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Foto da capa gentilmente cedida por Zenilton Gayoso

— feita no município de Mambaí (GO) sobre casca de imburana. 2 Salomão Sousa


DESCOLAGEM sALOMÃO SOUSA

Goiânia-GO Kelps, 2016 Salomão Sousa 3


Copyright © 2016 by Salomão Sousa Editora Kelps Rua 19 nº 100 — St. Marechal Rondon- CEP 74.560-460 — Goiânia — GO Fone: (62) 3211-1616 - Fax: (62) 3211-1075 E-mail: kelps@kelps.com.br / homepage: www.kelps.com.br Contato: salomaosousa@yahoo.com.br Produção editorial: do autor Capa: por Carlos Alberto Agradecimentos

a Tzintia Montaño, João Carlos Taveira e Zenilton Gayoso

CIP - Brasil - Catalogação na Fonte BIBLIOTECA PÚBLICA ESTADUAL PIO VARGAS SOU Sousa, Salomão. des Descolagem. - Salomão Sousa. - Goiânia: / Kelps, 2016

92 p.

ISBN:978-85-400-1744-3

1 Literatura Brasileira. Poesia. I. Título. CDU:821.134.3(81)-1 Índice para catálogo sistemático: CDU:821.134.3(81)-1

DIREITOS RESERVADOS É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito do autor. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Impresso no Brasil Printed in Brazil 2016


A novos pontos de energia da poesia brasileira:

Antônio Mariano Antonio Moura Carla Andrade Jamesson Buarque João Filho José Inácio Vieira de Melo

Aos poetas de alma irmã das boas faces do mundo: AIDENOR AIRES Sérgio de Castro Pinto Lamento ter chegado tão tardiamente a Alberto da Cunha Lima — ­minha obediência à sua poesia.

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Sumário Breve contextualização da vida e obra de Salomão Sousa PP 9

Descolagem Descolagens PP 15 Inicialmente, são intermináveis as definições PP 17 Se for pra me deixar nalgum lugar PP 19 Ulisses PP 21 Quem PP 23 De um único dia que tiveste mantido PP 25 Atravessar. A fluidez indistinta PP 27 Vamos nos descobrir fora PP 28 Temor de viver só numa fotografia PP 29 Os balcões, as feiras, tudo retorna ao seu lugar PP 30 Envelhecimento PP 32 Ainda que não venha nenhum barco PP 34 Navego e o mundo é só onde estou PP 35 Desperdício de um trem PP 36 Depois da tribuna, do mastro PP 37 Tudo fumaça do que foi posto PP 39 Viga amor de morcego PP 40 E se todos decidíssemos pela ausência? PP 42 Poderia dar significado às florações rubras PP 43 Se não for Chanel, cicatrizes à pele PP 44 Enquanto nada acontece PP 45 Para quando será a entrega? PP 46 Safras PP 47 Uma hora de equilíbrio PP 48 Já estou a postos para o dia PP 49 Acende as prontas palhas PP 50 Salomão Sousa 7


Conhecemos dias de ira, de fogueira PP 51 Dar-te o deserto cheio de Artemísia PP 52 Relembro a pelúcia PP 54 Viver como se nunca PP 56 Cresce um lodo PP 57 E eu que não tive uma estrada sem retorno PP 58 E este dardo da dúvida PP 59 E há os que ficam PP 60 No galho a casca não é definitiva PP 61 Avistar um palmo PP 62 Derrocada PP 63 Durante o dia que não acaba PP 64 O sol da ânsia PP 65 Esqueceu o vértice de uns ombros PP 66 Em honra ao que se perfilou PP 67 A secura ancora belos navios PP 69 Desarmo-me. Fico sem porrete PP 71 Fazer um movimento separatista PP 72

Poemas traduzidos / Espanhol ¿Y si todos nos decidiésemos por la ausencia? PP 75 Enciende las listas pajas PP 76 Ya estoy listo para el dia PP 77 Temor de vivir solo en una fotografia PP 78 Si no fuera Chanel, cicatrices en la piel PP 79 Se olvidó del vértice de unos hombros PP 80 Despegues PP 81 Al inicio la lluvia cae sobre una piedra PP 83

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Posfácio A imagem no vidro PP 85


