois a terra arrasada... – Ninguém comenta de querer mudar. Um ou outro fulano morto, um ou outro josé nascido. Num instante que só o tempo sabe ao certo, algum vira o olhar para o topo da igreja e se fazia silêncio. Exatamente sobre a cruz – que de tão imensa parece espremer a igreja ao chão – a bondosa aparição inicia mais um surgimento em Vila Felicidade. Quando então haveria
justiça, honra e respeito ao ser humano, princípio de liberdade. Assim esperavam todos. No espaço sideral a estrela assemelha-se a um barco em alto mar, quando maré forte. Em grandes balanços prum lado e pro outro, seguindo em frente, porém, nunca pára. Vez em quando, quando em vez, apenas muda sua rota pra fitar lá embaixo o povo nu comprimido num chão de pecados. Todas as cabeças viradas seguindo o roteiro santo e esperando conhecer o alvo atingido pela implacável da ira divida. Pequenos e grandes pecados cometidos no decorrer da tosca existência condenam a ter decepadas as cabeças pela mortífera Luz. Quando some no horizonte de vista, e nem os de melhor visão enxergam sequer sombra da Luz, a conversa volta forte e são narrados os fatos a respeito das efetuações da venerada estrela. Então a desgraça ocorrida com seu Abibe, barrigudo homem de negócios é verdadeira e toma justificativa. Seu Abibe tem a melhor cachacinha, o melhor feijãodo-rio, a tiquira mais picante e o mais gordo toucinho, apregoados todos em grandes e coloridos cartazes dependurados que nem bandeirolas por toda a quitanda.
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Vende caríssimo para o nível de todos os moradores, é certo, mas só possui artigos de primeira qualidade conforme estava escrito. Além do mais é de enorme compreensão para com os problemas dos outros: pode pagar paga. Não pode fica pra outro dia quando folgar. Afinal a safra curta do arroz e os resultados da parca pescaria sempre vêm desmaiar nas mãos de seu Abibe... Para tanto se fazia de filósofo nas horas vagas: - A vida nunca fica pior do que está, dizia acariciando ternamente a imensa barriga. E era verdadeiro: a vida de Vila Felicidade sempre foi tão miserável que seria impossível vir um dia pior que o outro, tão atrasada e anciã que era bem capaz de suas flores cheirarem a mofo. Muito influente junto aos políticos da Capital seu Abibe dizia que sempre tentava conseguir melhorias para a Vila: luz elétrica – ainda não chegara para todos, mas logo, logo viria; terraplenagem e asfaltamento das estradas carroçais – pois danificam seriamente seus veículos todos os meses; aumento nos preços, nas cotas de arroz e pescado – que sempre encalham nos compradores da Capital – Dificílimo, dificílimo!
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Seus defeitos, mais conversa fiada dos adversários da oposição, eram apagados pelas virtudes subidas e magna bondade, todos os domingos propagadas pelo serviço de alto-falante de sua propriedade. Uma fama de conquistador de filhas alheias é bem entendida, pois não é seu Abibe solteirão e rico? Por outro lado não tem amantes sobejamente conhecidas, virtude esta que o padre não se cansa de elogiar durante os sermões dominicais, mas a maior parte das donzelas de Vila Felicidade, de pobres famílias, largaram o cabaço na cama de seu Abibe. Perdoável? Perdoável... Afinal essas moças de hoje em dia andam atrás dos machos mostrando as pernas até às coxas, enaltecendo os peitos sem usar sutiã, realçando a bunda apertada pelas saias, calças colantes, curtas e justas, aumentando o rebolar. De qualquer forma, não se há de discutir a vida pregressa de seu Abibe porque o lá de cima tem um dia ajustada para cada um de nós. E a estrela, toda exemplo de justiça e liberdade, não foi boa como ele. Num dia de grande festa – véspera de São João – saiu ninguém sabe de onde uma donzela de cuja lindeza todos
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se admiram. Já os surdos acompanhavam as matracas, já os pandeiros eram aquecidos nas fogueiras e o boi já expunha seus couros reluzentes de pedraria, prataria e miçangas no veludo negro. A roqueira berrava mugidos doloridos que penetravam no peito da gente arrancando soluços no meio da alegria. Pega moleque assuava o rabo luminoso perseguindo a rapaziada e, colando na saia do mulherio, alegrava a molecada. Bombas e traques estalavam nas achas de lenha e a fogueira atirava línguas rubras rumo à escuridão. Era véspera de São João quando a senhorita chegou entrando logo na dança de quadrilha, como se tivesse ensaiado durante semanas com o grupo. Cantou cantigas, bebeu cachaça e batida como homem e tocando viola endoidou o coração de seu Abibe. Aí Deus, será castigo? Peito de gelo nunca tocado tão violentamente como agora. Nenhuma piedade por coisa alguma terrena havia feito estremecer o tal coração de comerciante. O pessoal dos centros de fé afiançou que uma mucama havia baixado por ali... Seu Abibe de coração cimentado, seu Abibe sem pena nem dó, tomou um porre dos piores esvaziando tudo
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quanto é tigela de quentão e batidas de muitas frutas. Eis o resultado preliminar da passagem célere desta dama desconhecida e cheia de milonga... Quando de repente, no instante em que o pessoal aproveitava a pausa do baile para bebidas e namoros – embasbacado – viu seu Abibe desaparecer a senhorita, momentos após localizar a sorridente moça entre o povaréu. Misturada a algumas outras pessoas (e ali estava em seu elemento) sumiu simplesmente. Transtornou seu Abibe. Estático quase, babando no queixo e sobre a camisa surrada, iniciou uma caminhada sem destino certo. Suas roupas amarrotadas pendiam patéticas ao longo do corpo untuoso. Raramente abandonada
foi
tinha
visto o
desde
estoque
de
então.
A
quitanda
bebidas
afinando
lentamente, embora ninguém fosse visto por aquelas bandas, embora ninguém atrevesse a penetrar no mundo corroído e pecaminoso onde baixara a justiça estelar destruindo todos os males. Os tempos do castigo fez a saudade comer sozinha os restos podres do pequeno armazém. Pedaços caindo lentamente, lepra maligna integrada ao chão e à paisagem. Em breves dias restaria
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apenas um terreno baldio a mais, outro rival levando a vida dolente no lugar de seu Abibe. Alguém – um caixeiro-viajante pra ser mais exato – andou trazendo notícias do velho gordo que vagueia pelas praias, a face abobalhada eternamente voltada para o seu amando estrelas e clamando esgoelado por uma donzela sumida fulgorosa como fada de conto. Ninguém (notou o passante) quis saber das histórias. E seguiu caminho. Muitos, muitos dias depois, já esquecido sabiamente por todos, seu Abibe foi encontrado ao som de intensa trovoada, na beira da praia – espumas lambendo seus restos inchados.
DOIS
As estrelas, no seu percurso, combatem pelo homem justo. Sabedoria Chinesa. Durante o dia Vila Felicidade possui em seu viver a serenidade de um cemitério. As ruas retas e poeirentas vêm do interior desconhecido e desembocam sempre nas
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areias pardas da extensa praia. As casas, de certa parte mais habitada pra cá, acompanham irregulares o trajeto das ruas e suas calçadas tortas só esbarram nas águas do mar. Maré cheia se pode sentir o marulho bater nas portas, lá fora, o cheiro do sal invadindo o ambiente enquanto a conversa domina os interiores. Matando tempo, esperando retorno de vários pescadores que ainda arriscam o fio de vida por alimento e um pouco dinheiro. As crianças dormem, mulheres e velhos matutam ao tempo. Manhã sim, manhã não, o padre reza a missa, dá a habitual bênção e começa a caminhada distribuindo cumprimentos sagrados aos que pouco já acordaram nesta terra: à tropa policial (um cabo e dois soldados da Vila mesmo), a algum ou outro vaqueiro surgido do interior para matar sede de bebida e de mulher; principalmente aos pescadores
madrugadores
de
olhos
enrugados
do
horizonte mirar e tez morena queimada pelo sol quente dos dias de verão. Comentários dos que foram e seriam justiçados pela bondade honestamente infinita da Luz – bem ou mal praticados, enchiam este vazio. Pois de há muito corria límpida a fama maior da santificada: trazer beneficências
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às pessoas pobres e justas que têm vida trabalhosa e honrada, sem qualquer lucro futuro. As famílias numerosas cujas barrigas inchadas nada de bom demonstram, se tal possa parecer. Vida áspera como a dos pescadores primitivos. Velho Avelino, pescador de sustento próprio, cujas qualidades comerciais o mar tragara. Solitário visitador do mar, pois a maioria dos companheiros de vivência já tinha morrido. Voltava seu Avelino da pescaria teimosamente mantida sempre com minguados bagres ou sardinhas minúsculas apanhadas em última instância retornando através do igarapé onde até crianças iscavam. Poderia isto parecer vergonha diante dos jovens pescadores, mas dava pra matar a fome em sua extrema resistência, e Avelino não possuía dentro de si outras ambições. Eis que chegado de uma das solitárias noitadas, dessas que todo mundo recusa ir ao mar, tão ruim andava, atraca o velho Avelino na praia o batel cheio até o tampo! Não se agüentava mais de tanto peixe: pescados, serras, bonitos, além de um gorduroso cação que – informa o relato – arrastou o bote por mais de quilômetros, levando três e poucas horas para se abatido a pauladas de remo.
