Salomão Rovedo - O breve reinado das donzelas

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SalomĂŁo Rovedo

O breve reinado das donzelas (Contos)

Rio de Janeiro 2009

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SalomĂŁo Rovedo

O breve reinado das donzelas (contos)

Rio de Janeiro 2009

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Índice 1. Amor por Anita, pg. 4 2. Anjo, antes Jorginho, pg. 9 3. Dez para as nove, pg. 14 4. Greve, pg. 24 5. O breve reinado das donzelas, pg. 29 6. O caso João, pg. 39 7. O crime de Jesus Carlos, pg. 43 8. El día em que el mariscal Bolgueredo se tornó heroe nacional, pg. 50 9. Juana, Joana, pg. 54 10. O diário desconhecido, pg. 63 11. O evangelho segundo, pg. 73 12. Um caso intrincado, pg. 78 13. Uns natais, pg. 88 14. Primeiro Natal, pg. 95 15. Segundo Natal, pg. 100

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AMOR POR ANITA Quem visse o Jorge Fontes andar diria que ele era um inválido sem ocupação. Mas, isso não acontecia com o Jorge Fontes. No seu andar coxeante escondia toda a ira que possuía. Por que? Ninguém sabia. Talvez por ser assim todo torto ou por ser um desses que vivem à margem da sociedade, mas tendo que conviver na marra. Para essa mesma sociedade, ele era o símbolo de vícios e viciados. Tinha o lado direito do corpo quase todo congestionado, por conta de uma poliomelite. O braço direito vivia sempre dentro do bolso como se pudesse esconder do mundo a mazela que retardava todo o organismo. As pernas tortas produziam um caminhar requebrante, desconexado. Os pés metidos em botinas que vinham até o tornozelo escondiam o dedo boloso, o calcanhar ossudo e disforme. Andava com quem desce uma escada. A perna direita sempre abaixo da esquerda. Uma coisa, porém, Jorge Fontes fazia questão de não esconder: a sua inteligência e capacidade acima do normal. Formado em Direito gostava de demonstrar a facilidade com que os códigos, leis e sistemas jurídicos se adaptavam fácil ao cérebro. Tendo escrito algumas poesias e contos não escondia igualmente as lindas composições. Sendo líder estudantil por época do colégio não vacilava em liderar grupos e associações de caráter semi-político. Era por todas essas razões um socialista. Por época das eleições estaduais buscava se enquadrar num partido oposicionista e saía a fazer campanhas e discursos sem cobrar nenhum dinheiro por isso. A sua oração vibrante prendia toda a assistência por longas horas. O candidato se consolidava sempre como um homem que mereceria ser eleito. Às vezes o merecimento era válido, outras não. E quantas e quantas vezes o seu candidato se elegia à custa de sua oratória vibrante. Porém, nunca o Jorge Fontes se candidatou a nada. Nunca. Sindicatos o convidavam e a negação vinha sempre. Partidos e

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coligações fortes faziam visitas à sua residência e obtinham um não firme e sincero. Oferecia o seu serviço sem dúvida nem recompensa, desde que fosse uma oposição. Sempre em defesa do povo e das massas. Sempre em defesa do operariado e da plebe. A palavra fluía-lhe maquinalmente e empolgava. Era um verdadeiro líder e não tirava quaisquer lucros financeiros dessa situação. Combatia pelo interior do estado como verdadeiro Cristo. Levava aos camponeses a palavra de libertação do jugo latifundiário. A palavra de um futuro promissor e longo. Era tanta a sua fama que as autoridades não deixaram de abrir uma ficha especial com o nome de José Jorge Fontes. E era respeitado pelos intelectuais que defendiam a livre democracia. Antes de tudo, Jorge Fontes estudou a fundo toda a literatura que circundava a questão ideológica em voga no mundo. Gostava, não negava a ninguém, de beber e se divertir, quase sempre sem limites. Gostava de mulheres e eram freqüentes suas aventuras com mulheres casadas. Tudo, porém, discretamente. Só os íntimos é que tinham conhecimento de algumas aventuras. E possuía no interior uma moça de quem era noivo. Era uma história à parte. Estava noivo e pretendia casar-se dentro em poucos meses. Na sua vida turbulenta havia sempre um adiamento para o tal casamento. Mas o dia haveria de chegar. Depois que montasse o escritório de advocacia poderia marcar a data do enlace e executá-lo. Então, viveria tranqüilo somente para sua família. Abandonaria o Partido e viveria como um homem qualquer. Vivendo do seu escritório que daria por certo algum dinheiro em virtude dos conhecimentos das necessidades populares. O encontro tardou. A demora foi grande. Jorge Fontes vivia sempre muito ocupado com as lutas pela causa. Queria um futuro melhor para seus filhos e netos. Para ele não. Ele deveria ser sacrificado para que, no futuro, alguém pudesse viver em abundância. Era o que ele pensava. Tinha aquela obsessão por um mundo melhor e

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não se largava daquilo. E se pensava que alguma coisa daquelas não desse certo. se não fosse o que imaginara. E o sacrifício despendido por Anita? Anita sonhara com um casamento feliz. Com Jorge Fontes não sabe por quê. Por que gostava dele. O fato é que gostava e não era um gosto desses de cidade. Ela nascera no interior e fora criada ali. O pai, fazendeiro rico a levou na Cidade para estudar. Interna, no convento de freiras, Anita criou princípios inabaláveis de cristandade. Estudou e era inteligente sabendo discernir os dois princípios pelos quais se preocupara. A questão socialista-católico-democrática tomou firmeza quando conheceu Jorge Fontes. A sincera personalidade de Jorge Fontes a encantou. Passada a primeira etapa de simpatia pôde analisar serenamente o caso e aceitouo como companheiro. Era frágil e possuía uma palidez encantadora. Tinha saúde precária. O pai tratava-a com carinho como filha única. As duas famílias se conheciam e fizeram o compromisso à parte. Tudo socialmente. E, se tudo desse certo haveriam de ser felizes. Ela, a esperança de ter uma prole de três ou quatro filhos. Ele, com o mesmo desejo sobrepujando as aspirações idealísticas. Ali, não era o Jorge Fontes dos discursos inflamáveis e das exaltações ante um povo comprimido. Era simplesmente José para Anita e para ele mesmo. Um José comum como milhares de Josés que existem pelo mundo a fora. Um namorado tímido que gostava de falar coisas poéticas quando a lua encimava os rincões sertanejos. A terra interiorana com seu esquisito valor comete as mesmas venturas aos que por lá amam. A influência é nítida. a diferença entre os amores citadinos e do interior é clara. Ainda mais quando se tem uma alma igual a dos poetas antigos, porém, adaptada à vida moderna. Subitamente Jorge Fontes partia. Ninguém chamava, mas ele sabia a hora que deveria ir. Encontrava-se de novo na qualidade de homem do povo. Lutador e fogoso como um animal de raça. Combatia e cansava. O silêncio de que necessitava? O repouso? Ares puros e cheiro de mulher? Anita era quem fornecia esses elementos. E de vontade própria anexava a essas necessidades um amor e um carinho.

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Eram essas horas de que Jorge Fontes se lembrava com mais insistência. Era por isso, que desejava uma vida de casado sem preocupações com seus ideais políticos. Era José amoroso ou Jorge Fontes vibrante. E a decisão tinha que ser breve, pois há certas coisas que não podem esperar. Anita era uma dessas. A figura de Jorge Fontes brilhava nas poças de chuva. Eu estava com ele. Eu era o seu companheiro de bebidas e de discussões. Tínhamos choques tão grandes na questão ideológica que às vezes quase brigávamos. Quem passasse no momento em que discutíamos pensaria que não havia amizade nenhuma entre nós. No entanto, havia. Talvez essa discordância fosse a criadora dessa amizade. Talvez a bebida. Conheci-o numa mesa de bar. Nós ficamos bons amigos e a amizade até hoje perdura. E faz dez longos anos que nos conhecemos. Quanto tempo! Só não conheci Anita. Aquela Anita que ele me falava com um tom diferente na voz. Uma Anita a quem ele declamava poesias de Bilac, Drummond e outros com qualidade insuperável. Isso quando a bebida já tomava conta de nossos corpos sem virilidade. Já dormentes pelo álcool virávamos pessoas entrelaçadas. Um só corpo, um só valor. Fazíamos também, longas farras pelas ruas, bares, sentando na beira das calçadas com pessoas desconhecidas. Um anonimato que nos agradava igualmente. Virávamos irmãos. E desejávamos que assim fosse por muito tempo. Eu tive que viajar. Ele ficou não sei como. Só não fui o primeiro a ter conhecimento da notícia porque a família dele soube antes. Foi o que ele me disse e eu acreditei: – Alfredo, você será o primeiro dos amigos a saber que minha noiva morreu. Foi só. Não me contou como e eu não perguntei. Não me deu detalhes e eu não quis saber. E fomos beber juntos mais uma vez para lamentar a morte de Anita. Anita que eu não conheci, mas que sempre a tinha na imagem pelas descrições perfeitos que ele me fazia. Uma figura esbelta e alta com os cabelos negros caindo pelos ombros. A face pálida. E aqueles olhos inquietos. Eu já gostava de Anita como

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pessoa da família. Era-me íntima e eu falava com ela em pensamento. Se ele vivia as discussões com ela eu vivia também. E se ele sofreu com a morte dela. Nem sei se era como uma pessoa de família. À primeira descrição descobri que Anita era também o tipo que me agradava. Ou o tipo que agrada a todo mundo? Imaginava os cabelos pretos caindo. Acariciava-os. Sentia minha mão deslizar sobre eles e aproximar-se do pescoço fino. Ela arqueava-se a essa carícia. Os lábios iam em direção ao céu e semi-abertos beijavam o infinito. Somente sua mão delicada era que me devolvia a carícia recebida. E depois de apertar levemente a minha mão fugia esvaindo-se pelas nuvens noturnas. (1963)

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ANJO, ANTES JORGINHO Quando Anjo acordou chovia e o dia estava cinzento, quase escuro deixando aquele vazio por dentro mais intenso. Sentia uma solidão imensa. Levantou e foi à janela onde a água escorria abundantemente. A paisagem adiante se mostrava turva ante Anjo e, vendo-o através do vidro, era como se chorasse e tivesse os olhos cheios de lágrimas. A praia extensa era toda ondas, encaracolada e encoberta por uma névoa tênue. Anjo encostou o nariz no vidro frio e ficou vendo as ondas estirarem-se na praia até uma curva onde a neblina tornava-se mais espessa engolindo tudo. Atrás de si a porta abriu-se e Anjo viu sua mãe entrar exclamando admirações por encontrá-lo já acordado. Aproximou-se: querido! Já estás de pé? Deu-lhe um beijo na face que não foi retribuído. Contrariada observou a frieza do recebimento e do rosto. Falou-lhe também por estar ale encostado àquele vidro frio. Anjo continuou sem qualquer vontade de mover-se dali, embora não visse mais coisa alguma, pois os olhos já ficavam turvos igualando-se ao vidro que recebia água da chuva. Mecânico, lentamente saiu ante a voz imperiosa da mãe: Saia daí! Anjo caminhou para o banheiro, cabisbaixo e passos marcados. Conseguiu, antes de sair do quanto, já à porta, perguntar num fio de voz: Mãe, quando é que papai volta? Prosseguiu caminhando e, já no corredor, escutou a resposta da mãe, ainda meio contrariada: Ah, é isso. Ele vem logo. Amanhã ou depois já estará aqui. Quem manda ele arranjar essas viagens demoradas?.

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E continuou falando coisas que Anjo não mais ouvia. Lembravase apenas da noite anterior. Um ódio, raiva mesmo, cobria-lhe o rosto dum vermelho vivo e sentia a cabeça quente, bem quente, além daquele amargor na boca que a pasta dental não apagava. Na rua chovia ainda. Rápido filhinho está na hora da escola.

Era sua mãe que dizia andando pela casa toda, arrumando-se e dando ordens à empregada. No quarto, viu Lúcia, sua irmã, deitada com os cabelos louros esparsos no travesseiro. Foi até lá, curvou-se e encostou-se no rosto de Lúcia, quente e macio. Lúcia era bonita, achava. Minha irmãzinha linda pensava enquanto dava-lhe um beijo e mais outro, antes de sair. Mamãe. Quando é que a Lúcia vai estudar? Perguntou na esperança de que fosse logo para tê-la ao seu lado, para brincar com ela o dia todo no colégio. Não queria que Lúcia ficasse em casa para ver certas coisas que trariam infelicidade e tristeza. Ele já era um homem e iria tomar conta de Lúcia até ela ficar grande e poder tomarse conta. Ninguém haveria de tocar um dedo em Lúcia na sua frente. Jamais! Lúcia é muito nova para ir ao colégio, só ano que vem. Esperou triste sua mãe dar últimas ordens apressadas e ir até o quanto onde Lúcia ainda dormia. Viu-a na imaginação dar um beijo no rosto de Lúcia e sentiu-se com vontade de puxá-la pelo braço para evitar que a marca de batom ficasse no rosto dela. Ninguém suma o rosto de Lúcia na sua frente! Ninguém! Caminhou para o elevador chateado com a demora da mãe. Mããêê!


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Caminhava pendurado no braço da sua querida mãe bonita que todo mundo olhava com admiração. Gostava de ter uma mãe assim. Mascava chicles e uma bola verde de quando em quando flutuava sob seu nariz para depois estourar. Olhava vitrines, mas não podia parar para vê-las melhor porque sua mãe estava com pressa. Viu-a parar depois continuar andando a meios passos. Foi aí que viu aqueles pés grandes ao lado dela. Olhou. Um homem alto de grandes bigodes conversava com sua mãe e não gostou nada. Achou-o logo feio, além de fazer com que sua mãe parasse ali aonde não tinha nada para se ver. Puxou-a pelo braço, com toda força que tinha, e gritou: Mãe! Vamos. Viu a face dela ficar irritada, bem contrário à voz que murmurante lhe dizia: Fique quieto, Jorginho. Tome um chicle pra você. Cuspiu o chicle que tinha na boca. Não queria mais chicles. Sua cabeça ficou quente e sentiu um amargor na garganta. Ficou com raiva daquele homem que estava fazendo sua mãe ficar zangada. Morderia o braço dele, que agora estava segurando o braço da mãe, e estaria livre daquele bigodudo feio que veio atrapalhar o passeio pela cidade. Eu ao quero chicles mãe! O homem tentou se gentil. Acariciou-lhe a cabeça que logo afastou e quis falar com voz macia. Não queria. O que você quer meu benzinho? Era a voz da mãe que perguntava, cortando seus pensamentos de dar um chute na canela daquele homem. Largue o braço de mamãe! Queria gritar a ele, mas sentia faltar-lhe a voz. Aquele homem alto era muito forte. Mas não sentia medo algum.


Eu quero ir para casa!

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Não, não queria ir para casa. Queria passear com sua mãe ao lado, vendo as vitrines e as outras crianças que estavam também passeando. Mas, aquele homem de bigode veio atrapalhar tudo! Eu quero ir para casa, repetiu com firmeza. Seria melhor ir para casa ver televisão que estar ali no meio da calçada, naquele lugar que não tinha nada para ver. Todas as vitrines bonitas estavam ainda à sua frente. Bastaria andar alguns passos para ver de novo tudo bonito. Eu quero ir pra casa, mãe, insistiu. Admirou-se de sua mãe quando a ouviu dizer: Pois bem, já vamos para casa. Alegrou-se, pois viu que sua mãe ainda gostava dele. Não estava mais com aquela cara irritada e já falava naturalmente. Quis mostrar a língua aquele homem de grandes bigodes numa careta que demonstrasse que sua mãe estava livre dele. E fora ele, Anjo, que a salvara com a sua insistência em ir pra casa, lugar que não queria ir mesmo. Mas, o sacrifício pela mãe, que ele tanto adorava, que se sentia alegre quando a chamavam de linda, com aquele bonito garoto ao lado. Era ele. Ao subir ao táxi novamente sua cabeça inchou, ficou quente, que fez sentir a garganta fechada por um nó. Aquele amargor estúpido. Mataria aquele sujeito! Quando Anjo subiu no táxi com sua mãe, o homem de grandes bigodes abaixou-se e deu um beijo na face linda de sua mãe. Anjo, num ultimo esforço conseguiu puxar o braço dela e, então chorou. Chorou muito durante toda a viagem de táxi. E sua mãe não o conteve por mais carinhos fizesse, por mais palavras dissesse.


Repeliu a mão que acariciava seu cabelo.

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Nunca esqueceria aquele homem de bigode nem as palavras ditas após o beijo do táxi: Às oito.


DEZ PARA AS NOVE (Em ritmo da Confissão)

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Não se deve abominar a guerra, ela é tão necessária quanto à paz. É o próprio prenúncio à paz. O mundo todo hoje guerreia em busca da paz. Que a guerra tenha, pelo menos, esse caminho honroso. Desliga esse rádio. Pronto! Clique. O silêncio tomou conta do quanto. Fumavam os dois estirados na cama. Marília se levantou preguiçosa e ficou admirando a manca disforme no lençol, enquanto César dormitava virado para o outro lado a fim de não sentir-lhe o cheiro. - César, levanta! César se virou e viu Marília, as calcinhas negras. Marília, os seios jogados à frente. Marília, os cabelos lisos além dos ombros. Marília, a pele alva e a pele morena de sol. Marília, as coxas fortes. Marília, as plumas no sexo. Livrando-se da dormência César levantou, foi até o banheiro, se deixou molhar pela água fria. O que aconteceu? Nada, absolutamente nada. A tarde ia morna deixando um rosavermelho no ar. Marília era virgem. Foi um dia. Era até as três horas da tarde morna. Seu corpo não estava dolorido, não se sentia chateada e a pasta de dentes tinha o mesmo gosto. No quarto, somente os ruídos que faziam na faina de se arrumarem. - Vamos ao cinema? Iriam ao cinema assistir a qualquer fita, depois Marília retornaria à sua residência e ele ficaria rondando à noite em busca do nada. Esta seria a repetição de tantos dias e noites passadas e repassadas. Conversaria com conhecidos entre risadas de parte a parte, nenhuma comunicação do ocorrido com Marília.


Um segredo feliz que nunca contaria.

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Na segunda-feira o emprego traria a rotina cotidiana e inevitável. Correspondências, conversas apenas de serviço que tomariam conta do dia até que tudo se apagasse. No futuro, novos encontros com Marília. Ela gostaria. Para rever um corpo, sentir o cheiro da cama, o calor da carne rejuvenescida. No rádio gostaria de ouvir de novo Bach, a mesma música, mas gostaria de evitar aquela voz falando de guerra como um padre fala de Deus: Não se deve abominar a guerra. Eu sei, eu sinto, eu vejo, você uma mulher sofrida, supersensível, que ainda não encontrou o caminho, o que busca, isto é, ainda não deu definição à vida, faltando algo para sentir-se mais inteiramente realizada, como gente, como mulher, como pessoa, enfim, que necessita de realização, encontro consigo mesma, ou alma, ego espírito. Nessas horas tenho o coração aberto enternecido para você, gostaria que me contasse tudo, tudo, tudo aquilo que está dentro, no fundo, no mais fundo do coração e da alma, saber de tudo devagarzinho, contado aos poucos, intimamente, como se fosse um romance em capítulos semanais. Não penso realmente que essa coisa eu sinto faltar em você, noto você procurando achar loucamente com ansiedade e muita garra de mulher valente, força de vontade, não penso que seja eu essa coisa, mas bem que gostaria. Tenho o sentido suicida da viúva-negra que mata para perpetuar a espécie. Gostaria, sim, de peito aberto, ter sido essa pessoa, coisa, porto amigo. Na verdade sei que é desejo impossível, ao mesmo tempo esperança que me alimenta o amor, a alma, a vida. É esse o sentimento que gostaria de transmitir a você, mas não consigo jamais. Não diga que devo perder todas as esperanças de amá-la totalmente (aqui vale a palavra em toda a sua extensão física), tenho certeza que várias úlceras vão me castigar


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internamente, roendo minhas vísceras. Nesse exato momento uma parte de mim há estará morta.

Por outro lado, você não consegue de modo algum captar o que sinto e transmito, participar do sentimento que irradio e desejo fazer sentir, algo me faz insistir, insistir e insistir sempre, para que não me torne um robô, como sistematicamente temo que ocorra toda vez que, como uma anêmona, você vem e vai ao sabor do vento, da maré. Por que certas horas deixo de falar com você? Por que em muitos momentos procuro o exílio voluntário para demonstrar minha mágoa? Parece contraditório tudo isso, a pessoa que diz e confessa amar de verdade simplesmente se afasta do convívio do ente querido! Como, porém, resistir permanecer ao seu lado sentindo um calor abrasante que transmite o seu corpo com todas as intimidades. Ter você, sua boca, lábios, ali bem próximos ao menos aceno das mãos sem nada poder fazer? Como agir se desejo loucamente gozar tudo isso o maior dos gozos, fazê-la sentir o mesmo, gozar de todas as maneiras e artes que sei fazer? Você tão perto e tão longe, tão acessível e tão impossível, se for pensar continuamente nisso é para ficar louco mesmo! Então aí está como sentir-se melhor com a pessoa amada. longe e sem falar com ela, um modo muito pertinaz de fazer sobreviver em impossível contato, amor, embora tudo continue fantasia! Queria na verdade encontrar com você e andar por aí lado a lado, conversando sobre essas coisas (se me falta a fala, a palavra!), puser todos os podres para fora e principalmente escutando tudo o que tem a contar, como nos velhos tempos. Desejara, enfim deitar ao seu lado e acariciar palma a palmo, milímetro a milímetro o seu corpo, pois só assim estarei conhecendo você de verdade.


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Quem carrega essa vida monótona nas costas? Quem nasce e espira sem deixar sequer o fedor sobre a terra? César, que tem como motivo de vida ter nascido.

Não se deve abominar a guerra, pois ela é um prenúncio de paz. Imagina um mundo de paz. Seria uma catástrofe! Como se para os felizes, o mundo não fosse sempre de paz. O silêncio reinou por alguns instantes. Fumavam. - Levanta-te César, disse Marília. César não se levantou. Deitado como estava – de cueca e estirado na cama – ficou pregado à dormência do sono. Virou-se para o outro lado de onde não veria Marília arrumando-se somente de calcinhas frente ao espelho. - César, levanta. De novo a ordem, um pouco impaciente, ficou no ar ecoando nos ouvidos de César. Aquele cheiro de cama usada atraía-o. Ficava relaxado sem ligar até para os ruídos. Decidiu acordar e agitou-se. Viu Marília, as calcinhas negras, passando um batom de leve cor nos lábios. Marília, os seios jogados à frente Marília, os cabelos lisos além do ombro, Marília, a pele alva e a pele morena de sol Marília, as plumas no sexo. De um pulo levantou-se em direção ao banheiro. Passando por Marília nua deu-lhe uma palmada na bunda e caiu no chuveiro de água fria.


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O que aconteceu? Nada. Absolutamente nada. A tarde ia morna deixando um rosa-vermelho no ar. Marília era virgem. Era. Até as três horas da tarde morna. - Vamos ao cinema?

