Salomão Rovedo Sá de João Pessoa
O COMETA E OS CANTADORES (São Paulo, 1985)
ORÍGENES LESSA AUTOR E PERSONAGEM DE CORDEL (São Paulo, 1986)
Rio de Janeiro 2010
Salomão Rovedo (Poeta bissexto)
Sá de João Pessoa (Poeta popular)
Marcelo Soares (Gravurista e ilustrador)
*** O Cometa de Halley na Voz dos Poetas Populares (Publicado no D. O. Leitura, São Paulo, 4 (40) set. 1985)
*** Sá de João Pessoa (Poeta popular)
*** Orígenes Lessa, autor e personagem de cordel (Publicado no D. O. Leitura, São Paulo, 5 (51) ago. 1986)
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Rio de Janeiro, Cachambi Janeiro/Fevereiro de 2010
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ÍNDICE
1. Introdução, pg. 5 2. O Cometa de Halley na voz dos poetas populares, pg. 9 3. O Cometa_- Leandro Gomes de Barros (Folheto), pg. 40 4. Halley! – Sá de João Pessoa (Folheto), pg. 48 5. Pronósticos de Falb - Liborio Salgado (Pliego), pg. 57 6. Cadê o Halley? – Sá de João Pessoa (Folheto), pg. 60 7. Imagens do folheto O COMETA, de 1910, pg. 68 8. Orígenes Lessa, autor e personagem de cordel, pg. 73 9. Vida e morte de Orígenes Lessa (Folheto), pg. 83 10. O Autor, pg. 98
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O COMETA DE HALLEY E OS POETAS POPULARES INTRODUÇÃO Sá de João Pessoa, poeta popular (*) Este artigo, publicado em setembro de 1985 no jornal D. O. Leitura, sob a firma do escritor Salomão Rovedo, antecipava a volta do Cometa Halley, que por aqui tinha passado em 1910. Através da comparação do meu folheto de cordel ―Halley‖ com outro de igual registro, intitulado ―O Cometa‖ (acrescido aqui em apêndice), sendo este da lavra do ―Príncipe dos Poetas‖, meu conterrâneo Leandro Gomes de Barros. Para mim a reportagem feita pelo Salomão Rovedo é até certo ponto honrosa, mas fica logo patente a desigualdade de nível entre este modesto e esforçado poeta e o talento inigualável e vasto de Leandro Gomes de Barros, cuja obra é uma enciclopédia de temas, enriquecida por um vocabulário amplo, pela rima variada, pelo ritmo cadenciado que antevê a cantoria. E quem depois de Leandro Gomes de Barros pôde superar o registro de sua época com o talento dele, que, para amenizar a dor do povo, transformava a tragédia em comédia? Quem teria o talento que Leandro Gomes de Barros punha no que escrevia, a ponto de troçar das situações de aparente farsa, fazendo-a veículo das críticas mais sagazes e ferinas?
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Portanto, me honra estar ao lado do poeta, mas dedico a Leandro Gomes de Barros toda a minha reverência a um dos maiores poetas que tive o prazer e a alegria de ler. ****** A princípio pode-se julgar que a passagem dos cometas são aparições de interesse único da ciência, mas é notória a comoção que os fenômenos naturais produzem no povo, desde os mais remotos tempos. A trajetória do Cometa Halley pela Terra mereceu registro desde as mais antigas civilizações, porque era um fato único, presenciado sob o mesmo céu durante dias e dias, o que qualificava a passagem como uma ocorrência extraordinária. Na internet encontrei um artigo interessante, do qual tirei uns pedaços: HALLEY: NOSSO AMIGO TERRESTRE (excertos)
―Porém, a tradição é forte e sobrevive às descobertas mais recentes. Em 1910, quando ocorreu a passagem do Cometa Halley, acreditava-se que chegaria o fim do mundo. Esta idéia provocou o suicídio de algumas pessoas que não levaram em consideração o fato de que em 1811 coisas boas aconteceram. Ainda em 1910, as pessoas acreditavam que, se a cauda do cometa encostasse na Terra, provocaria o fim do mundo; ou que os gases que o envolviam eram capazes de nos envenenar. Em consequência, até epidemias de febre amarela foram atribuídas ao cometa. (...) ―Em 1991 foi noticiado que a aparição de 1986 pode ter sido a última. Os astrônomos Olivier Hainaut e Alain Smette descobriram, ao fotografar o cometa, que havia apenas uma mancha de luz brilhante no lugar onde ele deveria estar. Esta descoberta pode ser o anúncio do fim de nosso amigo terrestre! (...)
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―Assim como cometas chegam ao fim, outros corpos celestes também nascem. Mas do inesquecível Halley, causador de mitos, tradições e novos conhecimentos, certamente sentiremos falta! ALGUNS DADOS CURIOSOS
- Entrada no sistema solar: Desconhecida - Aparição mais antiga: 239aC - Aparições até 1986 (não há referência sobre 16 aC): 29 - Período Orbital: 76,7 anos - Período orbital mais curto: 74,42 anos (1835-1910) - Período orbital mais longo: 79,4 anos (451-530) - Maior aproximação da Terra: 6.000.000 Km (11/4/837) - A cauda mais longa calculada: 105º (19/5/1910) - Maiores períodos de observação: 650 dias (1835) e 645 dias (1910) - A maior magnitude aparente: - 3,5 (11/4/837) - Próxima aparição: 2061/2062 (Revista de Ciência On-line, maio de 2002: http://www.cienciaonline.org/)
Agora, imagine-se o nosso país em 1910, quando a população tomou ciência da vinda do Cometa Halley, nosso céu mais límpido, não
havia poluição
atmosférica, era realmente
impressionante ver aquele astro ali diariamente sobre nossas cabeças. No interior então nem se fala. A população ainda emprenhada de religiosidade e crendice, com medos tais que qualquer unha encravada, qualquer topada numa pedra era sinal de castigo, não podia crer noutra coisa de que ali mesmo seria o fim do mundo.
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Quantos pecados não foram confessados, quantas faltas perdoadas, quantas rezas e missas se fez pro bom Deus não permitir tanta desgraça! Pois atiçou também a cabeça dos poetas e deu no que deu. Aproveite, pois o registro de duas aparições do Cometa-Deus e guarde tudo pro mode de que, se aquela outra profecia de que foi esta a última passagem do Cometa Halley pela Terra não vingar, este livrote esteja presente lá pelas bandas de 2061, fazendo muita gente sorrir ainda mais de nossas matutas e fiéis crendices. Amém! Rio de Janeiro, Cachambi, Carnaval de 2010. PS: No entanto, a passagem do Halley pelo Brasil em 1986 foi um espetáculo desastroso. O velho cometa estava de farol baixo, a poluição sobrevoava os céus de nosso país, enfim, o que era pra se ver não se viu nada. Aí o poeta se aporrinhou e descreveu essa esculhambação toda em ―Cadê o Cometa de Halley? Ninguém sabe ninguém viu!‖ Folheto esse que vai aqui atrelado a reboque deste opúsculo. Deo gratiae. (*) Todo mundo sabe que Salomão Rovedo e Sá de João Pessoa são um mesmo corpo. Mas são almas diferentes. Um nasceu em João Pessoa, outro no Rio Tinto. Um se fez poeta em São Luis do Maranhão, outro no Rio de Janeiro, na Feira dos Paraíbas. Um vive de beber cerveja, outro vai de cachacinha e tiquira. Duas coisas, porém, unem os vates: o amor pela vida e a veneração por mulheres. Ah, sim, em comum ambos esperam ser enterrados na beira do mar, cobertos, de preferência, pelos areias alvas dos lençóis maranhenses.
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O Cometa de Halley na voz dos poetas populares A próxima chegada do cometa de Halley, além de despertar a atenção dos cientistas e dos supersticiosos, já é responsável também ao menos por uma bonita produção da inesgotável poesia popular do Nordeste que, como no passado, não deixou de saudar a vinda desse fugidio companheiro do nosso planeta.
Lenda ou não, a verdade é que a história conta que imperadores
morriam,
epidemias
pestilentas
arrasavam
populações, cataclismos varriam continentes e milhares de males menores assolavam o cotidiano do temeroso cidadão quando o Cometa de Halley assomava no infinito da vista com sua cabeleira luminosa. Antes mesmo de o astrônomo Edmund Halley localizar o bólide, com o auxílio de uma rústica luneta, os danos causados em conseqüência da sua passagem a cada 76 anos enchem dezenas de volumes da história da humanidade. Atila, o Rei dos Hunos, tem sua morte vinculada ao cometa; Napoleão Bonaparte, ao contrário, tal qual Jesus Cristo, teve o nascimento iluminado por um cometa, não necessariamente o Halley; o Imperador romano Nero teve uma de suas mais graves crises possessivas ao saber que o cometa iria ―ocupar‖ o céu durante muito tempo, atraindo para si todas as atenções; Maomé, Luiz II, Carlos Magno e Valentiniano, de uma forma ou de outra, tiveram seus nomes associados a um famoso bólide... Tanta diatribe a um fenômeno tão natural trouxe conseqüências e deixou seqüelas: Afonso VI volta e meia
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disparava impotente sua pistola na direção do Halley; o próprio Nero, seguindo as maluquices astrológicas de um farsante, mandou assassinar vários nobres. Quantos e quantos outros crimes foram cometidos em seu nome! Agora o Rei dos Cometas está de novo de volta. Algumas gerações só terão essa chance de vê-lo, mas, direta ou indiretamente, Halley há de ser o causador de enormes transmutações na humanidade. O poeta está alerta para o fato...
