Salomão Rovedo - Caderno elementar (textos reciclados)

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SalomĂŁo Rovedo

Caderno

Elementar

(Textos reciclados)

Rio de Janeiro 2003/2007


Os textos a seguir vieram do entremeio de outras formas, mescla de prosa e poesia, arrancados ao léu... Relidos numa outra ótica e ética, assumiram circunstâncias arrebatas de uma raiz que não possuíam na origem. Ali serviam a um conto, um livro de poesia, ou ensaio, veios vertiginosos de artigos inflamados. Agora servem a outro senhor, procuram servir de exemplos, buscam servir-se de uma visagem diferenciada do que um dia ou uma noite representaram, serviam, servem, servirão, servem-se. Uma garrafa de Coca-Cola vazia será o invólucro da água mais pura, sem corantes, sem adoçantes e sabores, artífices de mentiras gustativas. Pois o texto está mais seco que o ar do deserto, desumidificado, ar como lâmina, sem vapores, sem a garoa paulistana da qual tanto o Mário de Andrade se alimentara. E vem sem enfeites e proveitos... Uma leitura sem ensinamentos, como queriam os frutos da terra, os dias e os homens, novelas magníficas, exemplares demais, ó caminho de ilusão que se funde com o espaço que nos cerca e está tão além. Aqui nada se aprende. No entanto estamos numa terra de subúrbio, cercado de fronteiras onde a cidade só trespassa com suas balas perdidas. Nada além disso, nada além do sino da igreja que continua batendo às seis horas da manhã, do padeiro que levanta as portas debaixo desse aviso religioso. E das feiras aos domingos e do jornaleiro que leva os jornais às residências de modo a que o assinante não se perca do mundo nem perca a hora de descansar quando verificar que o jornal não servia para nada mesmo. É apenas um texto descartável, como os elementos o são.


FOGO & ÁGUA Somos criaturas das bombas e armas, as mais odiosas, instilado veneno, derramado sangue, não o leite, o pão: a oração é o som do tiro, o discurso, o tambor da guerra. Embebidos no líquido amniótico somos criminosos amador e amadas criaturas de Deus, transplantados de um mundo ainda encoberto, estamos bem aqui... Sob o sol inclemente nem mesmo a mais vil hera viça, o roto esqueleto repousa à margem do vulcão, e salga, onde o ser líquido em vão clama entre justiça e justiça. Somos nós, sim, monstros desgarrados, anjos de ódio, donos de sangue ruim, amamentados de leite amargo, rezamos a oração ao som da bomba e rogamos perdão. INFERNO & PARAÍSO A beleza deve ser amada, traída, odiada, em termos fatais, porque retorno do Inferno desesperado sem amor nem paz. É a perfeição em forma, em gestos o pequeno grande ser, fado, destino violento, onde o dragão e a magia habitam. A mulher construiu, inaugurou o Paraíso feito imperfeito, braços abertos, estendidos, crava-me com cravos no leito. Embora no céu vasto penetre quando em teu colo, mãe, desejaria ter nos lábios gotas espumantes de champanhe. TERRA & MAR Esta árida costela, Senhor, fria, use-a à tua disposição e mérito, acompanho pasmo o clangor dos rios entre margem e margem, ali onde determinaram os dedos astros, astrólogos, astrônomos, entre as mãos que desdenham o fácil e frio, moldam o impossível, entre o riso posto, impassível, de quem não prevê nenhum futuro, logo insubmisso a teu ardor, insubmisso a teu amor, insubmisso... navegarei os astros, pó volatilizado, pólen, grão fertilizado, irei, ou poderei de novo arcar a responsabilidade, fêmea inconcussa,


sim, ali finalmente serei outro barro amoldável, aço maleável, terra, Senhor, faz dela a tua serva, subalterna, escrava, semeadora do ar, todas as terras do universo, serva, se aqui mesmo não sobreviver, divagarei entre caudais de cometas ciganos, ali pousarei o sêmen. ÓDIO & AMOR Jogou o pacote de pão no lixo. Eu vi. Não estava à vista nenhum necessitado. A presença mais forte é a do amor, do ódio, do querer e não querer, do ficar e ir-se. Agora que estou longe, espero que o amor insista em perseguir sonhos e pesadelos. Não me atrai a queda, porque o caído supera o próprio existir, fotografias apenas. Ali mesmo, bem na próxima esquina a mulher amamenta o filho mal e porcamente. Atirou o pacote de pão na lixeira, pão fresco da padaria e um litro de leite e café. E foi apenas uma decisão pessoal: ela embrulhou os olhos verdes para outro. Fim. Embora veja os lábios de negra dela, grossos, carnudos, entreabertos de prazer, fico. Eu, a vítima. E porque ela não me quis. E por que me sinto atacado pela banalidade. Guardo os pães não jogados no lixo, eis a manteiga, aqui o café, leite quente, biscoito. Joguei o rancor na lata de lixo, o ódio que não tive preso na lembrança, a memória. Livrando-me do peso, querendo ser leve, sem direito de julgar o que fosse, ou seja. Algumas datas não se deve esquecer: 15 de outubro, 9 de maio, nascimentos, mortes. O momento é aqui e agora, a transposição, outro mundo, o corpo invoca-se e vai. Pode parecer uma atitude banal, mas não, não pensei na fome da mulher sentada. Porque não se ganha esperança, nem o dia de ontem: por que não desejar o amanhã?


JUÍZO & PERDÃO Recomeçar... Errar e de novo iniciar a caminhada sem fim. A cada passo deve-se, a cada passo paga-se débitos à vida. Palavras à livro vendem-se prometendo auto-ajuda e socorro. Porque não se dirige o homem finge que é escravo e dá liberdade. Recomeçar... Ninguém sabe o jogo que se jogará amanhã... As épocas e as leis se multiplicam para serem violadas. Ricas. Os juízes amam o poder sobre a vida alheia: julgar? Só aparência. A beleza descobre-se e a riqueza se impõe sobre qualquer verdade. Recomeçar... Errar e de novo iniciar a caminhada sem fim. Aqui se julga, aqui se paga. O tempo é curto na prisão de si mesmo. Na sala de perdão eles se movem como torcedores de futebol. Um dia de novo se poderá vadiar pelas ruas e becos vendo vitrines. Recomeçar... Ninguém sabe o jogo que se jogará amanhã... Naquele dia a fala e a fome perderão o sentido, quadrado vicioso. Terá valido a pena caminhar pelas areias da praia à meia-noite? Terá valido a pena voar pelos ares no entorno do pôr-de-sol? AR & AR Existe o ar que se respira e o ar que nos expira. Existe o éter. A nave que nos pariu e carregou antepassados interestelares. Existe o ar cuja ausência faz falta, eis o ar do último suspiro. A atmosfera submersa que sobrevive, que nos torna imortais. Existe o ar que pernoitou os séculos, nos túmulos piramidais. Ouro, prata, colares, anéis, os ornamentos protegidos pelo ar. Existe o ar refrescante, sombra que refresca o casal que ama. A brisa solene que castiga a todos por igual: eu, tu, eles, nós. Existe o ar cuja presença traz felicidade, o ar do suspiro dela. Notícia carregada na asa do vento, a lembrança mais distante. Existe o respirar ofegante entre amor e amor, desejo e desejo. O indecifrável ar da presença, na ausência eterna dela aqui... FORÇA & DEBILIDADE Longo itinerário, a dor, caminho do abandono. O sofrimento é a sombra que segue o homem. No entanto, ninguém vai ser feliz para sempre.


Se silenciar a mente para a sabedoria do sofrer. Já que a dor e a morte são eternos invencíveis. A porta da esperança abre-se para a humanidade. SAGRADO & PROFANO Mesmo para Deus, morrer é um ato absoluto, solitário, notícia de poucas linhas num canto perdido do jornal. Um tumor que cobre o céu como nuvem sombria, véu, algemas que nos amarram como correntes da lei divina. Quem dera Deus eleger-me um dos seus, com chamado e prometendo céus e paraísos, alguma eternidade e fé! De tão pouca fé, homem, se pouco arderá no purgatório, estaria aqui acorrentado esperando o beneplácito da lei? SONHO & REALIDADE A opressão social das pesadas responsabilidades, tédio, aqui estamos: os valores invertidos no trono da verdade, as raízes ciclotímicas que se deve despertar ao dormir. É legítimo o desejo de triunfar, vencer na vida, vencer? Sim, a exaltação e a depressão, como se pode ajuntá-las, girândolas e farândolas, sendas da arte, drama e comédia. Há também uma tristeza ativa, irreal, algo que se vê e não, o círculo vicioso da vida agitada, o desejo de ter e perder, quando se descortina a panacéia de livramento condicional. Onde está a objetividade, o que é o sonho, o irreal, o medo? Também os espectadores representam o pavor, a esperança, a fé para vencer a doença, dominar a depressão, o hermético... CORPO & ALMA A nossa vida é uma enorme caminhada: a aventura da volta é inesquecível. Totalmente.


Deus emana na terra a lei natural para todos os homens: ser feliz. Feliz aqui e agora. É bom saber que Deus é um pai assim, me erguerei e irei ao meu pai. Não espero. O homem é superior à matéria, não poderá perecer, apenas corrompe-se o que é material. Haverá mais alegria no céu por um pecador arrependido. Esse é o Deus que perdoa. No homem livre capaz de amar há um tesouro: Deus quer dividir esse tesouro consigo. O inferno existe porque nós construímos: ele se destruirá, como um sopro da sua boca. Depois da morte o homem continuará a viver, feito à imagem de Deus, igualmente. Salvar o que está perdido: um Deus criado à imagem e semelhança do homem, possível. Alguém que não tem capacidade de perdoar não é o Deus de lágrimas quentes abundantes. VIDA & ETERNIDADE A finalidade do homem é alcançar a vida feliz, capaz de saciá-lo na sua totalidade. O homem é imortal, porque sente faltar certeza do que virá depois da imortalidade. Quem semeia no espírito, nele encontrará a vida eterna, ora, que ele já está no mundo. Está estabelecido: os homens que morram uma só vez. Sem medo de ser julgado. Os filhos têm o direito de viver com o pai na sua casa, assim todos serão indivisíveis. Como se alimenta a semente da divindade, se desenvolve a semente divina. Finalmente. Se depois da morte o cristão não vive, erra, perderão ambos a alma num só corpo místico. Vida é tudo que se move, cresce, sofre, sente, podemos imaginar a semente de vida total. Agora meu conhecimento é limitado mas depois conhecerei, como sou conhecido.