Seu corpo não dia, não se sentia chateado e a pasta de dentes tinha o mesmo gosto. Iriam ao cinema de qualquer fita. Depois Marília voltaria à sua casa e ele estaria rondando a noite em busca de nada. Conversa com conhecidos, riso, muito riso e nenhuma comunicação do ocorrido. Na segunda-feira o emprego e a rotina cotidiana, inevitável. No futuro, novos encontros com Marília (ela gostaria). A cama é quente qualquer dia. No torpor do leito, cheirando o cheiro de carne por entre os lençóis, de novo a ordem: - Vamos ao cinema? César! Levanta! A mordida que Marília dera em seu peito seria repetida? Ou o rasgo da carne e o delírio do gozo foram as razões? Na eletrola giraria um disco, seria Beethoven? Ou seria alguma voz chata na televisão? Ou Chopin, ou Bach, ou Stravinsky? Não sabe. César que tem como motivo de vida ter nascido. Isabel é a praia. Isabel, estirada sob a barraca de lona colorida, fuma com os olhos cerrados ao tempo. Ao longo da praia milhares de pessoas formigam travando contato com a areia, com a água, com os corpos bronzeados e redondos. - César.


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César, a cara enfiada entre os braços, não responde. As costas voltadas ao sol queimam-se e estão excessivamente vermelhas. Dormita. Apenas o murmúrio das águas, contínuo, penetra-lhe os ouvidos. Vê, na imaginação, as ondas em seu sobe-e-desce, às vezes estrondando, às vezes deslizando sobre a areia. - César, repete Isabel. - Hum. César não se mexe. A voz parece-lhe vir de longe e é como se não estivesse na praia com tanta gente em redor. Ouve mais uma vê a voz que repete tua boca e não está disposto a mover-se. O corpo dormente não reage. - César, tua boca! É a voz imperiosa e real que tenta acordá-lo. Abre os olhos vendo em meio à intensa claridade Isabel, a face junto à sua, a respiração forte e o hálito quente batendo-lhe no rosto. Já conhece esse César, tua boca! É uma ordem-súplica emaranhada ao desejo. Ordem que ele não pode desobedecer.

Dá-me a língua, chega esses seios pra cá, abre um pouco mais a boca, as pernas, vira, fecha os olhos, levanta um pouco, assim, oh que coisa linda ver o corpo em decúbito, humhum, estou bebendo, engolindo o sumo da vida, alma, sem morder, não morde, devagar com muito carinho, oh isso! Levemente, tomara que nunca acabe! Não tente fazer isso na minha cara, meu rosto, louca, maluca! Está pensando que sou o quê? Oh que bunda, não, não aperta minha língua, veja bem sinta bem o que faço, gosta? Quero ouvir, quero escutar bem alto: diz que gosta muito, dos seus lábios cheios, algo além de murmúrios de prazer, suspiros, alguém já beijou aqui? Assim? Nunca? Pois é assim eu gostaria de ser sempre: o primeiro – não é egoísmo, ou é? – gosta da minha loucura? E assim? Mais? Realmente acho que ninguém jamais imaginou beijar e enfiar a


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língua aí! Mas dizem que nada é novo no mor. nem sei mais o que fazer e não canso jamais de passar m seu corpo, você me devolve o prazer! Que coisa! Não faz, não pára, mais, cada vez mais, ficaria a vida toda assim, amando sem palavras como deve ser o amor, sem pensar em comida e bebida, antes, definitivamente comendo e bebendo o seu corpo, seu gozo, seu suor, sua saliva, beijando os seios e se machucam irritados contra meu corpo, vem, vamos recomeçar tudo outra vez e continuar o que dá no mesmo, me dá a língua, quero senti-la na garganta como se fosse a minha, chega esses seios pra cá um e outro, quero abocanhá-la totalmente e à flor rósea plantada entre as pernas, morder os bicos irritados dos peitos que ao se acanham nunca, veja como um deles está sangrando um pouco, acho que mordi forte demais, mas apenas goza, vou passear com a boca colada em seu corpo, nas axilas enfio meu rosto e aspiro o suor, o cheiro de suor e do amor eu reascendi no ambiente, depois caminho pro umbigo desmaiado e lambendo o ventre úmido a caminho do além obedecendo somente ao ritmo de suas contorções como um trem veloz, suas coxas me atraem como um barco eu atraca no porto, os pelos envolvendo macios o meu rosto, minha boca, oh abre um pouco mais as pernas que me sufoco. Bebendo o sumo, engolindo a alma, a própria vida, nada me escapa nem quero deixar perder uma gota sequer do seu gozo, não morde, aperta devagar, com mais carinho, oh isso! Agora vira, levanta bem as nádegas assim, não vai acabar jamais, cuidado com o meu rosto, não faz isso! Louca mulher, aperta com carinho a minha língua, quero ouvir dos seus lábios que está gostando e eu sou o primeiro a passear nesse vai e vem por esses caminhos, está adorando? Alguém já chupou aqui? Como gostaria de ser o primeiro, o único, o egoísmo me diz que sou o único que ama de verdade, agora deita seu rosto suado no meu peito e dorme. Entreabre a boca, aceita os lábios e a língua úmida de Isabel. Depois, o peso do rosto que não quer mais retirar-se dali. Isabel não era virgem. Nem até ontem à noite quando, fugindo do calor reinante, andavam nus no apartamento, bebiam bebida com cubos de gelo, fumavam, dançavam e a cama foi o


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último reduto. Olha, a gente só encontra felicidade quando nada se procura.Todo fútil é feliz! No dia seguinte foram à praia para o repouso, o sol ardente queimando-lhes as entranhas, o reviver da garganta ressequida.

A boca de Isabel desgrudou-se. O corpo, entretanto, continuou montado ao de César, colado, e ele inerte. - Isabel, sabe que eu vou casar? Imagina: um mundo de paz! Será uma catástrofe, não? - Teu mundo nunca será de paz. Como homem liberto que és o lar não será um muro que te detenha. E a paz então será guerra pura! - César! – pensamento vago. - Ela era virgem? – interrompeu Isabel. E aquele era virgem, o verbo horrivelmente no passado, penetrou-lhe corpo adentro, chocante, concreto. Esmeralda é como se fosse uma irmã. E César ama-a como irmã e como mulher. Esmeralda, como se fosse uma irmã percebia o sentimento de frustração e compreendia que esse abandono peculiar de César não era indolência, mas repulsa a tudo e todos. Sabe que César não é de mostrar-se demasiadamente afetuoso nem de externar carinho a não ser na hora da cama onde seu acumulado amor extravasa abundantemente. Sabe que é, definindo, homem de cama. E como se fosse uma irmã Esmeralda controlava as crises de que era tomado nas horas em que saía de casa em busca do amplo desafogo. Dava-lhe, então, apoio moral e físico. - César, deita-te.


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É Esmeralda quem pede, com a voz terna, a César que anda entre a cama e a janela indeciso e vago. Tenta obedecer à voz que pede sem o conseguir. Quer abraçar o corpo esguio de Esmeralda, enterrar o rosto entre os seios e sentir o pulsar do coração: Tumtum, Tum-tum, Tum-tum. Sentir a aceleração irregular conseqüente da aproximação do amor. Quer penetrar na janela da frente onde alguma mulher se veste, quer sair dali e beber alguma coisa num botequim onde tenha gente estranha, quer saber das dificuldades alheias. Quer deitar-se ao lado de Esmeralda e deixar seu corpo livre ante as carícias dos rodeios que a mão finíssima transmitiria ao rosto, às orelhas, ao nariz. Quer virar-se abruptamente e apertar com todas as forças o corpo frágil de Esmeralda, senti-la gemer e não ter medo de quebrá-la como a uma porcelana fina.

Através da janela vê as luzes dos automóveis correndo pela estrada com se fugissem de alguma coisa. A sua vista perde-se pela extensão da noite até ao mar que longe deixa entrever-se. Sente os braços de Esmeralda em volta de seu corpo, César acorda, vira-se e também a abraça, os corpos colados. - Esmeralda, tenho medo de olhar através das janelas. É como se estivesse preso num outro mundo diferente do lá de baixo. É uma guerra que mantenho comigo mesmo. - Eu tenho medo de guerras. - Não se deve abominar a guerra. A guerra é necessária. Só com a guerra se consegue paz. Qualquer guerra traz paz. Por exemplo: quando a terra estremece sob o impacto das bombas sente-se a tranqüilidade da paz. Esmeralda arrasta-o até a cama e entre os lençóis avos César mais uma vez confirmará a condição de homem de cama, desamparado. César que tem como motivo de vida ter nascido.


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Lembro-me bem dos dias em que ficávamos os dois a conversar horas e horas numa escadaria – era como se buscássemos um ao outro para falar de nossas preocupações não só sentimentais, mas também materiais, existenciais – era como se procurássemos um ao outro para mastigar o amargo da vida, vazar nossos temores, nossa iras, as frustrações, amores inconstantes que perturbavam as existências, aquela mútua procura, aquela atração singular de duas almas mesmo conflitantes (o que nos une é o confronto?), aquele desespero mordido por dentro e vomitado a qualquer instante – já era amor! Já era amor aquela ânsia que trazia a ausência de cada um de nós, precisando – lembra-se? – inarredavelmente falar com o outro fosse à hora do dia ou da noite, sendo qual sendo o estado de ânimo que nos acercava, o choro, o riso, mais assiduamente a tristeza acompanhada das companheiras, a decepção, a final somos filhos do vácuo político, cultural e espiritual que se abate sobre nós há mais de dez anos, perceptível no ar como se fosse um mau agouro, um gás inodoro, mas letal, presságio de violência e de fome – e já era amor! Hoje estamos assim: casados para um lado e pro outro, partilhando da mesma cama tal e qual bandidos foragidos, cassados pelo temor de amar, banidos a um lar feito, desfeito. Vem pra cá, me dá a língua.


GREVE

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O cais estava muito diferente dos dias de trabalho. Parecia um domingo de tanta desolação. Os trilhos seguiam sua rota retilínea sem rangerem ao peso dos vagões que, cobertos, dormiam a somo solto. Os guindastes, mudos, pareciam monstros de ficção. Aço e cabos nulos e sem ocupação. Os navios encostados tomavam um descansado banho. A maré corria e gaivotas rasteiras pescavam. Em todo aquele silêncio destacava-se o murmúrio de homens que se divertiam. Era dia de greve. Estivadores, ensacadores, arrumadores e outras classes adjacentes misturavam-se em rodinhas de conversa ou assistiam, esperando vez, ao jogo de pife. Outras rodas jogavam truque, 21 e víspora. Outros ainda mais pacientes traçavam um gamão, uma dama ou discutiam porrinha valendo cigarro. Os mais interessados em política palestravam discorrendo sobre o preço da greve. Alguns menos informados até perguntavam a razão da mesma, demonstrando o desinteresse que possuíam por greves. Entre estes estava Fabriciano, estivador dos que têm a fama de ganhar por mês mais que o presidente da república. Viera cadinho trabalhador, apesar de ter ouvido no rádio as ameaças de deflagração de greve. Fazia uma semana que o cais não recebia visita de navios, e agora que chegaram alguns se apressava a pegar serviço. Estava necessitando de dinheiro. A semana inútil devorava as reservas. No fim do mês tinha que pagar a prestação da geladeira e dos móveis que comprara a crédito. Além disso, tinha que comer e as crianças iriam para o colégio. Mas, ao chegar de manhã encontrou aquele movimento. Greve. Que azar! Seus colegas explicavam brincando a razão da greve. Então greve é brincadeira? Porque o presidente não assinara um decreto aumentando o vencimento de uns militares. Então, que temos como militares? Não estava o cais agora mesmo cheio deles a fim de evitar desordens? Não estavam prendendo quem andava armado?


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As razões não se acomodavam na cabeça de Fabriciano. Não via motivo para greve, ainda mais quando precisava de dinheiro. E ficou com a camisa na mão a olhar pensativamente para os navios abandonados. Jogou a camisa no ombro e voltou para casa. Pensando no que haveria de fazer para conseguir dinheiro. Poderia pedir emprestado, mas o dinheiro só daria para alguns dias. Com o trabalho, não. Arranjaria dinheiro para passar um mês parado. Era só estar prevenido. Mas assim, subitamente, ninguém seria capaz de ajeitar que o dinheiro desse para cobrir os dias de greve.

Achou que estava decididamente de azar. Primeiro a falta de navios. a compra dos móveis novos. e greve. Só falta alguém adoecer em casa, pensou. E tinha alguém doente em casa. Não era nenhum dos quatro filhos. Nem a esposa. Todos estavam bem. Mas, Job não estava. Quando chegou observou a esposa levando uma tina de água quente com um pano na mão. Acompanhou-a silencioso e viu que Job estava deitado na grama do quintal. E gemia dolorosamente. Apalpou-o lentamente e notou o local em que os gemidos aumentavam. Na altura do estômago. Foi no cercado e apanhou uns galhos de mastruz verde e andou a preparar o chá. Dizem que mastruz cura até defunto. Fez Job tomar o chá e aproveitou o mastruz machucado para fazer uma atadura em redor da cintura. Trouxe o cachorro para dentro cobriu-o e foi sentar-se à beira da calçada do boteco da esquina. Duas semanas depois a greve continuava. Não era mais por causa de aumento dos militares. Os estudantes queriam a retirada dum diretor do colégio. E os marítimos aderiram à greve para dar poder aos estudantes. E passaram seis dias parados, numa nulidade estúpida. Não sabiam quantos funcionários não trabalharam em conseqüência disso. E quantos trabalharam noite e dia para solucionar os problemas que qualquer criança saberia solucionar de um modo prático. Problemas que em si nada tinham de excedente, nada tinham de anormal. Problemas que foram criados por não existirem problemas.


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Fabriciano conseguiu algum dinheiro pescando, ao mesmo tempo em que conseguia alimento para casa. Mas, e os móveis? O dono da loja não iria esperar além do fim do mês. E o fim do mês estava se aproximando. Se não resolvessem esse negócio da greve até dia 30, perderia os móveis. Uma coisa ele nunca gostou: de ver cobrador na porta de casa. Para que isso não acontecesse, sempre pagava pontualmente todos os débitos e dívidas. Não iria falhar agora. Nos momentos de altivez ele pensava em arranjar qualquer coisa que fosse para conseguir dinheiro.

Ainda veio a doença de Job atrapalhar a vida de Fabriciano. Não que ele não gostasse do cachorro. Gostava. E as crianças gostavam também. Encantou-se com Job, e trouxe-o para casa. Era um cachorro bem alegre e vistoso. Só não sabia da raça, mas deveria ser boa. Seria um mestiço de lobo com vira-lata. De qualquer forma nunca faltou a Job um bom osso ou um banho no mar dia de domingo. Hoje ele estava ali, deitado, com os olhos tristes de cachorro-sem-dono. Olhava inexplicavelmente aos amigos sem vontade de fazer alguma coisa. Uma fraqueza percorria-lhe o corpo e só queria ficar deitado. A gurizada ficava horas deitada ao lado dele acariciando os pêlos e dizendo palavras de consolo. Job olhava-os e não compreendia aquelas palavras. Queria dormir. Todos os dias Fabriciano fazia um chá de mastruz e dava a Job. O cachorro já não bebia com gosto. Era preciso forçar a boca e dar-lhe aquela coisa amarga. Depois saía ao boteco para bater papo com os colegas. Saber das novidades a respeito da greve. Quando iria trabalhar de novo? Esperava a hora da pesca deixando logo uns quilos de peixe encomendados. Tomava umas caninhas com limão, conversava um bocado e caminhava. Passava à tarde em casa arrumando as crianças para o colégio. Marise, sua mulher, cuidava da casa e das crianças. Sempre fora resignada desde os tempos em que Fabriciano era pobre. Pobre no modo de dizer, quando não tinha nada. Hoje lutava com a mesma vontade de vencer que tinha naqueles tempos. Eis por que Fabriciano fazia tudo para nada faltar em casa. Tudo que fosse necessário, tudo que fosse desejado pela mulher e filhos, dentro do possível. Ele satisfazia. Eis pó que estavam unidos há mais de vinte anos sem haver brigado seriamente uma vez.


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A tarde caía lentamente. Fabriciano pega sua canoa e sai para a pescaria. Para que possam viver muitos anos mais sem que os filhos sintam que a vida dá baques grandes. Sem que possam notar o valor que os pais lhes dão. para que possam ser um dia aquilo que muitos não o são: homens que não precisam de greve para ter o necessário, para viver em tranqüilidade. Raios vermelhos entrosam-se nas águas ternas do mar do futuro. Fabriciano movimenta-se entre os estivadores que trabalhavam comentando a última greve. Os comentários divergiam-se ante as opiniões mais diversas. Cada um dava o seu tom pessoal às ocorrências havidas durante o movimento grevista. Cada qual queria impor-se tal um líder. Mas o que todos concordavam, o que todos sacudiam a cabeça ao pronunciarem o nome, era quando falavam no presidente do sindicato. Todos eram unânimes em afirmar que o presidente tinha se saído em ante a imposição presidencial. Durante as negociações, firmara-se com um não irretratável e só concordou com o encerramento da greve depois que os chefes e diplomatas recuaram, dando assim a vitória aos grevistas. Orgulhava-se de ter sido chamado a Brasília para tratar dos assuntos de grande interesse da nação! Enfunava o peito e comunicava a candidatura a prefeito nas próximas eleições. Talvez se candidatasse a deputado estadual. Ninguém - comentou Fabriciano. Ninguém perguntou se ele havia gostado da atuação do nosso presidente. Se assim o fizesse teria uma resposta seca e talvez um desagradável não. se estivesse mais disposto, contaria tudo o que aconteceu durante a greve vitoriosa. Contaria tudo. Fabriciano arrumou-se e saiu de casa. Agora que havia arranjado dinheiro, dinheiro que dava para passar uma semana parado, sentiu que não havia quase necessidade dele. Pôs a camisa no ombro e foi até o boteco da esquina tomar uma caninha para ir ao banho. Não queria falar com ninguém nada que tivesse relação com a greve. Tomou sua pinga despreocupado e foi para casa. No caminho pensou o que encontraria de novo por lá. Sabia, no entanto, o que não encontraria.


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Job não iria recebê-lo. Marise por certo iria sentir um apequena alegria ao saber que o dia voltara a ser proveitoso. Nem tanto uma alegria, mais um alívio. As crianças, que sempre foram alegres, notariam a diferença do tratamento do pai. Embora nunca os tratasse rigidamente, a espontaneidade é mais válida, mesmo às crianças, que a alegria falsificada por necessidade. Notaria a diferença no cheiro da comida, pois agora levava uma boa lingüiça para fritar com ovos. E comeria com uma vontade de comer muito para esquecer que ontem não tinha o que comer.

Arrastou-se pelas vielas barrentas enquanto o sol caía lentamente. Cumprimentando a todos os vizinhos, chegou a sua casa. Abriu o portão e foi entrando. As crianças pulavam corda e brincavam de pegador. Lula, o menos de todos, veio correndo e agarrou-se em suas pernas rodeando-o. Passou a mão sobre a cabeça murmurando uma frase alegre. Subiu os degraus da casa e olhou de relance no canto da cerca de terra fofa onde fora enterrado Job. Uma cruz ornava o túmulo dando uma alma e um lugar no céu a um cachorro simples que só queria viver, só brincar com crianças, só servir de caçador. (1963)


O BREVE REINADO DAS DONZELAS

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- Vosmecê vai atirar? – Não quero matar ninguém – era a voz de Luna Gato. – Mas também não quero morrer Adonias Filho – O Túmulo das Aves Espera-se para as próximas horas uma sangrenta revanche político-amorosa como vingança pelo frio assassinato do famigerado ex-bandido e atual protetor de donzelas Santino Alvo. Mais conhecido pela alcunha de Coração Branco, protegido-mor do Coronel Mendes (do qual é homem de fé), ele foi abatido alta madrugada num trecho pouco habitado da Estrada da Fome de Amor, no rumo de quem vai para a Grande Capital. Nascimento de Jesus, apelidado Jesuzinho, um sobrinho talqualmente apadrinhado do mesmíssimo Coronel Mendes, escapou do atentado gravemente atingido, porém, jurando desforra. Jesuzinho é tal qual Coração Branco um protetor de donzelas há muito servindo o citado coronel. Foi recolhido do chão espumando ódio, ajudado por populares e imediatamente levado pra a Casa de Saúde Nossa Senhora da Proteção. Localizada em lugar afastado da cidade, a existência da Casa de Saúde é exclusivamente dedicada ao atendimento de mandados dos grandes coronéis ilicitamente endinheirados, já que não podem aparecer nos hospitais públicos ou oficiais. O atentado, o último de uma série numerosa de violentas mortes, teve como motivo básico a luta pelo predomínio e posse da discutida área que se estende por toda Vila Felicidade. A disputa dará ensejo ao vencedor – caso sobreviva à matança – ser nomeado definitivamente Protetor geral das Donzelas (filhas e enteadas) do Coronel Mendes. As filhas e enteadas do Coronel Mendes são atualmente tidas como as mais belas e disputadas que a região jamais deu. Essa posição perpetuará o eleito com aquele que teve o privilégio de gozar todas as prerrogativas e amores das damas do coronel, cuja fama de beleza percorre florestas e vara sertões – além de outros benefícios inconfessáveis.


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Embora o Protetorado esteja oficialmente renegado a um plano secundário diante das firmes investidas do Governo Central, com o apoio decidido de combatentes federais, ele continua funcionando com o único objetivo de garantir as antigas posições, conquistadas a sangue e a defuntos dos seus poderosos donos. Mesmo nos locais onde a guarda é feita pessoalmente por membros das famílias (os antepassados dos protetores se juntaram à família protegida unindo assim os troncos genealógicos), as moças estão sob forte e voluntária proteção dos pretensos candidatos ocasionando dupla guarda inexpugnável. Estes aguardam apenas o oportuno momento para assumir seus postos sem ameaça de serem molestados pelos agentes federais ou remetidos presos à Ilha do Grande Presídio, temida por todos.

Como se vê a guarda é feita à revelia dos grandes Coronéis e proprietários rurais interessados, que acatam a proteção dada pelos vencedores dessas batalhas criminosas. Geralmente o vitorioso reúne todas as ótimas qualidades profissionais de um bom protetor, apesar da rudeza de que são possuidores, dos golpes baixos e subterfúgios aplicados para a posse ditatorial da posição. Continua detido incomunicável na delegacia de polícia o idoso protetor de nacionalidade italiana Amore di Amore ou Amor Fino simplesmente, como é reconhecido nas rodas. Ele sofre de mal cardíaco e palpitações adquiridos em decorrência de terríveis sustos amorosos levados como protetor de moças por mais de trinta anos de intensa atividade. Em virtude disso tudo Amor Fino resolveu requerer aposentadoria de fabulosa soma, em dólares, como ordenado. O processo a esse respeito tramitou em diversas instâncias e, ao que se sabe, ainda corre na Capital. Os funcionários especialistas estão se virando para classificar a profissão de guarda-cabaço, inexistente mesmo nos catálogos dos impostos de renda, ICM, etc. Amor Fino é peça fundamental para o total esclarecimento dos últimos homicídios ligados aos Coronéis e aos protetores. Na sua derradeira confissão contou à polícia que Coração Branco – a vítima – esteve em sua residência poucas horas antes da fatalidade.


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Conversaram bastante sobre a atual situação em que se encontram os protetores, desamparados de qualquer apoio sócio-financeiro oficial, sem institutos e instituições que amparem sua família, com médicos, seguro de vida, professores. O exemplo da aposentadoria de Amor Fino serviu de modelo para mostrar em que pé está a situação de amparo social da classe. Ao fim da conversa se mostrou Coração Branco bastante nervoso, sem, contudo chamar demasiado atenção. – Na profissão é comum a gente tremer. Até adquirir mal qualquer incurável, como eu. Ou ficar com o coração de ferro, frio que nem laje de cemitério, como muitos outros – declarou Amor Fino. A visita era natural, como comum é o apelo dos jovens guardadores de moça aos conselhos de velhos protetores, de grande valia pela palavra abalizada na profissão, pelo prestígio mantido junto aos coronéis e patrões a que serviram. Na hora da verdade a experiência só vale se for vivida e sentida na carne. Coração Branco antes de se retirar requereu um vidro de perfume Flores Silvestres, preparo especial, a título de ajuda sentimental, pois estava necessitado. Tal fragrância é especialmente fabricada por Amor Fino, muito respeitada pelos consumidores. Gente de toda camada, inclusive social vinda da cidade grande, atesta a sua infalibilidade: nunca fracassou na missão santa de renovar amores, levantar moral de cabeças arriadas e outras mumunhas físico-eróticas.