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1910 – BRASIL NORDESTE O Cometa de Halley já aponta no horizonte do infinito com sua cauda majestosa. Quando da sua última aparição, lá pelos idos de 1910, trouxe consigo um contingente de elementos mágicos que nocautearam com seus mistérios e castigos toda a população interiorana. Esse registro folclórico recebeu da imprensa, dos escritores e poetas da época um imensurável aporte histórico, cuja trajetória se perdeu no esquecimento dos anos. Naquela época uma poesia nascente, que veio a ser chamada poesia popular – e mais recentemente poesia (ou
literatura) de cordel – tomava conta dos sertões nordestinos, ocupando o espaço tanto literário quanto jornalístico no campo virgem da comunicação. Essa poesia, editada em folhas soltas ou em pequenos folhetos, era a cartilha, o ABC, o rádio e o jornal do homem do Interior. Era o veículo do aprendizado e da notícia, era como o ouvi dizer se transmitia, como as novidades de outras terras chegavam ao coração do Brasil. Também o Cometa de Halley teve merecidas linhas poéticas por causa da sua aparição, mas nem todos os poetas lhe devotavam o devido respeito – e, se devotava, deixava sempre uma porta aberta para o absurdo de sobreviver ao que seria, sem dúvida, na mente pura do sertanejo, uma verdadeira (e inevitável) catástrofe.
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Dentre esses poetas atrevidos destaca-se a figura de Leandro Gomes de Barros (1860-1918), poeta paraibano que muitos consideram o pai da poesia popular brasileira, ao lado de outros poucos contemporâneos. O poeta soube como ninguém encarar o fato científico da passagem do Cometa de Halley com rara felicidade, levando à população a verdade mais simples, em forma de humor, desnudada
das
muitas
histórias
que
escureciam
o
conhecimento humano, muitas vezes criadas por dogmas religiosos dominadores. Leandro não deu a mínima bola para o mistério, nem tampouco respeitou as mazelas oferecidas por falsos profetas: tratou o fato com uma simplicidade e humor dignos de um grande poeta. Impossível se destacar entre as obras de Leandro Gomes de Barros aquela que é mais engraçada: ―Casamento a prestação‖ “O casamento do velho e um desastre na festa‖ ―O casamento hoje em dia‖ “O azar na casa do funileiro‖ ―Os coletores da Great Western‖ ―O dez-réis do Governo‖
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―O dinheiro‖ ―O Fiscal e a lagarta‖ ―A dor de barriga de um noivo‖ ―O filho da aguardente‖ E essa maravilha de criatividade e concisão que é ―A criação da aguardente‖. São obras de época, mas a maioria, porém, resistindo ao tempo, chega até nós com admirável atualidade. Se agora mesmo, de volta da longa viagem de 76 anos, o Cometa de Halley enfeita de novo os céus com sua cauda brilhante, a sua passagem em 1910 recebeu o registro do poeta com ―O Cometa‖, uma obra-prima de humor. O natural respeito do povo nordestino por tudo quanto é misterioso, a passividade religiosa diante da fatalidade, a admiração solene pelas coisas desconhecidas, servem a Leandro Gomes de Barros como pano de fundo para quadros impressionantes. O poeta também receita – como todos – os efeitos desastrosos e as desgraças possíveis de suceder com a passagem do cometa. E assim inicia o relato: Caro leitor vou contar-lhe O que foi que sucedeu-me
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O medo enorme que tive Que todo o corpo tremeu-me Para falar-lhe a verdade Digo que o medo venceu-me. Com essa introdução bem característica, o poeta obtém a confiança do leitor. Afinal, também ele é um igual, tem os mesmos pontos fracos, os mesmos receios, treme de medo... Eu andava aos meus negócios Na cidade de Natal No hotel que hospedei-me Apareceu um jornal Que dizia que no céu Se divulgava um sinal. O sinal era o cometa Que deveria aparecer Em maio, no dia 18, Tudo havia de morrer Aí sentei-me no banco, Principiei a gemer. Aí as coisas começam a acontecer mais claramente, mais de acordo com a realidade dos fatos. Não adiantava nada ficar ali se lamentando, urgia agir, que o fim do mundo se aproximava:
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Disse ao dono do hotel: Senhor eu estou resolvido Nosso mundo é destruído, Visto não durar um mês Não pago o que tenho comido. A dona da casa disse-me: O senhor está enganado, Se eu for para o outro mundo, O cobre vai embolsado, Eu subo porém embaixo Não deixo nada fiado. O ser humano começa a ser desnudado. Mesmo que o mundo se acabe, mesmo que na morte as riquezas percam o seu valor, prevalece o agarramento às coisas materiais. Me resolvi a pagar Foi danado esse processo Não paguei, tomaram à força O que é verdade confesso Se havia de morrer de desgraça Antes morrer de sucesso. Tratei de tomar o trem E seguir minha viagem Disse: vai tudo morrer
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Para que comprar passagem? Inglês vai perder a vida Perca logo essa bobagem. O condutor, porém, não acredita nessa coisa de fim do mundo e cumpre com rigor a sua obrigação: ―Não comprou? Perguntou ele, / Pois pague o excesso cá.‖ Eu lhe disse: condutor O mundo vai se acabar, Para que quer mais dinheiro, É para lhe atrapalhar? A mortalha não tem bolso, Onde é que o pode levar? Não tendo sucesso nos negócios na rua, chega o poeta em casa, como sempre cansado da faina diária. Nada lhe foi bem hoje... Chego em casa muito triste, Achei a mulher trombuda, Perguntei: filha o que tem? Respondeu-me carrancuda: Ora o 18 de maio O mundo velho se muda.
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Atacado de medo, o poeta empalidece ante essa notícia tão desagradável. Pensa numa venda que fez fiado e que certamente jamais receberá... Gemi até ficar rouco, Fiquei logo descorado Depois o sangue subiu-me Que fiquei quase encarnado Imaginando num livro Que um freguês levou fiado. Perguntei: tem jantar pronto? Venho com fome e cansado, Desde ontem, respondeu-me, Que o fogão está apagado, Devido a esse cometa Não querem vender fiado. A aparição celestial muda todo o movimento da cidade. Além de não quererem vender mais fiado, os credores apertam a cobrança, pois, afinal, já que vai tudo se acabar, é melhor ir desta pra melhor numa boa, cheio de dinheiro! Eu estava tirando as botas Quando chegou um caixeiro, Esse vinha com uma conta Que eu devia ao marinheiro,
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Eu disse: vai morrer tudo, Seu patrão quer mais dinheiro? Fui falar um fiadinho, Que eu estava de olho fundo, O marinheiro me disse: Já por ali vagabundo! Eu disse: venda seu Zé, Que eu pago no outro mundo. O ―marinheiro‖ (dono da quitanda) não arrisca nada, mas o nosso poeta alteia a voz e não hesita em rogar uma praga: A 19 de maio, Quando acabar-se o barulho, Eu hei de ver vosmecê Que o senhor vai no embrulho Só se esconder-se aqui, Debaixo de algum basculho. E exige: Quero 10 quilos de carne, Uma caixa de sabão, Quatro cuias de farinha, Doze litros de feijão, Quero um barril de aguardente, Açúcar, café e pão.
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Manteiga, azeite e toucinho, Bacalhau e bolachinhas, Vinagre, cebola e alho, Vinte latas de sardinhas, Duas latas de azeitonas, Umas dezoito tainhas. O marinheiro me olhou E exclamou: Oh! Desgraçado! Então inda achas pouco Os que já tens enganado, Queres chegar no inferno Com isso mais no costado? O poeta esperneia, chia, mas não adianta. O quitandeiro acaba por expulsá-lo dali, xingando-o de vagabundo e outros impropérios mais. Novas pragas se sucedem na retirada forçada. Vencido, o poeta retorna ao lar se lamentando, mas sempre em busca de uma solução honrosa para tão inesperado drama: Voltei e disse a mulher: Minha velha está danado O cometa vem aí De chapéu-de-sol armado, Creio que no dia 18
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Lá vai o mundo equipado. Deixe ir lá como quiser, A coisa vai a capricho, Comer nem se trata nele Nossa roupa foi no lixo, Vamos ver se lá no céu Tem onde matar-se o bicho. Fui onde vendiam fato, Comprei uma panelada, Com mais um garrafão De aguardente imaculada, Disse a mulher: Felizmente Já estou de mala arrumada. A panelada salva a família da fome, sustentando-a até o dia 17, véspera da tragédia anunciada. Quem traz a primeira notícia do fato é o seu filho: ―Papai o bicho estourou.‖ Foi um salve-se quem puder geral: Aí eu juntei os pratos, Embolei todo o pirão, Botei o caldo num pote, Peguei-me com o garrafão, Me ajoelhei, rezei logo, O ato de contrição.