Justificados pela sua graça, nos tornamos herdeiros da vida eterna, para sempre livres. Para salvar a humanidade com o espírito, não se compram almas de santos altivos. Para salvar a humanidade com o sangue, não se pedem cadáveres, mas seres vivos. PAIXÃO & TÉDIO Quando o rock apascentou o cotidiano no campo e trouxe consigo a explosão das cordas elétricas, tinha o sol de quarenta graus nas areias da praia, as garotas usavam biquínis sumários, bronzeador, pranchas começavam a voar sobre ondas quebradas, eram de aço os corações que derretiam sob o amor. Depois os gritos cantaram em vozes latinas e nossas, destroçamos as cordas da viola, pandeiros, tamborins, escolas perderam uniformes, barbearia abriu falência, passeatas contra qualquer coisa que afetasse o ardor, as reações arrotadas entre uísque, vodca, cana e rum, arrefecidos corações que se derretiam de sexo e amor. Conseguimos sim, o muro destruído, transmitir aos guris a sensação de prazer, liberdade, som renovado da balada, lubrificar as ferramentas, as motos, o couro da bateria, pegar a estrada, vagar nas praias, o nordeste sob calor, transar cheirado de cocaína vagabunda, fumar maconha, transfigurar em carne corações transidos de frio e amor. Agora que o fígado treme e o ambiente recende almíscar, que os acampamentos, as tendas e sapatos estão podres, as crianças acendem velas devotas, incensos indianos, sem compreender bem o que foi o rock de Elis, Belchior, nem entender o cabelo longo, barba, a roupa descuidada, sentem que não é de aço o coração, nem é eterno o amor. SAL & MEL Não sei por que logo agora fui lembrar do rio sob jussareiras, ali onde banhávamos nus, moleques adolescentes, após a aula.


Neste momento, fui lembrar de Ildegaard, nome reduzido a Ilde, filha do Cônsul dinamarquês que se juntou a nós, nua como irmã... Será que transmitiu aos filhos sonhados os olhos verdes de verão, reproduzindo neles os cabelos de ouro que liberavam raios de sol? Depois todos cresceram, se dispersaram adultos no mundo adulto, como, sem mais, ficamos sós, Ilde e eu, entre novos amigos distantes. Isso são horas de relembrar que Ilde recitava Y juca pirama, enquanto fingíamos estudar, sufocando-me os bicos corados dos peitos pequenos? Não sei por que fui lembrar dos olhos verdes, de como ela aprendeu a falar imediatamente a linguagem das águas e rápido virou moleca. E quando os seios foram devastados ela ensinou-me outros caminhos a percorrer, rio sem fim, floresta de pelos ruços, axilas, entre as pernas. Porque hoje Ilde é lembrança perene, fotografia em álbum esquecido nos guardados, baú de sombras, estrada de descobertas e sentimentos . O rio não existe mais, hoje é terra à pique, barro coberto de asfalto, pó, esgoto, muros, ruas, calçadas, bairros construídos onde havia o buritizal. MEDO & RAZÃO Este mesmíssimo coração de músculos e veias emerge do fundo do poço virado alma absorta. Qual o motivo do coração comandar o cérebro, quando ele se recusa a trabalhar, minar a vida? O coração autodepreciado não consegue falar, é na calada que se expressa, fatalmente imóvel. Buraco negro da razão, nem os médicos sabem porque, nem cientistas descobrem os segredos.


Quando o religioso extirpa do coração a reza, o dever de comandar a alma, mata a santidade. Coração é carne: se vibra como música, silencia, imolando o corpo, engole a ciência, devora a fé... Voltam-se para ele os enigmas da humanidade, nele estão depositados os mistérios do milagre. Coração transgressor, desde qualquer momento surpreende o homem com o silêncio absoluto. SIM & NÃO Narrativa do emigrante que um dia aqui há de descansar em paz: "A minha terra (que terra minha?), é esta que aqui estou e moro, que aqui aportei expulso, amaldiçoado rapaz, ansioso, fugaz. "A minha terra não é aquela que não me quis quando a deixei, que me empurrou para uma guerra que não plantei nem fiz. "A minha terra é a que planejei, árvore, construí casa, cafezal, horta, ou aquela que me deixei levar, mares, peixes, praias. "A minha terra não é aquela que não me quis quando voltei sorridente, contando as aventuras, o dinheiro, os filhos, que colhi o que plantei. "A minha terra é esta aqui onde jogo baralho com amigos, pretos, brancos, vindos de tantas terras quantas há pelo mundo distante. "A minha terra não é aquela que desconheceu a minha ajuda, que me anunciou bandido, desertor fugido dos eitos das rias baixas... "A minha terra é esta aqui, onde não cai neve e bebo vinho tinto gelado, como o bacalhau salgado com as mesmas patacas inglesas do quintal.


"A minha terra não é aquela que a TV via satélite mostra, bonita, moderna, onde o velho porto se transformou em shopping, os castelos em hotéis. "A minha terra é esta aqui que me tirou os filhos de casa para vir os netos, rabiscando velhos livros, azucrinando os ouvidos quando perco na bocha. "A minha terra não é aquela que enterrou meus irmãos em silêncio, que deixou as algumas irmãs num asilo bonito, de portas abertas e coração fechado. "A minha terra é esta que aqui estou vendo o pôr de sol ao lado desta senhora, brasileira, cujos olhos verdes me aqueceram desde o primeiro instante... GUERRA & PAZ Poderia cortar o pulso sob a água morna: sentirei dor? As navalhas machucam, o sangue espirra, o corte dói... Podia pular do vão central da ponte não fosse a umidade, quebrar as costelas, pernas, braços, vísceras expostas. Pela primeira vez poderia provar ácidos, ficar doidão, mas ácidos mancham, drogas dão calafrio e câimbras. As armas são legais, um tiro no ouvido, um fio de sangue. Forca? Enforcado, figura de baralho no Tarô, improvável. Vamos fazer as contas: quem fica, sim, terá tudo resolvido, sei que vou decepcionar amigos, culpados ficarão impunes. Gás de cozinha cheira mal, oh, Sylvia Plath, socorra-me! e diga-me, não haverá explosão, bombeiro, defesa civil? Vejo tantas pessoas chorando em meu enterro, inclusive as que não amei por absoluta fidelidade ao meu melhor amigo! Devo $$, tenho pecados a pagar, dívidas morais pendentes, com todo esse peso nos ombros não é melhor continuar vivo?


LIBERDADE & MORTE Talvez agora a profecia se cumpra. Já é hora... A liberdade está cinco quilômetros mais longe. O vento diz que a noite será chã. A maré se vai, estrelas reinarão até quando amanheça amanhã. Vejo-me vestindo ruga, cabelo ralo, encaniçado, corpo reles, lençol molhado de urina, sopro raro. Como alimento preciso apenas de caldo quente, café amargo, um charuto puro, a taça de vinho... Enquanto a liberdade vem, é próximo o sonho. E o que sonho? Que derrama o corpo de você sobre a cama suja e cheira a leite hemorrágico. Não é trágico? Talvez o fado se cumpra. Lá fora a liberdade defunta em gota de lágrima se esvai: como sentir o sexo de você como perfume caro?


SAGRADO & PROFANO Mesmo para Deus, morrer é um ato absoluto, solitário, notícia de poucas linhas num canto perdido do jornal. Um tumor que cobre o céu como nuvem sombria, véu, algemas que nos amarram como correntes da lei divina. Quem dera Deus eleger-me um dos seus, com chamado e prometendo céus e paraísos, alguma eternidade e fé! De tão pouca fé, homem, se pouco arderá no purgatório, estaria aqui acorrentado esperando o beneplácito da lei? “Os segredos também são gente: nascem, vivem e morrem”, disse Armando encerrando uma conversa a que foi chamado. Diariamente ele chegava de braços dados com dona Valdina, se despediam com uma troca de beijos, ela seguia por mais um quarteirão até a igreja. Armando ficava parado mais um momento olhando a mulher se afastar, atravessar o sinal de pedestre do cruzamento, subir a escadaria, até sumir lá dentro da igreja – e só então ele entrava no bar. Armando sentava-se, abria o jornal para ler enquanto esperava ser servido da cerveja preferida, em tulipa que exigia gelada. Em média consumia uma ou duas garrafas da cerveja preta, dependendo da disposição física... e do calor lá fora. Bebericava a cerveja com prazer e só desviava a atenção do jornal para cumprimentar um, receber abraço de outro, um bom dia, outro até logo. O Bar e Restaurante Ponte da Barca – nome novo que ganhou após a reforma – era normalmente freqüentado por gente por demais conhecida, do bairro, portanto não havia ninguém que desrespeitasse aquele ritual extremamente particular. Para Armando, freqüentar a igreja era um sofrimento moral. Ver as pessoas piedosamente devotadas, absortas numa oração na qual tinham fé de resolver algum problema, era apenas um dos motivos pelos quais renegava a religião. É verdade que tinham esperança, mas quantas não foram desperdiçadas caminhando entre o desespero, a fé e a desilusão? A relação religiosa com a mulher passava por tais conversas íntimas, mas nunca Amando pensou ou mesmo sugeriu que ela abandonasse a devoção. Quando muito é certo que um e outro imaginasse trazer a ovelha desgarrada para seu


rebanho. Se não conseguiam, porém, não era motivo para revoluções. Bem que ele lutava por conseguir espaço, mas enfim entregava os pontos. Contra aquela cabeça, já santificada pelo tempo, nada podia. Na realidade o ateísmo de Armando nada tinha de político ou filosófico, por mais que se esforçava por mantê-lo nesse nível. Para alguns nem era ateu e sim agnóstico, desses que preferem não se meter na vida de Deus nem contestar-lhe a onipresença e eternidade. Achava simplesmente que a vida começava e acabava aqui mesmo e com esse pensamento simplista buscava viver uma vida pacata, sem apoiar maldades, contrária às guerras e revoluções, mesmo que estas se limitassem ao bairro em que morava ou na vizinhança suburbana que optara por levar a vida. Mas Armando quando tinha de ir à igreja comportava-se exemplarmente. Não se via nele nenhum cenho franzido, não faltava aos presentes um sorriso, nem um abraço ou uma palavra ainda que fosse das mais curtas. Cumprimentava a todos, os já conhecidos de outras ocasiões, quando reconhecia algum parceiro de bar esvaziando a despensa da alma de alguns pecadinhos. No íntimo divertia-se com a liturgia, pensando filosoficamente o quanto os homens eram ingênuos em acreditar em fatos tão irreais quanto fadas e gnomos de floresta. Fora isso, apreciava a arte sacra: os vitrais cuja mágica iluminação provocava efeitos impressionantes, quando varados pelos raios do sol da manhã; as pinturas imitando quadros renascentistas; as imagens de gesso tipo barroco; o canto gregoriano. Mas esse era um momento raro. A sua igreja era a mesa do bar, onde ele se sentava e tinha prazer de estar sozinho. Pela popularidade, porém, em seu redor nenhum espaço ficava vazio por muito tempo. Tinha sempre alguém querendo saber alguma coisa, tirar uma dúvida, esclarecer quem tinha razão numa discussão. E lá ia Armando deslindar a história de modo tal que havia de dar razão a um sem tirar a do outro: por instinto era de agir diplomaticamente. Não tendo o pecado daqueles que matam e morrem por uma opinião, propagava, principalmente nos mais jovens, que estimulassem entre si a dissensão, a dúvida, o contraste, a rebeldia. Para dar ênfase, repetia a frase de Nélson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra.” Seja como for, o fato é que estranharam a ausência de Armando por quase uma semana. Algo havia acontecido e procuraram saber.