Ao deixar a residência de Amor Fino, Santino Alvo percorreu a pé os jardins naturais de Vila Felicidade recolhendo, apaixonado, as rosas de sua preferência, de vários espécimes, clandestinamente exploradas por Amor Fino, o qual, ainda que detido na delegacia, controlava o mercado sexual paralelo à proteção do cabaço, com produtos como o citado levanta-pica e outros mais danados e afrodisíacos ainda.


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Por tradição Amor Fino serviu de mediador em muitos casos tidos como insolúveis, assim era o seu prestígio e razão de ser tenazmente procurado.

Foi daí em diante que os criminosos passaram a seguir Coração Branco. Trazendo pelas rédeas seu cavalo tordilho continuava enlevado o passeio. O puro-sangue relinchava de alegria e de repente passou a fungar como que pressentindo algo anormal. Portava o cavalo na anca a marca da Fazenda Rústica (dois corações rasgados por várias flechas – sinal de tanto amor e tanto sentimento) de propriedade do afamado Coronel Mendes. Foi presenteado pelo patrão a Coração Branco como prêmio por excelentes serviços prestados não só de guarda-donzela, mas até de capanga e homem de fé e confiança total. Coração Branco formava com Amor Fino e mais Francisco Alves – Chiquinho Bico Doce – a cúpula do sindicato que protegia a maioria das belas moçoilas de Vila Felicidade e arredores. Até então eram temidos por todo mundo: ninguém jamais ousaria levantar dedo ou voz contra atos do famoso trio. O povo tinha especial atenção e adoração por eles e não havia gente de bem insatisfeita quando recorria a seus préstimos. Mas os jovens chegam quase sempre violentos destruindo tudo quanto é preconceito e império bolorento. Por isso mantinham os três um pacto de mútuo respeito e ajuda profissional. Para desmontar o valoroso tripé de proteção, seus inimigos começaram por liquidar covardemente Chiquinho Bico-Doce, seqüestrado de uma caleça azul bordô, último modelo, quando abandonava o aveludado quarto da donzela de 15 anos (olhos verdes, cabelos longos, boca louca), sua amada e protegida, filha do coronel, patrão e amo. Foi encontrado muito depois por populares, no KM 69, o corpo melancolicamente crivado de balas por todos os lados. Chiquinho Bico-Doce fitava em vão o longo da estrada da Fome de Amor. Os matadores enfeitaram o cadáver com o símbolo mortal, espécie de marca registrada que trazia horror a quem visse: um coração sangrento trazendo dentro de si uma caveira, tíbias atravessadas em cruz.


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Ontem de madrugada chegou a vez e hora de Coração Branco bem como a de Jesuzinho, que seriam mortos a uma só vez por medida de economia. Oficialmente Jesuzinho – como se lembra escapou quase ileso – tomou rumo ignorado e ninguém sabe o endereço da clínica onde está internado. As autoridades encontram dificuldades para tomar informações do ovo onde as vítimas são bem conceituadas. Escapou Jesuzinho através de um campo de futebol abandonado, caminho também preferido por Chiquinho Bico-Doce, como se viu, anteriormente liquidado na guerra sem dono. A verdade está registrada oficialmente nas linhas passadas. As três da madruga o assassino (ou assassinos) ultrapassou a dupla. Súbito a redondeza se vê acordada por rajadas de revólveres e metralhadoras. No silêncio da noite o inferno se fez presente, o diabo em pessoa lançando fogo pelas ventas, devastando, arrasando, ceifando preciosas vidas e ensinando o mal às crianças. Entre os atacados, gente boa, estava Santino Alvo, caráter irreprochável, amante de boas coisas, papo dos melhores, santo! E nascimento de Jesus, crianção que gostava de grandes aventuras e de ajudar necessitados. Um meninão que podia ser o diabo em pessoa (muitas vezes era), mas não gostava da profissão. Coração Branco morreu na hora varado por seis tiros: alto da cabeça, ouvido esquerdo e região torácica foram as partes mais atingidas. O rosto desfigurado deixava Coração Branco partir sem qualquer expressão, não podendo deduzir o povo a qual das três partes do além ele se destinava. Jesuzinho, tido por todos como pistoleiro de alta periculosidade, escapou gravemente ferido por dois balaços: na clavícula direita e na altura dos rins. Gritava em altos brados dizendo que isso não ficaria assim. Voltaria para a vingança implacável. Claudicante foi protegido involuntariamente por meninos de uma casa próxima que admiravam e assistiam ao tiroteio, acordados pelo ruído da metralha. Ele nunca jurou em falso. Coração Branco, provavelmente para se proteger das investidas dos federais, tinha em seu poder uma colorida falsa carteira de


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identidade Inspetor da Guarda Noturna de jardins e Praças, o que lhe permitia andar armado. Mas não teve sequer tempo de sacar o revólver calibre 38 especial. O azar só correu por conta de Chiquinho Bico Doce, o Francisco Alves, teve o privilégio de ser o primeiro a falecer na terrível batalha de Vila Felicidade. Quando foi abatido seus olhos denotavam toda a alegria possível num homem endurecido pelo rigor da profissão. Saído então do quarto da amada moça, olhos verdes de 15 anos.

A seguir tocaria a vez de Coração Branco quando justamente procurava se reabilitar das fracassadas investidas amorosas – assim apontam as circunstâncias e o frasco de fragrâncias solicitado a Amor Fino. Jesuzinho soube sumir a tempo e hora exatos. A ocasião reservada a Amor Fino foi desfeita pelo amparo protetor oficialmente dado pela polícia, pressionada pelas autoridades civis, eclesiásticas e militares da Capital. Eles querem saber tudo detalhadamente e têm interesses no caso. Rememorando: a antiga prática de guardar moças – encontrou em Vila Felicidade o auge de difusão – surgiu das várias reclamações registradas pelos candidatos a marido, que alegavam encontrar as donzelas desvirginadas. Com isso anulavam o casamento e obtinham dos ricos Coronéis grandes somas a título de indenização. Outros interesses causadores dessas denúncias continuam ainda hoje obscuros. Buscavam fugir do anel conjugal? Pouco provável. Havia só a tentativa de arrancar dos velhos a indenização? Ninguém em sã consciência pode confirmar. Na falta de uma defesa idônea – bem que alguns pais conheciam as ardências entre as pernas de suas donzelas – os coronéis instituíram a prática de guarda-cabaço para evitar não só a desmoralização do nome tradicional, como também para acabar com a quadrilha de assaltadores (e aí falam do início da influência decisiva das esposas, vital para o desfecho do caso, como se verá). Contrataram famigerados capangas das grandes cidades arrebanhados, imediatamente ganharam do povo o apelido carinhoso de guardacabaço, ficando fundada a profissão.


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Logo após um dos pais percebeu certa improcedência numa das acusações dum futuro marido. Quando o dito afirmava não ser a noiva mais pura, se apurou que ele sim era afeminado e impotente. Houve quem afirmasse ter visto o dito de amores com vaqueiros nos currais e no mato. Os guarda-donzelas viram sua posição reafirmada com o ocorrido. Aumentaram o poder e o privilégio. Foi p princípio da ascensão da classe.

As donzelas, porém, se multiplicaram em número maior que os machos (além desses equívocos lamentáveis, também homens morreram na guerra, enviados pelo exército). Tornaram-se superiores numericamente, muitas vezes intelectualmente. O feitiço virou contra o dono quando as moças passaram a exigir dos coronéis o guarda que lhes conviesse. De preferência altos, fortes e de beleza brutalmente máscula. Tipo machão, Adônis subnutrido. Os pais, até então cheios de mando, viram-se submetidos a exigências incabíveis e inegáveis porque visavam – segundo justificativa usual – salvaguardar interesses, hombridade moral e feridas insanáveis, além de famílias ameaçadas pelo ridículo em várias ocasiões. Para manter a aparência de poder apelaram os Coronéis para um tratamento rigoroso com subalternos, empregados e até com o povo inocente em tudo. Tal coisa não conseguiu evitar que as matronas e donzelas mantivessem obstinado e vigoroso mando ditatorial sobre os Coronéis a partir de então. Esta súbita transformação por que passou Vila Felicidade transtornou seus pacatos dias. Ninguém reconhecia na Vila agitada, cheia de gente de fora ambiciosa em dar o golpe do cabaço, a cidadezinha morna dos passeios matinais do padre. Das ocorrências raras de violentas lutas ou das mal contadas histórias a respeito de uma estrela milagreira nas noites escurecidas. Os homens chegados, ansiosos por deitar não na comodidade de ter casa, comida e dinheiro grátis, além das várias mulheres que seriam creditadas, atraíram também moda e vícios da cidade grande. Trouxeram consigo as donzelas enfeitadas com avançada moda citadina à espera do prometido protetor, disputa do futuro amado. Às


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mães a impossibilidade de negar incondicional apoio, e os Coronéis foram ficando cada vez mais impotentes – derradeira alegria do povo sofrido de Vila Felicidade. Os puteiros cresciam e as aberrações sexuais nasceram em sucessão vertiginosa: é bom o termo. Jogo de bicho (proibido nas cidades), cassinos clandestinos, jogos de azar expulsos da civilização, casas suspeitas e mais estranhos programas ainda. Todo o mal encontrou guarita na desgraçada Vila Felicidade. Um permanente mistério e esquisitos freqüentadores: macumba, feitiços, candomblé, umbanda. Só faltava a poluição total de rios, mares e ares para Vila Felicidade ser condenada eternamente ao cataclismo.

Os grupos se tornaram distintos adversários e diferentes ideologias eram propagadas fazendo explodir a guerra total em Vila Felicidade. O estopim foi a fuga espetacular de uma filha do Coronel Mendes com um guarda-cabaço do Coronel Flint – estrangeiro e vizinho, o mais ferrenho adversário, o maior inimigo do Coronel Mendes. - Já não bastam as inimizades naturais de nossa terra, inda vem estrangeiros aporrinhar minha vida, desabafou o Coronel, machucado no amor próprio. O casal tinha amor de verdade e nenhuma força política é capaz de deter. Correu sangue, mas notícia posterior dava conta da ventura existente entre os dois numa terra super-distante cuja neve alegrava os dias de Natal. O Coronel Mendes deserdou do testamento a mais dileta filha. A guerra alastrou como fogo em roçado abatido. O ódio escapou ao controle da minúscula administração estadual. Os matos eram regados a sangue, o mar serviu de túmulo a culpados e inocentes. Um mero aparelho de proteção foi transformado em ditadura mortífera, engolindo seus criadores, abrangendo altas esferas políticas e econômicas de decisão nacional. Morte e atentados se consumaram com velocidade além do tempo. Tocaias, atos terroristas, duelos sem fim, subversão e rixas entre famílias e seus capatazes guardadores


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foram agigantando vitalizados por um incontrolável rancor. O povo de bem iniciou a debandada da terra, a fila foi rebatizada como Vila desgraça. Até ações guerrilheiras foram anotadas pelas autoridades.

O Governo Central imediatamente declarou Vila Felicidade área de segurança nacional. Aboliu direitos individuais, censurou a impressão de todos os jornais e livros e revistas, decretou toque de recolher e nomeou interventor militar para promover a devassa dos Coronéis. O Serviço Secreto de Informações também intervém. Famosos historiadores acreditam que aí foi quando iniciou finalmente a decadência irremediável dos famosos Coronéis de patente comprada ou herdade. Nós da terra sabemos a verdade purificada: já não existia poder algum em suas mãos há muito tempo. A derrocada experimentada com essa sangria atingiu diretamente o reinado das matronas e das donzelas, de quem os Coronéis eram apenas testas-de-ferro. A intervenção federal provocou fuga desenfreada. Os vivos caçadores de dotes rapidamente fugiram para outras freguesias. Os que estavam já instalados entraram em recesso forçado, inteligentemente pagaram os pecados cometidos e aderiram à monotonia. O mal retornou à origem: a cidade grande, antro de vícios. Os Coronéis tiveram de agüentar firmemente e foram beneficiados ao fim. Já se podia voltar a plantar no adubo de sangue. As donzelas em breve período se tornariam mulheres carregadas de filhos, gritos irritantes e chatas As moças foram enviadas à grande cidade, não apenas para escapar ao escândalo e seus malefícios, como até para adquirir melhor educação social e cultura superior. Novos conhecimentos feitos, a mentalidade evoluirá naturalmente para contatos com novos amigos e futuros companheiros de vida. Apenas com inteligência, beleza natural e caráter, sem qualquer abuso ou força de poder. Algumas hão de retornar solteironas, mas é muito certo que Vila Felicidade se transforme em mera estância de férias. Nunca mais experiências desastrosas. Os dias tornam pouco a pouco à mornidão convidativa. Já se pode passear pelas ruas seguindo o hábito ancião do padre sem ser molestado pelos tiroteios de balas sem rumo, insolências e brigas


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intermináveis dos guarda-cabaços, cujas disputas aventurosas vão sendo arrancadas da memória do povo como coisa comida pelo tempo. Os velhos coronéis reavendo antigos costumes da cria de gado, plantações e comércio: a carcomida e indevassável exploração humana. Mansos como boi de curral, apesar de tudo, e o povo perdoa humildemente (burramente) as humilhações sofridas. As rédeas de Vila Felicidade estão de volta às mãos dos donos. As rédeas das gigantes fazendas às mãos dos Coronéis. Matando saudade. O delegado, sempre de mau humor, dificultou enormemente a reportagem. (TRANSCRITO DO DIÁRIO DE VILA FELICIDADE – EDIÇÃO CLANDESTINA DE 22/03/1942).


O CASO JOÃO

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São Luis, pode crer, é o fim do mundo. Foi lá exatamente que o Diabo perdeu o rabo e é lá mesmo onde o vento faz a curva. Todas as estradas – de todo o Brasil – se dirigem à São Luis, mas só com passagem de ida. De lá pra diante o mar toma conta de tudo. São Luis é uma ilha em toda plenitude: é o começo e o fim. É a terra do Cão, o Inferno. Como as máquinas, os homens que vão para São Luis não têm como voltar. Vão ficando por falta de retorno, esperando melhorar, com pouco mais arranjam família, os filhos vão sujando os pés de barro e a raiz tá criada. Antes disso tudo, agüentar aquela calorama toda só encarando as bocas do mato, a zona, o Buraco do tatu ou os randevu lá pras bandas do Tirirical. Isso no tempo em que se deu o Caso João, hoje não sei nem quero saber – pra mim São Luis é terra boa, ela lá e eu aqui. Com João se deu o mesmo. O sujeito era viajado, Argentina, Rio de Janeiro, essas coisas, veio do Paraná rasteando o Brasil engajado no Serviço de Proteção aos Índios, que naqueles tempos nem tinham esse nome. Chegou zoneiro, conquistador mais pro lado de aventureiro dos interiores, mas, em se chegando a Rosário encontrou uma Catarina de olhos claros, pele alva e de muito boa família. Descendia de sociedade aparentada de barões, cantava se acompanhando no violão ou piano, tanto fazia, representava no teatro, participando de toda e qualquer tertúlia lítero-recreativa para a qual fosse solicitada. E era. Mas, com João foi amor à primeira vista, como existia antigamente. Ela viu o moreno, tipo alto e bonitão e passou a desprezar as ofertas de casamento que choviam ao seu redor. Era gente de todo tipo – todos finos – e pretendentes de alta linhagem familiar, coisas da sociedade. E vinham forrados de dotes e mais dotes, nomes e renomes tradicionais. Pois Zelda – apelido pros mais íntimos – desprezou tudo isso, seus olhares e langores tinham um só dono, seu sangue meio sírio só fervia na presença física ou imaginária de João. E esse apelido


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carinhoso soava sinfonicamente na boca do amado. Qualquer chamado, mesmo do velho, do qual era a menina dos olhos – a dengosa – não possuía o mesmo tom mágico do que quando feito por João. Zelda, Zelda – dizia João enquanto se encontrava às pressas em qualquer canto da cidade. E aquilo era um hino de guerra, um convite ao desespero e à fuga. Um dia, fugiram. Pegaram o trem e foram casar em Teresina. Quando voltaram, a família só pôde aceitar o aventureiro como filho. João, ainda inquieto como um solteiro, teve que fazer viagens ao Piauí e ao interior maranhense até se acomodar. Os filhos foram nascendo, a família da mulher arranjou uma colocação no Fomento, a vida foi passando, oito filhos já contavam. E ali era São Luis, onde ninguém quer subir na vida. Os cargos melhores iam cegando e João passava-os adiante para ajudar os que precisavam. Foi envelhecendo encardido pelo sol desgraçado da ilha, que todo o ano se apresenta o pino marcando o meio-dia. Num tempo andou distribuindo os filhos pelas casas dos parentes para aliviar um pouco a mesa. A ida já não era tão fácil e o ordenado de sua função não dava mesmo para agüentar sustento de oito bocas, que comiam tanto quanto esses carrões bebem gasolina. Das refeições, uma era a mais simbólica – o jantar constava de café com leite, pão e manteiga.

O pão era apanhado num vilarejo distante, fiado a pagar no fim do mês. O mesmo com a mercearia, que anotava tudo numa cadernetinha: arroz, $, feijão, $, açúcar, $, farinha, $, café, $. Depois o feijão foi deixando de ser um prato de pobre, como o foi algum dia e cada vez mais se tornava inacessível. Outros gêneros acompanharam a alta do dia a dia. O pão, quando não se pagava o mês, ficava suspenso. Então o café com leite era com farinha d’água, banana com farinha d’água, feijão com farinha d’água, café preto com farinha d’água.


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Bendita farinha d’água! Se não fosse ela por certo a gente morria de fome, como devia de ter outras famílias que passavam pelo mesmo aperto!

Muitas vezes o jeito era ir pegar caranguejos e siris no mangue. Ou futucar o mato em busca de jerimum cavalo, que um só dava pra muitos dias. Era a aventura da sobrevivência, que João assistia impassível. As dificuldades iam passando o tempo. E pouco a pouco, quase sem sentir mesmo, o coração de João ia se estourando. Às vésperas da aposentadoria, quase na mesma função em que se iniciara no serviço público (talvez tivesse subido um degrauzinho só), a doença tomou corpo e começou a pregar João dentro de casa. Na varandinha, sentado numa cadeira de vime, passava a vista pelo bairro de ruas e casas simétricas, cumprimentando jeitosamente a todos que passassem. Pra cada um, um modo diferente de falar. Talvez dali mesmo passasse vista no passado da fama de conquistador, fama que não perdeu mesmo depois de casado e com oito filhões na gaveta. Aliás, era produção pra mulher nenhuma botar defeito. Dizem as más línguas até que era bem capaz de João ter outro time, do mesmo naipe, em algum lugar da cidade. Por isso – repetiam essas linguarudas – o ordenado nunca dava pra sustentar a família. As pernas estiradas na cadeira, o pés inchados, a respiração difícil, me faziam sentir que João se deixava morrer. Por certo achou que já tinha vivido muito, que agora só atrapalhava a mulher e os filhos – que poderiam ter vida melhor sem ele, coisas assim. E nesses extremos, aumentava o amor pelos filhos. Dizia-me lembro bem – que ninguém, ninguém mesmo, gostava tanto dos filhos quanto ele. A ilha era o ataúde, a moldura e o caixão dos sofrimentos de João. Ali não tinha recurso. Pra se tratar ou tinha que pagar hospital caríssimo, como a tal de Santa casa de Misericórdia (nunca ninguém entendeu esse nome, pois, são verdadeiros mercenários das doenças – onde a misericórdia) ou outro qualquer particular. O filho tentou mudar o dependente para o IAPC, mas, informou o funcionário, isso


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demoraria meses. O IPASE não tinha nem nunca teve hospital. E à maneira que se descobria que o homem brasileiro não tem assistência médica do Estado, o caso de João se tornava cada dia mais grave, mais desesperador para a esposa e filhos que já antecipavam o desfecho, se nenhuma providência fosse rapidamente tomada. Os amigos ajudavam, mas João piorava. Não era caso para ajuda de amigos. No último dia de resistência o alento desesperado: os amigos ajudam e vem um médico especialista. Ordena o imediato internamento, outro sacrifício, e levam-no para a Santa casa de jipe. Viagem de mais de hora, João não resiste, lança um último olhar para a mulher atrás, a mulher grita, ele está morrendo! E estava mesmo. Na tal de Santa Casa, só o coração latejando já nas últimas – praticamente morto, outro sacrifício – aliás, exigência – teve que pagar para entrar no portão. Pagou, entrou e só saiu pro meio da sala dentro do caixão. No outro dia um beijo na testa fria selou o caixão. A mulher chorando de desespero, os filhos reunidos em torno do pesado caixão. Lá fora o sol lascado torrava sem piedade a única fortuna que João amealhara em todos esses anos: os amigos, conhecidos e parentes distribuídos em quase cem automóveis que formavam o cortejo. A viúva ficou com uma pensão de $ 300,00 para sustentar, dar comida e educação aos oito filhos.


O CRIME DE JESUS CARLOS

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Aquele calor estranho continuava a perseguir-lhe teimosamente por dentro e por fora. O cheiro do tabaco ordinário consumido pelo delegado penetrava-lhe as narinas e ia arder-lhe a garganta. O delegado escrevia por entre as sucessivas perguntas protocolares. - Qual é o teu nome, negro? Ele tinha sempre que responder: uma, duas, três e até quatro vezes. quanta perguntasse o delegado. - Jesus Carlos – respondia. E diante a insistência do guarda: da Silva – completava. Nunca soubera por que lhe deram o nome de Jesus. Um Jesus preto, ora essa, nunca existiu. Por que então? Jesus. Apoiava a cabeça entre os pulsos cerrados, e ficava pensando: O quê eu fiz, me Deus! O quê? Para estar, agora, aqui sentado à espera do cárcere fedorento e imundo? Para ficar a espera do que lhe dissessem: Estás preso, preto. O quê? - Idade? Quantos anos, negro? – perguntava o delegado. Idade, peso, mãe, pai, avô, tudo! Tudo! De tudo ele precisava saber automaticamente, como se fosse uma fita magnética onde as respostas estavam gravadas. E aquele calor intenso, aquele suor porejando-lhe o rosto e pingando sobre o peito ensopado. E aquela secura nos lábios que água nenhuma saciava. - Cabo, traz um copo d’água pra mim. Dá um pro negro também. Queres água, preto? (Talvez aquele homem que estivesse sentado por trás daquela escrivaninha não fosse tão mau como parecia à primeira vista. Por certo ele teria uma família em casa à sua espera – pensava Jesus Carlos – uns filhos alegres pulando-lhe no pescoço, nesse pescoço que parece um pescoço de touro).


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Mas eram apenas pensamentos vagos que se entremeavam na realidade cruciante. O verdadeiro pensamento de Jesus Carlos não estava ali presente. Desviavam-se anos e anos atrás, nas recordações, ora graves, ora alegres. Lembrava-se da sua negra Maria das Dores. Lembrava-se do quanto gostava dela. E pensava na família que viria com o casamento. O preto Jesus Carlos não estava ali naquele cárcere poeirento. Estava passeando com a sua Maria das Dores no bosque fervilhante de aves e do vento sorridente que ali soprava. Estavam noivos depois de três anos de namoro. Namoro sério. Os pais de Maria das Dores sabiam e aprovavam o namoro. - O Jesus Carlos é um moreno trabalhador. Quando o homem é trabalhador vence na vida e pode dar conforto e alegria para a família. A família então será feliz – dizia o pai de Maria das Dores.