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A mulher disse chorando: Meu deus fica a panelada Disse o menino: Papai Onde está a imaculada? Eu disse: Filho sossega Aqui não me fica nada. E me ajoelhando aí, Tratei logo de rezar O ato de confissão, Senti um anjo chegar Dizendo reze com fé Ainda pode escapar. Mas o ―ato de confissão‖ de um boêmio é bem diferente do ensinamento das igrejas, as bem-aventuranças são outras, mais terrenas, profanas, quase blasfemas:
―– Eu beberrão me confesso à pipa, à bemaventurada imaculada de Serra Grande, ao bem-aventurado vinho de caju, à bemaventurada genebra de Holanda, vinhos de frutas, apóstolos de deus Baco e a vós, oh caxixi, que estás à direita de todas as bebidas na prateleira do marinheiro. Amém!‖
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A oração é bem recebida pelo além: Quando eu acabei de orar Olhei para a amplidão Ouvia dançar mazurca Cantar, tocar violão, Era um anjo que dizia: Bravos de tua oração! Aí um anjo chegou Com uma túnica encarnada Disse: sou de Serra Grande De uma fazenda falada, Eu sou o que cerca o trono Da gostosa imaculada. Sr. Láu, o proprietário, Do reino onde ela mora Me mandou agradecer-lhe A súplica que fez agora Aí apertou-me a mão E lá foi o anjo embora. A aparição foi providencial. Mais ainda, o ―ato de contrição‖ que agradou àqueles que têm o poder da salvação eterna. Assim sendo, nada mais justo comemorar:
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AĂ eu disse mulher, Visto termos nos salvado Desmanchemos nossas trouxas JĂĄ estava tudo arrumado, Toca a comer e beber Foi um bacafu danado. FIM
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1985 - CIÊNCIA E ESPLENDOR Se no passado o Cometa de Haller era, ao olhar do vulgo, um ente maléfico, na era moderna já não se lhe tem tanto respeito assim, como se viu da Poesia de Leandro Gomes de Barros. Menos mal... Às vésperas de uma nova aparição, porém, nesta era moderníssima em que a ciência ultrapassa ao largo as mais férteis e criativas imaginações, o Cometa de Halley está sendo vigiado passo a passo. Mapas detalham sua trajetória desde a constelação de Orion (o registro é de 01/11/1985), até as proximidades de Leão, onde foi avistada em 01/06/1986 e oficializam sua passagem pelo Brasil. Do pânico de 1910 à preparação minuciosa de 1985, com a criação de inúmeras sociedades científicas e amadorísticas, a passagem do Halley narram a própria História da Humanidade. Esse percurso não ficou despercebido ao poeta popular e em 1985 uma nova narrativa se ajunta às demais para que, lá pelo ano de 2062, as novas gerações possam continuar se apaixonando por essa estrela ambulante que vai fazendo a história de todos os mundos que passa. Em ―A volta do Cometa de Halley‖ o poeta Sá de João Pessoa (Rio Tinto, 1942), representante da geração urbana da literatura popular (composta principalmente de emigrantes e
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filhos de emigrantes moradores do Sudeste), repete todo essa trajetória mágica. E o faz iniciando uma retrospectiva histórica: Quando o Cometa de Halley Lá ao longe se anuncia Começam logo a rezar Padre-Nosso, Ave-Maria Dizem que quando ele passa Acontece uma desgraça Fruto de feitiçaria. Há milênios ele vem Chega causando horrores A história tem contado Erupções e tremores E também que Reis morriam Por isso todos temiam Lendas, presságios, pavores. A morte de personalidades históricas, sempre ligada às aparições de cometas, não passa despercebida ao poeta: Rasputin – o monge russo Que dominou um Império Tinha medo do Cometa Ele que era tão sério Praticava a Astrologia
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Magia e Quiromancia Não decifrou-lhe o mistério. Em 1607 Afonso de Portugal Quis atingir com um tiro O astro descomunal Ergueu a pistola e Pum!! Mas não acertou nenhum No alto espaço sideral... Assim vão desfilando algumas ocorrências pretensamente envolvidas com a história verdadeira, não essa história de bastidores, secreta, cabulosa, jamais passada aos compêndios. Átila – o Rei dos Hunos Bárbaro, mau e temível Que arrasou a Europa Com um exército terrível Teve a morte anunciada Pela cauda iluminada De um cometa invisível. Nero – Imperador Devasso Que o mundo conheceu Por incendiar Roma E os males que cometeu
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Ao saber-se ofuscado Por ter o Halley chegado De raiva quase morreu. Passada essa fase de magias e feitiçarias, o poeta caminha pelas fronteiras da ciência e procura transmitir o que apreendeu, o que pensa que sabe, o que leu e estudou sobre o Cometa de Halley: O inglês Edmund Halley Astrônomo renomado Usando o método Newton Deixou tudo calculado Assim encheu-se de glória E passou para a História Seu Cometa batizado. É o mais nobre e famoso Daqueles astros que passam Núcleo, cabeleira e cauda Todo o Universo abraçam Com uma beleza tal Que o respeito é total Cientistas se congraçam. 2O46 Da era Antes de Cristo
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Este Cometa de Halley Foi primeiramente visto Agora virá depois, De 2O62 Conforme já está previsto. Por refletir o Rei Sol O Cometa não tem luz É feito de gás gelado O corpo que lá reluz Essa massa refletida É um espelho de vida Por isso a todos seduz. São milhares de quilômetros Só de brilho e de beleza Mede a cauda reluzente Cujo tamanho e grandeza Vara o campo sidéreo Se transforma em mistério Feito pela Natureza. O seu caudal é formado De poeira estelar Que ao passar reflete O brilho da luz solar Depois de se desprender
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Uma chuva vai se ver Nosso céu iluminar. As superstições estão superadas. Ninguém mais – a não ser ―a gente simples do Interior‖ – tem receio do Cometa. Ao contrário do passado, quando todos se escondiam com medo quando da passagem do bólido, nos dias atuais se preparam todos para recebê-lo. Hoje porém ele está Sendo mui bem recebido A ciência avançou Em quase todo sentido Estão prontas as lunetas Pra ver o Rei dos Cometas Passar pelo céu luzido. Para o povo ele é Mais um sinal divino Fim do mundo, julgamento De quem fez um desatino Fogo que cobrirá a Terra Do jeito que o tempo encerra Como poder do Divino. Para os astrônomos não: É força da Natureza
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Um mistério da ciência Ente que encerra beleza Tem a composição química Não é mera coisa anímica Para causar estranheza. Em vez de repudiá-lo Por trazer muito castigo Ele é muito bem-vindo Pois não oferece perigo Vai ser bem analisado Visto e fotografado Como se fosse um amigo. Em vários laboratórios Estão sendo equipados Satélites de pesquisas Já estão sendo lançados Os maiores cientistas Físicos e astronomistas Já foram reconvocados. Vão estudar o Cometa Do começo até o fim Eles querem desvendar Tudo timtim por timtim A ciência saberá
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Que no futuro haverá O mesmo interesse assim. Os astros são a princ ipal fonte de alimentação dessa ciência marginal chamada astrologia. A seus estudiosos também interessa a passagem do Halley. Astrologia rima com magia e não é a toa: são ―ciências‖ paralelas, misturadas às crendices e o poeta Sá de João Pessoa não se mostra arredio a elas. Pelo sim pelo não, é bom acender uma vela pra cada lado... Astrólogos também têm No Halley muito interesse Astrologia é ciência Que a todo ano cresce O horóscopo anuncia O que passa todo dia O que cada um merece. Antigamente pensavam Que as suas aparições Gases envenenariam E matariam multidões O povo entrava em pânico Pois o Cometa tirânico Provocava convulsões.
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Em novecentos e dez No Brasil ele chegou Esperavam a catástrofe Mas tal não concretizou Vendo que tal se passava Gente se cumprimentava Pelo mal que não causou. O Cometa lá em cima Cá embaixo o Zé Povinho O temor que ele traz Provoca até burburinho Sofrem todos desgraçados Por culpa de seus pecados Pecadões e pecadinhos. Em toda gente de fé O Mistério tem um lar Na umbanda e candomblé Ou na igreja a rezar Ninguém vê explicação Nem mesmo a religião Pode o medo eliminar. Para esse povo assim O respeito é verdadeiro O Halley mal se anuncia
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Ouve-se o som do terreiro Nas esquinas das ruelas Despachos, Ebós e Velas Para o astro milagreiro. Entre a ciência e a fé o poeta exerce o seu ofício. Procura informar, mesmo que seu cabedal não passe de um monte de informações obtidas na imprensa ―digestiva‖. Meio repórter, o poeta
de
cordel
há
de
sempre
registrar
tais
―fatos
extraordinários‖, mesmo que eles não sejam tão extraordinários assim... Assim é que é tratado O fato extraordinário É coisa da Natureza Mas cumpre o seu fadário Pois isso é muito normal E achar que ele faz mal É coisa de algum otário. Mas aquela gente humilde Que mora no interior Tem respeito à Natureza Ao mistério tem temor Para evitar maldições Faz figas e orações E mil rezas ao Senhor.