Antes que descobrissem, num Domingo desses lá chegou Armando à porta do bar. Chegou só. Antes de entrar parou um momento e ficou olhando a calçada vazia, como se estivesse vendo dona Valdina se afastar, parar no sinal de pedestre, atravessar o cruzamento, subir as escadas e desaparecer no interior da igreja. Depois dessa pausa misteriosa, quando então ele resolveu entrar no bar e sentar-se, todos adivinharam o que tinha acontecido: Armando agora estava só, perdeu o braço de apoio. Ninguém falou disso, é hora em que a notícia tem de chegar sozinha, com o tempo certo, pausadamente, mas quem o via ali sentado tomando cerveja preta com o ar absorto, não duvidaria do que se passou. Fora isso, Armando manteve a rotina, chegar, sentar ler o jornal e conversar com todos. Retomou o charuto que lhe foi proibido por Valdina nos tempos de namoro, agora se demorava mais, passou para quatro cervejas, almoçava frugalmente e só saía quando o bar fechava as portas. Um novo ritual criou-se: aqueles que ele costumava deixar ali ainda em conversa animada agora saíam antes dele. Muitos se despediam outros só acenavam, algum que tinha bebido um pouco demais ousava sentar-se e contar alguma mágoa. A mesa solitária, que habitualmente se esvaziava primeiro, agora era a última a ser desocupada. A cédula de um real debaixo da tulipa. No último Domingo, todos acabaram as discussões de fim de semana, contaram as últimas piadas, comemoraram as decisões que o governo sempre toma a favor dos mais ricos com um copo de cerveja. Não deixaram de cumprir o ritual de ir a Armando fazer uma ou duas perguntas, tirar uma dúvida ou dar um tapinha nas costas que fosse. Ultimamente até se lembravam de trazer-lhe um charuto e houve quem, com orgulho, transferisse a ele um legítimo Havana ganho de presente. Os empregados passavam e comentavam alguma coisa, geralmente lamentos, queixas. Armando dava também uma palavrinha: “Não é motivo para que perca a vontade de vencer. Esperança, esperança, a esperança é a meninice do mundo”... Estava a manhã chuvosa e o restaurante sem a freqüência habitual, pequeno de gente, sem o burburinho comum. Nesse dia Armando ainda chegou a pedir a terceira cerveja preta. Servida, ficou ali a tulipa de repouso, esquentando, perdendo a espuma, o charuto deitado no cinzeiro soltando a fumaça azul no rumo do teto. De repente Armando sentiu umas flutuações estranhas no peito, desentranhou aquele silêncio que se fez repentino sem nenhum


gesto. Será que todos já se foram? – perguntou para si mesmo. Ainda recordou a frase que não disse: “...viver a vida e sair deste mundo o mais tarde que puder.” Lamentou que Valdina estivesse demorando tanto. Sentiu um sono cansado, fechou os olhos, arriou a cabeça. Os garçons limpavam os pratos, secavam as tulipas, outros colocavam as cadeiras sobre as mesas para varrer o chão.


SONHO & REALIDADE A opressão social das pesadas responsabilidades, tédio, aqui estamos: os valores invertidos no trono da verdade, as raízes ciclotímicas que se deve despertar ao dormir. É legítimo o desejo de triunfar, vencer na vida, vencer? Sim, a exaltação e a depressão, como se pode ajuntá-las, girândolas e farândolas, sendas da arte, drama e comédia. Há também uma tristeza ativa, irreal, algo que se vê e não, o círculo vicioso da vida agitada, o desejo de ter e perder, quando se descortina a panacéia de livramento condicional. Onde está a objetividade, o que é o sonho, o irreal, o medo? Também os espectadores representam o pavor, a esperança, a fé para vencer a doença, dominar a depressão, o hermético... Gostava mesmo era de ficar sentado na varanda. Vendo a gente que faz a cidade viver passar diante da casa. Conhecia quase todos pelo nome. E quando passava o padeiro, o quitandeiro, o carteiro, o gari, ficava murmurando o nome baixinho. Até o cachorro que vinha cagar no canteiro da vizinha eu conhecia. Me dava um quilo de riso íntimo quando o danado vinha: chegava, mijava no meu poste (até deixava) e depois dava uma cagada monstra no canteiro da vizinha. Ela era tão chata que a safadeza do cachorro me dava acesso de riso, com dor de barriga. Bem feito! Na volta o cachorro passava perto de mim para receber um afago na cabeça, como paga: obrigado meu mano, por dar a cagada que eu gostaria tanto de dar. Antes de morrer, quem sabe criava coragem, no escuro da noite... Estirava as pernas, doídas pelas varizes que se acumulam, sobre a almofada posta na cadeira, as canelas pretas do prejuízo que a má circulação trouxe. Quando todo mundo já tinha ido para o trabalho, eu, desempregado, sem aposentadoria, me dava o prazer de ficar tendo cuidados com meus livros. Graças a Deus que gostava de ler desde cedo, quando pirralho e roubava livros da biblioteca da escola. Hoje era o que me alegrava: ler Monteiro Lobato, Gonçalves Dias, Machado de Assis, ouvindo, música clássica, interpretada pelos velhos Artur Rubinstein, Jascha Heifetz, Pablo Casals – esses que já se foram mas deixaram gravadas as belezas para gente ouvir. Tenho cá minhas humanidades...


Agora que vi o barbeiro se dirigindo para abrir a loja, lembro que faz dias que não via o Jotaquê passar, coitado, que pelas varizes que lhe tolhem os movimentos, aquele acabava um dia tendo derrame, embolia. Ele que gostava de ficar jogando dama, xadrez, conversando história de barbearia para passar o tempo. Uma pena, afinal Jotaquê, jornalista aposentado, era um grande na prosa, conversava de todo assunto. Gostava de trocar idéias com ele, até irritá-lo com minhas safadezas extremadas. Chega que deixava ele louco, louquinho, coitado. Depois a gente acabava na maciota, se rindo um com o outro, sabendo que era safadeza. O primeiro vizinho que passava perguntava cadê ele. Pelo menos o sofrimento dele amenizava o meu. Isso que era sofrer! Minha mazela era pinto perto do coitado. Me contava que as varizes chegavam a doer tanto que não tinha analgésico que ature. Além de hemorróidas... Ficava matutando desse jeito porque naquela hora estava sozinho no mundo. Eu e minha casa, três quartos, sem cachorro, sem empregada. Só uma menina vinha de vez em quando limpar os aposentos, a troco de dez cruzeiros. Os meus filhos já se tinham ido cuidar da vida. Não sei porque moravam tão longe e nunca tinham tempo de aparecer. Lá uma festa ou outra reunia todo mundo. Mas depois que a mãe deles o bom Deus também chamou para o seu lado é que ficou mais difícil deles chegarem. Cada vez mais fui ficando só. Até a gata que tinha em casa, pariu uma ninhada, logo depois morreu atropelada por um ônibus, dei os filhotes. Não é os vizinhos passando e dizendo alguma coisa e só me restava mesmo os livros, a música, meus cadernos de poesia, os artigos anônimos. Para pagar meus pecados, que ninguém é de ferro, o bom Deus me mandou uns vizinhos de lascar. Além daquela chata, que vive resmungando sobre minha vida – coitada de solteira, carola e ainda por cima virgem rejeitada no altar, só dá isso! Tem outro, que fica duas casas pra lá, que vive botando na vitrola uma música clássica tão alta que perturba toda a vizinhança. Só para mostrar que é culto ou intelectual. Volta e mais a figura vem aqui sugar da minha sabedoria, mas dou pouca pílula, dou mentira, lorota, homeopatia. Ele sai todo se rindo, pensando que agregou mais algum dom para sua intelectualidade, mas qual, só leva mesmo sarapatel, fubá de milho... Essas pequeninas coisas que ainda me deixavam alegre. Depois, voltava para casa, estava sozinho de novo, mas a verdade é que as festas do primo Walter eram gloriosas. E as mulheres que iam lá? Nem falo, cada vestido, cada jóia... e cada coxa, cada rabo! Nossa! Volta e meia me descia uma lagrimazinha de tanta alegria e felicidade que tinha nesses momentos. Que se leva da vida? Dizia cá com meus botões: essas coisas, a amizade, o carinho das pessoas,


imagina, quase estranhas. Eram os mais carinhosos, esses que a gente nem podia dizer que era íntimo da gente. E, claro, boa bebida, boa comida, manjar dos deuses. O que mais agradava, o que se leva... Depois de uns tempos fiquei velho. Dava cada pesadelo, acordava aos gritos sem ninguém para me socorrer. Sonhava que meu corpo estava cheio de chagas, de coceira, vítima da AIDS e outras doenças que tais, eram muitas de imaginação. Acordava suado que nem o cão. As pernas não obedeciam, mulher, nem pensar! Só ficava espiando as menininhas passando, querendo intimamente, mas sem poder. A idade é assim que chega. A gente nunca sabe como será, só quando chega. É que nem a morte: quem sabe como será? Quem sabe quando será? Quem sabe por quê será? Nunca vi a morte mandar telegrama, mesmo para aqueles que já estão desenganados, sempre se vai dormir pensando em acordar no dia seguinte, nem que seja para ler jornal, ver televisão, ouvir rádio. Uma manhã, estando sentado à varanda naquele relaxamento de sempre, notei que o dia estava mais silencioso, como se não tivesse movimento algum. Mas o cotidiano se animava, as pessoas se dirigiam para a escola, para o trabalho, os ônibus começavam a circular, fumacentos e barulhentos./ mas o som e os ruídos estavam apenas na minha mente. Na realidade havia uma calada, como se fosse a mais eterna noite. As pessoas não me cumprimentavam – um ou outro ainda fazia um mero aceno, os olhos perdidos lá para os fundos da casa. Mas a grande maioria ninguém se importava mais em falar comigo, dirigir alguma palavra. Só então me dei conta de que eu estava ficando invisível. À noite eram os sonhos que substituíam as pessoas. Me lembro ainda hoje, bem claro, de um sonho que me acompanhava durante toda a infância e juventude. Saía de casa a caminhar em terrenos baldios e sempre parava num local ermo qualquer e ficava a cavar, cavar, até deixar as mãos sujas de barro e areia negra, encharcada, até encontrar um tesouro, um ninho de moedas antigas. Não, não era um baú ou coisa parecida. As moedas estavam no chão, enterradas como sementes. Esse sonho me acompanhava anos e anos seguidos, sempre se repetindo, mesmo quando passei a morar em cidades grandes, onde os terrenos baldios escasseavam. Deixava as moedas sujas de terras escorrer pelas mãos, mais para admirar a antigüidade de cada uma do que pelo valor intrínseco. Me lembro bem, minha alegria era encontrar as moedas, patacas, não lembro de ligar o achado à fortuna, para mim – acho –


as moedas não tinham valor monetário, mas valor histórico, de colecionador. Sempre tive dificuldades com os sonhos. Não sei quando um acontecimento é sonho ou quando é realidade, sempre me confundia. Às vezes só depois de estar acordado muito tempo é que percebia que as coisas de que me lembrava eram somente sonho. Às vezes aos sonhos se misturavam as coisas cotidianas e me acompanhavam o dia todo. Existe aquele pedaço de tempo perdido que não é mais sonho nem realidade, uma coisa dúbia. É quando os fantasmas aparecem. Quando começamos a dormir, chega um momento que não se está mais acordado nem se chegou ao sono profundo. Nesse estado os sonhos também acontecem, os sons do interior misturados aos ruídos que vêm de fora, vozes, falas, algazarra. É preciso cuidado para não pensar que se está ficando louco. Por exemplo, depois que fiquei sozinho, de uns tempos para, cá andei de notar passar uns vultos. Agora mesmo, quando escrevo, vejo pelo canto dos olhos eles se movimentando. A princípio fiquei curioso, mas depois me acostumei. “São apenas fantasmas”, disse comigo mesmo. “Deixem-nos sossegados...” Desde então temos uma convivência pacífica. Ou quase. Outro dia acordei de um sonho em que ouvia música alegre, muitas falas, risos, barulho de copos e garrafas, como se tivesse uma festa. Claro que fiquei chateado com aquela confusão toda a perturbar o meu sono. Acordei com vontade de mijar, fui no banheiro e aproveitei para dar uma passada na sala. Estava tudo silencioso, como se tivessem todos se calado e desaparecido de cena, em respeito a mim, apenas o vento assobiava uma música na veneziana. Voltei para a cama e a algazarra começou de imediato. Estava com sono demais para levantar-me de novo, o corpo já não mostra essa disposição toda.