Breve contextualização dA vida e obra de Salomão Sousa

João Carlos Taveira

O poeta Salomão Sousa nasceu na zona rural, onde passou a infância, foi alfabetizado e teve as primeiras experiências com o universo da poesia e profundas vivências com a natureza, que alimentam de maneira inequívoca o seu modo de expressão criativa. Em 1964, aos doze anos, transferiu-se para Silvânia, cidade do percurso de desbravamento do estado de Goiás, para continuar o ensino fundamental. Ali, aprofundou o contato com a poesia brasileira no acervo da biblioteca pública do município. No início de 1971, transferiu-se para Brasília, onde concluiu sua formação secundária e superior. Formou-se em Jornalismo e, por concurso, ingressou no serviço público federal; desde então, vem construindo “a poesia de consciência e a escritura de combate”, conforme destacou o escritor Ronaldo Cagiano em resenha definidora da obra do autor de O susto de viver. Ainda na década de 1970, Salomão Sousa fez algumas incursões no movimento da Poesia Marginal e publicou A moenda dos dias (1979), livro inaugural de “uma poesia inovadora, sem as camisas de força estilísticas, arejada, original, portanto moderna”, como aponta Cagiano na resenha referida. Safra quebrada, que reúne os livros publicados até 2007, dá a dimensão humana e artística de quem soube produzir sem pressa e, ao mesmo tempo, manter-se consciente de cada etapa de sua carreira. A obra de Salomão Sousa dá seu contributo ao cenário da moderna poesia brasileira de forma muito contundente. Das Salomão Sousa 9


muitas leituras já feitas sobre essa poesia, é importante destacar a observação crítica de Naomi Hoki Moniz – atual diretora de Estudos Portugueses na Universidade de Georgetown –, publicada em 1979 na Revista Iberoamericana, sobre A moenda dos dias, quando a articulista fazia mestrado na Harvard University: Sua utilização de uma tradição poética permite diferenciá

-lo do muito que existe no país de modismo de vanguarda superficial que caracteriza certos movimentos. Ele evita

traços de populismo e espontaneísmo, constrói um discurso despojado e simples, mais comprometido com a veraci-

dade do que está sendo dito do que com obscuras e vazias ordenações estéticas.

Ao resenhar Estoque de relâmpagos para o Correio Braziliense, a professora de literatura Lígia Cademartori, respeitada tradutora e ensaísta, contextualiza a poesia que Salomão Sousa passou a praticar a partir do livro em epígrafe: (...) a particularidade de sua poesia não reside nos efeitos de som e, sim, na organização das imagens. A profusão delas provoca o leitor para que procure as relações que estabelecem e, por esse modo, descubra a mitologia autoral

que as ordena. Ao extrair força poética do substantivo, Salomão Sousa compõe sua própria lição de coisas. Nem to-

das imediatas, é verdade. Algumas são inalcançáveis. Mas, no radical contraste entre certas imagens, podem-se en-

contrar essenciais efeitos de sentido e o provável princípio que preside as expressões figuradas. Pois a linguagem não

faz concessões. Concisa e avessa ao voo livre, essa é poesia de linhagem autorreflexiva.

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Antonio Miranda, poeta de múltiplas invenções e vasta obra publicada, registra sobre Ruínas ao sol, no Portal de Poesia Ibero-Americana, o seguinte: Não é uma leitura fácil, muito menos óbvia, por causa da

linguagem densa e das desavisadas associações de imagens e de ideias, da ausência de pontuação, do automatis-

mo verbal que vai anunciando, mas não necessariamente enunciando, numa espécie de neobarroco consciente.

Salomão Sousa é um poeta moderno em estado puro, na sua exaustiva utilização do real, seja do tempo presente, seja dos fragmentos da memória. Intelectual consciente, ele sabe enriquecer essa veia com uma crítica mordaz das mazelas humanas e do contexto social em que está inserido. Sua poesia se alimenta, por vezes, dessa cosmovisão para fundar uma solidez estrutural muito próxima da estética pós-moderna, com suas vanguardas posteriores. Sua linguagem é construída mais de impulsos fragmentados do que de uma forma gramatical preestabelecida. Seu verso é livre e geralmente curto, as frases raramente se completam, a pontuação nem sempre está presente, e as estrofes não têm compromisso com a uniformidade. Outra característica de sua poesia mais recente é a ausência de títulos nos poemas. Quem não acompanhou a trajetória deste poeta, julga-o sempre jovem, pois ele se insere no contexto do tempo presente. Mas tem plena consciência de seu ofício. Brasília-DF, maio de 2016.

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Obras de Salomão Sousa A moenda dos dias, Brasília: Ed. Coordenada, Distrito Federal, 1979. A moenda dos dias/O susto de viver, convênio INL/Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980. Falo, Brasília: Thesaurus Editora, Distrito Federal, 1986. Criação de lodo, edição do autor, Distrito Federal, 1993. Caderno de desapontamentos, edição do autor, Distrito Federal, 1994. Estoque de relâmpagos, prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, Brasília – DF, 2002. Ruínas ao sol, Prêmio Goyaz de Poesia, São Paulo: Ed. 7Letras, 2006. Safra quebrada (reunião dos livros anteriores e de dois inéditos: Gleba dos excluídos e Marimbondo feliz), publicado com recursos do FAC – Fundo de Apoio à Cultura, Brasília – DF, 2007. Momento crítico, de textos críticos, crônicas e aforismos, Brasília: Thesaurus Editora/FAC – Fundo de Apoio à Cultura, 2008. Vagem de vidro, Brasília: Thesaurus Editora, Distrito Federal, 2013.