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Nesse ponto o Brasi1 É um privilegiado Pois para ver o Cometa Está bem localizado Ases internacionais Aqui estarão em paz Pra ver o céu estrelado. O Cometa estenderá A cabeleira formosa Por sobre todo o Brasil Como uma bênção airosa
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Deixando todo o país Menos um pouco infeliz A fé mais esperançosa. Sá de João Pessoa encerra o seu folheto recordando Leandro Gomes de Barros, aquele que tratou as visagens do cometa de modo mais brasileiro possível: humoristicamente. Naqueles tempos difíceis, tal e qual um Carlitos encravado no sertão, Leandro Gomes de Barros fazia rir uma população sofredora,
cuja
mola
propulsora
paradoxalmente – sempre foi o riso.
da
sobrevivência
–
Hoje os tempos são outros, a cidade grande não é um terreno árido e pedregoso, mas é uma caatinga de almas, onde a luta pela vida encontra mil outros obstáculos: a violência, a solidão, a concorrência desenfreada, o atropelo. Somente a esperança de dias melhores faz com que o homem continue lutando, acreditando em seus pares. É o poeta popular o veículo ideal desse sentimento, levando-o às camadas mais sofridas da população: Leandro Gomes de Barros Também já presenciou Em 191O O Halley quando passou E como um bom poeta Cantou loas pro Cometa Sua passagem contou. Com a mente que esta Terra É na verdade uma ilha O Universo é mistério Beleza, cor, maravilha Dedico ao Cometa Halley Que das estrelas é Rei Esta ruma de setilha. Poetas e historiadores
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Tendo o Cometa às vistas Cada qual a seu bom jeito Sendo ótimos artistas Enfeitaram o astro belo Entendendo-o como um elo Entre a fé e cientistas. Sei que a fé é pequena Menor do que se apregoa Minha fé – a Poesia – Traduzo aqui nesta loa Dedicada sem desdouro Ao Halley – Astro de Ouro Por Sá de João Pessoa! Artigo originalmente publicado no jornal D. O. Leitura, São Paulo, 4 (40) set. 1985 – Editor: Wladimir Araújo
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O COMETA Autor: Leandro Gomes de Barros Caro leitor vou contar-lhe O que foi que sucedeu-me, O medo enorme que tive, Que todo corpo tremeu-me, Para falar a verdade Digo que o medo venceu-me. Eu andava aos meus negócios, Na cidade de Natal, No hotel que hospedei-me Apareceu um jornal, Que dizia que no céu Se divulgava um sinal. O sinal era o cometa Que devia aparecer, Em Maio, no dia 18 Tudo havia de morrer, Aí sentei-me no banco, Principiei a gemer. Gemi até ficar rouco Fiquei logo descorado, Depois o sangue subiu-me Que fiquei quase encarnado, Imaginando n’um livro Que um freguês levou fiado.
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Disse ao dono do hotel: Senhor eu estou resolvido, Antes de 20 de Maio, Nosso mundo é destruído, Visto não durar um mês, Não pago o que tenho comido. A dona da casa disse-me: O senhor está enganado, Se eu for para o outro mundo, O cobre vai embolsado, Eu subo, porém em baixo Não deixo nada fiado. Me resolvi a pagar, Foi danado esse processo, Não paguei, tomaram à força, O que é verdade, confesso, Se havia de morrer de desgraça Antes morrer de sucesso. Tratei de tomar o trem E seguir minha viagem Disse: - Vai tudo morrer Para que comprar passagem? Inglês vai perder a vida, Perca logo essa bobagem. O condutor perguntou-me: - Sua passagem, onde está? Eu disse: - Na bilheteira, Quando eu vim, deixei-a lá. Não comprou? – perguntou ele, Pois paga o excesso cá!
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Eu lhe disse: - Condutor, O mundo vai se acabar, Para que quer mais dinheiro, É para lhe atrapalhar? A mortalha não tem bolso, Onde é que o pode levar? Chego em casa muito triste, Achei a mulher trombuda, Perguntei: - Filha, o que tem? Respondeu-me, carrancuda: - Ora, a 18 de maio O mundo velho se muda! Perguntei: - Tem jantar pronto? Venho com fome e cansado, Desde ontem, respondeu-me, Que o fogão está apagado, Devido a esse cometa Não querem vender fiado. Eu estava tirando as botas Quando chegou um caixeiro, Esse vinha com a conta, Que eu devia ao marinheiro, Eu disse: - Vai morrer tudo, Seu patrão quer mais dinheiro? Fui falar um fiadinho, Que eu estava de olho fundo, O marinheiro me disse: - Já por ali, vagabundo! Eu disse: - Venda Seu Zé, Que eu pago no outro mundo!
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A 19 de maio, Quando acabar-se o barulho, Eu hei de ver vosmecê Que o senhor vai no embrulho, Só se esconder-se aqui Debaixo de algum basculho. Quero 10 quilos de carne, Uma caixa de sabão, Quatro cuias de farinha, Doze litros de feijão, Quero um barril de aguardente, Açúcar, café e pão. Manteiga, azeite e toucinho, Bacalhau e bolachinhas, Vinagre, cebola e alho, Vinte latas de sardinhas, Duas latas de azeitonas, Umas dezoito tainhas. O marinheiro me olhou, E exclamou: - Oh! Desgraçado! Então inda achas pouco Os que já tens enganado, Queres chegar no inferno, Com isso mais no costado? Eu disse: - Meu camarada, Isso é questão de dinheiro, Ganha quem for mais esperto, Perde quem for mais ronceiro, Aonde foram duzentos Que tem que vá um milheiro?
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Perguntei ao marinheiro: - Não faz o fiado agora? O marinheiro me disse: - Vagabundo vá embora! Eu lhe disse: - Pé de chubo, Você morre e está na hora. Voltei e disse à mulher: - Minha velha, está danado. O cometa vem aí, De chapéu de sol armado, Creio que no dia 18, Lá vai o mundo equipado. Deixe ir lá como quiser, A cousa vai a capricho, Comer, nem se trata nel, Nossa roupa foi ao lixo, Vamos ver se lá no céu Tem onde matar-se o bicho. Fui onde vendiam fato, Comprei uma panelada, Comprei mais um garrafão De aguardente imaculada, Disse a mulher: - Felizmente, Já estou de mala arrumada. A 17 de maio, A fortaleza salvou, Eu comendo a panelada Que a velhinha cozinhou, Quando um menino me disse: - Papai, o bicho estourou!
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Aí eu juntei os pratos, Embolei todo o pirão, Botei o caldo num pote, Peguei-me com o garrafão, Me ajoelhei, rezei logo, O ato de contrição. A mulher disse chorando: - Meu Deus, fica a panelada. Disse o menino: - Papai, Onde está a imaculada? Eu disse: - Filho sossega, Aqui não me fica nada. E me ajoelhando aí, Tratei logo de rezar O ato de confissão, Senti um anjo chegar Dizendo reze com fé Ainda pode escapar.
Aí disse eu: — Eu beberrão me confesso a pipa, a bemaventurada imaculada de Serra Grande, ao bem-aventurado vinho de caju, a bemaventurada genebra de Holanda, vinhos de frutas, apóstolos de deus Baccho, e a vós, oh caxixi que estais à direita de todas as bebidas na prateleira do marinheiro. Amém.
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Quando eu acabei de orar, Olhei para amplidão, Ouvia dançar mazurca, Cantar, tocar violão, Era um anjo que dizia: - Bravos de tua oração! Aí um anjo chegou, Com uma túnica encarnada, Disse: Sou de Serra Grande, De uma fazenda falada, Eu sou o que cerca o trono Da gostosa imaculada. Sr. Láu, o proprietário, Do reino onde ela mora, Me mandou agradecer-lhe, A súplica que fez agora, Aí apertou-me a mão E lá foi o anjo embora. Aí eu disse: Mulher, Visto termos nos salvado, Desmanchemos nossas trouxas, Já estava tudo arrumado, Toca comer e beber, Foi um bacafu danado.
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A VOLTA DO COMETA HALLEY Autor: Sá de João Pessoa Quando o Cometa de Halley Lá ao longe se anuncia Começam logo a rezar Padre-Nosso, Ave-Maria Dizem que quando ele passa Acontece uma desgraça Fruto de feitiçaria. A milênios ele vem Chega causando horrores A história tem conotado Erupções e temores E também os Reis morriam Por isso todos temiam Lendas, presságios, pavores. Rasputín – o monge russo Que dominou um Império Tinha medo do Cometa Ele que era tão sério Praticava a Astrologia Magia e Quiromancia Não decifrou-lhe o mistério. Em 16O1 Afonso de Portugal Quis atingir com um tiro O astro descomunal Ergueu a pistola e Pum!! Mas não acertou nenhum Vasto espaço sideral...