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A madrugada já se escondia por dentro da noite e o dia começava a se entranhar de claridade quando o velho chegou à roda de conversa. Aos colegas pescadores e conversadores em geral deu cumprimento matinal e pediu ajuda (aos amigos) para o descarregamento do barco. Relutantes foram ouvindo durante o trajeto a estranha história a respeito da bruta e logo afamada pescaria. O arrepio do sobrenatural percorreu o corpo de todos e quem levou a culpa foi o frio vento da matina. Lógico estava (na cara) que foi ocorrência de milagre da iluminada santíssima. Custará a morrer, pois não falavam outro assunto. Na verdade tinham-na visto passar em seu habitual horário, mas não fizeram muitas menções e alardes. Tornara-se comum o respeito em sua usual aparição. E hoje em dia o pessoal espera apenas conhecer as boas ou más conseqüências de seus atos transitórios, para os comentários definitivos. Também pelo costume de saber se de fato haveria – coisas danosas e bondosas. E houve. Emocionado, contava o velho: - Ao passar justo sobre o local da espera a estrela tomou posse de luz excessivamente brilhante e forma de desejo. Clareou de
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tanta proporção o mar, imitando a lua cheia. As águas então
bravias
ameaçando
tempestade
se
tornaram
planície, o céu virou campo aberto a todos os corpos e espíritos, os peixes (excetuando o cação – figuração marinha do demônio) um povo feliz e servil na auto-entrega para alimentação. Se o início pensou o velho se tratar de visagem, fartou de pescar após fitar a iluminação e sentir um raio cortar o corpo com renovado vigor. E lamentou não ter bem junto de si todos os companheiros ou uma moderna frota de pesqueiros sob sua direção. Quem tivesse coragem de duvidar das coisas contadas pondo em risco a integridade junto à santa Luz, visse ali mesmo o resultado, naquele instante, à vista de todos quantos acorreram para ajudar o velho. É claro que ninguém colocou, porém na conversa, nem tinha peito pra isso. Os enrugados olhos foram incapazes de conter a felicidade
luminosamente
demonstrada;
de
reter
as
lágrimas que a camisa remendada absorveu. A humildade supera os momentos e torna os acontecimentos comuns verdadeiros êxtases miraculosos.
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Prometeu o velho Avelino – na hora e em testemunho de todos – não mais pescar a partir daquele dia de festividade na alma. Sua carreira de pesca teve desfecho divino, ora em diante poderia dar vez aos novos e ensinar os perigosos e eternos segredos do mar. Exigiria respeito a todos e haveriam de se curvar à sua passagem. Muita personalidade imporia respeito ao fato divino. Nada de galhofas... No dia seguinte a cabana pobre do velho sustentava um cartaz em mal traçadas letras: ENSINO PESCAR GRÁTIS COM ASSENTIMENTO DA SANTA ESTRELA E correram muitos jovens ansiosos para adquirir conhecimentos sobre tudo relacionado com o mar e a pesca. A princípio somente os da cercania, logo depois também
qualquer
granfino
da
Capital
que
tomou
conhecimento do fato. Palavras coam. Os pescadores da vila, vitalizados pelo conhecido acontecimento, lançaram os barcos com vigorosa fome e sede ao mar, abandonando a ida ociosa do barracão, da caninha remediadora, do dominó e outros joguinhos diários
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e das falações da vida alheia. Também de pecar com mulheres dos outros durante o lava-roupa, tradicional e condenável ação. Foi fartura de pescaria e a abundância de alimentos minorou o faminto sofrimento das gentes de Vila felicidade, desde então. Um pequeno fato tirou muita barriga da miséria. Palavras voam...
TRÊS
Los hombres son las estrellas de las estrellas. Hay una estrella brillante para cada uno de nosotros. J.J. Tharats – Ob. Cit. Milhares
de
outras
justiças
foram
cometidas
aumentando consideravelmente a fama da estrela e a notoriedade da Vila Felicidade. O volume de informações criadas em torno da divindade alterou total e porcamente a vida típica do local – enquanto existiu – e mesmo de outras vilas orbitais, lugarejos subsistentes. A cidade grande trouxe modas e vícios, pouca bondade. Trapaceiros e marginais, raros santos. Tudo
90
gente esperta querendo enganar a todos, se enganando entre si, sem nenhum pelo. Mulheres de vida ingênua em busca
do
Eldorado;
velhas
matronas
exploradoras
aproveitando as ocasiões prometidas e oferecidas pelo novo mercado. 91
Tal era a vida pujante da vila pós estelar. O Dr. Colombo, um dos pais da legislação do lugar (divide a honraria com os coronéis e o padre), nada mais é que um técnico em contabilidade – diploma emoldurado e pendurado na maior parede da sala – que casou com a filha do Coletor estadual. No escritório, local de escritas comerciais recém-adaptado em gabinete de advocacia, foi assaltado por indagações dos milhares de moradores enviados pelo sócio padre. Temerosos do fim-de-mundo e mil outras desgraças menores por ação da divina Luz, segundo sua crença. Foram desviados da igreja por se tratar de assunto afeto à legislação terrestre... A estrela já pagava por ocorrências minúsculas: filhas furtadas por amor, castigos e maldades corriqueiras, vacas paridas e, ora veja, até um palhaço que caiu do trapézio, a estrela derrubou, não a maldita corda puída.
Assim entendida a corrida ao escritório, o dito doutor Colombo soube muito bem aproveitar a situação em seu benefício, sugando a condição calamitosa da pobre gente ignorante. De princípio o jurista amador se atira de conhecedor em astrologia, astronáutica e outros astros, cobrando gananciosamente todas as consultas. Mas tantas eram as questões e tantos eram os devedores do pago depois (e não iam pagar, de qualquer maneira), fazendo o Dr. Colombo desistir dessas ações vis. Passou a cobrar somente casos irremediáveis e delicados – penetrando na área profissional e exigindo honorários bem remunerados. Para
facilitar
a
vida
que
levava,
embora
se
expressasse tão mal, como se viu, afixou em letra de forma vermelha um aviso explicando – causas e conseqüências previsíveis a respeito das obras da estrela, satisfazendo os muito de conhecimento supérfluo. AVISO EM RESPEITO DAS EFETUAÇÕES DA SANTA ESTRELA TENHO A DIZER O SEGUINTE:
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1 – A MENCIONADA É SANTA SEGUNDO TESTEMUNHO DO PADRE, ADQUIRIDO NA CAPITAL; 2 – NÃO HAVERÁ FIM-DO-MUNDO, POIS ASSIM DECIDIU O PADRE; 3 – ACEITO CONFISSÃO E PERDÔO OS QUE DESEJAM ESCAPULIR DA IMPLACÁVEL JUSTIÇA DIVINA;
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4 – FACILITO O PAGAMENTO EM FRUTAS PESCADOS COLHEITA E PEQUENOS ANIMAIS; 5 – ATENDO FIADO. Talvez ninguém se admirasse quando a vida da Vila tornou a ser apenas dias de nascer e pôr-do-sol; a estrela desaparecida em definitivo. E seu sumimento foi notado da maneira semelhante do nascimento: alguém, um dia qualquer, simplesmente notou que a diviníssima Luz havia se aposentado. Nunca mais surgiu no horizonte. A Vila, as casas, o ar poeirento, o povo todo sentiu um vazio ousar agourento sobre a cidade. Muitos rincões então puderam ouvir suspiros de alívio, silêncios de morte tranqüila...
Quantos
iriam
morrer
sossegados
em
maravilhoso pecado mortal! Quantos retornariam às atividades traiçoeiras confiantes na ausência da justiceira, abusando da bondade dos puros de coração e intenção.
Como de súbito veio aos justos o temor da provação a que costumam ser submetido pela sociedade do dinheiro, pela terra dura e tempo áspero, peã subsistência vital, pela morte; por Vila Felicidade, sua terra, chão e cemitério. Outros
que
tinham
recolhido
medrosos
as
garras
aguardavam apenas o primeiro passo do mais audacioso para fazer voltar torrencialmente métodos antigos de exploração aos seres despovoados do mal. A não ser pela sempiterna dúvida: voltará a estrela? Jamais dela se teve notícia.
Até no dia em que apareceu Zé Divinal, estranho personagem metade gente metade malandro, o derradeiro a ter contato com a maga luminosidade, segundo os seus relatos. Também o único autorizado a representar a estrela e dar justificativas perante o unificado povo por sua divina justiça e Luz. - Atenção. Cuidado com os falsos profetas! Alertava o Zé. Todos os heróis são estrelas e nascem dos astros! Surgidos céus, apesar de estar muito tempo na terra... A iluminação caiu sobre mim, propagava religiosamente fazendo o povo sentir um tremor e breve pavor.
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Bem trajado. O terno cintilando de tanta alvura, Zé Divinal passou a ser notado e bem recebido em todos os lugares de reunião popular se tornando de pronto conhecido por todos. 95
Primeiramente na feira, chegou, o imaculado paletó reluzindo ao sol (apesar das ameaças de puimento nas extremidades) e o bigode fino emoldurando a alva dentadura, espalhando no rústico e improvisado balcão portátil – tábua, caixão e a mala de lado, vários vidros pequenos contendo um líquido branco. Translúcido, como dizia o Zé. Anunciou serem lágrimas da estrela. E bastou a palavra mágica para conquistar a simpatia, a atenção de todos quantos passassem. O parco e mal ganho dinheiro também. Boa conversa, se dizendo filho de família quinquemilionária (frisando esta esquisita palavra), abandonou tudo de mais caro e luxuoso pra atender às solicitações extraterrenas e vender o precioso líquido. Trazedor de saúde, felicidade e fortuna a seus raros e felizardos possuidores. Sabia Zé de cor as completas
aventuras
da
estrela,
fato
largamente
comentado, bem como a de seu Abibe – de cabo a rabo – triste memória.