De fato, Jesus Carlos era trabalhador. Não dispensava um serviço! E trabalhava lá no armazém do seu Augusto Português. E seu Augusto gostava tanto dele que de vez em quando dizia: - Jesus, tu ainda vais ser meu sócio. E Jesus Carlos alegrava-se com isso! – Isso quer provar que o preto dá pro comércio. Pensava. E o preto mais trabalhava. Disposto, alegre, sempre cantando uma melodia da moda ou cantigas do bumba-meu-boi. Botava com facilidade três sacas de arroz na cabeça. E ainda levava uma debaixo do braço pra equilibrar, dizia. Aos domingos lá ia Jesus Carlos de braço dado com a sua negra Maria das Dores à missa ou ao cinema assistir um filme de amor. Levava Maria das Dores para passear na cidade onde ficavam de braço dado olhando as vitrines coloridas. As vitrines onde tinhas os modelos de vestidos que os brancos usavam. E Jesus Carlos ficava alegre com a alegria da Maria das Dores. Comprava-lhe diversos presentes: um chinelo japonês que o marreteiro vendia. um perfume que o camelô apregoava se francês. Já lhe dera um sapato branco de salto alto, um corte duma fazenda toda vistosa, cheia de flores. Mas Maria das Dores tudo que via os brancos usarem queria para si. E Jesus Carlos não gostava disso: Preto é preto, das Dores, eu gosto de ver preto que tem orgulho de ser preto. Maria era ambiciosa. queria porque queria e


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Carlos acabava cedendo aos pedidos. Afinal, ele gostava daquela mulata. Ia casar com ela. Então tinha que se acostumar. Mas ela também devia respeitá-lo e às vezes fincava o pé e não dava mesmo: Nêga, nós vamos casar e é preciso haver união: por isso aprende a fazer o que eu mando. Ou então vai ter – completava em tom de ameaça.

Sedo assim, Maria das Dores tinha quase tudo o que desejava: meias, sapatos, vestidos e jóias. Ia até no salão de beleza e saía toda jeitosa. Carlos admirava-se toda vez que ela aparecia na porta do salão. E perguntava brincando: É tu mesmo, Maria, ou eu estou sonhando? Mas, taí onde Carlos ficava embrutecido. Era quando Maria das Dores pedia para ele a deixarela esticar os cabelos. Largava o braço dela, afastava-se um pouco e dizia irado: Negra que estiva os cabelos não tem vergonha na cara. E se tu, um dia, esticar os teus eu te meto uma faca na barriga. Maria das Dores disfarçava sorrindo e dizendo toda alegre: - Tô brincando, meu nego. Eu só queria ver se tu gostas de mim assim como eu sou. - Se eu não gostasse, tu achas que teria namorado três anos contigo? Já tinha te largado há muito tempo, viu? Era a resposta que ele dava. Olhou pro corpo e viu que estava agora todo molhado. O calor, os pensamentos e aquele tabaco horrível, traziam-lhe à realidade. Ainda continuava naquele cárcere imundo e fedorento. Onde aquele delegado, sempre pedindo um copo d’água, continuava suado. O delegado estava agora com a camisa toda aberta pondo à mostra o seu peito cabeludo e ensopado. Sempre escrevendo, sempre perguntando. Sempre chamando Jesus Carlos de preto (ou negro, o que dá na mesma). E Jesus Carlos não gostava daquilo. - E agora, preto, que horas foi que tu deixaste a tua noiva dormindo?


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A pergunta do delegado fez Jesus Carlos levantar a cabeça. Preto, preto, preto. Por que sempre lhe chamava de preto?

- Preto não, eu tenho um nome – e o senhor já o conhece muito bem. Eu já repeti muitas vezes: JESUS CARLOS! – a resposta de Jesus Carlos surpreendeu a si próprio. E por que aquele grito: Jesus Carlos! Era preto mesmo. E não gostava de ser preto? Na se orgulhava da cor? - Chame preto, mas chame com o pê maiúsculo, porque eu sou muito macho pra qualquer branco, viu? – disse Jesus Carlos tentando desculpar-se e impor-se a uma só vez. - Ah, é assim, não é pretinho? A gente te trata bem, em consideração aos moradores, que gostavam de ti. Em consideração a ti, que já foste um preto decente e trabalhador e tu me vens com estupidez pra cá! Se eu tivesse dado umas borrachadas tu estarias murchinho aí no canto. Eu até gosto de ti negro, por isso não te faço nada. O delegado continuou falando, mas Jesus não escutou mais nada. Era certo. Todo mundo gostava do preto Jesus Carlos no Lugar. Hoje as vizinhas comentando o fato dizem ao ouvido: - Sabe o Jesus Carlos? E a outra ao saber da notícia: Foi? Coitado, tão bonzinho que ele era. Aposto que estava enfeitiçado por alguma outra que o desejasse. Aposto! Quase ninguém acreditava na notícia e exprimia sempre com uma exclamação poética: O Jesus Carlos? Foi, menina? Quem diria, hem? Por quê? - Vamos, Jesus Carlos – disse o delegado com calma – é a rotina, que horas foi? - Foi às quatro horas da tarde, seu delegado. Ela veio do salão de beleza. – Estava quase chorando. Começou a falar palavras sem sentido. O delegado não queria saber ainda do resto, só da hora. Mas Carlos continuou falando. As palavras saíam pela porta, guardada por dois soldados e perdia-se na calada da noite escura.


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Num daqueles domingos em que Jesus Carlos saía perfumado e alegre, foi que aconteceu a tragédia. Levava consigo um presente para a sua Nega Maria das Dores: as alianças para ao casamento. Só pudera comprá-las depois de anos de trabalho. Agora levava as alianças escondidas no bolso do paletó branco. Ia fazer-lhe uma surpresa. (Porém, Maria aguardava-lhe uma surpresa muito maior). Chegou ao salão de beleza, onde Maria das Dores deveria estar. Vacilou um pouco e resolveu ficar na esquina à espera de Maria das Dores. Quando ela saísse, ele a abraçaria fortemente e mostraria na palma da mão as alianças douradas e brilhantes ao sol. Já havia imaginado a alegria de Maria das Dores ao ver as alianças. O grito de alegria que ela daria e o aperto no pescoço, bem apertadinho que ela haveria de dar. E ficou ali tremendo de emoção como se fosse vê-la pela primeira vez. Recordou-se dos tempos em que namorava escondido: que ficava a espera, ao entardecer, na pracinha da igreja todo enfarpelado na sua beca de dia de domingo. Ficou ali naquelas ternas recordações. Observando todo mundo que saía do salão de beleza, não conseguiu ver Maria das Dores. Ela ainda não havia saído. Estava demorando. Ou será que ela não foi ao salão de beleza hoje? Começou a inquietar-se. Uma vez deu um pulo ao ver uma moça que saíra do salão de beleza, mas, ao vê-la por trás, desanimou: não era Maria das Dores. Aquela era loura, pensou, a sua Maria era mulata. Mas admirou-se de tanta semelhança. Deram seis horas da tarde e Maria nada de aparecer. Foi ao salão, entrou, e procurou-a. Não estava mais lá. Havia saído – disse-lhe a cabeleireira – há muito tempo. Jesus Carlos saiu desolado e surpreso. Que diabo, não a viu sair. Mas não tirou os olhos da porta. Acabou deduzindo que foi quando ele se virou para olhar uma morena bem feita. Bem feito – diria ela – para não olhar mulher dos outros. Resolveu ir para casa. À noite veria Maria das Dores e mostraria as alianças. Mas, quando chegou a casa – aí estava a verdadeira surpresa da sua vida. Sentiu um pulo em seu pescoço, sentiu duas mãos tapando-lhe a vista e escutou a voz de Maria das Dores. - Adivinha meu nego.


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Jesus Carlos – disse o delegado – amanhã tu vais para a capital, no trem das 5 horas. Serás julgado e, por certo, condenado. Quero que saibas que eu fiz apenas o que sou obrigado a fazer. Cumpri com o meu dever. Mas continuo sendo teu amigo. Jesus Carlos quase chorou. É. Além de sofrer intimamente a morte da sua noiva ainda teria que sair da sua vila. Aquele lugar onde nasceu e que esperava se casar, ter uma porção de negrinhos com a sua negra Maria das Dores. - Eu fiz tudo o que podia por ti lá na capital. Tenho uns guardas amigos na delegacia de lá e, se tu fores preso, vão te tratar bem. Eu não conheço o doutor, mas sei que é um bom homem. O que te vai defender. Eu acho que vai se necessária a minha presença lá. Se eu for, ficarei sempre do teu lado.

Talvez fosse melhor para ele ter que sair daquele lugar. As lembranças desapareceriam mais depressa. - Seu delegado, eu posso me despedir da minha gente? Eu queria ainda uma vez vê-los. Queria ver meu pai, meus irmãos e minha mãe. Dar um abraço neles. - Pode sim, Jesus. Eu vou providenciar para que eles venham aqui te ver. Tu não podes é sair daqui – respondeu o delegado. Jesus Carlos pensou em se despedir do seu Augusto Português, do Tônho seu amigo (desde pirralho), do padre Alemão. Mas, se fosse se despedir de todos os conhecidos teria que passar uma semana só despedindo-se. Afinal não conhecia todo mundo ali? Não! Não poderia nem olhar para a cara deles. Se visse o seu Augusto, que queria ser seu sócio, não poderia fixar a vista com ele. Ele não quereria um sócio que matou a própria noiva. Não, não queira. - Jesus Carlos, vem cá. Mete aqui nesta cachola por que iria um preto decente como tu matar uma garota bonita como a tua noiva. Por quê? Por que negro? Eu não vejo uma razão sequer. Tu não gostavas


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dela? Ela não gostava de ti? – perguntou o delegado. – Vocês não iam se casar? Jesus Carlos levantou a vista. Seus olhos faiscaram de ódio, os dentes cerrados! E disse palavras que o delegado de pronto não compreendeu:

- Ela era aquela loura que saiu do salão de beleza de cabelos espichados! (1963)


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EL DIA EN QUE EL MARISCAL BOLGUEREDO SE TORNÓ HEROE NACIONAL

El Reino de Bosil, bellas tierras clavadas en las llanuras andinas, fue heredado por la facción de los Bolgueredos allá por los idos de marzo, cuando un grupo de mariscales ha expulsado a palo el último de los presidentes electos por lo arcaico sistema de elecciones directas, llamado democracia. Y por años y años la familia de los Bolgueredos viene reinando – se no pacíficamente, como era de se esperar – por lo menos manteniendo los opositores a una buena margen de distancia, mismo si para tal fin fuera preciso usar el viejo método del palo. En realidad el clan de los Bolgueredos tiene facciones diversas y disidentes que también almejan el poder eterno de la presidencia y viven así creando opositores, reteniendo la gente, matando, echando por ahí en los locales yermos, cadáveres perforados, torturando mujeres, señoras, viejas y mismo los niños, en el afán de acusar a los enemigos. Es por eso llamado de El escuadrón de la muerte. El propio Mariscal Bolgueredo fue entonces el dilecto escogido para dirigir los destinos de la Tierra de Bosil, justamente en el 15º año de existencia del heredado reino, enfrentando, todavía, una sólida resistencia de varios sectores de los disidentes que también tenían sus candidatos al ambicionado cargo. Entretanto, Bolgueredo é aquel que mejor reúne cualidades para el cargo que le fue destinado, además de tener una simpatía personal muy grande y ser el predilecto del entonces Presidente Supremo – por si só suficiente para nombrar cualquier pretendiente, visto ser no Reino de Bosil el deseo do mandatario una orden superior, mayor mismo que los designios de Diós! Cuanto más de un mísero pueblo de ciento y cincoenta millones de habitantes. Escogido y aclamado el Mariscal Bolgueredo preparó se galardonadamente para a pompa das festividades de pose,


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principalmente a su garbosa farda cuyos alamares y condecoraciones relucen cercados pelas centellantes 10 estrellas del mariscalato.

A ciudad de Bosília, capital federal incrustada no centro dos altibajos andinos, nunca estuve tan linda en fiesta. Los atrios do Palacio Presidencial ornado con banderolas, confetis, serpentinas. El palanquee oficial mostraba-se aparatado con realce para las colores verde y azul, da patria bandera, en infindables arabescos. Balones multicores fluctuaban en los mastos y un enorme cercado de ripas caprichudamente lisadas serviría para recebé, a través de su portera principal, el populacho ansioso para asistir al ato. Todo tenia olor de fiesta! La festividad del siglo! Dicho y hecho. En la ocasión el expresidente hizo un breve y conmovente discurso, deseando al mariscal un buen mandato y en acto solemne le pasó la faya presidencial. Bolgueredo, por su vez, visiblemente emocionado agradeció elogiando as obras y hazanas de su antecesor, como era a praxis en los últimos 15 años. Até ahí todo normal, como a populación ya costumnada a tales festividades. EL extraño mismo ocurió a partir do primero día de pose do mariscal Bolgueredo. Para sorpresa de todos el mariscal inició o su mandato asignando decretos que revocaban decretos y más aún: los decretos y actos que constituían as llamadas Leyes de Excepciones (las conoscidas salvaguardas del regimen), incluso el ACTO MAYOR Nº 15! – o AM 15! – el más rigoroso representante de esa generación legislatura! En seguida – no segundo día – en otro ato que dixo la nación (y todos os componentes y mentores do reinado heredado por ele) perpleja, amnistió todos os presos políticos, encarcelados y/o exilados (que, segundo as más lenguas, son cerca de 12 mil y segundo as peores lenguas cerca de 100 mil), bien como anuló as millares de demisiones ocurridas por acto de los ACTOS MAYORES y mismo por influencia personal de un o otro enemigo do funcionario.


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No día siguiente – el tercero – autorizó la inmediata readmisión de aquellos injustamente penalizados y funcionarios vis y militares, garis, profesores, jueces, etc., pudieran retornar a sus operosas actividades, solucionando con eso inúmeros problemas do reino y da sociedad.

Toda a Nación del Bosil aplaudía entusiasmada as reformas: en fin un Bolgueredo con todas las condiciones de tornarse el único, el grande y indefectible heroe nacional, satisfaciendo los aseos embustidos da populación! Hube ciertamente una reacción de aquellos contrarios a tal sistemática de gobernar, mas el Mariscal Bolgueredo mostró-se à altura de su poder y fuerte suficientemente para repelillos inmediatamente, recebiendo para tal o apoyo do pueblo. En todas as partes realizaban manifestaciones de confraternización al Presidente, algunas delas reuniendo mas de 100 mil espectadores, cosa jamáis vista en todos os 15 años de Rey nado del grupo Bolgueredo, incluyendo el operariado, el clero, estudiantes, militares, donas de casa, labradores y demás clases. No cuarto día ordenó Bolgueredo a todos os ministerios rigoroso controle nos precios dos alimentos (Finanzas), no quinto día autorizó a concesión de bolsas de estudio gratuita en las escuelas estatales a los pobres (Educación), asistencia médica gratuita a todos (Salud). No sexto día – espanto general – el mariscal supremo ordeno la suspensión general de la censura a todas las publicaciones nacionales y extranjeras, bien como para obras y espectáculos artísticos, cinematográficos y musicales. Las ideas pasaran a ser entonces discutidas libremente y un congraciamiento mayor das culturas de varias naciones fue observado. A paz, que ya existía en estado latente en la índole do pueblo bosiliense surgió mas nítidamente, con alegría, o medo y el pavor sufocados.


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Reencendidos el amor y la hermandad nativas nos habitantes, el Bosil pasó a ser una nación respetadísima en todos los círculos do mundo, siendo consultada continuamente pelas demás quando decisiones internacionales da mayor importancia eran tomadas.

En el septimo día el Mariscal Bolgueredo convocó elecciones nacionales, abolidas de ha mucho do calendario bosiliense, para eligir deputados, senadores, gobernadores, prefectos y para a propia Presidencia! Estupefacto general! Heroe Nacional, aclamado por todos los hombres, cantado en prosa y en verso, finalmente pude el Mariscal Bolgueredo asignar su último ato – la renuncia – y descansar! (1978)


JUANA, JOANA

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A paisagem: A janela. Donde se desprende o corpo que chega às esquadrias. A janela, Juana na janela. Dela exala a luz, fluorescente, amarelada e videaliza a imagem inicialmente despida. A luz é Juana. O guardaroupa e o espelho são os objetos projetados em vida ao espião que vê engolidas as peças emolduradas. Portasseios, liga, calcinha, meias: é a mulher adornada que surge numa nova dimensão cada vez mais (nua) pura. Juana aparece mais pura e nua. O vidro serve de lente de contato e a janela de olhos escancarados. Os lábios se mostram fazendo parte do todo. Os lábios de Juana aparecem, sorriem. As mãos tomam conta dos seios, trazem toda a sua beleza em concha aos ávidos e perscrutadores olhos de espião. De longe, o todo é Juana nua, os seios pendendo são seios vivos. A janela ri da graça, garras cerradas trazendo a noite da rua. Juana (perdida) na rua. A voz: Juana com u mesmo. Pai analfabeto, o que não é vergonha nenhuma naquele fim de mundo, e o escrivão também parecendo outro. Não foi nada de espanholismo, não. Burrice mesmo. O padre eu não sei se é ignorante porque foi batizado coletivo. Todo mundo em fila, alguns já marmanjos, vinha ele chegando, sabendo o nome da gente e deixando com algumas palavras em estrangeiro a cabeça molhada de água-benta e a boca amargando o primeiro sal da vida. O nome saindo falado da gente tanto faz ser com o ou com u e a mesma coisa. E tudo isso é besteira porque nome mesmo não aumenta nem diminui rumo de vida de ninguém. Vivência sim. Carrega o corpo de mil olhos a mais, trejeitos e maneiras instintivas, fazendo a vista longínqua, limpa de cisco que nem vista de marujo. Se fosse tornar pra terra onde nasci o pessoal iria me parecer mais idiota ainda. Mas este desejo me corrói por dentro. Toda. Voltar, retornar, reviver. só de imaginação. A gente sai do meto e é engolida. No fim de tudo, aprendemos todos a sobreviver em florestas: de mata ou de cimento mesmo. Nasci no mato, sim. E quem nasce na roça vê


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muito além da imaginação e sempre vai bater na cidade grande. Por exemplo: empregada em casa de amiga de um fazendeiro qualquer, em ajuda de pagamento da dívida insanável.

A cidade tem muito que mostrar. Gente pobre vendo coisas na cidade é como estar com o estômago corroendo a si próprio, em frente à vitrine de um restaurante ou confeitaria, mostrando alimentos e doces coloridos. A cidade é uma prisão de liberdade. E a visão de dentro da gente não é a visão citadina, não é mesmo. De fato, de verdade mesmo, ver não resolve nada. A gente logo em seguida quer tocar e possuir depois. Quando para ter é preciso dinheiro e se os patrões pagam mal e porcamente, o jeito é aceitar as ofertas descaradas de dona Liza: - Tem um doutor senador importante que é muito amigo meu (arrogante). Anda louco para ter um cabaço novinho, ainda cheirando a mato (confidente). Não se preocupe, ninguém saberá (amiga). Dá um bom dinheiro, afinal. E no primeiro domingo de folga encontro com dona Liza. Leva-me ao seu apartamento. tem aí umas coisas que eu não sabia nem imaginava, jamais: banho cheio de sais perfumados (nem adiantou ter falado do banho tomado), raspagem dos pelos das pernas, do sovaco e de outras beiras mais pra dentro. Cuidadosamente, apesar de macios e raros os meus pelos. A novidade maior: tenho de vestir roupagem de freira. Que explicação dá dona Liza a isso? – Falei pro doutor senador que você está no convento. Somente, nada mais. Enfim, dinheiro é dinheiro, necessidade é necessidade. Lá vem ela mantendo em mim toda aquela roupagem. Onde conseguiu, não sei nem pergunto. Mas tem tudo que uma freira deve ter: aliança na mão direita, roupa de dentro alvinha, depois um monte de azul-marinho. Um quase véu me cobria as orelhas e um rosário de contas grandes. Cristo flutuando entre as minhas coxas. Quando me vi no espelho ate tomei um susto. Nem parecia eu. Dona Liza é quem diz:


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– Parece que você não nasceu pra outra coisa. Nasceu pra freira.

Dona Liza há de repetir estas palavras toda vez que notar uma nova qualidade na interiorana. Depois o doutor senador. Velho, quer saber muitas coisas do convento e eu conto. Coisas que não sei, pois convento eu nunca vi. Mas a sabedoria me trouxe ao mundo e eu conto coisas que o ilustrado senador não sabe, nunca viu um convento também. Conversamos, conversa vai, e dona Liza tem de sair. Fazer compras, fingir. Estando sós, o seu doutor já se achega a mim. Eu não sou uma freira, mas seus olhos não dizem isto. È uma noiva de Cristo que ele acaricia. É sob as vestes espessas de uma candidata a santa que sua mão trêmula passeia. Minha natural inocência a tudo que acontece de repente, trazida do mato, só me aumenta a febre. As roupas transtornadas em louco desalinho e eu sentindo estranhos tremores a percorrer as linhas dos meus nervos. Nem consigo ver direito o senador, embaraçado entre panos e saias. o crucifixo jogado displicente para cima de mim, tudo sumindo da minha visão. Do lado de cá só eu e Cristo mesmo. Tempo depois: – Alô. É do Convento das Purezas? Atendo o telefone chateada de ter sido acordada àquela hora, boca amargando os sais da vida, a cara franzida e marcada pelo sono atrasado, a luz do dia varando as frestas da persiana, a voz cansada se arrastando em palavras. Apenas resmungos bem ditos, entremeados de palavrões. Dona Liza arranja clientes imprevistos e nas mais diversas horas, sem qualquer respeito ao descanso alheio. Dinheiro é chatice. – Um recado para madre Joana. O senador seu tio chega hoje e aguarda sua visita. Joana, Juana. De novo o doutor senador. Hoje a freira vai reabrir as pernas, vestes cheias de panos sobrando, oferecer suas partes íntimas à ávida língua, lábios ardentes, o crucifixo jogado no umbigo nu. Quanto anos, freira Juana? Muito tempo foi passado e Juana transformada em máquina de fazer sexo (não amor). Perdida no limiar


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do prazer. Mas veio o dinheiro, que é bom, e Juana pode satisfazer metade de todos os sonhos. A outra metade é cria da cidade mesmo: o incontrolável desejo de retorno às origens libertar-se de tudo e ser uma Juana sem chamados especiais. Ninguém entende nem procura explicar – o dinheiro não trouxe a liberdade esperada. Através do sexo, é mais um elo na cadeia inexorável da cidade grande.