VIDA & ETERNIDADE A finalidade do homem é alcançar a vida feliz, capaz de saciá-lo na sua totalidade. O homem é imortal, porque sente faltar certeza do que virá depois da imortalidade. Quem semeia no espírito, nele encontrará a vida eterna, ora, que ele já está no mundo. Está estabelecido: os homens que morram uma só vez. Sem medo de ser julgado. Os filhos têm o direito de viver com o pai na sua casa, assim todos serão indivisíveis. Como se alimenta a semente da divindade, se desenvolve a semente divina. Finalmente. Se depois da morte o cristão não vive, erra, perderão ambos a alma num só corpo místico. Vida é tudo que se move, cresce, sofre, sente, podemos imaginar a semente de vida total. Agora meu conhecimento é limitado mas depois conhecerei, como sou conhecido. Justificados pela sua graça, nos tornamos herdeiros da vida eterna, para sempre livres. Para salvar a humanidade com o espírito, não se compram almas de santos altivos. Para salvar a humanidade com o sangue, não se pedem cadáveres, mas seres vivos. Todos certamente conhecem aquela história de João que conheceu Maria, que estudou com Roberto, que noivou com Teresa, que casou com Alfredo, amigo de Luiz, que não entrou na história, etc. e tal. O poeta Carlos Drummond de Andrade usou o mote para um poema que ficou famoso. Enfim, é a mesma história de sempre, contada e recontada séculos afora... Assim foi esta história: quando Aline e Eider se conheceram ele tinha 15 anos e ela mal havia completado os 10, cresceram vizinhos, estudaram juntos. Primeiro o Eider ingressou na universidade,


depois ajudou Aline a passar nas provas. Nos estudos subseqüentes sempre se auxiliaram mutuamente. Será que Eider chegou a reparar que Aline agora era uma adolescente de dezessete anos, bonita, a pele clara apesar de queimada pelo sol da praia, os seios crescidos, o corpo um pouco atlético em virtude do vôlei que praticava na escola e na praia ou por força da proximidade continuada deixou que esses detalhes passassem em brancas nuvens? O fato é que o tempo passou e a relação que eles tiveram pode ser descrita como a de uma fortíssima amizade, possível somente para aqueles que a vida faz com que se encontrem desde cedo, que o destino o façam crescerem juntos, sofrendo e confidenciando os percalços entre si. Esse mesmo livro que escreve as coisas sem ninguém ler fez com que os interesses de cada um deles fossem se tornando assimétricos, os encontros mais rareados e quando menos se deram conta estavam crescidos, adultos, solidários, mas cada um por si cuidando da própria vida. Ele se formou em Engenharia, Aline preferiu Informática e depois cada um seguiu o rumo que a vida leva, trabalhando, fazendo novos conhecidos, viajando. No entanto, como ninguém consegue de uma hora por outra se afastar definitivamente um do outro, ainda mais pessoas que fizeram amizade desde os tempos da infância, Eider e Aline trocavam aqueles telefonemas de praxe: aniversário, festas de fim de ano, uma congratulação especial. Ou se encontravam nos cemitérios, quando trocavam as palavras absolutamente necessárias para ocupar os trinta minutos gastos na despedida de algum amigo ou parente. Após um longo hiato de 34 anos os dois se reencontraram e, fazendo as contas, Eider agora era um senhor de 49 anos e Aline, obviamente, uma bela mulher de 44. O encontro se deu quando caminhavam na beira da praia, um seguindo ao lado oposto do outro, e quase se esbarraram. Após os primeiros cumprimentos, Eider mudou de direção e continuou a caminhar junto com Aline e até que o espanto se desfizesse por completo ante aquele inesperado reencontro, eles conversaram muito sobre coisas supérfluas. Depois, vejam como são as coisas, descobriram que moravam quase vizinhos há anos embora nunca se tivessem encontrado.


Telefonemas, almoços, caminhadas, praias, passeios, um novo cotidiano foi se construindo. Agora Eider examina com particular interesse o corpo de Aline deitado ao lado do seu. Haviam se amado e ela repousava de olhos fechados e respiração ritmada como a se recobrar do esforço. Foi uma caminhada também... Eider se distraía reparando as sardas que cobriam os ombros e o colo de Aline, as manchas haviam se alargado com o tempo adquirindo uma cor sépia. Marcas deixadas pelos muitos dias que freqüentou a praia e que não sairiam jamais. O que talvez Eider não tivesse percebido é que ele acabara de fazer amor não com a mulher quarentona, mas com a Aline que ele conheceu nos tempos idos.


JUÍZO & PERDÃO Recomeçar... Errar e de novo iniciar a caminhada sem fim. A cada passo deve-se, a cada passo paga-se débitos à vida. Palavras à livro vendem-se prometendo auto-ajuda e socorro. Porque não se dirige o homem finge que é escravo e dá liberdade. Recomeçar... Ninguém sabe o jogo que se jogará amanhã... As épocas e as leis se multiplicam para serem violadas. Ricas. Os juízes amam o poder sobre a vida alheia: julgar? Só aparência. A beleza descobre-se e a riqueza se impõe sobre qualquer verdade. Recomeçar... Errar e de novo iniciar a caminhada sem fim. Aqui se julga, aqui se paga. O tempo é curto na prisão de si mesmo. Na sala de perdão eles se movem como torcedores de futebol. Um dia de novo se poderá vadiar pelas ruas e becos vendo vitrines. Recomeçar... Ninguém sabe o jogo que se jogará amanhã... Naquele dia a fala e a fome perderão o sentido, quadrado vicioso. Terá valido a pena caminhar pelas areias da praia à meia-noite? Terá valido a pena voar pelos ares no entorno do pôr-do-sol? Ao acordar a primeira coisa que a gente faz é lavar-se na pia, diante de um espelho. No espelho o que se vê é a própria imagem. E deve pensar: ali estou eu me aprontando para mais um dia duro. Pode até se cumprimentar: Bom dia eu! E aí, cabelos grisalhos? Como vai, minha ruga? Olá, olheiras chatas, por que tenho de cobri-las todos os dias com uma maquiagem para ficar mais bonita? Oi, boca sensual, lamento se tenho de pôr esse batom horrível. E assim por diante. Mas na verdade você não está se olhando, ali não é você que está refletido, não é o seu lado positivo. Na realidade você está vendo o revés de você, o reflexo negativo, o espelho do espelho, o seu contrário. Nunca se dá conta que, no espelho, o seu olho direito é na verdade o olho esquerdo. As orelhas estão trocadas, você não se penteia nem faz a barba ou maquiagem, nem lava o rosto com a mão esquerda ou com a direita, está tudo do lado oposto. É o avesso, muitas vezes o avesso do avesso, que a gente encara, sem se dar conta, todos os dias no mesmo espelho. Já parou para pensar nisso? É assim que começamos um dia da nossa existência: do lado avesso. E a vida segue, sempre sem nos avisar qual o lado certo ou o errado.


Na maioria das vezes não seguimos o roteiro, atravessamos as notas, culpamos meio mundo por isso. Nossa existência passa a ser um interminável número de SE inúteis: ah, se não fosse isso, se não fosse aqui, se não tivesse acontecido, se eu não fosse tão velho... Tudo inutilidade simplesmente porque não temos o poder se modificar o que já está feito. Quando reencontrei o meu amigo Válter, depois de muitos anos sem vê-lo, ele tinha ficado viúvo. Foi, aliás, esse o motivo da minha visita. Viúvo aos 50 anos e com uma filha temporã, adolescente de 13 anos, estava literalmente louco, sem saber como educá-la ou como impedir que ela, tão nova a inexperiente, tomasse nas mãos as rédeas da própria existência. A reação que sua filha teve ao perder a mãe foi naturalmente resultante de uma crise pós-desespero. Também não é fácil perder-se a mãe aos 13 anos de idade. A primeira idéia que veio na cabeça de Marilda é que tinha conquistado a liberdade, de maneira trágica, mas enfim a liberdade. Agora teria que comandar sua própria vida e teria um longo caminho a percorrer. A sensação de liberdade para fazer o que quiser vem naturalmente. O choque das gerações também se tornou inevitável: a luta Válter x Marilda tinha começado e eu cheguei a tempo de presenciar os primeiros rounds... Aconteceu tudo o que acontece nesses casos. Marilda logo arranjou um namorado, organizou sua vida nos moldes que acreditava estarem certos para a nova circunstância, relaxou nos estudos. A vida dos dois foi separada por longos hiatos ausentes um do outro. Não se viam com tanta freqüência, os horários não combinavam, as idéias menos ainda. Os gritos substituíram as palavras sensatas e logo uma série infinita de palavrões foi acrescentada às conversas ríspidas e curtas. Tudo aquilo me relembrava do dia em que descobri a essência do espelho, o significado do meu encontro diário com o outro lado, com o meu avesso. O meu amigo Válter me hospedou durante os dias que fui visitá-lo e logo procurei me posicionar como um valente mediador. Primeiramente cuidei de tratar Marilda com naturalidade, dispensando-lhe muito carinho. Aproveitava sua presença em casa para segui-la por todos os lados, puxando assunto, indagar sobre os amigos, a escola, coisas assim. Sem forçar muito encetamos conversas demoradas, porque ela sabia que comigo se dava bem, não ouvia nenhuma censura, nem gritos, muito menos palavrões. Em


razão disso Marilda começou a se abrir, a contar seu cotidiano, incluindo-me, e às minhas conversas fiadas, no seu dia a dia. Todas as vezes que nos encontrávamos, antes de qualquer coisa eu procurava dar-lhe um abraço forte, demorado, para que ela sentisse todo o calor da minha amizade. Depois dava-lhe dois beijos nas bochechas coradas, acariciava seus cabelos loiros. Ela reagia de maneira maravilhosa, sorria agradecida, dizia piadas, alegrava-se com minhas respostas brincalhonas. Eu aproveitava essas ocasiões para mostrar a Válter que era dessa maneira que ele deveria tratar a filha dele. "É a sua filha, rapaz, e merece todo o teu carinho e amor, não somente repreensões." Como resultado dessa prática Marilda habituou-se, também, a cobrir-me de beijos e carinhos. Aceitei com naturalidade, mas na primeira oportunidade cobrei dela: "Quantas vezes você abraçou seu pai depois da perda lamentável que ele teve?" Outras vezes puxava pela emoção dela: "Lembre-se que perda da sua mãe foi também para o seu pai uma perda irrecuperável. Procure perdoar-lhe as agressões, as reações negativas, a oposição que faz para alguns de seus planos." Do outro lado do espelho, quando ficava só com o meu amigo Válter, fiz, com rigor redobrado as mesmas cobranças, dava-lhe broncas memoráveis, com a liberdade que só os amigos têm: "A sua filha é uma moça saudável, cheia de saúde e tem o direito de arranjar um namorado, principalmente nesta ocasião, em que ela deve se sentir desamparada. A você cabe mostrá-la que não, não está desamparada e terá o pai sempre que necessitar. Depois, já é hora de deixar de ser pai e virar um amigo." Segui dando muitos exemplos a ambos, aproveitando todas as oportunidades surgidas para pôr as dúvidas em pratos limpos, aparar as arestas naturais. A minha estada foi curta demais para obter um resultado definitivo àquele conflito. Mas antes de viajar consegui colocar os dois muitas vezes cara à cara e deixá-los em conversas animadas e trocando carinhos, verdadeiramente como pai e filha. Aos poucos o resultado foi se consolidando, consegui trazer a paz de volta à casa do meu amigo Válter. Não preciso dizer que também eu me senti feliz e saí dali com a certeza de que havia correspondido ao que realmente se espera de um amigo.