Em sendo noivo de uma filha de coronel cujas riquezas eram incomensuráveis (esse Zé!) estava em noite de fazer amor com a bem querida. Data maior comemorava a comunicação do noivado à sociedade e marcação do dia do casório. Uma retumbante festa sem dúvida, falada por toda a redondeza. Súbito, sentindo incontida atração vinda dos céus – um clamor divino, viu estrela em prateado brilhante (a luz, coincidência ou não, era idêntica à do caso narrado pelo velho Avelino). Iluminou tudo até o horizonte onde a vista alcançava e lágrimas verteram celestialmente: garoa bendita caída dos olhos miraculosos da fada estrela. Daí o tremendo poder que possui. Durante o relato desse trecho de sua vida Zé Divinal destaca a declaração da estrela e a convocação feita, em estilo cantador. (Os versos acompanham gratuitamente cada vidro de lágrima). A ILUMINAÇÃO DE ZÉ DIVINAL Estando em noite de amor Com a sua bem amada
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Sentiu Zé Divinal Dos céus uma chamada Sendo logo atraído Pela luz iluminada. Pela luz iluminada Foi a festa interrompida, Foi embora a mulherada, A orquestra dissolvida E também Zé Divinal Deu os passos da partida. Deu os passos da partida, Pra nunca mais retornar, Após haver prometido À divindade estelar Vender água milagrosa Outra mulher não amar. Outra mulher não amar - prometimento profundo; Vender o líquido vertido A quem precise no mundo; Cantar o que for cantado, Limpar o que for imundo.
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Limpar o que for imundo (o trabalho principal) Eis porque está aqui O famoso Zé Divinal: Aproveite minha gente! Compre o bem contra o mal. Compre o bem contra o mal - Felicidade incontida! Nas cidades e nos campos Enfrente a mote com vida, Compre a água milagrosa, Zé Divinal tá de partida. E assim foi que a luz subjugou o Zé fazendo curvado, joelhos ao chão, sair de seus lábios pecaminosos até então, a promessa: jamais casar ou amar outra mulher (não quer dizer porém que durante as vendas e demonstrações domiciliares não desse suas trepadas...). Ficou obrigado a passar o resto da vida distribuindo entre pessoas de boa alma lágrimas derramadas naquela noite, por amor e dedicação à estrela amada. Nem era besta desobedecer a ordens da santa, sabiam todos.
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Felicidade, saúde, amor e dinheiro prometidos a quem tivesse alguns trocados para a posse de um frasco apenas da água etérea. Bem aventurança ambulante cobrada a preço
reduzidíssimo
só
para
ocorrer
às
despesas
ocasionadas pela constante locomoção necessária. 99
Quem quisesse aproveitasse à hora, pois estavam sendo distribuídas as últimas unidades. Aquela seria a remessa final, de vez que a santíssima claridade estava fechada em seu ninho, feliz o demasiado para chorar outra vez. E quando todas as prateleiras e cozinhas e armários e guarda-roupas de Vila Felicidade ocultavam em seus estômagos o transparente vidro contendo um líquido alvo (translúcido)
Zé
Divinal
cidadezinhas
seriam
deu
cantadas
partida.
Em
outras
aventuras
da
estrela
aumentando a boa fama. Os moradores esperançados ficariam serenos e adormecidos pelas promessas cheias de fé e amor, saúde e felicidade (sem esquecer o dinheiro material) e paz, paz trazida por um falador possuído da iluminação sagrada estelar – herói monstro – e pelo frasco miraculoso recheado de lágrimas duma estrela ambulante e justiceira.
JORGINHO Estava me lembrando do Jorginho, faz tempo que não o via, e soube eu morreu. A última vez que o vi, recordo ainda, lá por 1976, Jorginho chegou desesperado. Eu o conhecia muito bem, esse oi, como vai? Era apenas um reflexo mecânico. Quando ele me procurava já sei que estava em choque, em crise, na beira da ponte. O Jorginho, eu explico, era casado e pai de um filho com vontade de ter outros. Mas não tava dando, diz ele, a vida fica cada vez mais difícil. Ele é daqueles tipos que costumam lembrar o passado recente. A gente podia convidar os amigos para um almoço no sábado, ou domingo. E em casa nunca me faltou um guaraná pras crianças e uma cervejinha pra mim e a patroa. E a cada ano que passa Jorginho tornava-se cada vez mais frio com relação ao seu futuro, ao futuro do Brasil, conforma anunciavam as propagandas políticas no rádio e na TV. Ele dizia O Brasil eu sei que vai ficar grande, mas e o povo brasileiro de que tamanho vai ficar? De política ele só entendia isso, de economia: - não adianta a gente exportar o melhor do mundo e comer o pior do mundo, pagando o mais caro do mundo. Depois do oi
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como vai, ele me disse de chofre como é costume: você vê como fica cada vez mais difícil entender o sistema político brasileiro? Estão comemorando não sei quantos anos de revolução, mas deputados da oposição foram cassados por dez anos, a gente vai ter de pagar INPS, de fora denunciam que ainda tem muita gente presa sem julgamento, preso político, etc, o presidente diz isso e fazem aquilo, ainda por cima vai dar uma volta na Inglaterra. Do mesmo modo os crimes, assaltos, violências, do noticiário social e político chocam a gente, pra falara a verdade me derrubaram hoje. Sabe que eu não fui trabalhar? Tou por aí dando uns passeios pra ver se desanuvia. A gente anda um pouco e entre num bar. Aconselho a tomar uma cervejinha, eu pago, claro, que logo tudo volta ao seu normal – ou ao seu anormal. Eu também já não estou entendendo bem. Jorginho volta à carga, vê cara, a insegurança, a incerteza que cerca você e a família. A cada notícia que os jornais dão a gente pensa que os homens estão realmente interessados em equilibrar o difícil jogo economia-povo, sabendo-se que o atual
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panorama econômico visa somente dar ao estado uma posição favorável (ou negociável) perante o mundo, mesmo ao custo de aproximar a maioria da população à quasemiséria com salários cada vez mais carcomidos pelo escorchante desgaste provocado pelos tubarões, aluguelalimentação-educação, tripé da sobrevivência de qualquer cidadão da classe quase-média para baixo, sem falar nas taxações
abusivas
que
também
sufocam
o
ganho
minguado. E tudo contrariando as palavras, não digo dos Ministros ligados à tecnologia – verdadeiras máquinas cujo único sinal de humanidade é um arroto, um peido ou uma vontade de cagar... Mas dizia, contrariando a palavra d presidente, que pensa realmente em diminuir a pressão em cima da gente. Não sei se por causa das eleições que vêm por aí... Procuro desconversar com como vai o pessoal, a mulher e o garoto, todos vão bem? Falo um pouco de futebol, hem, o Vasco, quem diria, levar aquele banho do Flamengo, Jorginho ri, desconversa também toma um gole da cerveja, brinca com o rótulo na garrafa e dá um quique no meu ombro, ta tudo bem, daqui a pouco ele já está
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pronto para outra, para enfrentar o mesmo escritório onde trabalha há mais de 15 anos e continua ganhando o salário de ajudante-de-escritório. Ele ri, consegue rir, conversa um pouco sobre o menino, ele está com dois anos e o moleque é danado por uma bola, mas também já quer jogar xadrez, veja só, põe a mão no queixo como quem ta pensando e me diz xeque! E fica esperando a minha vez de jogar. Às vezes pede o relógio, só quer jogar de relógio, é vivo, inteligente, mas só penso que mundo virá para ele, que tipo de coisas poderei contar para ele, como poderei mostrar a minha geração para ele, veja você, nós que nascemos em 1942. É assim, conversa vai, conversa vem e volta o velho tema. Ele fica um bocado de tempo sem falar, pensando ou falando um pouco sobre o vazio. Anda bastante saturado das notícias de jornais, rádio e TV, eu sinto. Mas o que fazer se cada um de nós é por natureza, sedento de notícias, de saber? Tomar conhecimento das coisas do mundo, elas afinal acontecem em volta de nós, de um modo ou de outro somos atingidos pelos fatos, a Terra, o Universo, é um corpo só e sofre todas as conseqüências dos atos e fatos produzidos pelo homem. Um só corpo espírito.
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O que ocorreu no Chile nos abalou, as coisas que acontecem e vão acontecer na Argentina também nos afetam, Uruguai, América, África, Ásia, Vietnam, Europa, Portugal e Espanha, tudo faz parte dessa festa de notícias que lemos penduradas nas bancas de jornal, ao sol de abril. Os governos não sentem isso, portanto mantêm-se invisíveis e fazem o mal que quiserem de todos os homens, Jorginho diz é, como se estivesse lendo pensamentos. E assume logo a direção da idéia apontando o dedo acusadoramente: você sabe quem realmente dirige o país? Qualquer país? Ou pensa que os governos invisíveis não existem? Ou pensa que alguém ainda pode governar um povo, ou escravizá-lo que dá no mesmo, sozinho?Não pode. O corpo de colaboradores também não está só. Os ministros têm seus fantasmas e cada membro do governo perde a identidade quando assume – é assumir e morrer! O engraçado - continua Jorginho - é que eu sinto tudo isso com se fosse o pai, a mãe e o filho da minha terra. E sinto cada país que sofre como se fosse meu próprio país. Mas como se sentiria um jovem entre 20/25 anos da geração atual? Pelo pouco que conseguem se expressar acho que estão um pouco confusos também. Anseiam uma
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liberdade que dizem existir, mas que a gente não sente. E se não sente fatalmente não existe. Essa fuga no canto, no teatro, nas ruas é uma reação não-violenta, mas uma firma e proposital reação. Quando muda a feição política de um país com base violenta
sinto-me
chocado,
meio
desfalecido
pelo
sofrimento, querendo chorar sem poder, aquele solução preso, a lágrima que não desce nunca, do mesmo modo que o assalto e a violência me choca. Quero dizer que a perplexidade é a mesma e não outra mais fantasiosa. E só espero que o jovem ao tenha essa mesma desdita de sentir o mesmo e, se sentir, saiba utilizar a força da juventude que possui e reagir, sacudir a poeira, dar a volta por cima. Não ficar como eu, apocalíptico, cabisbaixo, deprimido e derrotado de ver que tudo de ruim se repete e que não vai terminar nunca. Aquele negócio dos pobres cada vez mais pobres, dos ricos cada vez mais ricos, é verdadeiro. Conhecer gentes que gastaram os anos da juventude dedicados ao trabalho honesto, trabalho que não rendeu nada, nem mesmo uma dívida eterna do BNH! Às vezes penso que de repente Jorginho vai abaixar a cabeça na mesa e chorar. Logo interrompo com outro
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papo, conversa fiada, charleando bobeira pra ele consertar. Ele para, suspira, toma um grande gole de cerveja, bem geladinha, nova que saiu do congelador agora e sacode a cabeça como quem diz, seu sei que você está querendo me ajudar, mas deixa disso. 106
O fato é que não vou acreditar nunca nas coisas que dizem, de desejos e aspirações dos homens com relação ao povinho, pois a palavra é uma e o fato é outro completamente diferente. Quando a pessoa fica assim como eu, descrente de tudo e de tudo ateu, acho que não tem mais remédio. A visão muda completamente, o mal se torna mais visível ao passo que o vem, esse precisa de um tato especial, de um olfato de cão de caça, de gato vadio, para ser encontrado. E, no entanto, maravilhosa criatura é o homem – ainda existe gente boa, gente que tenta fazer o bem sem milhares de intenções e interesses. Mas é difícil, muito difícil mesmo, nessa idade alguém transmitir algum otimismo, vivendo a vida que tive nordestina, trabalhadora (aos 14 anos já carregava saco de 30 kg de arroz ou açúcar no lombo), legar alguma palavra mais amena que procure melhorar hoje a imagem do mundo.