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Átila – o Rei dos Hunos Bárbaro, mau e temível Que arrasou a Europa Com um exército terrível Teve a morte anunciada Pela cauda iluminada De um cometa invisível. Nero – Imperador Devasso Que o mundo conheceu Por incendiar Roma E os males que cometeu Ao saber-se ofuscado Por ter o Halley chegado De raiva quase morreu. O inglês Edmund Halley Astrônomo renomado Usando o método Newton Deixou tudo calculado Assim encheu-se de glória E passou para a História Seu Cometa batizado. É o mais nobre e famoso Daqueles astros que passam Núcleo, cabeleira e cauda Todo o Universo abraçam Com uma beleza tal Que o respeito é total Cientistas se congraçam.
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2O46 Da era Antes de Cristo Este Cometa de Halley Foi primeiramente visto Agora virá depois, De 2O62 Conforme já está previsto. Por refletir o Rei Sol O Cometa não tem luz É feito de gás gelado O corpo que lá reluz Essa massa refletida É um espelho de vida Por isso a todos seduz. São milhares de quilômetros Só de brilho e de beleza Mede a cauda reluzente Cujo tamanho e grandeza Vara o campo sidéreo Se transforma em mistério Feito pela Natureza. O seu caudal é formado De poeira estelar Que ao passar reflete O brilho da luz solar Depois de se desprender Uma chuva vai se ver Nosso céu iluminar.
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Hoje porém ele está Sendo mui bem recebido A ciência avançou Em quase todo sentido Estão prontas as lunetas Pra ver o Rei dos Cometas Passar pelo céu luzido. Para o povo ele é Mais um sinal divino Fim do mundo, julgamento De quem fez um desatino Fogo que cobrirá a Terra Do jeito que o tempo encerra Como poder do Divino. Para os astrônomos não: É força da Natureza Um mistério da ciência Ente que encerra beleza Tem a composição química Não é mera coisa anímica Para causar estranheza. Em vez de repudiá-lo Por trazer muito castigo Ele é muito bem-vindo Pois não oferece perigo Vai ser bem analisado Visto e fotografado Como se fosse um amigo.
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Em vários laboratórios Estão sendo equipados Satélites de pesquisas Já estão sendo lançados Os maiores cientistas Físicos e astronomistas Já foram reconvocados. Vão estudar o Cometa Do começo até o fim Eles querem desvendar Tudo tim-tim por tim-tim A ciência saberá Que no futuro haverá O mesmo interesse assim. Astrólogos também têm No Halley muito interesse Astrologia é ciência Que a todo ano cresce O horóscopo anuncia O que passa todo dia O que cada um merece. Antigamente pensavam Que as suas aparições Gases envenenariam E matariam multidões O povo entrava em pânico Pois o Cometa tirânico Provocava convulsões.
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Em novecentos e dez No Brasil ele chegou Esperavam a catástrofe Mas tal não concretizou Vendo que tal se passava Gente se cumprimentava Pelo mal que não causou. O Cometa lá em cima Cá embaixo o Zé Povinho O temor que ele traz Provoca até burburinho Sofrem todos desgraçados Por culpa de seus pecados Pecadões e pecadinhos. Em toda gente de fé O Mistério tem um lar Na umbanda e candomblé Ou na igreja a rezar Ninguém vê explicação Nem mesmo a religião Pode o medo eliminar. Para esse povo assim O respeito é verdadeiro O Halley mal se anuncia Ouve-se o som do terreiro Nas esquinas das ruelas Despachos, Ebós e Velas Para o astro milagreiro.
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Assim é que é tratado O fato extraordinário É coisa da Natureza Mas cumpre o seu fadário Pois isso é muito normal E achar que ele faz mal É coisa de algum otário. Mas aquela gente humilde Que mora no interior Tem respeito à Natureza Ao mistério tem temor Para evitar maldições Faz figas e orações E mil rezas ao Senhor. Nesse ponto o Brasi1 É um privilegiado Pois para ver o Cometa Está bem localizado Ases internacionais Aqui estarão em paz Pra ver o céu estrelado. O Cometa estenderá A cabeleira formosa Por sobre todo o Brasil Como uma bênção airosa Deixando todo o país Menos um pouco infeliz A fé mais esperançosa.
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Leandro Gomes de Barros Também já presenciou Em 191O O Halley quando passou E como um bom poeta Cantou loas pro Cometa Sua passagem contou. Sabendo que esta Terra É na verdade uma ilha O Universo é mistério Beleza, cor, maravilha Dedico ao Cometa Halley Que das Estrelas é Rei Esta ruma de sextilha. Poetas e historiadores Tendo o Cometa às vistas Cada qual a seu bom jeito Sendo ótimos artistas Enfeitaram o Astro belo Entendendo-o como um elo Entre a fé e cientistas. Sei que a fé é pequena Menor do que se apregoa Minha fé – a Poesia – Traduzo aqui nesta loa Dedicada sem desdouro Ao Halley – Astro de Ouro Por Sá de João Pessoa! (1985) FIM
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PRONÓSTICOS DE FALB Autor: Liborio Salgado (Poeta popular chileno) El mundo se va a acabar, Ha dicho un sabio profeta, Por un horrible cometa Que a la Tierra va a chocar. Un astrónomo nos dice, Aunque para mi es extraño, Que tendremos en este año La más espantosa crisis. Ai! De tantos infelices ¿Donde iremos a parar Se esto se llega a efectuar, Aunque patraña parece, Que en noviembre, el día trece, El mundo se va a acabar? Primeramente, veremos Una gran lluvia de estrellas Que, como ardientes centellas, Recorrerán los extremos, Estas señales tendremos Como verdades completas, De este modo al vulgo inquieta Este astrónomo profundo Que será este el fin del mundo Ha dicho un sabio profeta.
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Esperemos la gran guerra Todos tristes y penosos Porque un cometa espantoso Va a tragarse nuestra Tierra Por cordilleras y sierras Lanzará ardiente zaeta: San Vicente en su trompeta Anunciará este vestigio Que tendremos en el siglo Por un horrible cometa. Al fin, en noventa y nueve, Como Falb lo profetiza, Todos seremos ceniza Si fuego del cielo llueve La muerte se acerca breve Lo que si que no se sabe: El hecho es terrible y grave, No seamos tan iracundo: Vamos gozando del mundo Antes que el mundo se acabe. NOTA: Liborio Salgado Reyes, pai do poeta popular Lázaro Salgado era filho do payador Liborio Salgado. Dele se conta que cantou com o Diabo, lenda que se repete em muitos países da América Latina. Liborio Salgado Reyes nasceu no fim do século XIX na histórica terra de payadores e violeiros, Santa Rita de Pirque. No livro "Los cantores populares chilenos" (1933), Antonio Acevedo Hernández dá o depoimento do cantador cego Juan Bautista Peralta: "Liborio, o pai de Lázaro, era um dos melhores cantadores e autor do famoso “Debate do Diabo com Jesus". (Fonte: http://www.musicapopular.cl/) Artigo do jornal espírita “A Federação”, 15/02/1899: “O fim do mundo. Em 13 de novembro de 1899 encontro da terra com um grande cometa. Um profeta da sciencia moderna anuncia a morte de todos os habitantes do nosso planeta em 13 de novembro de 1899, das 2 para as 5 da tarde. A noticia não admite gracejos, tanto mais quanto ella nos é transmitida por uma autoridade astronômica, digna de maior crédito, o Dr. Rodolphe Falb, astrônomo, professor de geologia da Universidade de Viena e da mathematica da de Praga”. http://cienciaeaarte.blogspot.com/ Notícia do jornal “La Liberté”, 03/10/1903: “Le professeur Rodolphe Falb, connu pour ses predictions du temps, est mort à Schoenberg, près Berlin.”
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(Capa: Desenho sobre gravura de Marcelo Soares)
CADÊ O COMETA HALLEY? NINGUÉM SABE, NINGUÉM VIU. Autor: Sá de João Pessoa Passou o Cometa Halley Que grande decepção Dizem que tinha uma cauda Parecendo assombração Mas não vi o tal Cometa Pro mode a poluição. Vultos famosos narraram Quando o Halley apareceu Em novecentos e dez Um milagre sucedeu Hoje não posso contar O dito se escafedeu! Já vi de tudo no mundo Ate a Figura do Cão Vi o Pelé e o Garrincha E o Brasil Tricampeão Vi a guerra pegar fogo Mas o Halley não vi não. Vi um cego enxergar Jogar bola um perneta Vi um coto caminhar Sem ajuda da muleta Vi fartura no sertão Só não vi o tal Cometa.