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Descolagens 1

O navio numa lâmina estática que tremula por insistência de ser visto de um ponto degradado Ser inútil como um navio nesta estática sem nada para entregar no ponto de chegada se não se abarrotou no ponto de partida 2

Universo dos enganos O lado bruto na cornucópia a malva florida e não passa de um anteparo antes da queda A delação dirá que a flor é do ingazeiro que espera enquanto não se descola em outra rápida queda pelo instinto de existir 3

Talvez estejamos assim como a flor de ingazeiro disfarçada de flor de malva / fortuita depois de descolar-se por impossibilidade de fruto sem um talo que nos una ao tronco pronta para apodrecer

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Navio ancorado num porto vazio / para que saiam iludidos os que aguardam descarregadores

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Inicialmente, a chuva cai Sobre uma pedra Inicialmente, são intermináveis as definições se o fim é só a exaustão. A impossibilidade de descolar da superfície deteriorada, a água que contorna uma pedra e se esgota antes de o broto ultrapassar a formação de um caule e seca as ovas de animais de dissecada vitalidade dos ninhos. O homem que está na fresta de uma cerca enquanto aguarda o fim de uma chuva que cai numa pedra, e o tempo escorre desperdiçado como a água que contorna e só constrói liquens e limo, e não há como cotornar a fronteira para ser útil a uma pátria, ou ligar o fusível da claridade da estação, talvez a mão presa numa pedra insensata que aguarda a erosão do tempo. Inicialmente, somos o que desata a água presa atrás de uma pedra, o que acumulou a sede e a chuva para o desastre. Não retornam os vasos quebrados, a água acumulada agora é um roteiro de lama sobre os lares, lama tóxica nos pulmões da terra. Fica um veículo num teto, a ferrugem num casco, num tronco que amanhã servirá apenas para a definição do desastre. Inicialmente, nem seria um desacato. Poderiam vir outros

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habitantes para copiar outras formas de habitar. Outras formas de copiar indiferenças, temperatura de um pó bruto de um ventre que poderá explodir vermes num ombro alheio. Inicialmente, estamos trabalhando como a chuva que cai sobre uma pedra sem conseguir construir para as frestas, onde germinam vitórias sobre a laboração da arena com as divisórias armadas para que exista o labirinto. Não é sempre que nos roça uma árvore ou a bojuda força de um tonel de melaço. Conscientemente, foge-nos a forja de existir, de contornar a serra, a dodecafonia, e desmilinguidos cobramos tonéis de alento, sentamo-nos nos balcões onde damas da noite florescem derrotadas ao largo depois de anos de cansaço nos corredores das repartições de falsos filantropos. E quando seguimos para a fronteira as jardas de um ventre roça nossas orelhas. Sentimos a possibilidade de tudo que pressiona e pode jorrar de dentro de um sexo, ventre que pode parecer um caule leitoso ou um tonel de melaço que nunca nos inunda. Como não é inútil a chuva sobre uma pedra, um ventre rijo de tripas e coágulos interfere no dia que nos massacra com a impetuosidade frágil do gerenciamento. Há um úbere cheio de podridões a avolumar. Inicialmente, a chuva cai sobre uma pedra.

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Se for pra me deixar nalgum lugar Se for pra me deixar nalgum lugar descarregue-me numa varanda de onde eu olhe a estrada na serrinha com minúsculos viajantes na estiagem

Se for pra me abandonar sem embreagem que me deixe um pouco mais perto de uma chacrinha com uns pés de manga ou do destino de vadias esperanças Se eu tiver que ter um companheiro não se esqueça que o bão é o Tião Danha Se é para doer sobre a pele que seja só o doce fustigar de uma abelha

E se for para a intumescência da picada lembre-se que há um cansaço de cuidar do veneno Se é pra silenciar o inconformismo que as palavras não insistam no meu descanso Se for pra compreender não insista o mimetismo em iludir o formato de um pensamento ou da folha de anteparo para a sombra Se há tempos a linha se esfiapa e a carretilha relegada ao relento

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Se há muito está vencido o contrato nenhum defeito deforma o conjunto

Hem, bem Após cuidar das vagens e da ordenha confortemo-nos diante deste fogo de lenha O destino não nos leva além

Mas se é para seguir em frente não me empurre para as beiras das minas esgotadas

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Ulisses Ulisses, depois de ti, instaurado o fim das aventuras; na antessala, extintos o bulício e a castidade dos amantes. Ao encerrar tua jornada, legaste o enfado, o fastio, fio emaranhado em fuso sem memória. Quem soube de Quintana, da dor de Heitor? Quem soube de Homero em seu canto, da oleada princesinha em Aldebarã? De Findley que luta a fingida guerra?