É como num replay seco e cru que minha mente vai transmitir ao meu filho e vida nua, violenta, cheia de surpresas que conheci... Afinal, não vou fabricar anjos para depois largar nesse mundo pobre, nesse miseråvel e podre mundo. 107
MARIINHA Numa prosa de trem, entre sacolejos e empurrões, ouvi esta história vinda de um interior não tão longínquo... Mariinha chegou esfalfada trazendo no rabo da saia os quatro moleques restante. Entre lágrima e suor – tinha andado mais de légua – foi se ajoelhando na areia quente mesmo, as mãos postas implorando: Coroné perdoe o Menino. Ele é moço num sabe o que faz. Só qué ajudar, as crianças assim com fome, num sabe... O Coronel olhou de esguelha, de cima pra baixo. Deu uma puxada no charuto, cuspiu grosso. Poupe prosa siá Mariinha. Tem mais jeito não, num sabe. O Menino já está enterradinho. Puxado ao pai, o Menino, tal pai tal filho. Deu raiva e Mariinha gritou bufando sangue e ódio. As mãos crispadas querendo matar.
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Coroné! Tenho mais quatro fios pra ajustar contas, num sabe. Se aguarde, coronezim de merda! Virou as costas e saiu batendo poeira. Mariinha falou já em soluços! O coroné num vai gostar Menino, eu sei, eu sei Menino, o coroné num vai gostar não. E desandou em lágrimas. Os garotos em volta da carcaça ajudavam curiosos. Menino olhou com pena. Sincomode não mãe. A senhora não podia era ficar com fome, viúva com meus irmãos todos aí dependendo das sobras do Coronel. Manhãzinha vou pra cidade, trabalhar e logo estarei de volta ajudando, com dinheiro, tirar a senhora dessa miséria. Levo a senhora daqui. Sincomode não, repetiu mais uma vez. Ao longe os urubus devoravam furiosos os restos da res descarnada.
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O menino chegou à estação de diploma na não três anos depois que saíra, voltou formado técnico. A mãe veio receber, não encontrou mais o pai e quis logo saber como morreu. Mariinha economizou desgosto, desconversou e contou uma historinha besta, triste. 110
Fio, você sabe como era o Felisberto. Home valente e cuidadoso no trato com os meninos, só queria o nosso bem e ver você assim, bonito, diplomado, feito na vida. È essa a pena que me dá ele não ver você chegar. O menino consolou a velha, as mãos no ombro, cara a cara. Deu uma bisca em cada garoto: Sincomode não mãe. Eu cuido da senhora e das crianças. Sincomode não... A Mariinha não guentou as lágrimas e soluçando pousou no regaço do Menino. Recordou as palavras do Coronel, o ódio nascendo no peito, morrendo na garganta amarrada: Tem jeito não siá Mariinha, poupe prosa!
– Felisberto já está enterradinho que nem um anjo. E cuspiu na areia quente o cuspo grosso da masca de fumo. 111
Ou será que essa história estava contada numa carta velha encontrada por aí?
MORRENDO Acho que não vai doer nada. São quinze andares e este prédio e dos antigos de forma que seus quinze andares são mais altos que os andares desses edifícios novos nos quais a gente anda querendo bater com a cabeça no teto. Provavelmente estarei morto ou desmaiado antes de chegar ao chão. Hum. Tem um carro lá embaixo nesta mesma direção. Talvez devesse pular mais para o lado. Não. A janela não deixa mais espaço. Acho que vou ter mesmo que amassar o capô e sujar de sangue a pintura do carro. É uma pena, pois parece novo. Talvez nesta hora devesse dizer ela não deveria ter feito isso ou coisa parecida. Mas na minha idade já não conta essa coisa. Oitenta anos são oitenta anos de vida bem vivida. De qualquer forma já avisei: telefona pra minha cada e diz que vou me suicidar. Parecia brincadeira e assim acho que ninguém vai telefonar mesmo. E creio que fica meio chato eu mesmo telefonar e dizer: vou me suicidar. Ora. Se vou me suicidar mesmo, cedo ou tarde todos acabarão sabendo. Os meus amigos. Que pensarão? Alguns vão pensar que dei algum desfalque em algum lugar. Outros sabem
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que sou rico demais e não tenho preocupações. Por que então? É a pergunta. Por quê? Pensam que dinheiro é tudo. Que ter vivido oitenta anos é tudo. Afinal que adiantam oitenta anos vividos se no final acontece... Ora acontece... Deixe que pensem todos o que bem quiserem. 113
E este dinheiro todo que tenho nas mãos? Não sei por que saquei do banco. Vou deixá-lo bem guardado na gaveta e ninguém roubará. Talvez seja melhor guardá-lo no cofre ou depositar no banco de novo. Não. Depositar de novo não. Não há tempo par ir lá embaixo de novo. Entrar na fila e enfrentar a delicadeza das meninas de novo. Não vale a pena voltar a falar com conhecidos do dia-a-dia. Não há tempo. Não sei por que vou fazer isso. Afinal uma vida vale muito. Vale muito e vale pouco. O que realmente vale uma vida? Vale pouco ou vale muito. Vale quase nada. Neste momento lá embaixo as pessoas andam apressadas para lugar nenhum ou para muito lugar. Pensam na vida mais que na morte. Aliás, nem pensam na morte. Estão distraídas demais para isso. Todo um conjunto de pensamento está diretamente dirigido para a vida. Como levar a vida. Como salvar a vida.
Como enganar a vida. Como passar a vida distraindo a morte. Como viver enganando os outros e sendo enganado todo dia. Ora. Aí está. Passam o dia pensando como passar a vida. Ninguém vê o fim do túnel ou as curvas da estrada. Todos estão cientes do significado comum de viver. Não sabem que estão é aprisionados do tempo que a todos ilude com suas fantasias cinematográficas. Pois vendo daqui do décimo quinto andar parecem todos os bonecos de cinema andando de um lado para outro segundo o roteiro e falando segundo o script. E poucos sabem que são atores de ninguém. Atores de si mesmos. Espelhos do espelho. Agora vejo que já uma brecha entre os dois automóveis estacionados lá embaixo. Talvez com um pouco de sorte possa cair bem no meio deles e causar pouco prejuízo. Não me parece aceitável morrer e dar logo um prejuízo a desconhecidos. Quanto menos incomodar os outros melhor. Creio que está na hora. Daqui a pouco o pessoal começa a chegar. Depois são clientes e já estou farto de clientes... Que se danem os clientes. São culpados do desperdício a que sujeitei aminha vida dedicando-a dia a
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dia a este negócio. É como disse. Afinal quanto vale uma vida? E daqui um pouco mais o telefone vai começar a tocar. Serei obrigado a atender ao telefone? Na verdade é um drama ter de escutar o telefone tocar insistentemente e não atender. 115
Quem estará do outro lado? Alguém precisará da nossa ajuda? Precisará de fato? Ou será apenas uma voz: desculpe engano. OU será alguém pedindo apenas uma informação técnica? Como se faz isto? Como se faz aquilo? Como é aquiloutro? Talvez seja também algum cobrador. Sempre existem dívidas a pagar. Acho que não resisto perguntar: por que ainda assim ela fez isso? Por quê? Creio que depois de hoje não vou descobrir jamais. E não vale a pena ficar aturando a vida aos oitenta anos para descobrir. O que se encontra oculto após oitenta anos de vida dificilmente será descoberto. Permanecerá como um segredo eterno. E até mesmo ela incorporará a verdade ao mito e tudo passará a ser um sonho. Sonho e não pesadelo. Sonho e não a realidade nua. Sonho e jamais a verdade crua. Estou divagando em busca do que não encontrarei. Ora. Afinal não são horas disso.
Creio que farei uma roda de curiosos na rua. Vai atrapalhar o trânsito das pessoas e de veículo. Todos pararão para ver. Ver o que? Um monte de carne estraçalhada e disforme? Ver? Ver um fu... Ver um velho que fraquejou. E agora esta palavra me parece bem fútil. Na verdade eu fraquejo? Ou tenho coragem? Acho que já li algo num tratado sobre suicidas. Uns acham que é um ato de bravura. Outros chamam os suicidas de covardes que não souberam enfrentar a vida. E o que sabem eles de enfrentar a morte? O que eles vão encontrar são um monte de ossos quebrados e outro monte de conjeturas sobre o que aconteceu. Como ficarei? Muito feio? Vai ser engraçado. Como um quebra-cabeça. Atiro-me lá embaixo e me espatifo todo. Depois vêem meus parentes e me ajuntam parte a parte como se fosse um jogo. E o jogo dos porquês vai continuar até que todos me esqueçam. Somente ela saberá. Saberá? Ora. Há de saber. Não se faz com um homem de oitenta anos o mesmo que com um rapaz de vinte e tantos anos. Tudo se transforma num jogo. Num quebra-cabeça.