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Vi faltar água no Sul E no Nordeste chover A Beija-Flor desfilar E no Sambódromo vencer Só o Cometa de Halley Sei que nunca eu vou ver. Já fui no observatório Que trata de astronomia Perguntei a um astrônomo Que o firmamento varria – Será que o velho Halley Passará aqui algum dia? Ele riu me respondendo – Não fique vexado não Um Cometa inteligente Como o Halley tem razão Pra que sujar sua cauda Com tanta poluição? Uma noite inda arrisquei Um olhar pro firmamento Quando vi quase chorei Era a cauda de um jumento Surgindo da chaminé De uma usina de cimento. Um dia disse comigo – Pareço mesmo banana Batalho pra ver o Halley Mas o Cometa me engana E uma noite quase eu vi Mas tava cheio de cana.
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Fui correndo Para o Sul Fincar o pé na montanha Se o Danado passar E sendo a sorte tamanha A gente monta na cauda E uma carona apanha. Mas não teve telescopia Que nos desse solução O céu não limpava nunca E eu fiquei na ilusão O Cometa lá em cima Cá embaixo a poluição. Fiz mais de uma promessa Pro meu bom Ciço Romão Fiz pra São Roque Santeiro Pro Santo Frei Damião Eu quero ver o Cometa Seja milagre ou não. Já fiz também romaria Pro mode o Cometa ver Adiantou quase nada Principiou a chover Nuvem, trovão e relâmpago Cometa? Qual lá o quê! Toda a imprensa falada Radio, TV e Jornal Publicou sobre o Cometa Um farto material Coisa bonita de luxo Em número especial.
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Dizia que o rabo do bicho É comprido pra diacho Começa desde o Japão Termina lá em Cartaxo Procuro cabeça e rabo Mas nem fumaça eu acho. Vi o Vasco lutar tanto E na praia naufragar Sunyê ser Grande Mestre Para o Mequinho igualar Quando verei o Cometa Nosso céu iluminar? Vi de tudo neste mundo Nada mais me causa assombro Vi o Capeta e sem medo O enfrentei ombro a ombro Porém o Cometa Halley Eu não vi nem o escombro. Só assim posso afirmar Sem incorrer em engano Fiz o Cometa passar Comigo a virada do ano Tomando vinho e cerveja Na banca do italiano. Queria fazer um folheto Para narrar a história Da passagem do Cometa Mas não terei esta glória Se o Halley não conheci Não posso fazer vanglória.
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Subi de joelhos a Penha Lavei degraus no Bonfim Pedi a Deus e ao Papa Fazei uma graça pra mim Só quero ver o Cometa Um bocadinho assim. Fiquei de olho no céu Esperando escurecer Tomando uma cachacinha Mode não esmorecer A cana estava tão boa Que me fez adormecer! Vou passar por mentiroso Burro, safado e enrolão Os meus leitores bem sabem Que não sou de embolação Juro! Não vi o Cometa Ninguém vê assombração. Daqui a 76 anos Do mundo velho me acabo Não tive vida de Santo Também não fui um nababo Porém do Cometa Halley Eu não vi sequer o rabo! Um dia todo esse azar Foi-se embora e acabou O céu tava limpo e claro Nem uma nuvem assomou Desta vez meu velho Halley Eu vim vê-lo e vê-lo vou!
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Nese dia eu disse - É hoje! Que esse Cometa eu vejo Arrumei uma neguinha Cheia de dengo e desejo Preferi o fuque-fuque Trocando carinho e beijo. Tudo acontece comigo Mas não posso desistir O Halley vem esta vez Quando de novo ele vir Este Sá de João Pessoa Já deixou de existir. Como que pode um poeta Que tem fé no seu talento Não registrar esse fato Que ocorre no firmamento Cantar para seu ouvinte Tamanho acontecimento? Vi o Tancredo vencer No Colégio Eleitoral Para depois padecer No limbo do hospital Sua morte provocar Consternação nacional. Vi o Sarney assumir Os destinos da Nação Foi eleito Presidente Sem enfrentar eleição Vi renascer o cruzado Mas não vi o Halley não.
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Que vou contar aos netinhos Pois eles perguntarão – Vovô viu o tal Cometa Passar no céu na amplidão? – Tava tudo poluído O Cometa foi ilusão. Todos viram meu esforço Pra ver o Halley passar Mas o Cometa é danado Nunca está no seu lugar Quando ele passa não tou Quando eu tou ele não tá. Rastreando a sua órbita Ou vendo a sua imagem Varar o éter solar Espero uma mensagem Dizendo: – Me veja agora Ou vá pra outra pastagem! (1986) FIM
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APÊNDICE IMAGENS DA EDIÇÃO ORIGINAL DE ―O COMETA‖ DE LEANDRO GOMES DE BARROS (1910) http://docvirt.com/docreader.net/
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ORÍGENES LESSA, AUTOR E PERSONAGEM DE CORDEL (D. O. Leitura, São Paulo 5(51) ago. 1986)
Sá de João Pessoa conta neste artigo o episódio curioso do necrológio de Orígenes Lessa quando ainda vivo e transcreve a resposta do “homenageado”. Agora, todo o episódio se transformou em verdadeira homenagem ao grande escritor recentemente falecido. Estivemos com o mestre Orígenes Lessa nos últimos dias de junho, isto é, poucas semanas antes do seu falecimento. Estivemos, digo, eu e o gravador Marcelo Soares (xilógrafo, filho do poeta popular paraibano José Soares, cognominado O Poeta-Repórter), autor de bem um milhar de capas de folhetos de cordel da atualidade. Orígenes – era assim que gostava de ser chamado, sem outros formalismos – tinha uma afinidade enorme com os poetas de cordel e seus trabalhos sobre o teme enchem mais de um volume. Entendia a poesia popular, tinha seus autores, humildes, como um de seus pares. Votava neles para entrar na Academia Brasileira de Letras. Tal e qual Jorge Amado. Orígenes fez uma amizade sólida com Sebastião Nunes Batista que durou “até que a morte os separasse” – e acabou levando-o para a Casa de Rui Barbosa, a fim de organizar um acervo sobre a poesia popular. Sebastião, por sua vez, levou consigo a coleção que pertencera ao pai Francisco das Chagas Batista (que paira ao lado de Leandro Gomes de
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Barros como pioneiro da literatura de cordel), além de milhares de outros folhetos coletados dos muitos amigos que tinha – hoje o fichário da Seção já conta com mais de 6 mil títulos! Orígenes Lessa já vinha de há muito brigando com a “marvada”, mercê dos constantes ataques que lhe pregara o combalido coração. Porém, nada demonstrava na sua afabilidade: quem o visse de pessoa julgava-o cheio de saúde e disposição, tanta era a vitalidade que transmitia. Nosso encontro era para uma conversa, que serviria certo para ilustrar alguns dos muitos casos que coletava junto ao pessoal do cordel. Tudinho ele aproveitava para os livros. Ficamos durante toda uma manhã, eu contando partes da vida, da criação dos folhetos, dos muitos temas, etc., sem deixar, porém, de pescar um pouco da vida e da sabedoria desse notável escritor paulista. Antes já tinha tido três encontros com Orígenes e mesmo já o conhecia pelos seus livros e noticiários dos jornais literários. Rua do Sol, O
feijão e o sonho, Zona Sul, A voz dos poetas, foram algumas obras suas que li com prazer, aprendendo, sempre aprendendo. No seu 80º aniversário, a Casa de Rui Barbosa prestou-lhe uma homenagem. Não pude ir, mas lá estava Franklin Maxado, Expedito F. Silva, Apolônio Alves dos Santos, Gonçalo Ferreira da
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Silva, Mocó, Zé Duda, Marcelo Soares, Azulão, Zé Andrade, Cio Fernandes. Violeiros, poetas, xilogravadores, o mundo do cordel disputando lugar junto a Carlos Drummond de Andrade, Jacobina Lacombe, Austegésilo de Athayde, acadêmicos e amigos da intelectualidade. Carlos Drummond de Andrade registrou em crônica! A segunda oportunidade não podia perder. Foi na exposição Xilogravura e Literatura de Cordel, como sempre incentivada e organizada por ele. Todo o acervo daquela instituição foi exposto ao lado de prelos originais de autores do passado, matrizes de gravuras e linóleo, gravuras, capas de folhetos, etc. Orígenes ficava eufórico quando os eventos que estimulava eram um sucesso. Houve também um ciclo de palestras e numa dessas reuniões chamou-me ao lado para elogiar – mais de uma vez – o folheto de minha autoria “Os plantadores de soja vão acabar com o Brasil”, querendo saber como e de onde havia surgido tal idéia e chamava a atenção para a percepção de tão importante problema, que quase ninguém (nem mesmo os ecologistas) se dá conta. Os plantadores de soja são assim: colhem de 5 a 7 anos e depois deixam a terra arrasada. Mudam de lugar e o mesmo ciclo ocorre. Foi assim no Sul (onde a soja tomou o lugar do trigo e do café), no centro, no cerrado e agora devastam a Amazônia. O folheto denuncia isso tudo e Orígenes Lessa
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percebeu, talvez mais que o próprio autor, a importância da delação. A todo instante voltava ao assunto. E pensar que essa amizade que crescia a cada encontro tinha nascido resultante de várias “provocações” de minha parte. Tivemos uma conversa rápida, ainda sem intimidade, na Casa de Rui Barbosa. De minha parte fui sugerir a ele que promovesse uma espécie de concurso entre os poetas de cordel do Rio de Janeiro para a produção de folhetos que versassem sobre a vida e a obra de Rui Barbosa. Alertei-o sobre o fato de o patrono da instituição que tanto divulga o cordel não ter nenhum folheto que falasse dele:
77 – “Não sei se o Sr. Percebeu – disse-lhe – que Rui Barbosa, cuja fundação abriga um dos mais ricos acervos de Literatura de Cordel, não tem um folheto que fale da sua vida. Apenas raríssimas citações sobre o „Coco Baiano‟, mais nada.” Ele ficou pensativo, depois disse algo como “boa idéia”, a conversa desviou desse rumo e não mais se falou. Pouco tempo depois, Orígenes lançava, em folheto no estilo cordel, a biografia de Rui Barbosa! Me enfezei com o fato e mandei uma carta atrevida, não dirigida diretamente a ele, mas à responsável pelo Setor de Literatura de Cordel. Até hoje não sei se Orígenes chegou a ler a tal carta.