ÓDIO & AMOR Jogou o pacote de pão no lixo. Eu vi. Não estava à vista nenhum necessitado. A presença mais forte é a do amor, do ódio, do querer e não-querer, do ficar e ir-se. Agora que estou longe, espero que o amor insista em perseguir sonhos e pesadelos. Não me atrai a queda, porque o caído supera o próprio existir, fotografias apenas. Ali mesmo, bem na próxima esquina a mulher amamenta o filho mal e porcamente. Atirou o pacote de pão na lixeira, pão fresco da padaria e um litro de leite e café. E foi apenas uma decisão pessoal: ela embrulhou os olhos verdes para outro. Fim. Embora veja os lábios de negra dela, grossos, carnudos, entreabertos de prazer, fico. Eu, a vítima. E porque ela não me quis. E por que sinto-me atacado pela banalidade. Guardo os pães não jogados no lixo, eis a manteiga, aqui o café, leite quente, biscoito. Joguei o rancor na lata de lixo, o ódio que não tive preso na lembrança, a memória. Livrando-me do peso, querendo ser leve, sem direito de julgar o que fosse, ou seja. Algumas datas não se deve esquecer: 15 de outubro, 9 de maio, nascimentos, mortes. O momento é aqui e agora, a transposição, outro mundo, o corpo invoca-se e vai. Pode parecer uma atitude banal, mas não, não pensei na fome da mulher sentada. Porque não se ganha esperança, nem o dia de ontem: por que não desejar o amanhã? Conheci Rita numa festa e logo ela tomou conta do ambiente. Vivia cercada de toda gente e, como conversava com todos, arranjou um tempinho para falar comigo. Daí grudamos o tempo todo e nasceu uma amizade de ferro. Amizade ou amor? Quantos anos? Nem sei. Muito tempo foi, porque crescemos, nos formamos, namoramos, não casamos. E por ser boa demais – por sermos feitos um para o outro – achamos de nos juntar um pouco. Mas viver juntos é para gênios e como éramos comuns nos apartamos em paz. Cada um pro seu lado,


claro. E mesmo depois das separações que a vida traz, achávamos um jeito de nos telefonar, fazer contato. Coisa assim mesmo, de grude, que nem as múltiplas oposições que isso acarreta conseguem separar nem provocar ciúmes bobos. Soubemos também ter capacidade para ouvir os problemas de lado a lado, as alegrias, as tristezas. Principalmente estas, que a gente não encontra mais ninguém ainda disposto a ouvir tristeza de outro. E as confidências de casal, que marido nem mulher conta pro outro, segredo de alcova, de quatro paredes, de cama e mesa. Coisa muito além das barreiras transponíveis, a paciência e bondade conseguimos transfundir no outro. A vida e a morte são duas caixas eternamente trancadas: uma guarda a chave da outra. Tudo começou com um gatinho cor de fogo condenado à morte pelas crianças da rua. Brincavam com ele como se jogassem bola. Atirando-o de um lado para o outro, chutando-o, jogando-o na parede, na calçada. Fui ver de se tratava a algazarra e mal abri a porta o gatinho passou por entre as pernas de Rita e sumiu para dentro de casa. Os moleques reclamaram um pouco mas logo arranjaram outra ocupação. O bichinho estava castigado, sangrando numa das orelhas, mancando numa das patas, arranhões por todo o corpo. Rita cuidou do bicho com carinho, passou mercuro-cromo nas feridas, deu um pires com leite e ele se recuperou por completo. Foi ficando e atraindo os companheiros. Era brincalhão, todos gostavam dele. Veio um, mais outro, outro que estava ferido, uma fêmea prenhe, formando uma gataria de respeito que em pouco tempo principiou a interferir na nossa vida. Além da presença incômoda, os bichos ficaram fora de controle, pêlos começaram a flutuar pelo meu computador, enchendo o teclado, penetrando invisíveis na impressora, manchando o papel – uma loucura enfim. Nem toda bondade do mundo agüenta tanto gato. E porque sujavam meus papéis, arranhavam e comiam os livros, brincavam com meus CDs de um lado para outro, cagavam no velho, encardido e insubstituível sofá, pensei cá com meus colhões: ela não pode viver sem os gatos, eu não posso viver sem meus livros, ela não pode deixar de ser boa com todos, eu não posso largar o computador nem a internet. Em resumo: nós não podemos viver sem o outro. Parece muito zen não é verdade? Porque também não podemos viver juntos. Acreditem.


Por isso a despedida foi ao som do zunido das cigarras, só uma lágrima para tantos adeuses. As garças voavam para o sul sob um aguaceiro de lágrima que acabou por contaminar os amigos, alguns com defecções terríveis. Lastimáveis batalhas entre eles, um eco tão impensável e terrível. Como a destruição em cascata que provocam os tremores sísmicos. Como o câncer que só dá na mulher do vizinho... Enfim foi bom para a produção individual de cada um: ela lá com seus gatos e a Sociedade União Internacional Protetora dos Animais, eu aqui tratando de artigos diários para a imprensa, de livros para editoras. Além do mais, fundamos eu e amigos uma editora pequenina, vaidade própria que cuido com um gosto tarado, a ponto de examinar um a um os originais que nos são enviados por escritores de todo canto. Para fazer tremer a paz que eu estava desfrutando (que transmitia a ela através de e-mail), Rita, contando com a minha compreensão infinita, me relatava coisas sobre seus novos namorados, incluindo alguns detalhes que – confesso sinceramente – não me interessavam de modo algum. Me deixava intrigado quando vinha com essas histórias. Que prazer sentiria em me contar? Por que insistia em me detalhar casos que já haviam recebido o meu repúdio mais de uma vez? Acho que sabe que isso me magoa, mas continuava com a cantilena. Talvez eu também a ofendesse quando contava dos meus prazeres e alegria de estar realizando o sonho de uma vida trabalhosa, mas tranqüila. Paciência, me calava ao telefone e deixava ela discorrer à vontade sobre tudo e todos, até que se cansasse. Foi Rita que me levou ao aeroporto. As garças voavam para o sul. Estávamos no apartamento dela, eu com malas arrumadas, passagem no bolso, só queria passar os últimos momentos perto dela. Ela foi ao banho, passou de toalha na minha frente e foi se vestir. Fui para a janela ver as cigarras chiando, grudadas nos galhos invisíveis e também tirar da cabeça muitos desejos. Amigos. Amigos. Da janela dava para ver uma réstia do quarto onde Rita se arrumava. E da fresta um bem abençoado espelho refletia pedaços dela. O corpo nu passeava no quarto, se enxugando, pegando peças de roupas, se penteando. Os seios fartos balançavam fazendo um bale com os bicos negros. Era uma bonita mulher. Cheia de carne, sem ossos a mostra, ancas ondeadas, quadris generosos. Uma excelente candidata à mãe. Na despedida ela não chorou. A demonstração se limitou à vozinha triste, um certo desânimo, suspiros. Eu senti menos porque sabia das minhas necessidades: ou faria a viagem ou todas as portas do


futuro se fechariam de vez. No fundo, no fundo, eu odiava era ter que cair no mesmo engodo, ser atraído para a mesma armadilha da solidão que, afinal, está ali na espreita de todos nós. Enfim, se eu não fugisse de perto de Rita acabaria tendo que casar com ela. Isso estragaria a amizade e me transformaria também num criador de gatos. Esse era o terror real que me impelia para longe dela.


PAIXÃO & TÉDIO Quando o rock apascentou o cotidiano no campo e trouxe consigo a explosão das cordas elétricas, tinha o sol de quarenta graus nas areias da praia, as garotas usavam biquínis sumários, bronzeador, pranchas começavam a voar sobre ondas quebradas, eram de aço os corações que derretiam sob o amor. Depois os gritos cantaram em vozes latinas e nossas, destroçamos as cordas da viola, pandeiros, tamborins, escolas perderam uniformes, barbearia abriu falência, passeatas contra qualquer coisa que afetasse o ardor, as reações arrotadas entre uísque, vodca, cana e rum, arrefecidos corações que se derretiam de sexo e amor. Conseguimos sim, o muro destruído, transmitir aos guris a sensação de prazer, liberdade, som renovado da balada, lubrificar as ferramentas, as motos, o couro da bateria, pegar a estrada, vagar nas praias, o nordeste sob calor, transar cheirado de cocaína vagabunda, fumar maconha, transfigurar em carne corações transidos de frio e amor. Agora que o fígado treme e o ambiente recende almíscar, que os acampamentos, as tendas e sapatos estão podres, as crianças acendem velas devotas, incensos indianos, sem compreender bem o que foi o rock de Elis, Belchior, nem entender o cabelo longo, barba, a roupa descuidada, sentem que não é de aço o coração, nem é eterno o amor. É proibido proibir, pára o mundo que eu quero sair! Esta é uma sucessão de acontecimentos que somente um colecionador de fatos disparatados não poderá entender. Tudo aquilo que se passou no Quartier Latin, Paris, 1968, já tinha uma versão tupiniquim, Rio de Janeiro, 1965. De faro acuradíssimo os estudantes cariocas faziam de tudo para se antecipar à história, rebentar as amarras estabelecidas pelos centuriões e não permitir jamais que entre nós não houvesse uma memória suja para ser contada. Por que revisitar o passado? Por que não? Talvez seja para repetir a quase ironia sacana de Oscar Wilde, ele mesmo dono de um passado não querendo esquecer: "O único encanto do passado é o que já passou". E esse encanto é que sempre nos parece melhor, visto assim à distância segura dos anos. Já não é o mesmo sem a dor, nunca é o mesmo sem a alegria.