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Tudo vai primeiro se espatifar no chão ou sobre um automóvel para depois se reconstituir. Se refizer pelas mãos que ajudaram a destruir. Usar uma nova máscara. Uma nova e definitiva máscara. E as dúvidas: por medo? Por amor? O medo e o amor são no fim a mesma coisa. É o jogo. É o quebra-cabeças. É o espaço. O espaço. O vácuo. Flutuando. Sem sentidos. Até o pára-lama.
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NOTAS DO DIÁRIO DE ZEUS 27 DE MAIO - O dia amanheceu como outro dia qualquer no Rio de Janeiro. Estamos em maio, isto é, quase inverno, mas o frio se mantém distante. Os trens da Central continuam em permanente atraso, a ponto (pasmem!) de acumular em um só mês o tempo equivalente a 36 dias de atraso. Os jornais pendurados na bancas trazem noticiário diverso, cada um com sua manchete particular, seu assunto distinto. Isso mostra que a vida aqui não anda bem, pois, para que haja alguma regularidade política e social num lugar, as manchetes dos diários devem versar quase sempre sobre o mesmo tema relevante. Assim fica-se sabendo que os interesses locais convergem a um mesmo ponto. Mas o que dá é que a seleção brasileira de futebol perdeu a Copa do Mundo e ninguém ligou; outras notícias dão como certo novo aumento no preço do feijão e o ressurgimento enfim! 29 DE MAIO - Nos supermercados dessa rara e triunfante leguminosa. Num canto escondido do jornal, uma notícia isolada não assustou a nenhum leitor, embora deixasse um lastro de preocupação a outro tanto de pessoas, estas mais inclinadas a perder tempo com informações ditas sem importância, nas quais o destaque
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principal era dado à violação, em várias partes, dos Direitos Humanos, ou aos ataques destruidores à fauna e à flora, à ecologia, enfim. Essas coisas consideradas de loucos e marginais. Estava dizendo que uma notícia um cantinho desgarrado do jornal falava a respeito de uma estranha explosão atômica ocorrida num arsenal na base nuclear de Muroroa, quando uma série de cinco artefatos explodiu, quase simultaneamente, fazendo crer, a princípio, que fosse experiência. A França desmentiu as explosões, depois confirmou que não se tratava de experiências e por fim
andou
acusando
elementos
estranhos
como
causadores da tragédia nuclear. Como deixaram poucas vítimas e muitos danos à natureza e à ecologia local, a França tratou de promover o silêncio ao caso e a fabricar novas bombas substitutas. 19 DE JUNHO - Mal foi dissolvida a Comissão Técnica que dirigiu a seleção na frustrada opa, surgiu outra notícia semelhante àquela: desta vez com tipos um pouco maiores que o tradicional IBM Oito das notícias sem importância. Algum destaque a mais uma misteriosa explosão atômica, desta vez subterrânea e em nevada, conhecido arsenal e campo de provas dos EUA Novamente os leitores foram levados a acreditar em mais um teste, mas a explosão foi espontânea e tão violenta que provocou rachaduras em
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edifícios de lãs Vegas e vilarejos próximos, inclinando prédios, quebrando vidros. Dano maior dói o princípio de maremoto que atingiu a costa leste. Até o feijão branco, importado do México, chegou pra substituir o preto, mas o consumidor anda mais enfeitiçado pela cor e sabor deste último que nem pensa em abandoná-lo.
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30 DE JUNHO - Quando o feijão preto aparece, as maiores
filas
jamais
vistas
se
formam
diante
dos
supermercados, havendo disputas por cada quilo, brigas e até mortes, já tendo a polícia que intervir em diversos casos. A Central do Brasil importou um trem japonês que, fabricado por esses fantásticos seres orientais, têm vários defeitos,
os
mais
graves
sendo:
estreitos,
baixos,
excessivamente iluminados (isto porque os japoneses são pequenos, magros, e míopes, justificando essa estranha configuração dos veículos). Já aqui no Brasil os trens andam sempre muito cheios, passageiros curvados, imprensados, sem poder gozar a boa iluminação sequer para ler jornais. Os estudantes fazem greves e movimentos em todo o país. Parece que existe uma lei da greve que não prevê tais movimentos e fala mais em greve trabalhista, ou de outras categorias, ditas essenciais; mas outra lei proíbe manifestações públicas, reuniões em praça ou logradouros e, mesmo se não tivesse lei que proibisse
tais greves, estas só durariam o tempo necessário para fazer a lei e publicá-la. Isolando esse faro em si, os estudantes continuariam a fazer greve, porque consideram a lei pedaço de papel. Manifestações são dissolvidas à bala (verdadeira e de festim), à água, à areia, cassetete, gás lacrimogêneo, porrada, etc. Em outras palavras, os estudantes e grevistas em geral têm o direito de fazer as reuniões proibidas e a polícia repressora tem o direito de baixar o pau à vontade (todo mundo com seus respectivos direitos). Fui matricular meu primogênito no Jardim de Infância e a Diretora me explicou que tenho de pagar imediatamente os meses em que o aluno estará de férias, mesmo que são utilize as dependências escolares, como é sabido pra que servem as férias... 05 DE JULHO - Comecei a guardar os recortes de explosões e fatos estranhos que acontecem após as mesmas. Notícias paralelas, por exemplo, dão conta do aparecimento de várias esquadrilhas de OVNIS e alguns cronistas já se sentem atraídos a ligar esses dois faros. Não penso dessa maneira, mas não tenho meios de comunicar minha divergência, a não ser através de uma carta dirigida diretamente ao jornal, a qual provavelmente não sairá publicada, já que sofrerá a censura oficial e a censura existente no próprio jornal. Certamente alguém
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verá indícios de incitação do povo, ou coisa parecida. Afinal para que servem os jornais? Na minha modesta opinião, algo na natureza está afetando os artefatos atômicos e provocando explosões espontâneas. Já que não se sabe a intensidade desse processo desconhecido, é mais difícil ainda prever-se o que ocorrerá a seguir. O melhor mesmo seria prevenir, desativando-se todos os arsenais atômicos existente, mas os governantes têm medo de, per si, tomar tal providência, pois julgam que o outro é capaz de atacar o adversário e dominar o mundo! Nesses entrementes dois submarinos russos e outro soviético explodiram em pleno ártico. A Rússia separou-se definitivamente da URSS e agora são duas potências comunistas distintas a enfrentar o mundo. A China aliou-se aos EUA e o chamado cone sul e
sudoeste
(Argentina-Brasil-Paraguay-Chile-Bolívia
y
Uruguay) uniram-se e instituíram a RAL – República América Latina – O Peru aceitou permanecer como observador. 19 DE JULHO - A RAL é agora a 168ª Potência Atômica e foi admitida no bloco de nações que compõe esse mortífero clube. Em passant: receitei à mulher mais mate no lugar de café e mistura de cevada com café, que anda escasso e cobrado ao absurdo preço de RAL$ 300 por quilograma. O Brasil já foi, como é sabido, o maior
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produtor de café do mundo, porém agricultores destruíram várias plantações para o país perder essa hegemonia e valorizar, assim, o preço da rubiácea. Cada RAL$ custa cerca de US$ 16,589000 e cada US$ está custando Cr$ 1.000.