Outro atrito que tive com ele foi depois da publicação do livro “A voz dos poetas”, editado pela própria Fundação. Entre muitos artigos havia um que reproduzia uma dessas conversas (na realidade verdadeiras entrevistas) havidas com o Marcelo Soares, cujo pai tinha falecido há pouco. José Soares, cognominado “O Poeta-Repórter”, era perito em registrar nos versos de cordel o necrológio de pessoas importantes,
maior
sucesso
ao
lado
das
tragédias
nordestinas. A experiência levou-o a descobrir que, quanto mais rápido o folheto estivesse nas mãos dos leitores, mais sucesso faria. Usou então a tática de deixar preparados os “bonecos” dos falecimentos, reservando espaço para os detalhes da ocorrência, tais como data, nome do indigitado, condições em que o fato se dera, etc. Marcelo “confessou” tudo, inclusive dando nomes de pessoas ainda vivas cujos folhetos de morte já estavam no ponto, esperando apenas a data fatal para seguir ao prelo. A tática funcionava, pois José Soares detém até hoje recordes imbatíveis de tiragem relâmpago. Marcelo contou tudo, mas pediu reserva. Pois bem, Orígenes publicou tudinho, inclusive as palavras de Marcelo pedindo reserva! Fiquei fulo de raiva e como “vingança” fiz o folheto “A vida e a morte de Orígenes Lessa”, de cujo original tirei apenas umas fotocópias para os amigos mais íntimos. A coisa, porém, foi se alastrando, outras cópias sendo
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distribuídas, caindo nas mãos de gente envolvida com a Literatura de Cordel (o escritor Umberto Peregrino, entre outros). Para acabar com tanta falação, tanto disse-me-disse, fiz uma carta ao Orígenes juntando um exemplar do folheto. Ele me respondeu em forma de cordel com os seguintes versos, datados de 25 de maio de 1985: BILHETE AO POETA SÁ DE JOÃO PESSOA, AUTOR DE “A VIDA E A MORTE DE ORÍGENES LESSA”.
I Colega, peço licença pra baixar no seu terreiro que lhe quero agradecer o necrológio maneiro com que você antecipa meu suspiro derradeiro. II Quando o meu dia chegar – para alguns um dia atroz – vou procurar o Leandro, quero ouvir-lhe a nobre voz, vou buscar Chagas Batista que é mestre de todos nós.
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III Vou pedir lição de verso que eu não quero fazer feio na hora de aparecer de repente em chão alheio pra contar as novidades que vi dos mortos no meio. IV Muito povo me interessa no vasto império do Além, eu quero levar um papo com o velho Matusalém, vou ver se Adão me recebe e a dona dele também. V Se ao morrer se arrependeram (só no céu vou me esbaldar) eu gostaria de os ver, para um pé também lhes dar, Hitler, Nero e outros patifes, mil pecados por pagar.
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VI Todos eles, bons ou maus, que da terra se mandaram, na minha cuca em delírio vertiginosos bailaram ao simples ler dos seus versos que tanto me impressionaram. VII Logo vi, porém, que tudo não passava de ilusão minha hora não chegara, ia haver continuação, inda um pouco me sobrava pra viver no mundo cão. VIII Não sei que tempo me resta não sei que tempo será... um ano? um mês? um minuto? que tempo Deus me dará? sei que a morte é uma pergunta, quando vem, quem sabe lá?
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IX Mas agora estou sereno, vou vivendo em paz imensa não há vida que me assuste, não há morte que me vença pra ganhar seu necrológio qualquer morte é recompensa...
Dei por encerrado o assunto... Pois no dia da entrevista lá vem ele me falar de novo no caso (era a primeira vez que falávamos cara a cara sobre o assunto): “Como é que foi mesmo?” ele pergunta. Conto a história de novo, explico que depois me dei conta de que o escritor é realmente um “vampiro” das idéias alheias, meu arrependimento, etc. e tal. Ele: “Ah, mas não foi nada disso. As coisas são assim mesmo. Bobagem...” com aquela singeleza que o caracterizava e o fez respeitabilíssimo
entre
todos:
leitores,
escritores,
intelectuais. Antes de nos despedir marcamos novo encontro. Faltavam alguns folhetos meus na sua coleção: além do mais ele queria um exemplar extra do seu necrológio “para mandar para a Biblioteca de Lençóis Paulista, minha terra”. Dizia com orgulho: “Para lá arregimentei centenas de livros únicos, autografados pelos autores, Manuel Bandeiras e muitos outros. Será certamente uma das mais completas bibliotecas do País e das mais originais por essa característica”. O encontro
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não se realizou. Mas acho que ele bem que gostaria de saber que o seu folheto foi exibido e vendido em muitas bancas de cordel do Brasil. Ele que foi um pouco maranhense, um pouco carioca, um pouco de todo recanto do Brasil, foi mais que nunca paulista... e lençoiense. Eis a minha homenagem:
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A VIDA E A MORTE DE ORÍGENES LESSA Autor: Sá de João Pessoa, Poeta Popular Estão de luto as letras E a cultura nacional Morreu Orígenes Lessa Um autor descomunal Vou tentar narrar aqui Sua vida terrenal. Musas da Lira acorrei Dai-me vossa inspiração De um escritor de talento Aqui faço a louvação Tenha-o Deus no momento À direita da Sua mão. Dele eu posso dizer Teve a vida laboriosa Desde cedo enveredou Pelos caminhos da prosa Acabou na Academia A carreira gloriosa.
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Essa vida vou narrar Porém me falta talento Peço aos leitores perdão Por qualquer cometimento Que diminua a grandeza Que exige este momento. Em 1903 Na linda Lençóis Paulista Nasceu Orígenes Lessa O futuro romancista Poeta e homem de letras Repórter e jornalista. Aos três anos mudou-se Para a velha São Luís E acompanhando os pais Por quase todo o país Fez germinar a semente De um tempo bem feliz.
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Desde os 10 anos de idade Pegou logo a escrever Fez um pequeno jornal Como se fosse um lazer Assim foi o Beija-Flor Que viu o escritor nascer. Induzido pelo pai Tentou a teologia Porém dois anos depois Abandonou a academia Foi pro Rio de Janeiro A vida nova nascia. De tudo um pouco fazia Foi também um professor Estudou Arte Dramática Foi poeta e tradutor Trabalhou na propaganda E depois foi redator.
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Assumiu o jornalismo Como projeto de vida
O Escritor Proibido Teve excelente acolhida Recebeu Menção Honrosa Iniciou-se a subida! No ano de 32 Era um revolucionário Foi preso lá em São Paulo Onde era funcionário E mandado para o Rio Como um presidiário. No Presídio Ilha Grande Cumpriu a pena imposta E logo a revolução Estava em letras exposta O movimento gorou Mas obteve resposta.
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Com O Feijão e o Sonho Recebeu premiação Da Academia Paulista Houve a consagração Foi o primeiro romance Que iniciou a ascensão. Havia sempre latente A alma do jornalista Dirigiu então a Planalto Uma excelente revista Deu nome internacional Ao nosso folhetinista. O nosso biografado Era eterno viandante Foi pros Estados Unidos Chile, Suécia, Alicante Suíça e Dinamarca Um caminheiro errante.
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Essa herança paterna Vinda do tempo infantil Fez dele meio cigano Debaixo do céu de anil Foi botando os pés no chão Pra conhecer o Brasil. No ano de 43 Voltou ao Rio de Janeiro Vieram novos trabalhos Que lhe traçaram o roteiro O fizeram respeitado No grande mundo livreiro. Um casamento feliz Com outra boa escritora Trouxe o equilíbrio perfeito Pois cronista e tradutora Elsie Lessa tornou-se Também uma vencedora.