Aparenta melhor do que foi, tem vida porque não é mais presente – é o ontem entronizado e respeitado. Alguém ousou dizer que nem Deus pode mudar o passado, mas – meu Deus! – quantas e quantas vezes o transformamos para usufruir mais uma vez do que foi, do que poderia ter sido, do que gostaríamos que tivesse sido? A memória é um santuário sagrado ao mesmo tempo inescrupuloso e banal. Se acusa, foge da verdade, se condena, cria relatos e coisas, esquece os retratos tormentosos, fixa-se apenas na ilusão da beleza. A memória, é aquela sogra cuja visita nunca termina, que vive a aconselhar-nos a não voltar sobre nossos passos, a não acreditar em nós mesmos. Porém, acreditar naquilo que se deseja é próprio da natureza humana. E daí esse conflito sem começo nem fim. Tentar semelhante experiência é quebrar a cara, ser um pouco torturado e torturador, dar murro em ponta de punhal. E não só aí residem as aparências. Sempre vivi uma vida dura, de horário apertadíssimo. Acordar ao som de um despertador que imita o canto das sirenes de fábrica, doendo no ouvido, no corpo, na cabeça. Outros feridos ou mortos foram assim removidos, até que a noite chegou dispersando a multidão que protestava. Para consolidar o esvaziamento do local carros da polícia civil – aqueles camburões apelidados "viúva negra" – passeavam orgulhosos distribuindo bombas de gás lacrimogêneo para todo lado. Cheiramos, cheiramos, ardíamos olhos e testa, ardíamos, lágrimas. Daqui a pouco todo o centro da cidade estaria deserto, acobertado pelo fumo do gás lacrimogêneo e da impunidade. O movimento seguinte era um último protesto antes de pegar o trem, máximo desafio: provavelmente em frente ao Ministério da Guerra. Cobrindo o rosto com lenço encharcado de água para diminuir a ardência que o gás lacrimogêneo provocava na testa, atravessei uma dessas nuvens – que de tão espessa deixava a gente invisível – buscando chegar até a Central do Brasil através das ruelas menos movimentadas: Ouvidor, Senhor dos Passos, Constituição, Praça da República. Num desses becos ouvi gritos e gemidos abafados. Me esgueirando pelas paredes procurei chegar até o local de onde vinham os ruídos, que também pareciam de luta. Cheguei lá, vi duas pessoas atracadas, mas era outro tipo de luta: um soldado procurava violentar uma estudante. Ele estava de costas imprensando os braços dela na calçada e parecia ter dominado a situação porque chupava um dos seios com ansiedade. Julgava-se certamente a seguro naquele local, tanto que nem notou minha chegada.


Ela, expressando a dor da violência e o fato de estar com as costas imprensadas no chão, me viu mas não sabia se eu era um deles ou não, se chorava entregando-se (já perdia as forças) ou se pedia socorro. Parecia perder a esperança, mas vendo livros e cadernos nas minhas mãos, me viu também um companheiro e desesperada e silenciosamente pediu ajuda: com os olhos, com a boca, com todas expressões que podia. Socorro! Meio desarvorado com a situação, sem saber o que fazer, sem armas nem outros recursos olhei em volta e achei um monte de paralelepípedos encostados na parede. Fui até lá rapidamente em busca da única arma disponível – a menina colaborava retendo o soldado, fingindo consentir algumas carícias – voltei e pam! na cabeça. Ele apagou e caiu de vez como um boneco mamulengo, despejado sobre o corpo dela e foi, depois de algum esforço, imediatamente jogado para o lado. Ficou arriado como um bêbado, um fio de sangue já começava a sujar a calçada e ele estava mijado. A corrida recomeçou e só paramos quando a exaustão nos deixou paralisados. Fiquei meio perdido com aquela ação toda, mas a menina pegou minha mão me puxou com o resto de força que tinha para fora dali. Voamos garças, fugimos cobras, corremos bichos, sorrimos gente. Saímos em carreira desabalada procurando uma distância segura, aos poucos voltamos ao passo normal e abraçados como dois namorados passamos de peito estufado ante a guarda do Ministério da Guerra até chegar na Central do Brasil. Já ríamos de tudo aquilo e comemoramos a vitória com um guaraná. Hoje posso refletir maduramente sobre democracia, nacionalismo, governo popular, revolução e outros temas que só a juventude suporta. Posso? A gente sempre pensa, quando jovem, que a democracia que imaginamos é sempre melhor que a dos outros. Quantas e quantas vezes fizemos planos: não tomar cocacola, não fazer a barba com gilete, usar só produtos nacionais. Mas que fazer quando descobrir que o capitalismo nacional é tão selvagem quanto o estrangeiro? Que não faz diferença alguma tomar cocacola ou mineirinho já que o objetivo de ambos é o lucro desmedido? Porra nenhuma! Não é à toa que já definiram a democracia como a forma política do capitalismo, assim como a alma é a forma do corpo. Nem mesmo a liberdade está implícita na democracia – filósofo de merda, faço questão de contrariar o mestre Aristóteles. Fico definitivamente com a máxima de Russeau: "Na rigorosa acepção do termo, jamais existiu ou existirá a verdadeira democracia."



FORÇA & DEBILIDADE Longo itinerário, a dor, caminho do abandono. O sofrimento é a sombra que segue o homem. No entanto, ninguém vai ser feliz para sempre. Se silenciar a mente para a sabedoria do sofrer. Já que a dor e a morte são eternos invencíveis. A porta da esperança abre-se para a humanidade. Quando conheci Adélia e vi brotar em mim a intenção de casar com ela, estava numa fase religiosa muito oriental, o mundo da espiritualidade chinesa se abria para mim, dava os passos iniciais para aprender a jogar as varinhas do Yi-king depois de haver desvendado um pouco os segredos das cartas mágicas do Tarô Cigano, fazia momentos de meditação, lia – para contrabalançar – Gandhi e Krisnamurti. Nunca pensei que a ausência dela fosse se tornar assim quase insuportável, nunca pensei que a partida de um ser humano e a solidão dela decorrente fosse provocar uma catástrofe não apenas emocional, mas metafísica, espírita, incapaz de me fazer compreender o significado da palavra partida, da palavra ausência. Será esse um sentimento daqueles do qual não nos consolamos jamais? Nem tudo era simples, uns tempos andei sentindo insegurança a respeito da união com Adélia e fiz a experiência do jogo várias vezes, mas o Yi-king sempre me colocava longe dela com respostas determinantes – significativas ou não, apesar de que nada me demovia da dúvida: esse oráculo chinês, cuja origem remonta a 4.000 aC, seria capaz de promover a ligação entre fatos psíquicos e físicos? Mas o resultado do hexagrama era sempre o mesmo: “A mulher é poderosa, não se deve casar com uma mulher assim.” Sempre dizem que a própria existência em sua natureza será forte o suficiente para rebater esse desconforto que parece se eternizar em mim, eu sei, a vida tem segredos para assegurar ao ser humano, mesmo que de forma miraculosa, uma substituição, um refúgio, uma fuga – seja que nome queiram dar, para que a existência se refaça enorme, grata, pujante. Recomeçar, recomeçar – eis a palavra de ordem da vida.


Não, não era o caso de ter complexo, nem medo do poder e da influência materna, uma segunda mãe dominadora, o que me preocupava era casar desastrosamente, uma união que fosse obrigado a detonar em pouco tempo, como muitos exemplos me passavam pela frente, era aquele eco, mentalmente repetido: “Não se deve casar com uma mulher assim. Não se deve casar com uma mulher assim. Não se deve casar com uma mulher assim.” Apesar de tudo, os planos começaram a se realizar sem que percebêssemos. Nada de choques, coisa simples como alugar apartamento, comprar móveis, montar enfim um lugar que fosse o nosso jeito de ver a vida a dois, a nossa cara e em conseqüência foi muito natural o dia em que também os objetos mais chegados fossem sendo transferidos para o novo endereço e mais normal ainda o dia em que dormimos juntos, sentindo a sensação de estarmos enfim sós numa ilha deserta. Toda a nossa vida é pontuada de mortes de entes queridos, de partidas das pessoas que amamos, cada qual comportando uma dose exagerada de grandes sofrimentos, mas ainda acreditamos religiosamente que mais vale suportar todo o tropeço sofrido do que lastimar para sempre o fato de não ter conhecido a presença dessas pessoas quando elas existiam. As pessoas que amamos nos valem muito mesmo ausentes. Em pouco tempo estávamos quase cem por cento no novo endereço, mas fazíamos ainda aquela cena de morar cada qual com a sua família (na verdade a idéia era morar juntos mas um dia – quando a situação permitisse – faríamos o casamento religioso, com direito convite, igreja, álbum de fotografia, vídeo, festinha, etc.), coisa que todos percebiam mas aceitavam porque era visível o quanto eu e Adélia nos dávamos bem A verdade é que o tempo passa sem que percebamos, quando uma situação de harmonia se estabelece igual à nossa, cercados de ótimos espíritos, pessoas que nos amam elaboram uma cumplicidade ampla, sem restrições, não se prenuncia nenhuma tragédia, nenhuma alteração orgânica, a natureza que não vive ameaçada por tornados, furacões, tempestades, o tempo flui destelhado, a casa se compõe com uma aura azul, feliz, acompanha-nos a sensação religiosa de bem estar como se o próprio Paraíso transferisse seus desígnios para o local, assim passa o tempo inaudível como um templo budista silencioso e calmo.


Eu e Adélia vivemos assim, não interessa saber por quantos anos, até que ficou subitamente enferma, em três dias foi hospitalizada, descobriu-se que era portadora de vírus violentíssimo, desses que acometem uma pessoa a cada cem milhões, como dizer, sem deixarnos respirar nem raciocinar sobre o que estava ocorrendo, em quatro dias ficou inconsolável, enfraquecida ao extremo, pronta para morrer, sem dar tempo de rezar, de pedir um milagre, sem dar tempo de assumir a consciência do problema, mesmo que não pudéssemos encontrar solução, sem dar tempo à esperança. Assim, se ficamos a sós com os espíritos, as fotografias, os escritos, os quadros que nos repassam na mente como filmes antigos, a verdade é que o mundo pessoal se reconstitui por si mesmo, apesar de sabermos que nem mesmo o Universo dura para sempre. Mas a distância das coisas humanas é bem mais finita que a grandeza do espaço ensteiniano, habitamos o inexplorado para sempre inexplorável, terreno onde não se deve penetrar nem se pode forçar – um domínio que não aceita a intervenção humana quando somos chamados, quando a vida e a morte nos tomam firme e ternamente pela mão. Um dia antes da sua morte, deitado na cama, estava para dormir ajudado por um comprimido, já naquela hora que flutuamos entre a luz e o sono, que não estamos mais em vigília nem nos afundamos no sono profundo, tive uma visão que me manteve imaginando estar acordado: ao lado da cama um velho monge chinês vestido com uma bata azul marinho, braços cruzados dentro das mangas, inclinou-se profundamente como me transmitindo uma mensagem, um cumprimento, uma saudação. Foi algo dessa natureza e no momento seus olhos cintilaram em luz, encontrei a hora da paz e da tranqüilidade, dormi profundamente até ser acordado no dia seguinte para o enterro de Adélia. Não a vi morrer, mas sei: morre cedo aquela que é amada pelos deuses. Muito tempo passou, o tempo material, digo. Porque no íntimo, na mente, o tempo nunca passa. Para que eu completasse a desencarnação de Adélia e que fosse capaz de reconhecer que ela estava em outro mundo, eu deveria tocar a vida sem ela para sempre. O sonho que me perseguia mais renitentemente era o que me fazia recordar o lugar em que ficávamos namorando perto do MAM, sentado nas pedras do Aterro do Flamengo, conversando, rindo, nos abraçando e beijando. O detalhe fora da realidade – que