Comparando-se
com
a
gasolina
e
demais
combustíveis que mantém um aumento constante e sofre um complexo processo de transformação e a produção de café em pó, é difícil chegar-se a uma conclusão sobre os custos mais baratos e necessidade mais premente, mas nosso produto deve levar alguma vantagem. E pensar que a própria água mineral, cuja produção limita-se a extração da fonte e engarrafamento, já foi mais cara que a gasolina... 28 DE JULHO - O Presidente não renunciou, pelo contrário, aceitou, constrangido (disse), a prorrogação antecipada do mandato por outro período de 20 anos, já que os primeiros 20 anos de mandato passou todo ele arrumando a casa... Como já se encontra com a avançada idade de 83 anos, é de supor que a História do Brasil vai ser tri-campeão (como também no futebol mundial) em presidentes centenários. A censura proibiu definitivamente as divulgações de notícias sobre explosões atômicas (para não alarmar a população!), mas elas nos chegam através da imprensa estrangeira: uma bomba atômica de cerca de
123
20 megatons explodiu no Ceará arrasando completamente o Município de Tauá. O Brasil fazia testes secretos naquela área e ninguém sabia disso. Houve poucos sobreviventes à tragédia, todas as casas foram arrasadas, os campos devastados, rios e lagos contaminados. O Governo isolou o município, mas mesmo assim, várias levas de romeiros se dirigem para lá rezando pela proteção do Padim Pade Ciço. Alguns jornais se esforçam em rebatizar a cidade de Nova Hiroxima e alguns milagres já se fazem presentes, cura de cegos, paralíticos, apesar da descrença teológica dos padres e bispos. Todo o Mundo se comove e se une nas condolências e na ajuda aos flagelados. O quadro é apocalíptico. Um parêntese nessa desgraça toda para falar da censura na imprensa. Para sugerir um pouco de liberdade de informação, permite-se publicar tudo, ou quase tudo. Que vem do estrangeiro e os jornais estrangeiros também podem falar à vontade. Isso também é feito para diminuir a tensão que ocorre quando se nota muita falta de notícias, como se nada ocorresse no mundo. Anúncios de lançamentos imobiliários, edifícios prives, como sauna, piscinas, playgrounds, praia na porta, mulheres sensacionais, incrível! Incrível! 02 DE AGOSTO - Apesar das bombas que continuam a explodir em todas as partes, implacavelmente. O mais
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claro é que alguns países da RAL insistem em manter a mesma linha ideológica, como a Argentina, por exemplo, que também engana, censura, ilude, mas não pode impedir de chegar até nós a notícia da fantástica destruição da cidade de Corpen – não sobrou vivalma para contar a ocorrência. O cogumelo mortal foi visto à distância de 100 km, o que deixou nosso país apreensivo, não só pelo fato da bomba destruir tudo, mas, principalmente, porque demonstra-nos as quantas anda a proliferação atômica naquele país irmão. É fácil deduzir que, se Tauá deixou sobreviventes, e o mesmo não ocorreu em Corpan, a Argentina está vários passos à frente do Brasil na corrida nuclear, apesar de todos os acordos assinados pelos membros da RAL. É possível, até, que o embaixador brasileiro seja portador de uma nota de advertência nesse sentido,
acompanhada,
naturalmente,
dos
devidos
pêsames por tão lamentável desígnio (eles se perguntarão como soubemos do fato?). 10 DE AGOSTO - Os EUA já isolam todo o seu arsenal e desarmam os submarinos e aviões que compõem a tradicional frota de retaliação, depois que quatro aviões e dois submarinos explodiram causando danos irreparáveis e protestos formais nos países onde circulavam por ocasião do desastre. O Paraguai protestou energicamente pela
125
manutenção da base brasileira de El Chaco, mas as autoridades do nosso país asseguram que inexiste armamento nuclear naquele local. A Junta Militar chilena enviou todos os presos políticos (que oficialmente não existem) para as bases atômicas que mantém no sul do país, o que gerou intermináveis protestos das instituições e defensores dos Direitos Humanos, já que duas bombas de pequeno calibre detonaram naquela região eliminando 50% dos operários e moradores. Segundo informa o governo chileno, os presos políticos (usou outro aforismo do qual não me recordo), aprenderão a cuidar e a conservar o arsenal atômico naquela parte – uma temeridade sob todos os aspectos, pois eles poderão usá-lo a seu favor. Presume-se, porém, que os mesmo só aprenderão parte da coisa. 15 DE AGOSTO - Notícias da URSS dão conta que mais três bombas explodiram, todas elas de grande potência
(dizem:
uma
de
nêutrons),
causando
o
aparecimento de um deserto, destruindo a cidade de Prokopievski e regiões adjacentes. O sismo conseqüente abalou até o grande centro nuclear de Novisibirsk. A notícia veio sem maiores detalhes porque a agência noticiosa soviética prima pela concisão excessiva. Da China, através da Agência Nova China soube-se que a cidade de Anhsi,
126
próxima do Deserto de Shamo (Gobi), ao norte de Hsining, foi completamente destruída. Nenhum sobrevivente, entre homens, ovinos e caprinos, que formam um imenso rebanho naquela região. A Agência Nova China prometeu dar maiores detalhes, que são também de interesse do aliado EUA (para evitar maiores danos quando ocorrer lá), mas nunca se sabe quando os chinos vão informar algo. Confirmando uma previsão pessoal não há nenhuma conexão entre as explosões nucleares e o aparecimento dos inúmeros OVNI em toda a Terra. Os cientistas acreditavam primeiro na invasão de elementos alienígenas, mas agora estão convencidos que se trata de elementos altamente
radioativos
que,
penetrando
através
das
camadas atmosféricas, provocam a fissão de matérias nucleares e a conseqüente explosão de artefatos. Todos os elementos constituídos de tal matéria, dizem, estão sujeitos è explosão e à destruição total. 20 DE SETEMBRO - Nasceu o primeiro dentinho da Marcela, uma de minhas filhas gêmeas. A outra, Ludmilla, já tem os mesmos sintomas, febre, coceira e irritação nas gengivas, mas o médico diz que não crê que o aparecimento dos primeiros dentes provoque febre e tais reações. Um total de 1.879 bombas A, H e N já detonaram sobre a Terá neste curto espaço de tempo; a atmosfera se
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mostra irrespirável e tremendamente poluída em diversos locais; o jogador traz a bola até a marca do pênalti e faz o gooooollllll; afetando as reações pessoais em todos os humanos; segundo informações secretas (vazadas), existe já em alguns aglomerados de seres monstruosos resultante das explosões;... São reminiscentes; resistentes; o que sobrou da catástrofe; a população da Terra diminui sensivelmente;
envenenamentos
são
comuns;
os
científicos relatórios já apontam os filhos das bombas; monstros. 30 DE SETEMBRO - Consegui a muito custo um pedaço de carne para comer, apesar de não saber sua origem; as meninas estão bem; manchas na pele são tratadas com violeta genciana; contusões internas são curadas
com
maravilha
prodígio;
sinto-me
fraco;
a
maravilha prodígio é miraculosa e isenta de influências atômicas; cura tudo; coceira; contusões; feridas; irritações na garganta; as folhas continuam caindo das plantas e as ruas desertas dão idéia de filme, mas é realidade crua; as famílias
procuram
desesperadamente
se
unir
para
sobreviver; os estudantes sentem-se livres para protestar; o Congresso entrou em recesso permanente (os tecnocratas dizem que é econômico para a Nação e pedem a compreensão do povo); racionamento de combustível;
128
diminuir os gastos; aumentar as reservas monetárias; devemos comer pouco feijão e tomar pouco café; consumir pouco óleo de soja; combater a inflação... ... DE OUTUBRO – Esqueci de anotar no dia 23 de Junho, Festa de São João; balões; fogueiras; festa com cheiro de pólvora; rojão; as bandeirolas abandonadas; recordo um tempo alegre; não balas nem bombas atômicas; um distante tempo; sem sacrifício de gentes e animais sem remédio (para evitar monstros); a junta médico-veterinário
sugere
a
exterminação;
homens
vestindo macacões impermeáveis e isolantes catam nas ruas cadáveres; exterminam os sobreviventes que gemem; evitar a todo custo 1) proliferação de pestes; 2) fedentina que se espalha pelo ar e também mata; 3) sobrecarga nos hospitais e clínicas dos filhos da bomba; apesar de tudo a Ludmilla ainda não mostrou o primeiro dentinho, mas está bem; alegres e dispostas as crianças resistem; a mulher e eu ressentimos o excesso de trabalho para superar todo o infortúnio; parentes mortos; famílias dizimadas; 4) manter os locais limpos e isolados; 5) pulverizar e eliminar os animais espalhados pelo chão, usando mesmo o lançachamas; os jornais que conseguem ser editados só aumentam o número já incontável de cadáveres; as potências livram-se (tarde, muito tarde) de seus arsenais
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nucleares, inclusive enviando-os ao espaço sideral; alguns militares ainda resistem à idéia, pois julgam que os OVNI estão preparando a invasão da Terra e vão encontrá-la desarmada; alguém traz um pouco de feijão preto, soja, arroz, o que dá para agüentar um pouco; outros dias melhores virão (digo de mim pra mim); contínuos pagamentos
de
aluguéis,
taxas
de
lixo,
sindical,
condomínio, ar, fazem-se permanecer vivo, apesar de não ter recebido aumento de salário; meu locador consegue vir todo fim de mês receber o aluguel, apesar de ter perdido um perna e de não te sequer onde gastar o dinheiro que recebe. 23 DE novembro??? - Aliás, não sei, hoje é qual dia? Talvez seja dia de parar... Tanto tempo a contar dos dias que eles acabam se perdendo... 28 DE ... - Alface, água... Carne, cor... Basta! Basta! Não maltratem as crianças, as criancinhas não... 1º ................... Cinza, tudo cinza, água e cimento, névoa cinza, negra... ............................................................................................... ...............................................................................................
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OS OLHOS OBLÍQUOS DO ORIENTE ou NIHON NI ITEMO SHO GA NAI
Não há jeito de ficar no Japão (Imigrante de Tomé-Açu, PA). Kimigayo Teu seja um reinado feliz de dez mil anos. Siga reinando, ó Soberano, até que o cascalho de hoje se aglomere, no decorrer do tempo, em sólidos rochedos cujas faces veneráveis o musgo virá forrar. (Hino Nacional do Japão) Junho de 1908. 41º ano da Era Meiji. Numa manhã nebulosa o Kasado Maru atraca no Porto de Santos trazendo a primeira leva de imigrantes japoneses. Não foi uma viagem fácil, mas causou admiração aos bárbaros a limpeza e higiene mantida no navio, mesmo nas classes inferiores. Soube-se logo que não chegava faminto ou
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maltrapilho (ninguém tinha idéia da migração organizada), diferentes, sim, algo esquisitos, mas não inferiores. A maioria trazia o sonho de riqueza unido ao ideal de retorno à
pátria-mãe.
temporários,
Eram
numa
apenas
terra
zairyumin,
distante
e
residentes
desconhecida.
Acompanhava-os, porém a determinação de vencer, muito embora essa determinação inicial se transformasse, com o tempo, em mera utopia. Ao chegar numa terra estranha, mesmo cheio de esperança e coragem, o imigrante sente saudade, aos poucos a imagem do país natal e das suas coisas se desfazendo, se transformando em fantasmas, mesmo que algum
parente
tivesse
ficado
tomando
conta
das
plantações, dos animais, das casas Aos poucos a distância se transformava numa realidade palpável e a dificuldade de retornar numa barreira intransponível. No entanto, o Japão ficou pequeno demais para eles. Não herdaram terras, não herdaram plantações. Na nova terra, porém, havia esperança de ganhar muito dinheiro, quem sabe adquirir propriedades, vencer na vida. Chegar aqui sem qualquer recurso, hadaka ikkan, sem o privilégio do herdeiro de uma propriedade ancestral e conseguir tudo o que jamais teve, voltar para a home (casa) com muito dinheiro, nishiki o
kazaru, na felicidade, na glória!