– Ela sabe o endereço. O doutor senador é um homem muito importante e ocupado, tem uma reunião governamental e inadiável. Amanhã vai inaugurar um colégio, viajando a seguir. Só pode ser hoje. Só vem aqui ver a sobrinha, rápidos momentos. Sei da farsa. O doutor estará ao lado do telefone aguardando ofegante a resposta. Estará também feliz com o consentimento para gozar os prazeres proibidos com uma freira saída não sabe de onde. Dentro em pouco um cândido olhar e puros gestos remetidos por dona Liza e será joguete nos braços de um pecador voluntário. Sob a maquiagem, entretanto, o olhar estará acompanhado de fartas olheiras. O princípio pudico como arma, as palavras dosadas com sabor de Deus, o tom de oração a sós. Não faltará o Cristo entre os seios, testemunha muda dos prazeres criminosos. Ainda depois: Quantas faces conseguiu Juana criar com perfeição? A vida de madre e de outros tipos foi cambiando fácil, fácil. Do tipo adequado para tais metamorfoses, cabelos curtos e lisos, juventude e corpo de adolescente que os anos ultrapassavam em aparente imutabilidade. Podia-se jurar que o tempo não passou por aquela alma. O verde dos olhos acentuado pela pele queimada desde a infância interiorana. O sorriso irônico ou infantil – ninguém sabe – tosco e eterno. Os dentes chamuscados pela nicotina, as olheiras que, paradoxais, davam um toque de Maria pureza ao quase sempre tens semblante. Uma frágil aparência no corpo, seios e quadris um pouco mais alvos (a marca sensual da pele queimada), tudo formando um quadro de desejos. As mãos, os dedos falando sozinhos em gestos que


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contavam histórias da infância, passarinhando ou brincando de esconder com os meninos, companheiros ao lado do quarto escuro, as mãos correndo pelas coxas, o nariz do mais audacioso roçando ingênuo no seu corpo imberbe.

Juana que nem parecia a atriz consumada de hoje, fazendo a moça recém-casada ainda vestida de noiva (diretamente da igreja para o freguês), ser ainda virgem secretamente, vestido longo de casamento no mesmo papel de obstáculo tentador. Tudo como num quadro: a noiva sendo possuída pelo amante antes mesmo do marido, um ramo de flores resistindo bravamente às contrações da mão em gozo, o noivo esperando nalgum lugar, nervoso, desesperado. Como num quadro. Não, não era a mesma Juana que contava histórias mal passadas, os olhos úmidos de brilho e alegria, a que hoje vinha de farda azul-ebranco, livros ajeitadamente abandonados, pupilas distendidas (incontroladas) exaltando a ânsia estudantil de conhecer mil segredos. O hipnótico farfalhar da saia curta, meias brancas arriadas até o calcanhar, o sapato negro, o sorriso. O sorriso de uma pressuposta gazeta, uma fuga conivente, tudo improvisado. A Juana de desejos satisfeitos plenamente por dona Liza – a que consegue saciar todos os raros anseios surgidos do mais profundo no ser humano: berrantes, loucos, idiotas, bizarros. A que consegue iludir Juana – e mais outra centena – sempre e sempre. O carrossel gira rápido como um raio, impossível controlar e deter. O círculo torna-se um vício: é mais fácil enganar duas pessoas sobre uma cama que o universo todo reunido. Sempre dois, Juana uma, um outro qualquer, encoberto por títulos igualmente provisórios: deputado, padre, doutor, senador ou fazendeiro, ou tudo isso junto, bestamente junto. Joana, Juana já perdeu também o corpo e deixa a alma aos cuidados de dona Liza – a menina que fez primeira comunhão, em plena brancura, a velinha caindo no chão, apagada de gozo. gozo de agulhas pelo corpo todo, o suor escorrendo pelas orelhas, pelas pernas,


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o arrepio percorrendo os nervos. As mãos em busca de porto agarram desesperadamente algo que apareça ou ficam mesmo abandonadas por aí num canto de carne qualquer. Um sapato de nuvem atirado a esmo, tudo à vontade, tudo formando um novo quadro para saciar as retinas dos que – fora das camas – trajam instintos mais que feudais, antiquados e falidos. dos que transmitem aos filhos ensinamentos mentirosos, opostos diametralmente em tempo, qualidade e espaço, aos que aplicam sedentos nas juanas. Primeiras confissões:

Juana é tudo na vida. Passageira do sexo, em cada viagem uma aventura, homens e destinos diferentes. Desejos heterogêneos plenamente satisfeitos. Por que ao contar tudo o que sai da cabeça? Ah, a vontade de dizer tudo de uma vez num turbilhão, de si mesma, de dona Liza, de todos os outros. A moça recém-casada ainda vestida de noiva, Juana que fez a primeira comunhão mais de uma vez, as vestes comungatórias salpicadas de esperma, a aeromoça fardada – o broche de asas – do aeroporto direto para a escala da cama. Juana freira, noviça, as vestes paramentares, enviada do silencioso convento para o altar do sexo, a estudante normalista vestida de azul e branco, o sorriso moleque, a gazeta, os livros atirados sem jeito. Finalmente, os cuidados para não criar situações vulgares, ser enfim a prostituta para que atende somente a chamadas especiais e não admite de modo algum ser assim vulgarmente intitulada, a existência de colegas em idêntica situação, a esperança de um dia largar tudo, jamais se ruma nova dona Liza, e voltar a ser a mesma Juana do mato. Antes que a velhice chegue demolidora. Também significa se libertar das coisas acontecidas que permanece espectrais dentro da gente perseguindo nossa vida até o túmulo, tal almas penadas. E pelo menos falar alivia o peso adquirido no curso da maldita existência. O peso de saber, o peso da experiência, do conhecer a dura vida, puta vida! O peso de sentir perder a liberdade pouco a pouco ante a contingência de ganhar o fácil dinheiro através do seco, pelo sexo, para o sexo. O padre Abel chegou e Juana foi logo se ajoelhando. Era o horário dele, bem sabia. Com a mão pousada nos cabelos de Juana


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ordenou que se levantasse. Não ficava bem naquelas horas confissões de joelho no chão, explicou, Juana agradeceu com uma reverência, dando logo início ao rosário: Seu padre sabe como a gente pobre é atirada no rumo das cidades grandes, sei que sabe. Nasci no mato, sim, e quem nasce na roça vê muito além da imaginação e da alma. E foi assim que eu vim parar aqui, nessa vitrine de restaurante ou de confeitaria onde a gente se corrói por dentro. Padre Abel suspirou resignado e anuindo compreensivamente desabotoou metade da blusinha de Juana. Os lados rosados dos seios arfaram ligeiramente.

Daí encontrei dona Liza. Alma boa a dona Liza, mas sabe bem aproveitar nossas necessidades. Alegrou-me um doutor senador muito importante que – sabe – era louco por virgindade, essas coisas. Dá um bom dinheiro, afinal, e quando os patrões pagam mal e porcamente o jeito é aceitar essas ofertas descaradas. A cidade grande tem o que mostrar é uma prisão de liberdade, padre. O padre sentindo calor atirou o chapéu de lado e desafogou a batina mostrando parte do peito cabeludo. Juana faz um carinho terno no rosto do padre, não sente o tremor que isso provoca, beija-lhe as mãos como quem pede perdão pelos pecados cometidos. E continua: O padre sabe – tenho mais que certeza – como essa vida é difícil. O doutor senador quer saber muitas coisas do convento que imagina eu estar internada. Coisas que não sei, pois convento nunca vi. Eu não sou freira, mas seus olhos não dizem isto. É uma noviça que ele acaricia e beija, as roupas transtornadas em louco desalinho sob as quais suas mãos passeiam em carícias. Nem consigo ver mais o senador ora embaraçado entre panos e saias. Do lado de cá só eu e Cristo mesmo. Padre Abel já mostra as faces avermelhadas, gotas de suor ameaçado correr pelas bochechas. De súbito arranca a blusa já solta de Juana, que reage num diminuto suspiro de surpresa e imediata


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compreensão. A custo o sutiã detém os seios que a respiração mais acelerada a todo instante ameaça liberar. Uma vez livres flutuarão como gaivotas sobre o mar. Depois, padre – Juana recomeça com um sorriso – dona Liza arranja cada vez mais clientes, imprevistos nas mais diversas horas, sem qualquer respeito ao descanso alheio. E tudo passa a correr aceleradamente. De novo o senador, de novo a freira vai reabrir as pernas e oferecer suas partes íntimas aos ávidos lábios ardentes. Minha vida foi transformada numa máquina de fazer sexo, mesmo vindo o dinheiro – que é bom – estive perdida no limiar dos prazeres.

O padre não resistindo ao suor que já banhava o seu corpo arriou a parte superior da batina, de entremeio Juana nem sentiu a saia ir deslizando lentamente rumo ao chão. Suas coxas já sofriam o assédio carinhoso do padre. As confissões deixaram o casal absorto, agindo mecanicamente, mas Juana assim mesmo prossegue: Quanta face teve de representar com perfeição? A vida da noviça e de outros tipos foi mudando fácil. Podia-se jurar, porém, que o tempo não passava por mim. Tinha juventude e corpo de adolescente, a pele queimada desde a infância atraía os homens, meus seios duros e leves, meu sorriso, minha boca, a frágil aparência no corpo. Fazendo a noiva que saía diretamente da igreja para os braços dos amantes, um ramo de flores preso na não contraída de espasmos. Como num quadro. Padre Abel já estava de cuecas. Aquela, padre, não era a mesma Juana do interior. Mas, oh, não adianta admirar as coisa, as flores, quando se é puta. A vida resumida num apartamento, não num lugar qualquer pulguento e fétido, um lindo apartamento de luzes coloridas, cortinas aveludadas, música ao fundo. Uma prisão em cores, de viver à noite e morrer de dia. Tudo, padre, um sonho real mal contado. Entreacordado o sonho trazia o japonês que só queria ir atrás, louco e beijar todas as minhas partes. O senhor sério, que falava de voz embargada tipo um candidato, porém igual a todos os anormais – pedia para meter o dedo não sei aonde até


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gozar. Aquele outro que não teve nem tempo de ter relações e foi embora apressadamente, para não perder o avião. Mas deixou o dinheiro. Quantos tipos tiveram posse de meu corpo, padre, milhares e milhares, de acordo com o seu temperamento e vontade momentânea. Mas, oh, não adianta falar tudo isso para quem não escuta, o bom ainda é admirar a natureza, as flores, quando se é uma Juana qualquer. Padre Abel, nu, não tinha mais ouvidos. Juana displicente coçou o bico do seio onde uma gotícula de suor tinha se acomodado. O sutiã balançava ao vento pendurado na janela. O padre acompanhava-o no vai e vem ritmado. Tinha dias que eu ao agüentava e ficava totalmente, calada, como se perdesse a voz. Ninguém sacava nada da minha alma naqueles instantes. Dona Liza dizia que tinha prejuízo, mas a experiência ensinava que era natural agir assim. Em transe, olhando as cabeças dos edifícios lá embaixo, telhados velhos sendo demolidos, janelas varandas, pensamento voavam longe varando o tempo. A luz ofuscante do sucesso financeiro, padre, projetava imagens despidas de qualquer luxo numa cidadezinha antiga do interior. O meu contentamento é que nesses instantes eu me torno a Juana filha de minha mãe, irmã de minhas irmãs, humilde de pé no chão, essa imagem que dona Liza jamais conseguirá derrotar. A lágrima presente nesses momentos não era de tristeza. Era o arrebatamento da alegria, a fuga espiritual da prisão em que se encontram as pessoas que vêm do interior para a cidade, sem possibilidade de retornar jamais. Juana nua na cama, num gesto repetido milhares de vezes, abria as pernas para entregar o amor. Num fio de voz a pergunta desesperançada: - Padre, eu tenho penitência?


O DIÁRIO DESCONHECIDO

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Chegadas acidentalmente às minhas mãos, passo adiante, com isenção, algumas anotações de um (apaixonado) desconhecido. Não são, entretanto, apenas notas de amor, baboseiras escritas por um amoroso, embora esse estilo predomine sobre outros. Têm algo de social, tentativas de contos e algumas poesias realmente de valor. Não sendo especialista, deixo a análise para o leitor. Os textos não têm cronologia, seguem à minha vontade. Devo desculpas, também, por interferir em algumas palavras riscadas e textos sobrepostos. Às vezes o texto anterior não deveria se modificado. Vai tudo conforme está. As primeiras anotações que seguem têm o título de Palavras a Georgette (com dois tês) e entre parênteses: que iam ser ditas no dia 6 de junho, quando foi mais fácil dizer apenas ADEUS. Carta Mais uma vez aconteceu o que seria de esperar. Você, sem motivo algum aparente (ou com objetivo certo?) arrumou mais uma briga. Digo que seria de esperar, apenas pelo lado lógico das coisas: ocorreu uma vez, repetiu-se e se repetiria sempre. Eu já agora tenho absoluta certeza do seu desamor. Sei quando me tornei um empecilho, um tirador de liberdade exatamente quando a gente mais precisa: na juventude. Quanto a isto deve perdoar-me. O meu amor é tão grande que fui egoísta a ponto de sacrificar sua juventude para tê-la ao meu lado. Tinha consciência da próxima separação qualquer dia: estava apenas adiando-a, prolongando o meu sofrimento, a minha felicidade. Na verdade, a diferença de idade (11 anos) foi ponto vital. Apesar de que várias pessoas têm vivido plena felicidade com tal divergência. Isso só se verifica quando ambas são adultas, o que não acontece conosco. Nessa última briga de amor prometi a mim mesmo acabar definitivamente com mais um (frustrado) amor. Apesar d medo de deixar você – por vários motivos, sabe, essa proteção que a gente quer dar sempre à pessoa amada. Apesar de saber que muito vou sentir com sua ausência. A realidade me aponta o caminho a seguir. Verdadeiro paradoxo: tantas bobagens feitas e sentir que você faz falta realmente: e saber que continua absolutamente necessária a separação. Verdadeiro paradoxo.


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Desculpas sei que devo, das muitas vezes que usei artimanhas e influências para mantê-la junto a mim. Para gozar mais alguns dias de felicidade. Para fazê-la sentir os prazeres que sei dar. Quantas vezes usei de conversa para tê-la ao meu lado. Palavras que já não lembro, que só um louco amor fazia criar e sair de mim.

(Hoje também tenho confirmado o afeto que tenho a F. e M. R. Apesar de saber que M. R> - em igualdade de condições – tanto fez par que estivesse comigo, quanto fez para separá-la de mim, quando assim quis. Apesar de saber muito que você (por fim) não gostava de mim, apesar de saber que nos mantinha unidos era um pouco de pena e sentimento de culpa.). Aí termina o primeiro escrito. Pareceu-me inacabado. A seguir vai uma poesia, que penso não ter nada com o caso amoroso do autor com Georgette. O título (sempre duplo) é: Postal ou Coisas de Amor. Leiam: 1ª poesia: Postal ou Coisas de Amor Amor ou amizade, pergunta o coração à saudade vendo céleres os dias (ante) passados, a verdade confundida. Amor fosse Fixos sempre em lembranças róseos, Ternos dias de ânsia sufocante. Os murmúrios intraduzíveis, os beijos. Sendo amor, resta sólido sentimento - respeito à alma puríssima, Embora, ó mundo! De criatura vilipendiada, de irmanado afeto – idem. Se amor. temporariamente retornará mental a plural vontade de ressentir: (o meigo rosto, carícias, hálito quente, beijos, corpos em nó, gozo) e saudade, saudade.


Amizade. as formas, fumaça simplesmente E volatizados seremos, frios (gélidos) Coloridos como postal de cidade.

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Vou permitir-me uma breve análise. minha opinião, naturalmente. Pareceu-me que a cafonice utilizada nos primeiros versos foi premeditada. Digo isto em razão do valor da algumas imagens posteriores. Ademais, como verão, o autor sempre alterna boas criações com situações infantis, ou quase. A outra poesia que se segue não é do escritor, segundo uma anotação ao pé da página: com licença de Saul Lessa. Segundo deduções minhas, confirmadas, a poesia dói retirada de uma revista de palavras cruzadas, na qual o autor colaborou. É uma poesia ingênua, na qual o nosso poeta substituiu o nome da original pelo da sua musa. Ficou assim: 2ª poesia: Recado a Georgette Georgette, sei que me odeias pois meu mal não remedeias e amas os que me maldizem. Contar-te porém me atrevo (nestas linhas que te escrevo) o que tuas flores dizem. Dizem que foste contente e nem sequer reparaste como triste de repente ficou tudo o que deixaste. Um cravo, mais paciente, diz que não o abandonaste, mas anda meio doente porque ainda não voltaste. Notaram mil outras flores que eras outra a cada dia. Falam as rosas multicores


que nem mais tu as queria. Nem para a minha agonia eu não te peço favores, mas.volta, volta Georgette, pelo bem de tuas flores!

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Sem comentários. A seguir encontro outra poesia, também isenta desse infeliz amor. Bastante ritmada, parece mais feita para musicar. O ritmo está mais acentuado que a rima, e a rima é bem musical. Também faço uma análise apenas supérflua, em virtude das explicações acima. Vamos ao poeta. Espero que estas anotações deixem vocês tão interessados quanto a mim. É um segredo de alma. 3ª poesia: Tintas Pintei meu céu de outra cor, fui amar com meu amor. Chega de guerra, batalhas politicais, (sic) chega de vida - nem viver quero mais Pintei meu céu de outra cor, fui brincar com meu amor. Chega de bombas terrestres, extra-orbitais, chega de morte - nem morrer quero mais Pintei meu céu de outra cor, pintei de amor. Apresenta, sem dúvida, um progresso. Poeticamente falando, um progresso desprendido da situação amorosa em que se encontrava o autor dessas linhas. Novamente, entretanto, volta o nome de Georgette em nova poesia. Como falei, não há ordem cronológica. Assim, não sei em qual ponto localiza-se tal poema. Creio que depois das palavras. É um poema desesperado: 4ª poesia: Poema ao Deus que levou Georgette e não devolveu


Deus que levou para os seus, sem pedir, o amor-mulher de um homem, não Te perdôo Sei a razão: por castigo. Paga eu mereço até ter a vida arrancada da alma Sei que é Teu dever dedo em riste acusar e julgar condenado aqueles a quem a vida tornou um mau E que à nossa semelhança deves também cometer lastimáveis erros. Deus Te perdoe, Deus - que eu não hei de fazê-lo. Ter meu viver sacrificado não lastimo e são tantas as cruzes que mundo afora carrego que até Cristo Teu filho envergonhar-se-ia Mas, Deus, mulher de macho não se tira assim, assim quando muito se deve aumentar o seu amor pelo homem que- herói – oferece-lhe o produto de músculos, carnes, espíritos e mente. coração, sangue e amor Resultado: A máquina de fabricar mais um robô de somente carne e ossos que a terra verme há de devorar – verme Pedra sou, diverso do Teu Pedro, onde nada será erigido - pedra apenas para nada sentir Também o futuro registrará que a máquina projetou uma prostituta social esposa-aparelho-caça-níqueis-mercenária Queiras Tu que não mas é mais que certo acontecer Como pedra sou, serei (novo ou velho) desmoronado morto sem Te acreditar, sem considerar-Te um boa praça como antigamente fazia

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Sem respeitar Tuas leis - que me traz prejuízos acatá-las Injustiça Deus de um homem não se tira a Georgette amada, em vista do que não posso perdoá-lo Que Deus Te perdoe, Deus.

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Outro avanço, sem dúvidas, outro avanço. Trata-se de um poeta perdido entre os seios de uma Georgette amada. Como falei anteriormente, um poema cheio de desespero, descrença e falta de fé no mundo. Um abandono total, por causa de um abandono amoroso. A linguagem torna-se mais poética, mais séria, mais à vontade. É pena que eu não seja um especialista para desmembrar mais os textos deste desconhecido. dissecar as palavras em explicações claras a respeito da vida íntima do homem, A próxima poesia tem o título de O Forasteiro ou O Destino Provisório. Repete-se a duplicidade de títulos. A que creditar isso? Talvez uma permanente incerteza quanto a tudo que escrevia. Talvez quanto a tudo o que ocorria em seu torno. Mas a poesia gira em volta de recordações. É assim: 5ª poesia: O Forasteiro ou O Destino Provisório A cidade onde nasci de onde a memória é breve (lembro bastante o cheiro do mar) por poucos anos suas terras detiveram-me Parti S. Luis o próximo destino que encravou imagens mais fortemente hoje se perde desvanecida: ah o progresso (Antes que tal ocorra em definitivo escrevo) Mais nitidamente - que eu saiba e lembre – tem telhados, azulejos, mulheres e também o cheiro de mar perdido nas estreitas ladeiras outra base para novas aventuras Tem amigos, juventude, teve infância


e o princípio de homem Novamente a largada, novas terras ao sul São devastadas: Curitiba, S. Paulo, Rio, (Apenas mais um breve acampamento, onde a partida virá breve, antes que a cidade devore a liberdade: até quando?)

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Aqui foi notado apenas uma evolução na pontuação. De fato, a poesia requer um mínimo de pontuação gráfica. As pausas e cadências devem ser efetuadas mediante divisão de palavras e não como excesso de pontuação. Foram abandonados os pontos e seus subordinados, mantendo vírgulas, dois pontos, interrogações. Também nada de amor. Desprendimento total a esse respeito, liberdade em nada falar. Pareceu-me poesia de um tempo anterior ao caso amoroso. E até mais experimentada. Não entendo, realmente, como pode ser isso. Decida você, leitor, as idas e vindas e o sobe e desce dos escritos encontrados. Para mim continua sendo um mistério. Vamos prosseguir nas poesias, até chegar ao fim, onde guardo uma surpresa (pelo menos o foi pra mim). 6ª poesia: O Robô Vim de longe, do solitário deserto, encontrar (em você) o amo, o ânimo, a paz reunidos em necessário elo, vital engrenagem ao (frágil) homem que mecânico vive Logo funcione o coração, são barreiras superadas: umas primeiro, mil outras depois. coerentes em valiosas funções, inúteis obstáculos, porém, à vibrante edificação humana assim dinamizada Como inesperada tempestade a ferrugem intransponível surgiu: meu coração cessou o pulsar, parados estão os nervos e os sentidos,


os olhos não vêem um palmo além, só porque o robô perdeu (você) o dínamo.

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Para quem não notou, dou a dica: a musa desta poesia está mencionada nas letras iniciais de cada verso. Exatamente formado está o nome Vera Lúcia Campos. É raro ver-se uma musa citada nominalmente, e com sobrenome! Mais uma notação para se ver no escritor analisado. A poesia também perde muito da tradicional cafonice dos apaixonados e passa a ser poesia séria, embora com tema amoroso. Muito diferente da musa primeira, Georgette. O muito amor prejudicou o escritor e sua obra. Aliás, a poesia que virá agora tem como tema a mesma Georgette. Segundo uma notação de pé de página, a mesma foi publicada na revista de palavras cruzadas de onde saiu aquele poema adaptado, citado anteriormente. O título é um lugar comum: duplo. 7ª poesia: Georgette ou Um Longo Poema de Amor Georgette que conheci Em noites consecutivas Cabelos caindo aos ombros alegria incontida eternamente O aconchegar-se a mim cabeça pousada (sic) nos ombros meus exigindo descanso ao trabalhoso dia O sono adquirido à vontade amplo, relaxado a mostrar para que serve ombros amigos Georgette que conheci em minutos, horas, dias, semanas, meses, eternidade limitada há um ano Olhos verdes que não quero esquecer: a boca, o sorriso, aquela forma de rosto Indefinível O amor, um longo amor entremeado com flores, risos, lágrimas, tristezas, como todo amor comum Planos futuros não vingados


sementes mal lançadas em terra virgem Georgette que amo e conheço não outra qualquer (esta não quero esquecer outras nem quero lembrar) De repente o universo foi encolhendo eu a resistência Como ficou mesquinho, deus Os dias contados reversivamente: 9-8-7-6-5-4-3-2-1-0 Um coração pelas ruas.