eu não conseguia compreender – é que Adélia e eu não estávamos só namorando. Havia uma segunda paisagem, o mar à frente, ondas fervilhando, pescadores com caniço, como se tentando pescar a própria vida. Na disciplina religiosa tibetana o noviço se retira do isolamento, por um ano às vezes, para aprender a criar em espírito, peça por peça, um personagem divino, protetor. Depois sai e seu protetor o acompanha, sem jamais perdê-lo de vista, apesar das distrações do mundo. Em seguida ele retorna à cela e desfaz-se, peça por peça, do personagem que ele próprio criou com abnegação e volta ao absoluto sem forma. E isso valeu para nós. Criamos juntos em espírito, peça por peça, uma vida-personagem, divinal, protetora. Depois saímos pelo mundo, sem jamais perdê-la de vista, gozando os prazeres, distrações, as diversões, alegrias. E achávamos que havia uma longa estrada a percorrer, mas de repente nos surpreendeu já o tempo de retornar à cela comum, de desfazer tudo o que construímos com abnegação e voltar ao absoluto sem forma. Não fosse a magia litúrgica que adotamos, a ausência de Adélia se tornaria insuportável, a partida dela, a solidão corrente, provocaria uma catástrofe não apenas emocional, mas metafísica, espírita, incapaz de fazer compreender o significado da palavra partida, da palavra ausência. Um sentimento do qual não nos consolamos jamais...


FOGO & ÁGUA Somos criaturas das bombas e armas, as mais odiosas, instilado veneno, derramado sangue, não o leite, o pão: a oração é o som do tiro, o discurso, o tambor da guerra. Embebidos no líquido amniótico somos criminosos amador e amadas criaturas de Deus, transplantados de um mundo ainda encoberto, estamos bem aqui... Sob o sol inclemente nem mesmo a mais vil hera viça, o roto esqueleto repousa à margem do vulcão, e salga, onde o ser líquido em vão clama entre justiça e justiça. Somos nós, sim, monstros desgarrados, anjos de ódio, donos de sangue ruim, amamentados de leite amargo, rezamos a oração ao som da bomba e rogamos perdão. Quando andamos em crise inventamos um meio para sair dela e garantir mais alguns anos de existência mais ou menos pacífica com todos os deuses e demônios. Essa é a maneira saudável de fugir de uma depressão, de um baixo astral ou mesmo de atravessar ileso os temporais da existência. Bolei um jeito de resistir inventando que escrevia cartas ao meu Boníssimo Pai, conversar com algum ente supremo que não vemos mas percebemos que existe, que sobrevive além da nossa humana capacidade de perceber. Esta é uma das cartas que fiz ao Boníssimo Pai: Boníssimo Pai, a guerra é de longe a maior de todas as insanidades entre as que o ser humano já experimentou. É a encruzilhada entre a mentalidade do saber humano e do saber animal, na qual o gene simiesco que permanece latente em nós sobressai acordado do sono milenar, imutável, violentamente imutável. Boníssimo Pai, a guerra não tem uma explicação plausível nem uma visão comum. Não é nada racional, nada humana, nada santa. E pensar que muitas vezes escolhemos com amor o dirigente que vai levar-nos, como cidadãos e nação, ao sacrifício da vida e da morte, à catástrofe, ao holocausto.


Boníssimo Pai, qualquer ente que se possa dizer realmente culto – cuja natureza criou imune ao gene simiesco, o qual mantém sob rigoroso controle – ficaria completamente abismado diante do confronto bélico, quanto fica diante do espanto que é o Universo, do complexo que é a Natureza, diante do mistério que Tu és. Porque é a guerra o único ato de assassínio coletivo promovido por nações que se dizem civilizadas (e algumas realmente o são!), que é julgado não num tribunal , mas numa mesa de conferência entre altos dignatários. Boníssimo Pai, para o militar guerreiro, personagem historicamente controversa e misteriosa, os objetivos a serem destruídos são meros alvos, os soldados são traduzidos por números estatísticos, os mortos são baixas aritméticas, as perdas são materiais e não almas... Boníssimo Pai, assim como os monos têm um gene que faz parecerem sobremaneira humanos, tão humanos quanto nós no olhar, em muitos gestos, na imitação, na existência, enfim, em nós o gene animal atinge níveis insuportáveis para a vida humana, normal, civilizada. Certamente o ser humano normal será levado às raias da loucura se for analisar friamente a ação dos outros entes que se transformam em anormais unicamente pelos atos guerreiros e criminosos que cometem. Então, Boníssimo Pai, essa alma que caminha ereta sobre dois pés é a mesma alma que um dia errou pelo mundo sem abrigo definido? Esse povo hoje ajuntado em grandes tribos, pagãs ou religiosas, é o mesmo povo que emite sons musicais, faz descobertas fantásticas, conjuga verbos e escreve epopéias, canta, dança, diverte-se, ama e renasce a cada manhã? Boníssimo Pai, é o mesmíssimo ser que ergue os braços em súplica a um Deus ou a vários deuses e clama orações piedosas – é o mesmo que usa as mãos abençoadas pelo trabalho, pela cura, pela santificação, para eliminar o inimigo, ainda que esse inimigo seja um amigo, um irmão? É esse homem, por Ti animado, que usa a santidade que lhe foi outorgada, o poder que exerce no Universo, apenas para justificar os crimes que comete em nome da humanidade? Caríssimo Pai, a guerra insana é tratada como uma coisa impossível de ser detida, porém nós sabemos que a Paz é alcançável. Sabemos que a Paz não é uma utopia, como fazem pensar os donos das propagandas, os fabricantes que lucram com as armas de guerra. Os


Centuriões do Século XX, os Guerreiros e Guerrilheiros, os Terroristas e Matadores, boníssimo Pai, de novo precisam provar do Teu chicote para entregar-se à Paz.


INFERNO & PARAÍSO A beleza deve ser amada, traída, odiada, em termos fatais, porque retorno do Inferno desesperado sem amor nem paz. É a perfeição em forma, em gestos o pequeno grande ser, fado, destino violento, onde o dragão e a magia habitam. A mulher construiu, inaugurou o Paraíso feito imperfeito, braços abertos, estendidos, crava-me com cravos no leito. Embora no céu vasto penetre quando em teu colo, mãe, desejaria ter nos lábios gotas espumantes de champanhe. O que posso dizer? Nascer, viver e morrer, isso é o que sei, não pelas causas, mas pela constante experiência dos efeitos. Como todos os seres humanos, passei por fatos singulares. Vivi como um troglodita, no bom sentido. Meio selvagem, mais largado às emoções e paixões. Como não se deve viver, diriam alguns. Mas o como e o porquê de tudo, o mistério das coisas, sempre estarão eternamente arraigados ao espírito imperscrutável do universo. A vida é curta, o tempo passa rápido demais. Sonhei que estava morto, que me enterravam, que amigos e conhecidos se despediam de mim. Um deles discursava assim: “Estamos, pois, aqui reunidos para nos despedir de Carlos. Pedimos a Deus, em Sua clemência, que receba sua alma cheia de bondade, espelho que foi para os seus, enquanto esteve entre nós. Consiste a vida do homem viver entre amigos e irmãos, sem sentirse desgraçado por ter sido feliz. Foi este o legado de Carlos, que viveu entre nós, feliz e irmão.“ “A sua virtude resplende neste momento em que dele nos despedimos. Infelizmente é verdade que o espetáculo do infortúnio alheio nos conforta. Por isso, avançando na vida, parecemos endurecer-nos aos golpes do infortúnio. Não foi assim com a alma bendita de Carlos. Não afetou-lhe os golpes da dor. A muitos sua companhia serviu de lenitivo.” “Carlos percorreu o espaço da sua existência descobrindo a todo instante novas perspectivas de vida. Mas o Deus, que em nós impera, proíbe que partamos sem o Seu consentimento. Assim foi com Carlos, que ocultou-nos a sua fidelidade e intimidade com o


bom Deus, em nome de um pretenso ateísmo. Na realidade ele sempre rejeitou as doutrinas de arbítrio. Era um sensitivo, uma alma cristã, apesar de tudo.” “Tu creste, Carlos, porque jamais viste o coração insondável de Deus. Bem aventurados todos aqueles que não viram e creram . O homem acredita mais facilmente naquilo que não compreende. Coração de criança, pelas inclinações, as amizades, haverás de ser lembrado, porque foste puro e reto. Quando eras menino – eu bem sei porque molhei teus lábios com o sal do batismo – falavas como menino. E depois, homem feito, jamais deste de mão as coisas que eram de menino. Eras adulto e criança em pureza.” “Infeliz o homem no qual nada mais vive do menino, porque a existência não passa de uma longa e interminável infância. Terá o homem direito de dispor de sua própria vida ou cabe somente a Deus tirá-lo deste cativeiro terreno? Será o suicida um prisioneiro que foge da prisão antes de cumprir a pena a que foi condenado? Terá o espírito infantil canais de maldade que levam a esse intento? Amigos, lembrai do preceito: amai uns aos outros, como Carlos nos amou.” “Dignai-vos, Deus, estender vossa misericórdia infinita sobre a alma de Carlos, para que nossas preces e vossa piedade possam suavizar a amargura de seus sofrimentos, por não ter ele tido a coragem de esperar o fim de suas provas. Senhor Deus de Misericórdia, não abandoneis jamais este amigo que acaba de deixar a Terra. Pedimos o Teu celestial perdão, porque aqui na Terra nós já o perdoamos. Senhor, tende piedade dele, Senhor, tende piedade de nós.” "Tirai a venda que lhe oculta a gravidade da descrença, para o seu arrependimento encontrar as graças que ora pedimos. Possam nossas preces reparar-lhe a alma diante dessa nova existência. Seria injusto colocar Carlos na categoria dos espíritos sofredores, arrependidos, ele está entre os bons de coração. Pode ter sido fraco algum momento da existência mas, Deus de Misericórdia, assim como aceitais o arrependimento sincero, aceita também o testemunho diante de uma grande alma.” “Que Vossa misericórdia infinita, Deus, estenda o seu manto generoso sobre ele. Afastai de nós o pensamento de entristecer-nos com a sua morte, porque ele sempre foi uma alma alegre e risonha. Pedimos, Deus clemente, que Vossa bondade se amplie sobre todos


os espíritos. Recomendamos nossas preces, especialmente sobre a alma boníssima de Carlos. “Abri, bom Deus, o coração de Carlos ao arrependimento, ao desejo de se purificar, fazei-o compreender que, por seu esforço, será alegre o tempo de sua prova. Fazei luzir aos seus olhos o raio de esperança e que a divina luz ilumine a todos nós, quanto às imperfeições que nos afastam da sua morada. Nós somos o espelho de outras almas...” “Se fazer o bem sem se exibir, sem ostentação, é um grande mérito, esconder a mão que dá ainda é mais louvável aos olhos de Deus. É o sinal indiscutível de grande superioridade moral, porque é preciso elevar-se acima da vida presente e identificar-se com a vida futura. Carlos jamais mostrou a mão com que tudo doou com desprendimento. Deu mesmo a própria vida.” “Deixai, boníssimo Deus, Carlos entrar pela porta estreita, pois a porta da perdição é larga e o caminho que a ela conduz é espaçoso. Sabemos como a porta da vida é pequena, como o caminho que a ela conduz é estreito – e como há pouquíssimos que a encontram. Não viemos a este mundo para fazer julgamentos nem para exigir muito àquele que muito recebeu. A porta estreita é o caminho de Carlos.”