132
Longe dos seus e do culto do amor a seus antepassados, uma promessa de vitória dada com o yô i
don, sinal de partida, no distante litoral paulista, manhã de junho, 1908... Ressoa na distância um emotivo naniwa-bushi, receitado ao som das cordas plangentes do shamissen.
Pai:... Vou voltar para o Japão... e junto com Noboru vou viver feliz no outro mundo... Ah, o sol ta nascendo... Tô vendo o Japão!... Aí tá a aurora do Japão. É o Japão... Noboru, já vou. Papai também vai aonde você foi. Ah! To vendo o Japão... tô vendo o Japão... To vendo o Japão bonito... (morre) (Fuyuhiko Yamaji – Monólogo do Velho Imigrante) Abril de 1956. Yukawa chega a Belo Horizonte chefiando a missão destinada a estudar o apoio de empreendimentos
siderúrgicos
em
terras
mineiras.
Destaca-se um ambicioso plano siderúrgico nascido de uma reunião de 31 de março na sede da Sociedade Mineira
133
de Engenheiros. Na pia batismal, a USIMINAS. Não enfrentaram os japoneses percalços tais ocorridos naquela histórica viagem do Kasado Maru há 48 anos. Os confortos da moderna aviação, a rapidez dos jatos, transformam viagens intercontinentais em poucas horas de lazer. 134
A imigração japonesa continuou célere, com uma breve recessão durante os conflitos da II Guerra Mundial. O yamato desmashii também mudou muito. Não mais aquele espírito
japonês
radical
dos
velhos
imigrantes
que
morreram sonhando em voltar para a terra-mãe, que morrendo enviando seus espíritos para o oriente e lá se juntarem a seus antepassados. Valeu o sacrifício dos pioneiros. Trocar o tatame pelo desconforto de uma cama ou uma rede. Esquecer a tigela, tchawan, o hashi, pelo prato e colher. Ser ensinado a comer feijão preto em lugar da soja e, às vezes, a pinga no lugar do sakê. Todo
esse
sacrifício
valeu,
valeu
também
o
esquecimento momentâneo das coisas da terra distante, esquecimento forçado pelas reais circunstâncias. Hoje as casas foram reconstruídas em moldes oriundos, já que o pensamento de fazer dinheiro e voltar à terra foi sendo esquecido aos poucos. Não mais um yoshi, filho adorado pelo Brasil, e sim um yokoku (Brasil = terra adotiva), não
mais regressar ao Japão e sim bokaku homon, visitar a pátria-mãe. O retorno também ao missô e ao shoyu, condimentos à base de soja, ao sabor acre do tsukemono, picles feito em barris especiais. Não mais casar os filhos com nisseis e finalmente ter em casa o tokonoma onde fazer orações, beber chá e vez por outra vestir o quimono, vindo do Japão para ocasiões especiais, celebração do Shihohai ou cumprir rituais diante do butsudan.
...quando aqui cheguei, era apenas um dos 500 mil japoneses radicados no Brasil, sem nenhum amigo. Sentime solitário. Com o passar do tempo foi aumentando o número de amigos e acostumei-me tanto com este país que hoje lastimo ter de deixar esta terra. (Yukichi Sugihara – Discurso, 1966). O intercâmbio Brasil/Japão evoluiu a passos de gigante. Marcante exemplo é a própria USIMINAS, que mantém um intenso e constante fluxo de pessoa, provocando tal troca-troca de conhecimento valiosíssimo para ambos, evidenciando fantástica evolução na amizade dos
dois
países.
Novos
inventos
são
diariamente
patenteados mostrando a absorção da técnica importada. A cultura dos povos também foi sumamente enriquecida: em qualquer lugar, nos terrenos baldios da paulicéia e algures,
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quiçá mesmo em Ipatinga, crianças com rústicos tacos de beisebol lançam as bolas e correm para as bases em desabalada
carreira.
Os
restaurantes
típicos
vivem
abarrotados de brasileiros saboreando bolos de arroz, peixe cru, origuiri, makisushi. Nas festas promovidas pelas colônias o pessoal da terra não resistiu à alegria contagiante do bon odori, dança bem ritmada, típica do Japão. Até mesmo as raças se fundiram harmoniosamente, resistindo pouco aos tradicionais casamentos das isseis vindas especialmente para cassar com o imigrante Os que aqui chegavam sozinhos não tinhas as dificuldades limitadas à alimentação e à falta. Com uma empregada à disposição, sem intérprete, forçava um contato cotidiano mais íntimo, do qual muitas vezes floriu o amor e conseqüentes frutos... Os imigrantes são religiosos e místicos. Católicos ou cristãos, fiéis às religiões antiqüíssimas, o xintoísmo, budistas, ou adeptos das novas religiões: o Seicho-no-ie. Muitos brasileiros aderiram fielmente às religiões orientais, principalmente ao budismo e reverenciam diariamente o seu gohozon. Festeiros, aderiram também animadamente às festividades e rituais, o Shihohai, o Kegen Setsu ou meditando em profundo silêncio ante o butsudan. Alguns poucos vão mais longe: buscam o ensino mais puro do
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bushido, originário das antigas raças samurais, do issei ao sansei, enfim, muita coisa ocorreu: com os que aqui chegaram em 1908 veio uma nova raça. Os descendentes são japoneses só no gentílico, pois na realidade são bons brasileiros, esta é sua terra, a terra de seus filhos e netos, a terra onde o yamato damashi repousa em paz.
Como a folha Que flutua com leveza E no chão pousa.
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RESUMO DOS CAPÍTULOS ANTERIORES De repente, como numa alucinação geral, os povos do planeta Terra entraram em violenta guerra total. Nesse conflito armado não existiam nações aliadas, todas eram uma contra outras, formando uma interminável cadeia de ódio e destruição jamais imaginada. Resultou de anos e anos de pequenas guerras e conflitos urbanos que se julgava sem importância. A explosão total foi inevitável e se propagou. Todos se desentenderam e começaram a jogar bombas uns nos outros ainda experimentais, se achava no direito de utilizá-las, ou seja, de atirá-las nas outras nações, dando como cumprida a sua perene missão, pois não é próprio das bombas destruírem tudo? E até que o estoque delas acabasse – e que morram todos os responsáveis e herdeiros de sua confecção, muito fogo se fez, muita destruição irrecuperável, vidas e almas, olhos. Quem olhasse a Lua, por exemplo, acharia um lindo espetáculo de pirotecnia – lá de cima ver a Terra envolta em falsos fogos de artifício, porém letais. Mas aqui embaixo, ninguém dos que vivem na superfície e nem
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mesmo Dante jamais conseguiria descrever o inferno mais cru, melhor ou pior. Quem pôde se entocou e quem não pôde vagou a ermo pelo terreno destruído catando e comendo alimentos envenenados, restos mortais prestes a se desintegrar e também a quem o engolisse. Os entocados mantiveram-se em vida subterrânea eternamente retidos nas profundezas da terra pelo medo genético da destruição da superfície. Apesar de estar em formação uma nova geração entre eles, é um povo frágil e morrem a qualquer queimadura solar, não têm defesa contra qualquer bactéria ou vírus e muito menos contra as tribos selvagens da superfície, dos quais pretendem superar pela inteligência. Os desentocados ou da superfície estão ainda por aí vagando sem eira nem beira tal como lhes foi transmitido pelas gerações anteriores. Curvados quase até o chão, nus, a pele coberta de pêlos protegendo o corpo das intempéries. Vivem em pequenos grupos, nômades, esgravatando o chão e comendo larvas, dormindo e fornicando, tudo instintivamente como se soubessem que
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depende de comer, descansar e fazer amor, a formação de descendentes mais fortes e sabidos. Nenhuma geração ainda se fez, pois muitos morrem cedo largados ao tempo. O instinto de proteção do semelhante é mínimo, a terra é um poço de fogo e lama venenosa, os inimigos são os mais ferozes e selvagens animais, o ácido deformador e corrosivo, o vapor letal que emana de gêiseres atômicos e devem ser evitados a todo custo. Lentamente um povo começa a conhecer o outro: os subterrâneos começam a explorar e pensam em conquistar a superfície; os da superfície – que são selvagens, mas pacíficos – querem só sobreviver e para tal resistem a qualquer ser estranho. Então...
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(ÚLTIMO CAPÍTULO) Kriller tentou se aprumar com jeito para ver quem se aproxima. Ao longe, metido entre a poeira constante, um vulto chegava lentamente. O corpo de Kriller não alcançou totalmente a posição vertical e seus olhos enxergavam muito mal à distância, mesmo assim deu para confirmar o que já suspeitava. - É o Conquistador! Avisou em gritos e pulos. Seus companheiros apenas fungaram e continuaram na azáfama de colher raízes de capim e comer os bichos verdes que se acamavam não caules. Outros se limitavam a mastigar as partes mais tenras das folhas do capim sorvendo-lhe o sumo e jogando fora o bagaço. Pouco ligava seriamente para a advertência de Kriller, já acostumados com o visitante. - Vem a cavalo! Vem a cavalo! Gritos e pulos. Muitos poucos mesmo (somente os mais velhos) se lembravam do gosto acre da carne animal e apenas esses abandonaram um pouco a curvatura para dar uma saudosa
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mirada no animal peludo e logo tornaram ao descuidado labor. O cavaleiro guardou uma distância preventiva apesar de saber por informes que os seres curvados eram mansos. Mas nunca se sabe quando os mansos se revoltam. Daí então desfolhou um papel comprido e começou a leitura do texto entremeada de olhares furtivos e medrosos, pouco se importando se alguém ligava ou entendia alguma coisa do que falava. Apenas cumpria com seu dever – temerosamente – e o resto que se danasse. Quanto mais rápido saísse daquele local tanto melhor para sua delicada epiderme e para os eczemas letais causadas pelo ar exterior que já começavam a se irritar perigosamente. Somente Kriller chegou a perceber sinais do medo que se apossava a cada instante do cavaleiro. E pensou mais uma vez se valeria então tentar algo. O covarde subterrâneo certamente sairia correndo como pudesse para salvar a pele. E o lucro obtido seria apenas aquele cavalo peludo, que se mantinha firme num porte clássico agradando a Kriller. E também o perigo de perseguições futuras por vingança do ato revoltoso.