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Desculpem-me se falei que o amor prejudica o escritor e seus escritos, aí está o desmentido. De fato, agora, somente agora, verifiquei quão linda é esta poesia. E com todas as qualidades de poema amoroso. Apaixonado. Cafona. Um coração abandonado vaga pelas ruas. Eu tinha prometido uma surpresa e aqui está. O último escrito é um esboço de um conto ou novela. Sério, sem qualquer ligação com os outros escritos. Esqueça o que leu anteriormente, esqueça no bom sentido. Porque o que aí vem é algo assustador em comparação com o que foi lido. Não tem títulos nem outras anotações. Algumas palavras sobrepostas substituindo outras, frases e pontuações. Mas nada que identifique o escrito. Vou chamá-lo de A Fábula do Cidadão. Vamos ver, e despeço-me desde já, deixando a análise final para você, leitor, para quem foi feita esta juntada de textos diversos, abandonados. Adeus. A Fábula do Cidadão Todos os dias o cidadão bem trajado passa no terreno doado à nossa comunidade para trazer boas novas. Segundo ele as coisas vão sempre bem, o progresso avança a largos passos, todos vão ter o de comer e beber. Enquanto isso nossa barriga incha, braços e pernas definham. A cara cada vez mais amarelada (isto é que é país – diz ele). Nossa boca mais ressequida. Nossa mente, cada vez que o bicho


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atravessa nossa terra, torna-se mais estreita. A idiotia ataca forte meus companheiros. Ninguém reclama, ninguém diz um ai. Entre todos, o único que aprendeu a falar alguma coisa sou eu. - Estamos com fome. Grito enquanto o homem passa. - Com sede e sem dinheiro. Finge que não me vê, não me escuta. Cada vez mais grito, cada vez mais pioramos. - Plante, replica. A terra que nos coube é árida, seca. Não temos adubo, trator ou arado, qualquer equipamento. Plante, insiste o monstro. Minha gente fica louca e só falta levantar-se o ditador nos ombros, carregá-lo em triunfo. Tudo por causa das palavras hipnotizadoras, ilusionistas. Sorriem e alegram-se com ele. Cada vez mais idiotas, bêbados de burrice. Alguns já morrem, outros estão atacados de paralisia, mas o homenzinho diz que o progresso está chegando e todos acreditam. - A fome e a sede serão suprimidas. Todos crêem. O dinheiro virá em abundância. E os camaradas comem capim. E prometem dar a metade do que têm para o homem. É o cúmulo. Para manter a lucidez (um resto de lucidez) como todas as substâncias alimentícias possíveis. Reclamo, berro, luto, em vão. Nada. O homem sempre me diz que não tenho mais companheiros para ouvir-me. Ninguém mais dá apoio. Olho minha gente bestificada, cega. Como não vêem? Como conseguem não escutar? Breve o capim vai acabar. Preciso acostumar-me a apoiar o anormal que representa interesses alheios e, se possível, também carregá-lo nos ombros em triunfo. Em triunfo!


O EVANGELHO SEGUNDO

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E Jesus gerou a Davi e Davi a Salomão da que foi mulher de Urias. E Jacó gerou a José marido de Maria da qual nasceu Jesus que se chama Cristo. Aquele que seria o Nazareno Rei dos Judeus e de toda a humanidade. Ora, foi assim o nascimento de Jesus: estava Maria desposada de José e antes de se ajuntarem achou-se grávida. Bendita és tu entre todas as mulheres Maria, pois de teu ventre surgirá o reformador da sociedade, o profeta dos povos de Judá, de Israel, de Cafarnaum, de Getsemane, de Nazaré, de Jerusalém. Aquele que virá minorar o sofrimento da população sofrida. Aquele que tornará um inferno a vida dos Reis provisórios. E nasceu o Salvador em Belém da Judéia, Terra de Judá, quando César Augusto decretava obrigatório o alistamento sob o aquiescente olhar dos presidentes dos povos. Vieram uns reis orientais para negociar com Herodes o Patriarca quando foram surpreendidos por um cometa de cauda abundante e ultra luminosa. Eis que lembrados das profecias anteriores seguiram a luz cujos últimos raios incidiam sobre Belém. Lá interrogando a todos descobriram que somente o menino Jesus havia nascido naquele exato momento. E comentaram: Finalmente é nascido o enviado de Deus, o Messias, que os profetas maiores anunciaram. aquele para quem João pregará abrindo os caminhos do deserto. Retornando da entrevista com Herodes voltaram então à casa de José e Maria para anunciar a estranha e curiosa insistência do Patriarca em saber detalhes do nascimento do menino. Aconselharam então à Maria e José a fuga para o Egito em companhia de Jesus. No Egito recebeu Jesus dos sábios as primeiras lições e, tendo de retornar à sua terra com a família, verificou, num encontro com sacerdotes e doutores no templo, que a filosofia precisava ser modificada para atender aos reclamos do povo miserável que constituía a maioria da população das cidades que o cercavam.


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Retornou então ao Oriente, abandonando a família, onde pôde estudar todas as escrituras antigas e suas leis, principalmente a filosofia milenar da região. Aos 30 anos, pronto física e mentalmente, retorna Jesus à sua terra para iniciar a batalha decisiva rumo ao poder, encontrando pregando pelo deserto o profeta João Batista. Jesus acompanha-o como ouvinte atravessando desertos anunciando a vinda do Prometido. O deserto é o local ideal para apanhar as pessoas em êxtase. Ali, onde a natureza é imprevisível e dura, os homens se encontram em perfeito estado de graça e compreensão. João escolheu o deserto para pregar sabendo que todos os seus caminhos levam às cidades. Sua palavra e seu grito correriam com o vento de boca em boca em todos os rumos. Logo todo o povo estaria à espera de um novo líder. E em breve o próprio povo exigiria um novo líder.

Eis que Jesus inicia, então, a sua investida. Ante visionando a estrada a percorrer rumo ao poder central prega paralelamente a João, já como o próprio Salvador. Os que ouviam João e se deixavam batizar logo sentiam em Jesus que o Messias estava presente e se lançavam com ímpeto ao ataque. João, profeta revolucionário maior, atravessa desertos para prever com sua palavra instigadora a chegada do que será o líder. Jesus, após batizado por João, habita em Capernaum, cidade marítima no caminho do mar, além do Jordão, a Galiléia das Nações. A primeira tentativa de pregação no perímetro urbano resulta em fragorosa derrota. Jesus expulso de Nazaré. Daí sua insistência futura, ferido em seu amor próprio, em vitorioso retornar à cidade que o havia desprezado. Vencedor, como em todas as outras aspirações, Jesus foi recebido auspiciosamente em Nazaré tempos depois. Ovacionado pelas multidões que já o reconhecia como o verdadeiro Rei. Em Capernaum, onde foi bem recebido no início, fez a sua base e pôde trabalhar sossegado. Sempre que possível feria os preceitos morais vigentes curando no sábado, que era dia sagrado. renovando os direitos do povo. enaltecendo o respeito à pessoa humana mesmo quando prostituída.


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Enquanto isso João previa sua própria queda diante dos guardas de Herodes. Enviou mensageiros para conferenciar com Jesus e saber: És aquele que estamos esperando? Jesus prometeu seguir todos os sistemas pregados por João, já que os objetivos a alcançar eram os mesmo. Os emissários apressam-se a levar a nova ao seu Mestre. Pôde então respirar aliviado e dar as suas últimas instruções aos seus apóstolos. Os últimos resquícios de revolta seriam lançados em plena cidade entre o povo e os cidadãos até que a impiedade de Herodes (e Herodíades) fizesse saltar do corpo a desgrenhada cabeça do guerrilheiro João. Formou então Jesus o grupo que o assessoraria, não mais de doze: Pedro, André, Tiago, João, Felipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, Judas Tadeu, Paulo, Simão e Judas Iscariotes, que foi o traidor. E saindo eles pregaram o evangelho em todas as aldeias e vilas.

E percorreram com seu Mestre toda a Galiléia ensinando nas Sinagogas e orando nos desertos e curando as enfermidades curáveis: os afeminados, os endemoninhados, os lunáticos, os paralíticos e Ele curava a todos. Ditava novas leis: Ninguém deita remendo de ano novo em veste esfarrapada porque semelhante asneira rompe a veste e faz maior o rasgão. Uma nova verdade é violentamente pregada. E disse Jesus a seus comandados: Não ireis pelos caminhos das gentes nem entrareis em cidades de samaritanos, mas ide aos desertos aonde vivem as ovelhas perdidas e extraviadas e dizei-lhes: - é chegado o fim das injustiças, é chegado o reino dos céus e das primaveras eternas. Instruídos sobre toda a ação, o futuro iria das aos apóstolos o lugar merecidamente conquistado pela consolidação da evolução dos direitos humanos, destaque que deve ser estendido antes a João e seus companheiros de luta, direito adquirido como precursores de um movimento libertador antes apenas regional, mas que os séculos tornarão mundial. A tática guerrilheira de pregar nos desertos onde os regulares sempre encontraram dificuldade venceu o senso incontido e revoltoso de Jesus. Achou, porém, que já era tempo de levar a revolução da palavra até o cimento, à pedra, à construção humana, eis que João havia sido subjugado e morto e o líder dos movimentos operários, o profeta dos direitos urbanos Barrabás estava detido. Herodes busca saber quem ainda ousa levantar a voz nos desertos


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novamente, após esses duros exemplos de João e Barrabás. Quem era aquele que tomou as rédeas do rebanho abandonado pela Voz que Clama nos Desertos e já se aproximava das cidades em perigosas incursões para o regime? Jesus, o de divino olhar, o de voz segura e rigorosa para como os fortes e amena e carinhosa para os fracos e pobres. o de físico e estatura capazes de resistir às mais duras reações humanas e inumanas. Sob seus pés curvaram-se mais de mil povos subjugados pelo olhar penetrante, voz aguda como as espadas árabes. Aquele que perdoou Maria Madalena de todos os pecados tornando-a sua amada amante e reconhecida pela dedicação e trabalho como o 13º apóstolo. Traído por um beijo de Iscariotes (novamente o egoísmo falou mais alto) Jesus foi preso em Getsemane, Pedro procura reagir incitando seus companheiros a segui-lo, impensada resolução logo repudiada por Jesus. Para que sua voz prosseguisse sendo ouvida em todas as camadas da população, para que pudessem ser conseguidas as mínimas reivindicações era necessário que os profetas subsistissem. Diante da ordem superior, melhor foi silenciar, negar. E Jesus foi preso e julgado e condenado. Herodes não quis assumir perante a História a responsabilidade sobre o destino do homem que começara a sacar dos corações das gentes o estigma da revolta e da revolução. O desrespeito à autoridade fantoches e às suas leis falsas que amparavam somente a alguns apenas. O julgamento caiu nas mãos de Pôncio Pilatos que previu o jogo sujo de Herodes dando-lhe explosivo sangue inocente nas mãos. Sabiamente colocou o povo da cidade no julgamento e em suas mãos o destino do Nazareno.

Ora, estava o líder mais conhecido, Barrabás, detido à espera de julgamento e condenação, e para as autoridades seria menos perigoso solta-lo, que acatava certas imposições, cujas possibilidades de revolta já haviam se esgotado. Jesus – que também recusou acordo com governos e com o próprio Barrabás, estava com a vida nas mãos de um povo que o desconhecia e ainda não assimilara de todo sua pregação, sem conhecimento da totalidade de seus milagres e curas.


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Assim é que o tribunal público, sabiamente utilizado por Herodes e sua polícia (que apresentaram Barrabás como o verdadeiro líder) escolheu-o condenando Jesus à crucificação.

O Salvador cavou sua própria sepultura ao carregar uma cruz através da cidade deixando todos cansados de tanta perversão e maldade, de tanto gozo e diversão maléfica feita com um condenado. Só e abandonado no Calvário, desfalecido e dado como morto, Jesus teve seu corpo retirado e lançado numa cova lapidar. Familiares e mulheres que o acompanhavam deram-lhe os últimos beijos e suspiraram. Retiraram-se todas, todas menos uma que teve fé: Maria Madalena a quem todos um dia chamaram de prostituta, repudiada por todos foi quem aproveitou o silêncio da noite chuvosa para visitar seu bem amado. No túmulo tratou das feridas mortais e sentiu em Jesus um último e distante hálito de vida, Sim, Ele ainda vivia! Que tanta resistência trazia dentro de si? Afinal, quem agüentou dias e mais dias no deserto e jejuava para poder dividir pão e peixe com seus amigos era bem capaz de resistir à própria morte. Madalena tirou-o do túmulo e fez contatos com os apóstolos e remanescentes de João Baptista. E levou-os ata Betânia e lá Jesus abençoou-os levantando suas mãos sobre as cabeças: Quando estivestes comigo nada lhes faltou. Hoje, entretanto é necessário ter alimentos em suas mochilas e voz limpa em suas gargantas para continuar a pregação. O alicerce está lançado e vós sereis as pedras da construção. E de todos se apartou e foi nos braços de Maria Madalena elevado aos céus pelos votos de amor eterno até a morte verdadeira.


UM CASO INTRINCADO

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(Vila Felicidade teve alguns dias de desassossego quando ocorreram uns casos que abalaram e destruíram parte da estrutura social sobre a qual pousava o povoado. Os fatos poderiam passar despercebidos e ocultos. Mas, o crime de morte requer mais que investigações abafadas. E a situação foi aproveitada para explorar segredos da alta roda, dos quais o povo conhecia apenas de talhes contados em forma de boato ou invenção. Muita coisa se perdia no vento. muitas situações eram de mentira. e a verdade não tinha hora de aparecer, submergida nessa onda toda de inventiva. Nem mesmo o delegado perdoou as pessoas envolvidas na situação e foi inquiridor da maior rigidez. A imprensa tomou conhecimento das ocorrências e foi mais sensacionalista ainda. A vila ainda sofre conseqüências de uma intervenção federal rígida onde a imprensa funcionou na clandestinidade enfrentando toda espécie de ameaça e censura tornando-se depois escora do governo e única fonte útil de informação honesta. Logo, não haveria porque reprimir as manifestações jornalísticas no presente caso nem em outro qualquer. Ademais daquela intervenção pra hoje, os títulos sociais pouco significam, os falsos poderes derrubados permanecem impotentes, e cheira até um pouco de liberdade revolucionária nessa transformação porque passou a vila. Por isso a melhor fonte de informação ainda é a imprensa, inda mais esta que é a imprensa sofrida, marginal muitas vezes clandestina, e revolucionária sempre. Evidentemente as conseqüências advindas ao conhecimento popular do presente caso foram além do descrito nestas páginas. O registro dá pra extrair o de bom e de ótimo que trouxe o acontecimento para a vila e sua gente. Na mais tradicional forma proverbial: pra bom entendedor meia palavra basta. Eis aqui a reprodução mais ou menos fiel da matéria jornalística.


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APÓS SER REPELIDO MATOU A ESPOSA com seis tiros. Viveram juntos em regular felicidade durante dezoito anos até que desentendimentos constantes levaram Fernando C. Machado a tomar uma drástica decisão, pois queria a reconciliação de qualquer modo, com qualquer conseqüência. Não teve sucesso em inúmeras tentativas feitas: telefonando, pedindo a amigos comuns que intercedessem. Lucy Cruz Machado, descendente de alta linhagem em Vila Felicidade (o Coronel Mechado ficou famoso por não tomar parte nas disputas havidas entre os guardadores de cabaços), recusou delicadamente todos os insistentes pedidos. Impedido de restabelecer a paz comum, Fernando Correia Machado, armado, foi fazer a última tentativa. Funcionário público estimado na repartição até ser aposentado acabou por assassinar com seis tiros a esposa e companheira Lucy Cruz Machado no interior de sua residência. A Rua Paz e Amor foi abalada com o inditoso crime. O criminoso, não tão nobre quanto à esposa (tomou o nome Machado em virtude do completo desconhecimento de seu sobrenome nas camadas sociais), foi preso pelo filho do casal Hélio Vida-Bonfim Machado, tenente servindo junto ao Corpo de Benfeitoria Geral. Há cerca de dezoito anos Fernando e Lucy começaram uma vida feliz que se estendeu ao longo do tempo. Após o último ano, porém, os desentendimentos foram tantos e tão freqüentes que resolveram pela separação. Foi Lucy, aliás, quem deu a idéia e Fernando, embora ferido em seu amor próprio, resolveu concordar passando a viver fora da companhia de Lucy. Ultimamente Fernando começou a fazer várias diligências e novas pressões para retornar à vida comum e desejava reconciliação a qualquer custo. mas Lucy o queria apenas como amigo, se tanto. Como companheiro nunca mais, apesar de confessar desejos pelo gosto e jeito do homem na cama. Fernando não desistia jamais. Deixava passar um, dois, três dias e tornava à carga com maior veemência. Ora por telefone, ora pessoalmente, quando presente na vila. vezes por cartas, vezes por telegrama se ausente da localidade. jamais desistindo, jamais. As


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pessoas amigas da família preocupadas, não podendo recusar, por motivos sociais, intercessão junto a Lucy que permanecia irredutível. Não cedia milímetro.

Ontem, às primeira horas da noite, Fernando armado com um revólver calibre 32, curto, marca Ina-942, foi à residência de Lucy tentar pela derradeira vez convencimento, fazer as pazes. Esquecer o passado, iniciar tudo de novo como se a vida conjugal iniciasse ali naquele instante. É evidente que Fernando possuía outras intenções caso não obtivesse o sucesso desejado. Chegando, Lucy o recebeu como sempre amavelmente. Seu filho se encontrava em casa recolhido ao quarto. Notou na chegada que o velho estava armado. Sem suspeitar dos malévolos inconfessáveis propósitos ainda indagou com naturalidade e em tom brincalhão: Está armado pra quê? Vai caçar? Ao que Fernando respondeu textualmente, riso cínico já se projetando nos lábios: Fique tranqüilo rapaz. Se eu quisesse já teria feito uma besteira das grossas. mas não é de minha tenção. Hélio se afastou da sala convicto de que realmente nada de anormal ou dramático iria sobrevir, dada a avançada idade de ambos. Mas se enganava redondamente. Lucy e Fernando ficaram conversando velhos temas e coisas banais. Amenidades. Mesmo espaçadamente se podia escutar alguns risos e alegres observações. Lucy serviu Licor de café de preferência dos dois, que era servido, entre a palestra. Logo foi incluído o assunto da reconciliação. Mau momento, a seriedade penetrou no ambiente. o sorriso desapareceu. Uma sombra de mal estar pairou na conversação. Muitas vezes Lucy disse não aos apelos incisivos e suplicantes de Fernando. Estava senhora de si e da situação, ao contrário de Fernando que via o mundo ruir desastrosamente. Tornaria a ser apenas Fernando, sem qualquer título próximo à nobreza e ao militarismo.


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- O que está feito está feito. O passado nunca volta. é irreversível. Opinião de Lucy encerrando definitivamente o assunto com o velho. Ante a intransigência Fernando só fez insistir mais e mais. Parecendo buscar, remediar e transferir para outra ocasião a terrível e fatídica decisão que tomaria no caso de Lucy decretar a recusa final. Chegou a se ajoelhar aos pés de Lucy, no calor das súplicas e do licor, na insistência dos pedidos. E Lucy só fez repetir mecanicamente pela milésima vez a revoltosa palavra: - Não. Tresloucado o velho Fernando puxou o revólver e fez seis disparos fatais. Lucy ante o impacto dos projéteis rodopiou e caiu. A face transtornada implorando no minuto final vida e piedade. Segundos depois estava morta, infalivelmente morta.

Praticado o crime monstruoso Fernando arriscou a fuga em desabalada carreira. O filho surpreso ante tudo que ocorrera em fração de segundos saiu do quarto contíguo, equipado com a arma de sérvio (uma Beretta-45) logrou prender Fernando ofegante alguns metros além. Não conseguiu o velho a prisão sentimental, mas não logrou escapar à justiça dos homens. Hélio desarmou o criminoso que renunciou à arma docilmente e conduziu a seguir para a Delegacia de Crimes Amorosos onde foi autuado em flagrante delito. Julgaram ver algumas lágrimas nos olhos abatidos do velho Fernando. Ou era o reflexo do lampião amarelado da delegacia? O corpo de Lucy foi recolhido ao Instituto Legalizador de Cadáveres para sofrer a necropsia, sob as miradas eróticas do doutor de plantão, e posteriormente remetido à fazenda do Coronel Machadão. (Convêm algumas palavras antes de deixar o caso bailando nas mentes, quanto ao tratamento dado no jornal aos personagens. Nada de senhor ou senhora. Tudo igual a todo mundo. Inclusive a necrópsia


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foi exigida pelo delegado para demonstrar que não existem mais privilégios de classe. A menção ao título do coronel Machadão, justifica-se: é um homem reto, merece respeito. No mais tudo igualzinho aos outros.)

(A desgraça seguinte não deu tempo pro povo respirar e mastigar o assunto inicial. Foi talvez conseqüência da primeira desgraça que Hélio Vida-Bonfim Machado mudou o modo de vida e passou a beber e ter casos abertamente com várias mulheres. Virou brigão sendo acatado por todos não só pela sua patente como também, pela descendência direita do Coronel Machadão – que dava costas quentes e largas ao neto adorado. Sugeriram, em falas ocultas, um amor pecaminoso com a falecida mãe. A palavra ainda é do Diário de Vila Felicidade, em plena forma e na melhor tradição jornalística. Sem dúvida o redator da seção de crimes tem veia poética. A nossa intervenção se prende apenas ao esclarecimento mais fácil. Sei que tem muito bom entendedor por aí, mas conheço também o pessoal de pouco ver.) COSTUREIRA FUZILOU O SEDUTOR com um tiro à queima-roupa. A humilde costureira Maria Graciosa (21 anos, solteira, residente na Rua Paz e Amor s/nº) depois de seduzida por um tenente do Corpo de Benfeitoria Geral (Hélio Vida-Bonfim Machado, maior, 24 anos, neto querido do Coronel Machadão) matou contem com um certeiro tiro à queima-roupa o amante. Depôs a costureira na Delegacia de Crimes Amorosos, que Hélio vivia alimentando o caso de amor com falsas promessas de montar um apartamento completo na cidade grande para os dois que mais tarde trataria do casamento com véu, grinalda e tudo. Uma sensacional festa seria dada aos amigos e parentes do casal. No início do idílio é fácil se perceber a tentativa de ser agradável a todo custo. Prometer então não tem fronteiras. depois muito mais simples é deixar sair da memória o apalavrado. Descobriu Maria Graciosa que Hélio mantinha várias amantes e alguns filhos espalhados pela vila e redondeza e não poderia jamais


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cumprir o prometido. Mesmo assim, por muito amor, resolveu aceitalo de qualquer maneira sujeitando sua vida à humilhação de ser a outra de muitas outras.

Ontem Hélio veio fazer visita mais uma vez. Como era praxe, estava completamente alcoolizado, cheirando a bebida. Discutiram sobre assuntos diversos aloucadamente, debate sem nexo que provoca a ira rapidamente. A situação irregular de ambos veio à tona, como seria inevitável. Maria Graciosa sempre alegava em seu favor ser a última das mulheres do mundo por manter essa situação desastrosa. - Nem uma puta! Vive com eu, pois tem liberdade de escolha. Relembrava as vãs promessas, as mentiras alimentadas por ambos, as tentações oferecida pelo militar para conseguir o que finalmente conseguiu: seduzir e abandonar (com seduziu) (como abandonou). A sobra naquela ridícula posição social. A altercação muitas vezes chegou à agressão física. Também o palavreado rastejou com as feras, aproximou-se ao vulgar com palavrões impublicáveis. Os nossos leitores merecem o melhor. Graciosa, desolada como ninguém, sentiu seu mundo desmoronar. A modesta costureira, porém não possuía outros meios de se livrar dele ou da prisão amorosa em que estava enredada. A condição física de Hélio não permitia escuta de tais sermões, andava em busca de paliativo para suas bebedeiras. Resmungou contra as reclamações de Graciosa soltando palavrões e insultos. A vizinhança ouviu: - Você está sendo demais na minha vida. Já encheu as medidas. Por isso vou te deixar definitivamente. Maria Graciosa se viu perdida repentinamente. Fez uma retrospectiva de sua vida de luta e sofrimento em busca de uma posição mediana condizente com suas possibilidades. Lançada na vida com ardor, ao trabalho objetivo, à luta honesta. Conseguir alguma posição elevada ou algum marido – seu sonho. Para solidificar a


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posição social adquirida em breve fundaria um casa de costura e a prosperidade viria mais rápido. Recompensa pelos anos ásperos em que enfrentava só a tudo e todos.