CORPO & ALMA A nossa vida é uma enorme caminhada: a aventura da volta é inesquecível. Totalmente. Deus manda na terra a lei natural para todos os homens: ser feliz. Feliz aqui e agora. É bom saber que Deus é um pai assim, me levantarei e irei ao meu pai. Não espero. O homem é superior à matéria, não poderá perecer, apenas corrompe-se o que é material. Haverá mais alegria no céu por um pecador arrependido. Esse é o Deus que perdoa. No homem livre capaz de amar há um tesouro: Deus quer dividir esse tesouro consigo. O inferno existe porque nós construímos: ele se destruirá, como um sopro da sua boca. Depois da morte o homem continuará a viver, feito à imagem de Deus, igualmente. Salvar o que está perdido: um Deus criado à imagem e semelhança do homem, possível. Alguém que não tem capacidade de perdoar não é o Deus de lágrimas quentes abundantes. Sonja não tinha mais de 20 anos, mas a cabeça era memorável. Pensava como político, agia como comerciante, tinha emoções além disso e um linguajar de prostituta. Criamos cumplicidade desde o primeiro dia em que fui à sua casa. Algumas horas depois ela sumiu de onde estávamos conversando, se isolou no quarto com uma amiga, Marisa. Andei procurando e acabei por chegar lá. Apelidamos ela de Sonja Sonrisal, porque tinha a mania de tomar esse comprimido, fosse qual fosse o mal que sentisse: dor de cabeça, azia, indisposição estomacal, cólica menstrual, ressaca. Bebia pra caralho. Poucas vezes a vi sóbria, só conheci aquele semblante cansado, de quem transou a noite toda, transou e bebeu, e tomou ainda por cima alguma droga estimulante para não dormir e agüentar todas as noitadas da vida. Poderia ser Sonja Cocaína ou Sonja Marijuana, qualquer droga que a deixasse xilada servia para sobrenome. Seus bagulhos eram gigantes, comparáveis somente aos jamaicanos: um verdadeiro charuto de erva. Ela tomava todas, mas nunca perdeu a cabeça boa que tinha.


Quando se apaixonava, era diferente. Aí não tinha droga maior que a paixão. O cara tinha que ser bastante heróico para aturar Sonja, de repente ela tirava forças de qualquer ponto que não conhecíamos, era uma energia anormal, maior que qualquer atleta. Para encarar a paixão de Sonja Sonrisal tinha que ser muito macho. E inteligente. Fosse qualquer sujeitinho metido a besta e não ganhava nada. Ah, Sonja, hoje estou aqui relembrando de você, pensando passar adiante essa coisa que foi você, mas quê jeito? Quem te visse assim, mirradinha, quase pele e osso, branquela, de cabelo ruço, mas com aquela cabeça ágil, o vocabulário vagando com classe entre o chulo e a academia, porra, não tem como fazer esse mistério passar para o outro lado da rua. Enfim, quem seria mais que eu a tua memória? Hoje em dia posso percorrer todos os bares que freqüentávamos juntos, em busca de amigos, mas qual, eles também já embarcaram, estão por aí, de terno e gravata metido em algum gabinete, servindo governos, prefeitos, ganhando dinheiro porque a idade já vai. Sabe de alguém que pergunta por você? Ninguém! Os sacanas nem pensam que você está ali comigo bebendo aquele traçado horrível que inventamos de Gim, Cynar e Bitter Russo. Se bem que eu preferia botar Underberg, pimenta do reino e sal, além e umas pedrinhas de gelo pra espantar o calor que esse drinque miserável provoca. Caralho! Só de pensar me arrepia tudo! E pensar que bebíamos esse torpedo a noite toda só pelo prazer de acordar no dia seguinte com a mais memorável ressaca, a boca mais amarga do que a vida. Que loucura de remédio. Devo confessar que não foram só os pecados que me fizeram gostar de Sonja Sonrisal. Aliás, é bem verdade que a parte pecaminosa dela era a mais sensual e excitante, mas gostava dela porque era uma eterna apaixonada. Largou tudo: a casa, o conforto, as coisas, carros, bebidas finas e gabinetes, para espantar por aí, estudando não sociologia, mas literatura e pedagogia, disse que para abrir uma escola quando ficasse velhinha. Ela não sabe que gente assim como ela nunca fica velhinha? É que nem bandido: morre cedo. Já viu bandido ficar velhinho? Nunca! Só em filme de mafioso... E ademais detestava as festas de fim de ano, natal, essas coisas e mesmo o carnaval ela se isolava nalguma praia deserta, metia-se até com os mais caretas que acampavam, só para fugir da arruaça que ficam as ruas, que, tirante os bêbados, o carnaval fica chato. Ainda mais aqueles convites para desfilar em palanques, carros ou blocos, bandas, ixe!, aí mesmo era coisa. Nada, nada, Sonja quando elogiava


a multidão não era no carnaval. Era aquela multidão pequena, mas revoltada, ou tempo de greve, ou sem terra, alguém, enfim, que protestasse contra. Quando estava doidona pegava o carro do pai sem avisar e vamos, eu tinha o cuidado depois de telefonar avisando. Vamos para algum lugar além da terra, além do mar, além da ponte, subindo, subindo, avançando, avançando, correndo, correndo, sempre também com a minha mediação. Que mistério tem a velocidade que deixa a gente entre o inferno e o purgatório, beirando os mangues, os sobressaltos, as estradas asfaltadas? “De doce basta a vida!”, assustávamos até o vento gritando o nosso slogan de alegria. O quanto pude tentei mediar entre ela e a loucura, mas sempre não podia estar a seu lado. Que aliás nem era loucura, ela era assim mesmo, estava em seu natural, com suas almas e gnomos, as criaturas ao lado. Sonja, inclusive, gostava de parar nas estradas, vem cá, vem cá, vou te apresentar o gnomo da tiririca. E ficava ali, conversando hora e hora com um pé de espinho. Ficava triste mais quando eu batia na planta: Uma vez encontrei Sonja mal. Estava arriada ao pé da cama, como quem nem tivesse chance de se deitar. Pálida, os braços soltos, como uma bonequinha largada. Não fiquei com medo, mas pensei que tinha morrido. Aliás estava morta, para o mundo, para todos, sozinha, morta. Respirava calmamente, o semblante macilento, mas sereno. Peguei ela com cuidado, arrumei o corpinho desleixado na cama, cobri com um lençol. Molhei uma toalha com água e passei no rosto dela e ela, mesmo apagada, soltou um sorriso, um suspiro. Eu também estava cansado e com sono, deitei ali mesmo ao lado num sofá. Mas quem vai lembrar uma pessoa assim? Quem? Quem? Só eu mesmo, que tenho mania de grudar as almas em minha roupa, até quando vou dormir. Às vezes dou gritos loucos, sou acordado pelos outros, dizem que é pesadelo, mas não, são eles, que não dormem nunca mais, querendo que eu fique acordado 100% a vida. Sonja tinha alegria e pressa de viver. Por isso tinha a existência agitada, sofrida, intensa. Era dessas pessoas que não se importa com o que vai encontrar na próxima esquina.


O autor Quem sou eu? Meu nome é Salomão Rovedo (1942), tenho formação cultural em São Luis (MA), resido no . Sou escritor e participei de vários movimentos poéticos nas décadas 60/70/80, tempos do mimeógrafo, das bancas na Cinelândia, das manifestações em teatros, bares, praias e espaços públicos. Tenho textos publicados em: Abertura Poética (antologia), Walmir Ayala/César de Araújo; Tributo (poesia)-Ed. do A; 12 Poetas Alternativos (antologia), Leila Míccolis/Tanussi Cardoso-Trotte; Chuva Fina (antologia), org. Leila Míccolis/Tanussi Cardoso-Trotte; Folguedos (poesia, gravuras de Marcelo Soares-Ed.dos AA; Erótica (Poesia), gravuras de Marcelo Soares-Ed. dos AA; Livro das Sete Canções (Poesia)-Ed. do Autor. e-books: Pobres cantares (poesia), Porca elegia (poesia), 7 canções (poesia), Ilha (novela), A apaixonada de Beethoven (contos), Sentimental demais (poesia), Amaricanto (poesia), Arte de criar periquitos (contos), bluesia (poesia), Mel (poesia), Meu caderno de Sylvia Plath (fotos&rascunhos), O sonhador (contos), Sonja Sonrisal (contos), Cervantes, Quixote, e outras e-crônicas de nosso tempo (artigos), Gardênia (romance), Os sonetos de Abgar Renault (antologia), 4 Quartetos para a amada cidade de São Luis (poesia), Amor a São Luis, e ódio (poesia), Stefan Zweig, pensamentos e perfis (antologia), 3xGullar (ficção), Viagem em torno de Dom Quixote (notas de leitura), Suite Picasso (poesia), Quilombo, um auto de sangue (ensaio), Por onde andou o cordel? (ensaio), O cometa e os cantadores (ensaio), etc. Outros: Folhetos e Antologias de Cordel #1 a #4 (como Sá de João Pessoa); Jornalzinho de poesia Poe/r/ta; Colaboração: Poema Convidado(USA), La Bicicleta(Chile), Poetica(Uruguai), Alén(Espanha), Jaque(Espanha), Ajedrez 2000(Espanha), O Imparcial(MA), Jornal do Dia(MA), Jornal do Povo(MA), A Toca do (Meu) Poeta (PB), Jornal de Debates(RJ), Opinião(RJ), O Galo(RN), Jornal do País(RJ), DO Leitura(SP), Diário de Corumbá(MS) e outras ovelhas desgarradas na Internet. Os e-books estão em vários sites (consulte o Google) e também em http://www.dominiopublico.gov.br End: Rua Basílio de Brito, 28/605-Cachambi-20785-000-Rio de Janeiro (RJ)-Brasil-Tel:+55 21 22012604 – email:rovedod10@gmail.com - blog: http://salomaorovedo.blogspot.com

Foto: Priscila Rovedo Trabalho licenciado sob licença Creative Commons Atribuição-Compartilhamento pela mesma licença 2.5 Brazil. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5/br/ ou envie uma carta para Creative Commons, 559 Nathan Abbott Way, Stanford, California 94305, USA. Obs: 1) Após a morte do autor os direitos autorais devem retornar para seus herdeiros. 2) É proibido imprimir, copiar, editar em qualquer meio, unidades ou coleções para venda e/ou distribuição.


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