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Que fazer como o cavalo? Sem arma para matar, sem faca para cortar, com dentes podres e sem organismo para aturar a carne crua, pouco proveito tiraria do animal. Só serviria para comandar seus companheiros do alto – desagradável posição, mas cômoda. Pensava, porém no trabalho que daria para descer toda vez que quisesse comer algum capim ou verme, ou mesmo beber água, ou defecar, ou ter relações com uma ou outra fêmea, ou urinar... Ia ser uma trabalheira, sem dúvida, que a sua liderança sobre aqueles desligados companheiros não compensava. Ademais por certo outros conquistadores seriam enviados para estudar a situação e as escaramuças seriam inevitáveis, com mortos e feridos. A tribo ou o que fosse esse aglomerado de gente seria desmantelado mais uma vez e por certo o trabalho de reuni-los e tornar a cultivá-los se tornariam muito demorado e trabalhoso. Por outro lado o cavalo, sua posse física, levaria Kriller a outros lugares mais distantes e então inatingíveis, podendo assim reunir mais gente que viva dispersa (essa sua preocupação maior) e capturar outros cavalos errantes e abandonados. Talvez pudesse melhor aproveitar aquelas
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pedras cortantes e pontudas se achasse alguns pedaços de pau forte para sustentá-las. Algum instrumento que melhorasse a vida de todos e que pudesse ser utilizado conjuntamente com o animal. Kriller estava pensando seriamente numa arma: enquanto isso era obrigado a aturar seguidamente as intermináveis dissertações de gente que seus antepassados jamais viram e somente nas épocas de violentas sucessões desses grupos tomavam conhecimento deles. Em particular no presente caso ou nas constantes instigações de guerra, material e de conquista, a outros povos subterrâneos, vizinhos alienistas. Dentro em pouco, acabada a preleção do Conquistador, o representante do grupo rival chegaria com a mesma lengalenga. Como os demais, o discurso versaria sobre o incontido progresso da nação se industrializando, comercializando com os outros povos mais ricos, as vantagens de participar de tudo isso pagando impostos com trabalho, pensando no futuro, guardando-o para seus filhos fazendo seguros e mais seguros.
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(A vida não é brincadeira! dizia nesse exato momento o inusitado cavaleiro), sobre o progresso econômico, das elogiosas reservas monetárias, das máquinas e aparelhos supernovos aptos a produzir tudo, sobre a química, a petroquímica, a física, a atômica (somente nessa hora alguns curvados arribaram perceptivelmente as orelhas: onde e quando ouviram essa mesma palavra? O resto era tudo coisa de não perturbar a tranqüilidade do cotidiano. Por isso mesmo os conquistadores teimavam em insistir com a doutrinação – uma doutrinação do vazio – numa esperança de que um dia, num futuro que não imaginavam, atraíssem Kriller e seus companheiros e depois outras tribos dispersas que povoavam as terras perigosas semidesérticas, os áridos montes, as planícies devastadas. Isto
porque,
tendo
os
conquistadores
saídos
recentemente do subsolo, não podem resistir à vida externa sem graves perdas físicas. A sua pela era desastrosamente alva e de fina tessitura. O organismo não resistiria ao menor calor, desidratando-se em poucos segundos. Os órgãos internos não reagiam ao menor sinal de vermes e o pulmão ao primeiro espirro parava de funcionar.
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Unindo a excelente inteligência (única coisa que puderam cultivar no silêncio eternal em que viviam) ao vigor físico dos externos, poderiam avançar cada vez mais sobre as terras inconquistadas – tal era a sua idéia – progredir,
empurrar
e
expulsar
reconhecido por todos como
os
outros,
fazer-se
potência. Porém, tais
pretensões sempre esbarravam na infinita e indestrutível paciência dos homens curvos. Eles realmente só queriam comer larvas, sorver algum líquido que acaso aflorasse na terra e nas noites escuras fazer amor e olhar as estrelas que surgiam entre os rolos de fumos envenenados, cintilando no infinito. Somente um ou outro como Kriller pensava em mudar tudo isso, mesmo sem conhecer o caminho a ser percorrido. E, olhando para seus filhos que rolavam o dia todo nas areias e na vegetação rasteira, nutria secretas e violentas
intenções
para
com
os
conquistadores,
prejulgadas e condenadas como os causadores de uma situação dramática que, por certo, ocorreria sem meios de se evitar. Aquilo lhe era transmitido em sonhos e em visões.
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Então, um dia, um ataque de ira coletivo tiraria seus companheiros do marasmo que vivia e tudo seria como imaginava. Tudo correria bem. E na próxima população, talvez seus netos já pudessem incluir alguns pedaços de carne em sua refeição. Um ou outro território se juntaria à sua vila provisória, escorraçada e morrida, aumentando a população e ficando mais algum tempo. Com essas confusas idéias Kriller se aproximou do Conquistador que continuava a falar, falar, como se fosse um gravador, relatando o texto palavra por palavra e sem qualquer entonação emotiva. - É de ferro! Mandaram um cavalo de ferro! Kriller não sabe se gritou, se pensou algo demais ou se transformou sua admiração em berro e pulos. Era a primeira vez que via um animal de ferro, apesar de já ter ouvido boatos de que estão substituindo-os pelos de ferro e que existem somente uns poucos animais de pêlo vivos. Os raros espécimes ainda vivos eram preservados para reprodução, mas a espécie estava mesmo condenada à extinção. E nada nem nenhuma ciência os fariam multiplicar. Os poucos que restavam eram vendidos e comidos por gente ambiciosa – subterrâneos, naturalmente que não sabia viver sem carne.
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Kriller se aproximou mais um pouco e viu os parafusos nas juntas e no casco de metal ferroso. O óleo escorria pela boca e pelas pernas sujando o pelo falso. Os olhos de vidro nada viam e a postura inevitável era a mesma de uma estátua. Sem assustar o Conquistador, Kriller se aproximou mais do que pôde e soltou um lancinante grito, que assustou não só o Conquistador como também seus próprios companheiros, que se abaixaram ainda mais, como que buscando enterrar o corpo na areia. De medo, medo puro. O cavaleiro, que nem teve tempo de movimentar o animal, conforme Kriller calculou, saiu numa desabalada carreira a pé. Minutos depois alguns mais corajosos conseguiram levantar a cabeça. Todos então viram Kriller enlevado acariciando o peludo cavalo: as pernas, a cabeça, a cauda alongada que quase ia ao chão, aos olhos de vidro brilhante, para logo depois criar disposição e, não sem sacrifício – que não era costume, montar o animal.
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Ninguém pensou logo em voltar a comer vermes ou sugar o sumo do capim. Todos se admiravam e soltavam murmúrios e gritos de alegria pelo feito. Olhavam Kriller agora como a um deus, o que aumentou o respeito nutrido por ele. 149
Postando no alto da cavalgadura Kriller esforçava-se por manter o corpo ereto. Pôs o animal em movimento e assim, reto como o cavaleiro que veio como o animal, passeou entre os colegas recebendo o carinho de todos, a aprovação pela audácia, a adesão para novas conquistas. E assim ereto, a fronte erguida de orgulho, soltou um novo grito, no que foi desta vez acompanhado com berros e pulos de todos os membros da comunidade. E na próxima geração, se tudo corresse como planejado, já poderiam incluir carne em sua refeição.
O AUTOR Salomão Rovedo (1942) teve formação cultural em São Luis (MA), desde 1963 mora no Rio de Janeiro e participou dos movimentos culturais e políticos nos anos 60/70/80. Tem textos publicados em Abertura Poética (Ant.), Walmir Ayala e César de Araújo, 1975; Tributo (Poesia), 1980; 12 Poetas Alternativos (Ant.), Leila Míccolis e Tanussi Cardoso, 1981; Chuva Fina (Ant.), Leila Míccolis e Tanussi Cardoso, 1982; Folguedos (Poesia/Folclore), c/Xilos de Marcelo Soares,1983; Erótica (Poesia), c/Xilos de Marcelo Soares, 1984; Livro das Sete Canções (Poesia), 1987. Publicou os seguintes e-books: Porca elegia (Poesia), 7 canções (Poesia), Ilha (Romance), A apaixonada de Beethoven (Contos), Sentimental (Poesia), Amaricanto (Poesia), Arte de criar periquitos (Contos), bluesia (Poesia), Mel (Poesia), Meu caderno de Sylvia Plath (e-recortes), O sonhador (Contos), Sonja Sonrisal (Contos), Cervantes, Dom Quixote (Artigos), Gardênia (Romance), Espelho de Venus (Poesia), 4 Quartetos para a amada cidade de São Luis (Poesia), 6 Rocks Matutos (Poesia), Amor a São Luis e ódio (Poesia), Stefan Zweig Pensamentos & Perfis (c/Silvia Koestler), (Antologia), Viagem em torno de Dom Quixote (Notas de leitura), Três vezes Gullar (Ficção), Sonetos de Abgar Renault (Antologia), Suite Picasso (Poesia), Literatura de Cordel (Ensaio), Macunaíma em cordel, A estrela ambulante (Contos). Publicou folhetos de cordel com o nome Sá de João Pessoa. Editou a folha de poesia Poe/r/ta. Colaborou esparsamente em: Poema Convidado (USA), La Bicicleta (Chile), A Toca do (Meu) Poeta (PB), Jornal de Debates (RJ), Opinião (RJ), O Galo (RN), Jornal do País (RJ), DO Leitura (SP), Diário de Corumbá (MS)... e outras ovelhas desgarradas. e-books grátis em: www.dominiopublico.gov.br e outros sites. Foto: Priscila Rovedo
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