Hélio surgiu em sua vida como uma complementação da aspiração. Militar que ganhava razoavelmente bem, ótima aparência, muitas vezes carinhoso (quando nada bebia) e descendente de família nobre. Certamente daria bom marido e excelente pai. Sonho justo das moças que lutam individualmente na vida. O amor fez Maria Graciosa investigar a vida aventureira de Hélio, apenas desencargo de consciência. A princípio tudo foi levado esportivamente como quem sabe que nenhuma mancha frustraria suas ambições. O destino reservou um castigo maior que o previsto. Sim, não seria nada anormal se Hélio tivesse um caso amoroso passado: todos os homens têm problemas desse tipo. À medida que a busca se ampliava as mulheres foram multiplicando e o desespero começou a penetrar no futuro da simples costureira. Que fazer? Ser apenas mais um aonde o amor plantara a tragédia? Onde jogar o amor adquirido em alguns anos? Naquele dia, pressionada pelo vigor dos fatos, surgiu a decisão de pronto na menta desvairada da moça, desiludida com promessas sem fundo. Tudo era um mar de rosas até o dia em que Hélio decidiu pela separação. Maria Graciosa viu ali não só a sua libertação, mas a de todas as mulheres, cinderelas anônimas que ninguém mais acredita existir, enganadas por homens atores de primeira página, cafajestes de piores resquícios humanos. Por causa de um genioso amante que partia para a violência desastrada: antevendo o mar de maus tratos que seriam infligidos no decorrer dos anos, a costureira Maria Graciosa desfechou um tiraço em seu amante Hélio Vida-Bonfim machado. Tirou a vida do homem que desgraçara a sua. Um certeiro tiro na cabeça à queima-roupa.


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(Mas onde foi parar Maria Graciosa. Descoberta uma casa suspeita, mantida por uma ricaça de origem citadina, nada mais nada menos que Maria Graciosa era ali a mais requisitada, a mais querida – além de maior incentivadora das posições heterossexuais cultivadas pelos freqüentadores. Escolhidos a dedo da fina flor da sociedade felicense, constituíam os sócios freqüentadores dessa sociedade secreta, conforme se poderá ver (ainda) pelo inexplicavelmente resumido relatório publicado pelo Diário. NO LIMIAR DO 4º SEXO

Maria Graciosa, costureira, famosa tristemente pelo crime de morte que custou a vida de Hélio Vida-Bonfim Machado, filho do Coronel Machadão, acontecido há poucos dias. Maria Graciosa, residente na Rua Paz e Amor, esteve assim envolvida no triste caso de assassínio do amante. Olhos claros, cabelos castanhos, corpo escultural e voz macia com certo acento gutural, quem a vê na rua 21anos e andar bamboleante, não a supõe no limiar do 4º sexo. Foi presa ontem num antro de lésbicas e heterossexuais mantido por conhecida milionária vinda periodicamente da cidade grande – passar férias e descansar, segundo informação oficial. Retornou Maria Graciosa à Delegacia de Crimes Amorosos, onde já é conhecida, pra depor. A casa de perdição e vícios foi desmantelada ante insistentes e sucessivos registros de queixas contra o barulho de músicas (geralmente eróticas e pornográficas) até altas horas da madrugada, invadindo manhã a fora. Houve reclamações também contra o cheiro estranho de ervas (maconha) e dos gritos alucinantes dos picados por morfina e dopados de cocaína – bolinhas vindas não se sabe donde para a pacata Vila Felicidade. Aliás, tem de se notar também que juventude da vila já emprega tais vícios e outros semelhantes: protestos políticos e social. uso de roupas berrantes, colares e enfeites mirabolantes. formação de tribos e comunidades isoladas com vida própria. e, como se não bastasse, uniões conjugais


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sem qualquer registro em cartório ou pretoria. Posição lamentável a que chegaram os jovens mal dirigidos, tanto pela família como pelo governo.

Na delegacia ante os flashes curiosos dos fotógrafos e com regular assistência, não se perturbou Maria Graciosa, nem demonstrou intimidação com as perguntas malévolas do delegado de plantão, explorando todos os ângulos da questão. Seu olhar desafiante ganhou um brilho singular e efetivo ao dar desconcertantes respostas e ao fundar escolas filosóficas avançadas e desconhecidas por todos nós, talvez também por ela mesma. Não é atrasada e vive a sua vida sem dar satisfação a quem quer que seja. A não ser pela denúncia de ruídos durante a noite e ao uso de excitantes e psicotrópicos (este realmente perdoável), não vê crime algum no modo de vida adotado por ela e seus amigos. Aos 21 anos, sofrida, já se considera experiente nos trejeitos e segredos mais profundos do sexo. Até a tragédia, era separada do amante do qual sofria maus tratos que só os homens sabem dar. Após vários anos de vida semi conjugal sabe muito bem o que significa a dedicação a um ente que só fez esgotar suas reservas femininas. Aturar beberragens e posteriores pancadas, discussões eternas e sem rumo – só até se tornar independente. A tragédia veio acelerar a sua libertação e a oportunidade bem que não seria desperdiçada. Já o amor feminino e entre heterossexuais é mais entendido: duas pessoas do mesmo sexo só podem se entender melhor. Melhor proveito das ocasiões apresentadas, sem qualquer perigo sexual ou moral, a não ser essas denúncias escandalosas e sem caráter. Oficialmente nada pode acontecer-lhe. Mesmo que ganhe uma repreensão ou uma detenção nenhuma outra medida judiciária ou oficial pode ser tomada. Se fosse mais jovem e subalterna à família caberia aos pais a correção. Uma reprimenda então bastaria? Para onde irá Maria Graciosa? Fará parte de uma nova jovem humanidade minoritária? Qual será o caminho dado por nós e pelos responsáveis com opção?


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(Uma reportagem curta e estarrecedora. O DiĂĄrio de Vila Felicidade foi citado e mencionado a prĂŞmio pelo forte e sincero apelo a um novo rumo, pelo oferecimento de um novo e independente mundo aos nossos camaradas: os jovens).


UNS NATAIS

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Meu Papai Noel de todo mundo eu tive quando era criança. Na casa onde morávamos, eu e meus irmãos, havia sempre uma alegria sem fim quando de manhã bem cedinho dávamos um pulo da rede pro chão. Era um pulo. Zás, agarrávamos os nossos pacotes e, casa um, de per si, abria-os para deslumbrar o seu presente. Alguns tinham uma tristeza momentânea ao verificar que o brinquedo pedido na cartinha não estava ali e sim outro às vezes mais feio ou mais barato. É que geralmente pedíamos o que o sonho imaginativo mandava. Trens elétricos, bicicletas, automóveis e outros brinquedos que o nosso Papai Noel não podia dar. E nós não sabíamos que ele não podia nos presentear coisas tão caras. Esse meu Papai Noel era o Papai Noel universal. Tinha barbas, tão brancas, o rosto corado e gorducho, usava roupas grandes e vermelhas, um cinto preto com um bruta fivela dourada, botas de cano longo e um sorriso eterno nos lábios. Andava geralmente num trenó. Deslizando por sobre a neve alva como a sua barba. Mas lá onde morávamos não tinha daquelas neves branquinhas. Onde andaria ele então? Depois, olhando cartões de Natal verifiquei que ele andava também pelos ares. Flutuando. Aqui no Norte – pensei – ele por certo vem assim, flutuando. Quando começávamos a discutir por causa dos brinquedos papai e mamãe ficavam zangados. E, às vezes, fazíamos a asneira de destruir os brinquedos dados com tanto sacrifício por Papai Noel. - Papai Noel fica trabalhando o ano todo em sua oficina para dar os presentes para vocês e vocês vão quebrar. Ano que vem ele não dará nada, nada mesmo! Era mamãe falando. Mas logo ficávamos arrependidos de ter deformado os presentes. Era uma dor que fazia a gente chorar o dia todo. E daí tratávamos com mais carinho as coisas ganhas. Os vizinhos também têm Papai Noel. A manhã toda saíamos pela redondeza para ver e admirar. Era cada coisa bonita, cada brinquedo


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que fazia coisas que só gente grande. Uma coisa que eu não compreendia era por que o Afonso, filho do seu Gerardo tinha aqueles brinquedos bonitos que ninguém mais tinha. Corria e dizia a mamãe: - Mamãe, o filho do seu Gerardo ganhou um automóvel grande que cabe ele dentro. Tem farol, direção e até marcha-a-ré. É Ford.

E não compreendia também quando ela me respondia que o pai dela era rico. Essas ilusões acabaram quando mamãe me pediu que ajudasse a colocar os brinquedos debaixo das camas. Que brinquedos? Aí mamãe me explicou que quem dá os presentes é papai, Pensou que eu já sabia. Não, eu não sabia. E aquela explicação tirou-me do sono alegre de despertar e correr debaixo da cama e apanhar o pacote. Ou correr para a rede dos manos e ver os presentes antes deles acordarem. Tirou-me tudo isso e deu-me muita coisa também, A realidade de que Papai Noel trabalha o ano todo para nos dar, não somente o presente de fimde-ano, mas também tudo o que se tinha durante o ano. Comida, escola, os pequenos presentes diários, bom-bons e chocolates, e aquele amor que nenhum dos filhos compreendia. Que nenhum dos filhos, aparentemente, tinha necessidade. Foi assim que perdi o meu Papai Noel de infância. A gente tem que perdê-lo um dia e eu o perdi com 12 anos e fui convidado a ajudar a por os presentes para meus irmãos. Perdi aquela alegria e ganhei a alegria de conservar a tradição em meus irmãos até que eles viessem a compreender a luta de Papai Noel. Desde esse tempo, e eu não sabia, fui transferido para a qualidade de segundo chefe de família. Com o sacrifício de ser o meu papai Noel e o Papai Noel de meus irmãos. Sacrifício. - Ora, está certo, a história é chata e antiga, mas em vez de malandrear pó aí fica escutando. Não te incomoda que depois nós vamos sair juntos. Que tal mais uma cerveja? Garçom! Uma.


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Depois eu fiquei grande. Não compreendia muito da vida. Só dessa vidinha que se leva em beira de calçada. Em pracinhas batendo um papo com os colegas. Da vida mesmo eu não sabia nada. Dessa vida que faz a gente chorar depois de grande. Que faz não sentir pena, desde os 15 anos que dou duro na vida. Pouco ajudava em casa, mas só o trabalhar já me dava ares importantes e de independência. Como fui criado brutamente não sentia vontade de ser miado nem de agradar aos meus. Só dava-lhes desgosto. Discussão e brigas. Uma danação dos infernos! Não era disso que eles estavam necessitando. Eu também se hoje estou assim, sem querer nada com a vida, é porque me falta um carinho. Uma mulher que saiba o que a gente quer na hora que quer. Sem pedira. Que traga seu corpo e encoste-o no da gente na hora precisa. Um entardecer ou um anoitecer que tem aquele sabor de recordação todo especial. Sabe que era assim? Quem sabia dar o necessário a quem necessitava? Mamãe. Ela sim era o tipo de mulher que eu quero para mim. Ela cumpriu com o dever. Do que papai precisou e eu não dei, ela deu. Foi assim. Eu devo casar? Sim, mas não é assim, assim. A gente deve sentir quando a mulher é assim. Mesmo que não sinta amor. Talvez eu encontre, quem sabe? Mas isso não interessa. Eu estou com uma vontade louca de sair pelo mundo sem um tostão no bolso. Liso. Sofrer tudo sem se preocupar. Mas isso é covardia, e eu ao sou covarde. Devo lutar. Não por mim, que eu tenho a impressão que não estou vivendo um sonho. Estou acordado. Tenho aquele pensamento de que a luta cotidiana é inválida. Aquele pensamento doido para que viver? para depois morrer? Sem ter feito nada que valha a peã de ter vivido? pensamento de quem não crê em nada. Nem em deus? Não, estou falando. em nada disso que a vida traz. Como se diz? Matéria. Sim, é isso: Matéria. Sabe que até já me esqueci de Deus? É, tão acabrunhado que estou. Espera aí, rapaz, será cedo. Não, escuta mais. Não já te disse que nós vamos sair juntos? Não faz isso. Eu pago, pago. Se tenho dinheiro? Tenho sim. Como eu consegui? Ora, não te preocupa com


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isso. É dinheiro e pronto! Basta. Não se deve querer saber de onde saiu o dinheiro, basta que tenha. É vontade louca querer saber isso. Dinheiro é como a vida: querer saber de onde veio e para onde vai é sacrilégio! Sacrilégio mesmo.

Eu ia segurando papai. Num jipe. A gente poderia ter esperado um automóvel. Sacudia menos, o médico disse. Mas papai respondeu: Vou nesse mesmo, doutor, eu já estou aqui. Eu acho que ele estava com vontade de viver. Ele não queria nos abandonar. Mas papai era inteligente. Sabia alguma coisa. Eu ia segurando ele. Mamãe atrás. O jipe bem devagarzinho. O hospital era longe. Engraçado, tinha outro hospital mais perto, mas ninguém se lembrou. Já estávamos bem perto, quando papai deu uma respiração profunda e estertorante, os braços forçaram para cima, numa contração, e pronto! Pendeu a cabeça sobre o peito. E eu fiquei ali do lado abanando-o com uma folha de papelão. Inutilmente. Quando papai deu o ataque, atrás, mamãe deu um grito que me penetrou nos ouvidos alucinante: - Ele está morrendo! Olhou para o doutor pedindo, suplicando: Salve-o, faça alguma coisa, com um olhar de quem sabe que não há nada a fazer. E eu abanando papai. Ele não está morto, dizia para mim. Minha razão respondia: está. Não está. Não está. Não. Nós estamos perto do Natal. Eu já vejo o Natal que vou passar. Viaje para cá numa esperança de poder reviver. Trabalhar para poder consolidar o que papai iniciou. Hoje uma tia minha me deu uma capa de presente de Natal dizendo: - Toma esta capa. Eu só ia te dar dia 25, mas como vais viajar, leva, pois pode estar chovendo. Este é o presente da Mamãe Noel. Vamos ver se o Papai Noel vai ser melhor. Meu pensamento analisou e me disse: Teu Papai Noel já morreu! E eu fiquei naquela crise. Uma vontade de dizer: Meu Papai Noel já


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morreu! Mas não disse. Essas palavras que a gente não diz, são as que mais nos torturam. Ficam por dentro, girando no cérebro para toda a vida. É melhor dizer para qualquer coisa a frase presa. Basta abrir a boca, e isso é tão difícil. Dizer ao vento, ao sol, a uma parede, qualquer coisa pode escutar. Basta dizer. Mas não se diz. Fica ali, ruminando e engolindo. Afinal, essas frases sempre nos são preciosas. Ninguém as merece escutar. A não ser a pessoa a quem estão destinadas. E quando esta pessoa não existe mais.

Esse é que é o meu estado. Estou trabalhando, mas sem vontade. Se tento me divertir, o divertimento parece-me uma consolação. Mas não é. Se bebo, a bebida me traz um gosto de remédio. O quê que eu faço, então? Sim, vamos dar a nossa volta. Talvez seja uma volta proveitosa. Mas, enquanto nós andamos, eu vou continuar falando. Se não quiseres escutar eu falo só, mas hoje eu tenho que falar. Engraçado. A gente sempre dizia a papai que ele teria que se hospitalizar, mas ele nunca quis. Tenho a impressão que ele não queria dar trabalho a ninguém. Finalmente ele havia decidido fazer u tratamento sério. Mandou um telegrama a um irmão que reside no Sul. Eu mesmo passei o telegrama. O texto dizia: necessito cem mil cruzeiros fim hospitalização vg podendo empreste. Note bem como ele escreveu: podendo empreste! Estava pedindo a um irmão. Se pudesse para emprestar. No dia que papai morreu, recebemos um telegrama em resposta que dizia: estamos providenciando dinheiro vg informe como vai João. João é papai. E os médicos? Ah, esses foram os mais safados e ordinários. Um deles, a quem papai sempre consultava, disse para um vizinho uma semana antes de papai morrer, que não tinha esperança. Que era caso de dez, vinte dias. O vizinho não nos disse nada. Eu também não diria. Nas o médico deveria autorizar um internamento imediato. Ou então comunicar à família. Não fez nada disso. Receitou apenas alguns remédios e pronto. Eu ia escrever nos jornais da cidade. Tirava a metade dos clientes dele. Poderia ser processado mais tarde, mas que esculhambava, esculhambava!


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Outro, tal de Dr. Murad, ao ser chamado mandou dizer que não poderia atender. Medite bem: não poderia atender porque estava descansando! Isso é crime perante a Lei. Mas onde é que tem Lei nesta cidade? Lei é uma merda, devia era ir lá na casa dele e meter uma bala na cara. Senvergonha! Patife! Depois uma irmã de mamãe que era casada com um filho de barão mandou chamá-lo e ele respondeu que, como era para ela, ele iria. Para ela, entenda bem! Era o caso da gente processar e pedir indenização. Mas esse carcamano filho da puta tem dinheiro que pague a vida do meu pai? Nem o couro dele é paga para tal. Mesmo assim, fomos até a Santa Casa de Misericórdia. Quem disse que eles deixaram a gente entrar? Papai já morrendo e nada: só com 25.000,00 de depósito. Santa Casa de Miséria, isso sim! Um bando de freiras ladras. Sabe o que o médico estava fazendo? Jogando xadrez sozinho. Um desses jogos pequenos de bolso. Arrumava as pedras e ficava no corredor jogando xadrez, enquanto gente morria na porta. É assim! E quem me afirma o contrário? Ainda bem, senão essa história não acaba. Era nesse ponto que queria chegar, meu amigo. Papai sofreu muito. Não queria incomodar ninguém. Acabou me incomodando pra o resto da vida. Nunca prejudicou a alguém. Se no emprego dele abria uma vaga superior e o chefe dissesse: João, eu tenho um sobrinho que está desempregado, tu não estás precisando dessa vaga, estás? Então deixa que eu o ponha lá que quando aparecer outra tu entras. Bastava dizer essa e outras mentiras para que ele cedesse. Nunca subiu na vida. Mas foi feliz. E ser feliz nesse mundo desgraçado, é muita arte. É ser alguma coisa na vida! Foi assim que perdi o meu Papai Noel de grande. Eu só sei que não sou covarde. Tenho que agüentar o rojão até o fim. E vai ser um fardo pesado. muito pesado mesmo. Sabe que eu me orgulho do modo que papai morreu? Morreu em pé. Eu acho que quero morrer assim também. Em pé. Andando.


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Mas eu sei que ele não queria morrer. Quem quer morrer, afinal? Todo mundo sabe que vai morrer um dia, mas quando chega esse dia.

Quem? Aquela? Sim, manda sentar. Não, hoje eu pago tudo. De onde eu tenho dinheiro? Ora, não te incomoda. Dinheiro é dinheiro, não interessa de onde vem. Basta que todo mundo o aceite. Cerveja! Senta aqui do meu lado. Eu estou apaixonado? Não, minha filha, estou louco. Por ti? Talvez.


PRIMEIRO NATAL

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O Natal mais feliz da minha vida foi aquele em que descobri que Papai Noel era meu próprio pai. Sérgio Porto. Existem certas coisas que nunca consigo entender. É muito difícil para mim, pois estou na idade quase juventude, embora mamãe ache ideal para ajudar a pôr brinquedos sob as camas dos meus irmãos. Justamente quando me despedi aparentando um sono que na verdade não existia, antegozando amanhã seguinte, o embrulho de papel enfeitado sobre o mais bonito par de sapatos existente, debaixo da cama. O acordar quase madrugada ainda, a gritaria alegre, as sacudidelas nos manos para saciar a curiosidade de saber o conteúdo de seus pacotes. Nesse justo momento mamãe convida-me a não dormir e ajudá-la na feitura e distribuição dos embrulhos. Onde vou colocar agora a imagem serena do velho vestido de vermelho, botas e cinto pretos, o fivelão dourado, a deslizar no trenó? As renas cheias de vitalidade, os chifres arabescos, correndo em flutuações no ar, onde as terei agora? Talvez o convite se desse por minha velha considerar-me mais inteligente que outros garotos da mesma idade. Chega a chamar-me de nomes absurdos e esquisitos: gênio precoce, etc. Minha reação primeira foi uma tristeza imensa, mais por medo de não ganhar brinquedos que outra coisa. Eu que pedira tantas fantasias na minha carta de duas páginas. Entretanto, após orgulhoso ter tido o trabalho nos presentes e já com verdadeiro sono, atirei-me à cama chateado. A manhã seguinte foi revigorante porque trouxe a confirmação da visita noturna de Papai Noel a todos nós. Aliviou-me o peso trazido por tamanha responsabilidade de saber a identidade desse barrigudo e agradável senhor de barbas brancas. Hoje, muitos anos depois, estou no mesmo dia que antecede o Natal. Espremido num canto da sala, observo o vai e vem da gente que veio visitar mamãe. Alguns chegam até mim, acariciam minha cabeça e entendem o olhar vazio de compreensão que tenho. Olhar que indaga


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já sabendo não haver resposta. Minha mãe, sentada, chora de tempos em tempos. As mãos cercam o rosto, vez em quando negaceia desconsolada. Sinto nela problemas idênticos aos meus: o imenso dom da incompreensão, a incomunicabilidade. Meus irmãos formam grupo em torno dela, outras vezes à minha volta, que sou o mais velho. Trato de consolá-los o quanto posso. Bancando o valente, os olhos comprimidos violentamente para não chorar. Os lábios contraídos escondem o grito que se esforça por sair. Às vezes tento contar uma história alegre, mas uma força maior existente absorve qualquer tentativa nesse sentido.

As pessoas entram e saem. Chegam parentes que me parecem mais numerosos agora. Atenciosamente confortam mamãe e oferecem-lhe dinheiro. Antigamente era mais difícil consegui-lo. Os parentes chegam conversando entre si em sussurros, mamãe à margem. Nunca consigo entender o que eles falam e parecem estar sempre negociando. De repente dão uma olhada no relógio, saindo num carreirão logo após as despedidas. Estão sempre muito ocupados os parentes. Só fica uma ou outra tia bem intencionada para conosco. Os outros, visitas apenas, em pequenos grupos de até seis ou mais, esses sim, contam anedotas rindo bastante largas gargalhadas. Bebem muito café, após cada xícara sempre um cigarro. A noite já chegada com a fumaceira torna a atmosfera da sala um tanto azulada, irrespirável quase. Contam também histórias de defuntos e falsos fantasmas. Quebram um copo e justificam entre risos dizendo que traz felicidade. Não sei de que jeito se mamãe vive a lamentar-se entre lágrimas que jamais foi tão infeliz na vida. Essa gente me aborrece deveras. Tenho vontade de chegar a eles e dizer uma porção de verdade: que devem rir baixo, que não contem anedotas, nem histórias de defunto u fantasmas, que não devem fumar tanto, pois a fumaça está fazendo mamãe chorar em dobro. Dizer-lhes que não abusem muito da hospitalidade que ela dá. Não são tão adultas quanto à gente pensa essas pessoas barulhentas sem educação. Não saio do calado, porém, por achar que minha pobre velha se aborrecerá ainda mais com o meu falatório. Todas as vezes que vou defender uma causa familiar mamãe sempre fica aborrecida, muito nervosa e chora, chora até não poder mais, aconchegando-me ao seu colo. Sinceramente, não


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entendo. Ao ter razão em qualquer caso todos deveriam dar-me apoio, o que não ocorre. Termino por ficar só, mamãe sempre sofrendo.