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Depois outro casamento Completou a felicidade Casou com uma moça nova Bonita e de tenra idade Recém vinda d'Além Mar Da Lusa Sociedade. Mas o Orígenes Lessa Apesar do seu T mudo Foi um grande falador Um escritor bem graúdo Num livro de cada gênero Escreveu pouco de tudo. Conto, Romance, Poesia Literatura juvenil Tradução e jornalismo Mais de um livro infantil Ultimamente estuda Cordelismo no Brasil.
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Cinqüenta livros depois Tentou a Academia Já veterano escritor No entanto não sabia A quem escreveu 2 livros Essa vaga perderia. A tal "eleição" ficou Como vergonha histórica Um candidato político Acostumado a Retórica Fez da velhinha A. B. L. Urna academia pictórica. Mas ele não se entregou Partiu pra luta de novo Era um cabra acostumado A ter carinho do povo E logo então foi eleito Por isso aqui eu o louvo.
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Já entrou na Academia Como escritor consagrado Primeiro como contista Desde 3O premiado
O Feijão e o Sonho teve O Prêmio Alcântara Machado.
Rua do Sol repetiu Do romancista o sucesso
9 Mulheres também Sofreu o mesmo processo
O Evangelho de Lázaro Ao Pen Clube deu acesso. A leitura pra criança Chamou a sua atenção Uma velha experiência Teve maior duração Títulos se sucederam Cada qual com vibração.
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Outra atração ele teve Pela Poesia Popular Andarilho no Nordeste Só pra ouvir e cantar Trovadores repentistas Na viola a improvisar. Na Casa de Rui Barbosa Fez trabalho de artista Acolheu os folheiteiros Apoiou o cordelista Hoje terá a seu lado Sebastião Nunes Batista. Foi esse escritor maior De talento sem medida Que nos deixou a obra Ora alegre ora dorida E pra coroar o trabalho Nos deu exemplo de vida.
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Então cessou com pesar A heróica trajetória De um literato sem par Que alcançou fama e glória Orígenes Temudo Lessa Esta é a sua história. Nada existe no mundo Que se compare à tristeza De ver o corpo de um gênio Estendido sobre a mesa Se nesta terra alcançou O cume da realeza. A vida nos oferece Uma estrada bem curta E quando se alcança glória A morte a vida nos furta Só nos resta renascer Florindo em pé de murta.
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E na campa constará Todos os seus altos feitos Que estão aqui narrados Nestes versos imperfeitos Suas obras cobrirão O mais gelado dos leitos. Não há poesia que iguale À realidade da vida Neste poema retrato Uma pessoa querida Que mereceu louvação Na hora de sua partida. (1986) FIM
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Biografia Orígenes Lessa, nasceu em Lençóis Paulista (SP) em 1903 e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em 1986. Era filho do escritor Vicente Themudo Lessa e de Henriqueta Pinheiro Lessa. Em 1906 foi para São Luís (MA), onde cresceu, acompanhando o pai missionário. Daí resultou o romance RUA DO SOL. Em 1912 voltou para São Paulo. Aos 19 anos ingressou num seminário protestante, saindo dois anos depois. Em 1924 foi para o Rio de Janeiro. Separado da família, lutou com dificuldade para se sustentar. Completou o curso de Educação Física, tornando-se instrutor de ginástica da Associação Cristã de Moços. Entrou no jornalismo publicando os primeiros artigos no O Imparcial. Em 1928 matriculou-se na Escola Dramática do Rio de Janeiro, dirigida por Coelho Neto. Saudou Coelho Neto, em nome dos colegas, quando o romancista foi aclamado “Príncipe dos Escritores Brasileiros”. Ainda em 1928, voltou para São Paulo, para trabalhar como tradutor no Departamento de Propaganda da GM. Em 1929, começou a escrever no Diário da Noite (SP) e publicou os primeiros contos, O ESCRITOR PROIBIDO, calorosamente recebido. Seguiram-se GARÇON, GARÇONNETTE, GARÇONNIÈRE e A CIDADE QUE O DIABO ESQUECEU. Em 1932, tomou parte na Revolução Constitucionalista, foi preso no presídio da Ilha Grande, onde escreveu NÃO HÁ DE SER NADA, sobre a Revolução Constitucionalista e ILHA GRANDE, JORNAL DE UM PRISIONEIRO DE GUERRA, que o projetou nos meios literários. No mesmo ano foi ser redator de publicidade, atividade que exerceu por mais de 40 anos. Voltou à atividade literária com os contos PASSA-TRÊS, a novela O JOGUETE e o romance O FEIJÃO E O SONHO (Prêmio Alcântara Machado). O sucesso extraordinário valeu a adaptação para novela de TV. Em 1942 foi para Nova York trabalhar como redator da NBC em programas irradiados para o Brasil. Em 1943 volta ao Rio de Janeiro e reuniu no volume OK, AMÉRICA as reportagens e entrevistas escritas nos EUA. Publicou contos, novelas e romances. A partir de 1970 dedicou-se também à literatura infanto-juvenil. Recebeu inúmeros prêmios literários: Prêmio Antônio de Alcântara Machado (1939); Prêmio Carmem Dolores Barbosa (1955); Prêmio Fernando Chinaglia (1968); Prêmio Luísa Cláudio de Sousa (1972). Bibliografia Contos e reportagens: O escritor proibido, contos (1929); Garçon, garçonnette, garçonnière, contos (1930); A cidade que o diabo esqueceu, contos (1931); Não há de ser nada, reportagem (1932); Ilha Grande, reportagem (1933); Passa-três, contos (1935); O feijão e o sonho, romance (1938); Ok, América, reportagem (1945); Omelete em Bombaim, contos (1946); A desintegração da morte, contos (1948); Rua do Sol, romance (1955); Oásis na mata, reportagem (1956); João Simões continua, romance (1959); Balbino, o homem do mar, contos (1960); Histórias urbanas, contos (1963); A noite sem homem, romance (1968); Nove mulheres, contos (1968); Beco da fome, romance (1972); O evangelho de Lázaro, romance (1972); Um rosto perdido, contos (1979); Mulher nua na calçada, contos (1984); O edifício fantasma, romance (1984). Ensaio: Getúlio Vargas na literatura de cordel (1973); O índio cor-de-rosa. Evocação de Noel Nutels (1985); Inácio da Catingueira e Luís Gama, dois poetas negros contra o racismo dos mestiços (1982); A voz dos poetas (1984). Sua obra infanto-juvenil apresenta quase 40 títulos, entre os quais destacam-se: O sonho de Prequeté (1934); Memórias de um cabo de vassoura (1971); Seqüestro em Parada de Lucas (1972); Memórias de um fusca (1972); Napoleão ataca outra vez (1972); A escada de nuvens (1972); Confissões de um vira-lata (1972); A floresta azul (1972); O mundo é assim, Taubaté (1976); É conversando que as coisas se entendem (1978); Tempo quente na floresta azul (1983). Fonte Academia Brasileira de Letras - http://www.academia.org.br/
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O AUTOR Salomão Rovedo (1942), nascido em João Pessoa (PB), mas de formação cultural em São Luis (MA), mora no Rio de Janeiro desde 1963. Poesia: Abertura Poética (Antologia), Walmir Ayala/César de Araújo, 1975; Tributo, 1980; 12 Poetas Alternativos (Antologia), Leila Míccolis/Tanussi, 1981; Chuva Fina (Antologia), Leila Míccolis/Tanussi Cardoso, 1982; Folguedos, c/Xilos de Marcelo Soares,1983; Erótica (Poesia), c/Xilos de Marcelo Soares, 1984; Livro das Sete Canções (Poesia), 1987. e-Books: Poesia: Porca elegia, 7 canções, Sentimental, Amaricanto, bluesia, Mel, Espelho de Venus, 4 Quartetos para a amada cidade de São Luis, 6 Rocks Matutos, Amor a São Luis e ódio, Sonetos de Abgar Renault (antologia), Glosas Escabrosas (c/Xilos de Marcelo Soares), Suite Picasso. Contos: O sonhador, Sonja Sonrisal, A apaixonada de Beethoven, Arte de criar periquitos, A estrela ambulante, O breve reinado das donzelas. Outros: Cervantes e Quixote (Artigos), Gardênia (Romance), Stefan Zweig Pensamentos e Perfis (Antologia), Ilha (Romance), Meu caderno de Sylvia Plath (Antologia), Viagem em torno de Dom Quixote (Pesquisa), 3 x Gullar (Ficção), Literatura de Cordel (Ensaio). Obras de Sá de João Pessoa: Macunaíma em versos de cordel, Antologia de cordel #1 - #2 - #3 e #4. Todos os e-books estão disponíveis na Internet e em: http://www.dominiopublico.gov.br Foto: Priscila Rovedo
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