Outro dia. Manhã cheia de sol. As crianças saem todas à rua para mostrar seus brinquedos ganhos durante a miraculosa noite. Aquela fusão de coisas lindas com outras não tão belas confundia-me. O vizinho, por exemplo, achava meu carro tanque de madeira bastante feio (horrível, em seu dizer). De fato, contrastando com seu reluzente Cadilac colorido, luzes acendendo e apagando, freio a ar e buzina, meu caminhão não passava de um poeirento pau-de-arara. A pistola plástica de meu irmão foi humilhada severamente por um lustroso revólver-38 tipo far-west, o cabo de madrepérola com uma cabeça de touro incrustada fielmente desenhada. O estrondo do seu tiro de espoleta artificial abafava o clic-clic diminuto da arma negra de meu irmão. A boneca loura da maninha nos deixava a todos orgulhosos cm seu choro inhééé e seus olhos azuis. Sua cabeleira, entretanto, não chegava à metade da outra ganha pela colega, a maior do bairro. Além de tudo andava e falava papá e mamã. Nem por isso ficávamos tristes. Não se pode chamar a esse sentimento menor tristeza. Apenas um pouco diminuídos, porém contentes porque tínhamos ganho o que realmente pedimos e satisfazia os nossos desejos. Afinal de contas, ao fim do dia os brinquedos todos já haviam cumprido a sua missão e tanto o Cadilac quanto a choradeira de cabelos louros e olhos azuis, tanto o revólver-3 niquelado quanto meu caminhão-tanque de madeira, tanto a pistolinha plástica quanto a boneca falante de cabelos longos já estavam saturando com se4uas presenças. Era bom sentir-se esvaziar toda aquela sensação criada na noite anterior, quando até o ar encheu-se de expectativa. Existem certas noites não-comuns: a noite de Natal é uma delas. As ocasiões se fazem conforme nosso comportamento inferior. A noite de Natal espera-se, tem de ser estrelada, o céu de ampla escuridão chamuscado de luzes. As estrelas têm que cintilar. Sem aquelas oscilações luzidias elas nada seriam, luz-morta. Se possível for, que suas luminosidades se transformem em arco-íris. Tem uma estrela, fico olhando, que muda de cor, fugidia. Rapidamente, a gente nem sequer classificou ainda a cor e ela transfigura-se. Assim, com rapidez dinâmica, a estrela é simultaneamente verde-vermelha-


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amarela-branca. amarela-verde-branca-vermelha. Nos intervalos outras cores aparecem indefinidas. A noite de Natal teria que ter todas as suas estrelas como esse solitário arco-íris, coloridas.

Mesmo que chova, não tem importância. A noite seria, ainda assim, bela e cheia de magia. As gotas de chuva trespassadas por artificiais luminosos transformam-se em brilhantes. Os enfeites da praça, ornamentos de presépio, apesar de molhados hipnotizam sugestivamente. Fieiras de lâmpadas coloridas poste a poste formam uma gigante estrela-dalva, a cauda apontando o horizonte. As comuns luzes de postes deitam seu clarão na água correndo e com ela se perdem na escuridão. Mesmo assim, chovendo, não tem importância: a noite é cheia e bela. Das casas surgem longínquas cores-vivas das árvores de Natal. Pinheiros artificiais verdes, dourados ou de prata, exibem bolas cintilantes e frágeis. Ornamentos exóticos e modernos imitam a terna cena da estrebaria. Um galo solitário, várias estrelas, alguns carneiros pastando despreocupadamente, a cercar o menino entre palhas. No gesso, fielmente traduzidos, os olhares admirados e respeitosos, dos pais, dos pastores. Os Reis Magos aproximam-se dia a dia, ajudados por nós. O pisca-pisca das lâmpadas verdes e vermelhas cinematografam a imagem. A gente cresce e as figuras crescem também, em dimensão, valor, interpretação. Os personagens, sim, são imutáveis e varam o tempo. A noite de Natal deveria ter seu céu de estrelas manchado, coloridas, o negrume chamuscado pelo arco-íris. Mas mesmo chovendo não tem tanta importância: a noite ainda assim é bela como a magia das gotas trespassadas pelas lâmpadas e suas luzes. É manhã e estou só com meus parentes. Alguma ou outra tia apenas. Mamãe permaneceu a noite toda na sala, sempre chorando de intervalos a intervalos. Eu também corajosamente fiquei a seu lado, pois sou o mais idoso. Agora, diz minha velha, sou o homem da família. Daqui a pouco as crianças da redondeza vão sair à rua, barulhentas, mostrar a mais nova conquista. As bonecas rosadas, os automóveis coloridos, os revólveres. Serão iguais os brinquedos, eu sei, serão iguais. A boneca, por exemplo, além de andar e falar já de fazer outra coisa. Talvez faça pipi ou se alimente de mamadeira. Talvez sorria e pisque o olho azul (ou verde?), mas será a mesma. O


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automóvel, que terá de novo um automóvel? Eles sempre vêm com novidades. Novas alterações. Terá alguma cor mais berrante e mais variada. As quatro rodas, entretanto, vão traí-lo e mostrar que até o Cadilac é o mesmo. O revólver vai dar mais tiros? O revólver, esse sim se transforma. Pode ser que seja uma metralhadora ou um canhão. Se o fizerem com muita perfeição é capaz de matar até. Bem, mesmo que mude, sua finalidade será exatamente a mesma.

Na hora de carregar o caixão, igualmente como o mais velho sou chamado. Sinto-me por essas tantas coisas, orgulhoso como o meu procedimento. Mamãe diz que estou cumprindo rigorosamente bem asminhas obrigações. Não é de todo infeliz este momento da minha vida. O trajeto é curto. Apenas uma calçada em declive (o que ajuda um pouco) até ao carro preto. Lá fora minha vista arde ante o vigor da luz do sol. É um dia quente que se anuncia. O restante das pessoas ajuda, um ou outro vizinho mete a cabeça curiosa na janela. Se eles dão adeus é apenas com os olhos ou com a mente, eu nada vejo. Meus irmãos dormem, Deixemos os outros dormirem, que já basta a tristeza de acordar sem os presentes empacotados sob a cama. Basta ter tido esta última noite de Papai Noel ausente. Nos próximos anos eles já serão crescidos e saberão entender certas coisas. Basta ter de aturar o dia todo a vizinhança desfilando seus brinquedos. Deixem-nos dormir. À sala retorno sozinho após ver o último carro do cortejo sumir na esquina. Uma mesa vazia, algumas pétalas caídas no chão. Comprimido no canto da sala observo o vento carregá-las deixando apenas seu perfume. Lá fora a luminosidade vigorosa do sol faz arder a minha vista. Nesse dia quente que se anuncia as coisas me parecem mais áridas. A paisagem mais desfigurada.


SEGUNDO NATAL

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A solidão é o fato central e inevitável da existência humana Thomas Wolfe. A história é muito simples. É uma história de amor. E se está guardada foi justamente por ter ocorrido no Natal. No Natal, num aeroporto. O caso é o seguinte: o herói sai da província para a cidade grande. Na mesa do bar a solidão espreita. Noutra mesa uma mulher também só provoca aquela atração simultânea de olhares. A atração é fácil e as palavras saem fluentes, unidas: - Sozinha? Foi a gota necessária. Falou e falou. Eu estava desacostumado aos rostos ovais, aos olhos claros. À palestra desinteressante, de assuntos vários. Eu estava só. O seu nome? - Um nome comum, hoje em dia. Adivinha. Os nomes comuns: marias, joanas, paulas (Paula não). que diabo! Sou um péssimo adivinhador. Nunca fui disso. - Vera Lúcia. Comum não sei pra quem. Eu estava desacostumado. A solidão faz dessas coisas. Vera Lúcia estava no aeroporto, por que mesmo? - Eu queria ser aeromoça, mamãe não deixou. Venho, sempre que posso ao aeroporto. Ver aviões. Acho lindo as aeromoças, comandante, pilotos e comissários descerem, Meio cansados, mas sempre felizes. Os rostos, risos, alegres. Aviador eu nunca quis ser. Mas já quis ser marujo, limpar latrinas e levar almoço ao comandante só para conhecer o mundo. Europa, Estados Unidos, Suécia. O herói sempre foi louco pela Suécia O frio, as louras, os olhos azuis e a pele salpicada de sardas. A


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liberdade para quem vive preso desde criança. É capaz de o herói morrer sem ver a Suécia, sem sentir o cheiro da liberdade. Liberdade mesmo, de dizer o que sente, o que quer, embora torto. - E você, está só? Mas como você pode deixar a família em casa e vir para a rua só? Não posso. Não, infelizmente não posso passar o Natal com você. Vá pra casa. Que idéia! Passar o Natal na praia, vendo macumba, aí, não posso acreditar. Vera não sabe que o solitário mesmo rodeado de gente está só por dentro. Alma, carne, cérebro. Só. Solidão não se apalpa. É um fluído que acompanha a gente desde que um dia se achegou. Nunca mais abandona, enraizada no todo. Mesmo ali, ma mesa de alguns chopes, tinha deixado um amigo para falar com Cera. E, no entanto eu estava só. Ele estava só. Mesmo bebendo com amigos a solidão tava dentro de mim. Aliás, teve um Natal pior. No Paraná, nas terras frias, quando a solidão me levava pelos caminhos das putas, um Natal assim quase. A cidade menos que uma cidade. Os cabarés abordados de marinheiros, estrangeiros na maioria. A alegria do Natal invadia todo o mundo presente. Quem poderia jurar que ali estavam em comunhão? Ninguém, aí, pode afiançar que aquilo tudo não era uma cambada de solitários. Bebendo não mais pelo Natal que por sua solidão. Comemorando a solidão mais que ao Natal. Os marujos, quão longínquas era suas terras? As putas mesmo, apenas algumas eram dali. Outras do sul e outras argentinas e uruguaias. Atravessando terras em busca do ouro. Eldorado inexistente. O herói ali participando dos caminhos por onde levam solidões. Agora no aeroporto. Também aquela mania de aeroporto, rodoviárias e cais do porto, aonde parte gente, aonde gente chega, é um mal provocado pelo só. Não é Vera? - Minha vontade era de viajar. Viajar, viajar. Que horas são? Está quase na hora de ir para casa. Você sabe, o pessoal me espera. Você quer ser meu amigo? Toma aqui o meu telefone. Liga pra mim.


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Você não sabe a imensidão do prazer que me deu. conhecê-lo. Olha foi amá-lo um pouco. Breve, breve, mas amor. Um beijo, na face. Breve, breve. O herói mortifica-se com a brevidade do amor. Curto que só o caminho da vida. Agora sim, solitaríssimo. Com a ida de Vera Lúcia, de volta à mesa. Satisfazer a curiosidade do amigo: - Velho, deixa pra lá. Não deu nada.

- Ela é lindinha. Bonita mesmo. Os olhos, verdes? Quase. Castanhos claros. O corpo: magro, mas bem feito. E que pernas bem arrumadas ela tem, hem? Você não quer me contar, mas deu coisa, não deu? A solidão machuca a gente. O herói na província é herói conhecido. Onde quer que esteja encontra amigos. No bar, na esquina. Na igreja, missa do galo, ta todo mundo lá. Nas ruas, nas praças. - Feliz natal. - Pra você também. Na cidade grande as imensidões dos edifícios de cimento, as árvores de natal de 20 andares de altura. As ornamentações de ruas, nas praças os presépios grandiosos e modernos. As figuras são todas diferentes. Luminosas, fogos de artifício coloridos. Nas faces de todo mundo, também a felicidade penetra e faz-se sentir. - Feliz Natal. - Pra você também. O cumprimento existe. Os brindes, a proximidade do fim-de-ano, as amizades breves. Feitas nos bares. As famílias reúnem-se nas ruas. Passar o Natal na rua. Cear num restaurante famoso, bem, comida tradicional. Peru recheado. Nozes, passas, castanhas, tudo como Jesus talvez quisesse que o mundo fosse. Não apenas um dia. Jesus conhece


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as impossibilidades e passou a por elas. Isso, entretanto, ocorre apenas com os sós. É quem tem a liberdade de ver as coisas, enquanto os outros passam por elas. Ver, enxergar, sentir. Somente o só consegue. - O amigão vai me desculpar, mas tenho que cumprir as obrigações familiares. Bom Natal, amigão! - Pra você também.

Agora, a rua. Rua, andar, passear, rir, acenar. Ver vitrines, brinquedos incríveis: a metralhadora que faz barulho real e bota fogo pelos canos. o foguete Saturno que sobe de verdade. a pistola que atira um jato d’água a cinco metros. e outros mais difíceis de explicar. A noite vai sendo engolida pela madrugada, mas as luzes não se apagam nem dos rostos que restam. Na praia dançam furiosamente os macumbeiros comemorando o nascimento de Jesus. Iemanjá, sei lá. A areia revolvida pelos brancos e negros cuja fé é abalada pelo misticismo, procuram resolver seus negócios e dificuldades através dos despachos e serviços. Ilhotas de velas, flores, tigelas com farinha, dendê, cachaça. Oferecidos à Rainha do Mar. A líder de todos Oxóssis, Oguns, ebiris, xaxarás. Maior que Oxalás, Oxuns e Ijexás. A visão do solitário viaja por todos os mares. Navega na noite em busca de amor. Não fora a cidade grande ruim de cabaré. Quantas gentes vêm à procura do mesmo? Sentados, outro bar, outras bebidas (ou as mesmas?), o herói está acompanhando somente do telefone de Vera Lúcia. É bom ligar essa hora e desejar Feliz Natal. - Pra você também. Agora pude ler mais demoradamente o discurso que Vera Lúcia fez aos seus colegas de trabalho. Erros diversos, caligrafia meio ruim. O amor breve não vê isso. Só quem nota defeitos no breve querer é o cidadão respeitável e casadouro. Puteiro de fama e vontade não vê essas coisas.


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Queridos colegas. São poucas as palavras, mais não poderia deixar de dizê-las. Porém, só a vontade de desejar a vós todos e também a todos os familiares que este Natal seja a conclusão de vossos desejos irrealizados durante o decorrer do ano. Que a paz que Jesus trouxe no coração seja convosco a companheira. Baboseiras sem dúvida nenhuma. E pensar que o herói teve de elogiar isto tudo. Pra ver os catedráticos que o amor não tem gramática. Em compensação pouco se lembra dos versos que fez por solicitação de Vera. Poeta não foi, não é, a não ser nos dias de dor de corno em dias de serestas, coisas que a cidade grande não tem ou se tem são engolidas pela vida. A vida rápida, cansada e cheia de problemas, trambolhos que levam mais rápido ao cemitério. Mais rápido e mais leve: Vim ver o mar, a solidão, o ar, Encontrei o breve amor da brisa: Rápido como a felicidade do ver, Ameno como o riso da Monalisa. Louca e incerta – a vida do só Une-se a todas as outras vidas, Como as vidas que o Natal encerra: Imaginárias de abundância e paz, Alegres como a paz na guerra. Já madrugada ou já quase dia. É reconfortante ver ao longe, onde o mar engole o céu em coito, os embriões da alvorada. Luzes filtradas através das nuvens violentando suas entranhas lançam-se aos céus. Os postes escondem vergonhosos seus pequenos frutos ante o sol. Em breve estarão cegos. A praia está quase deserta, alguns bêbados, alguns amantes. O resto de uma população imensa cuja circulação deixou marcas nas calçadas, ruas, areias. O Natal é ido.


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O herói encosta-se no cimento, deita-se no chão e paga por todos os seus pecados naquele momento da purificação. Uma mulher ao lado: empregada, puta ou patroa, ou mulher simplesmente. (Se desse tempo a gente ia dar uma trepada). Ai, que a vida é assim mesmo: quem muito reclama de solidão acaba encontrando. Não pode estar só agora porque a sua mão se mexe, apalpa, acaricia. Sua boca beija, é beijada, ai. Os amores se chocam e o breve deixou de ser: é consistente, palpável, fácil e bom. Quem nasceu mesmo? - Meu amor vai me perdoar, mas eu tenho que ir. Acontece que eu disse em casa que ia ver a macumba. E a macumba já acabou. Não tenho telefone. Não tenho endereço. Esquece. A bebida ajuda o herói a dar de ombros àquelas palavras mal ditas. Não entendeu mais nada sobre o amor e desistiu. Dentro em pouco o sol estaria alto. As crianças encheriam as praças com seus novos brinquedos. Para evitar certas lembranças do passado seria melhor ir dormir. Empreender a caminhada de volta. Nem mais nem menos só que antes. - Ó meu. Teve bom Natal? Tem fogo, por favor? - Pra você também. Em casa iriam comentar a ausência. Mas os parentes já sabem dos seus desvios. Não que dar ou receber presentes, abraços, beijos. Congratulações e desejos de felicidades. Ainda mais de quem tem pensamentos tortos do que seja tudo isso. O herói, porém, não se atreve a definir o que é felicidade visto que todos que o tentaram estreparam-se em redondo. Mas o certo é que não é aquilo, é? O Natal é morto. Ademais ninguém pode afirmar que aquela noite de Natal não tenha sido feliz. O herói encontrou dois amores. Um breve e outro com promessas de longevidade. Ou os dois breves? Encontrou algumas almas irmãs, sós. Encontrou mesmo? Bebeu a bebida que quis, dinheiro no bolso. Quisesse toparia alguma putinha no meio da


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rua e ia trepar quando Jesus nascia. Mas não é disso. Se por acaso alguém reclamasse de viver só: Não é da conta. A solidão é também um caminho para a felicidade, a vida. Nem continência nem abstinência: solidão.

Quem se atreve a meter o bedelho aonde não é chamado? Por exemplo, ali, naquele mesmo instante, o sol era uma bola de fogo vermelha. Sangue. Luz. E era felicidade ver o sol naquele momento supremo, em que se pode vê-lo. Ai. Quem tem com isso? O lugar ao lado do herói está vazio. Mas a marca da bunda da mulher está presente. É capaz de seu calor ainda estar ali, vivo. Mesmo que não, sua presença é existente. Ou a sua ausência está presente? Até que esta já tenha sumido da memória Vera Lúcia é realidade: o telefone material está nas mãos. A sua letra irregular, seus erros, sua voz. Se quiser posso ligar para ela agora mesmo. - Pra você também. A caminhada de volta leva o herói pela cidade. Garis limpam as ruas, jornalistas gritam seus jornais. Os ônibus já trafegam em grande velocidade. Em breve, a casa. Mesmo no Natal as figuras do ônibus a esta altura são simples: uns estão a caminho do trabalho, outros a caminho de casa. Ambos os tipos sonolentos: os que saem a cara ainda mostra restos de sono, os que caminham para a cama pendem as cabeças. O ônibus aproveita e lhes prega uma peça. As sacudidelas, curvas em velocidade, fazer com que as cabeças circulem loucas sobre o pescoço. Dir-se-ia que são capazes de voar a qualquer instante. Rolar pelo chão a caminho da porta e finalmente perderem-se no asfalto. O motorista pouco liga. Um passageiro desce ou outro sobe. As trocas se fazem satisfeitas. Uma única mulher tem suas pernas devoradas pelos poucos olhos abertos. Só as pernas? Suas entranhas, talvez. Ai, que o herói está cansado. Os ombros pesados, as pálpebras caídas. O corpo meio pro mole não resiste à vida noturna e mundana. Vida de corno! Que Natal!


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O herói sai da província e é engolido pela cidade grande. A solidão espreita nas mesas dos bares. Curto que nem o caminho da vida o amor se faz presente. Breve, breve, mortificando o herói a brevidade do amor. A vontade é viajar, viajar. Fugir, fugir, o prazer imenso de fugir. O solitário mesmo com mundo de gente em redor é só por dentro, no coração, nas almas, carnes, entranhas. Só, só. A solidão quando chega nunca mais abandona a gente. Impalpável, é um fluído sem cheiro, sabor, paladar, odor. Mesmo com amigos a solidão entra na gente e acompanha o corpo até a terra. O herói na província é conhecido. Na cidade grande árvores de Natal com 20 andares de altura, as ornamentações, as árvores salpicadas de luzes coloridas, na cidade grande o herói é engolido, deglutido, defecado. Nem é herói. Somente o solitário consegue tudo ver. O cumprimento, as amizades de bar, a fuga, o cumprimento é fuga, ceias em restaurantes lindos, perus com maçãs no bico. Comida tradicional. Como deveria ter o ano todo, Jesus era capaz de querer assim? O solitário tem a liberdade de ver as coisas nuas. Até o Natal quando ninguém vê. Ofuscados pelos brinquedos modernos: o revólver que mata mesmo! Luminosos, fogos de artifícios, fazem forçosamente penetrar na pele a felicidade. Felicidade mesmo? A visão do solitário navega nas noites, viajando pelos mares em busca do amor, não fora a grande cidade pecadora passa o amor. Ruim que só bicho de pé. Não adianta buscar remédios em alguns Oguns, Oxósses, Orixás. Iemanjá não resolve solidão, nem ebiris, ijexás. Queridos colegas são poucas as palavras. Vim ver o mar, a solidão, o ar, Encontrei o breve amor da brisa. O herói paga naquele momento por todos os seus pecados. A purificação na areia. Ver o sol, bola de fogo, desflorar as nuvens no


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infinito. Ai, que a vida é assim mesmo. Os comentários da ausência, os desvios. Nem presentes nem abraços nem congratulações. O herói só faz com desconhecidos. A solidão tem dessas coisas. - Bom natal, amigão. - Pra você também.


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O AUTOR Salomão Rovedo (1942), de formação cultural em São Luis (MA), mora no Rio de Janeiro desde a década de 1960.

Poesias: Abertura Poética (Antologia), Walmir Ayala/César de Araújo, 1975; Tributo, 1980; 12 Poetas Alternativos (Antologia), Leila Míccolis/Tanussi, 1981; Chuva Fina (Antologia), Leila Míccolis/Tanussi Cardoso, 1982; Folguedos, c/Xilos de Marcelo Soares,1983; Erótica (Poesia), c/Xilos de Marcelo Soares, 1984; Livro das Sete Canções (Poesia), 1987. Em e-Books: Poesia: Porca elegia, 7 canções, Sentimental, Amaricanto, bluesia, Mel, Espelho de Venus, 4 Quartetos para a amada cidade de São Luis, 6 Rocks Matutos, Amor a São Luis e ódio, Sonetos de Abgar Renault (antologia), Glosas Escabrosas (c/Xilos de Marcelo Soares). Contos: O sonhador, Sonja Sonrisal, A apaixonada de Beethoven, Arte de criar periquitos, A estrela ambulante, O breve reinado das donzelas. Outros: Cervantes e Quixote (artigos), Gardênia (romance), Stefan Zweig (Antologia), Ilha, romance, Meu caderno de Sylvia Plath (Antologia), Viagem em torno de Dom Quixote (Pesquisa), 3 x Gullar (Ficção), Literatura de Cordel (Ensaio), que estão disponíveis grátis na Internet e em: http://www.dominiopublico.gov.br Foto: Priscila Rovedo

Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons AtribuiçãoCompartilhamento pela mesma licença 2.5 Brazil. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/ ou envie uma carta para Creative Commons, 559 Nathan Abbott Way, Stanford, California 94305, USA. Proibida a impressão e comercialização sem autorização do autor. Obs: Após a morte do autor os direitos autorais devem retornar aos herdeiros naturais.


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