Ah! estas pederastias, cocaínas nas narinas, esquecimentos de navegar levam à costa dos encalhes; aos barracos de Pinheirinhos, aos tiros nas frontes, às derrocadas dos homens eskrakecidos!

Ulisses, não navegaste no computador, e aí também não acharias a porta de retorno à pátria, verso e viagem a sucumbirem nas janelas das redes sociais, a se desencontrarem no led do papel. Perdeste o choque de um corpo, de uma nave entre tuas nádegas. Divertirias talvez com tua impotência dentro de uma máquina a perturbar as noites de tua cidade, de tua mãe insone.

Sem que trouxesses a vitória para a glória dos teus, rodarias e rodarias sem te importares com a existência de um rosto a flertar de uma porta, ou com os teares de desdobrar a linha de tuas futuras vestes.

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Se não é insuflada, o encontro se estanca na calmaria. Não vem o hóspede, os descendentes desconhecerão a face do herói e a face lambida pelos rastilhos da batalha. Nem foi imaginado Esepo, nem desprotegido ficou o calcanhar de Aquiles. Se não a decompõe a pólvora, não se extingue a turbulência interminável do ar condicionado.

O edema, o sequestro relâmpago. É a ausência do fluir. Se não há herói para ir a Ítaca, à Esplanada, os homens a enrijecer-se. Secas as mãos de virar a próxima página e de desnudar Eurídice.

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Quem Quem me convocou para a alegria fosse dor fosse harmonia ou des? Estaria preocupado com a hora com o todo ou parte?

Quem me deu sol na solidão do fogo? Quem propôs a partida para não vencer o jogo? Quem me prendeu elos com liberdade ampla? Quem me derrotou todo para vitória ou campa? Quem me pela em fogo quando não me acende chama? Quem me deixa em fria quando já não me chama? Rio seco interrompe mares Há pássaros que não levantam voos Há lenha que não explode fogo Há toga

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que ainda comete crime Há crime que permanece impune Pune em mim o que cometeu o mundo

Não é culpado o pomar pela tiririca entre os frutos O vento não pergunta onde jogará o joio O arroio não responde e contorna a pedra

Há um cravo sobre a lápide que convida para verter o sangue Está rondando o segredo que subverte A rua é íngreme? É encosta onde está posto? Está pálido hiato fogo-fátuo do desgosto? Ainda fechadas as portas após as lacerações os desenlaces e as propostas Nenhuma comporta aberta após todas as respostas

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de um único dia que tiveste mantido De um único dia que tiveste mantido com artigos de penúria, de esperas

de outros equilíbrios, gemas, moedas partidas que já escorriam por outros enxurros,

de um quebrável desejo que nem pressentias. Desejo do barro de ruir, da árvore de escorregar por uma penedia.

Raios esfoliavam-se ao longe, pendiam das montanhas as grandes tampas dos teus pressentidos túmulos e nem vias.

Estendia-se em côdeas de lama o pão

que nem partiste com irmãos afugentados, submersos sob teus cabelos, sob teu leito, com pássaros agora em outros quintais.

A roda partida nas poças que escondiam

a trama do estouro, a frigidez da rês morta. Há o mundo todo com tantas vias e toda a chuva jorra sobre ti

sem que tiveste almejado ser o grão para todas as águas

ou o Nabucodonosor dos grandes templos.

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Na areia da história Nefertiti cresce. Outra montanha aguarda Tomé que para enfrentá-la se encaminha desimpedido, ciente que nenhuma chuva, nenhuma torrente de barro o desmembrará. Tudo irradia contra, pedras móveis, a raspa de uma parede. mas é por um dia. Convenhamos. Depois de escrito tudo acontece noutro texto, noutro topo, na rotina de outro homem.

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Atravessar. A fluidez indistinta Atravessar. A fluidez indistinta. O sal irrefletido. A catraca avessa à contagem. Plasmar-se na amizade de Alaise e Cebes. No impacto do estranho. O degrau. Só onde apoiar os pés para o salto. Para o sol inquieto. O intranquilo. Que não se conforma só com o único dia. Com o único formato de ouvir. Comprar o alargador. Comprimir a pinça. Não cuspir no calçamento em que fugir. Sobretudo se a ponte é da história. Atrás virão os filhos. Os desbravadores. Os fretadores após as colheitas. Deixar no caminho o caviar. O que vier. De férreo. De fósforo. De madeira talhada. Deixar as costas como degrau. Não proclamar a blasfêmia. A desídia. Virá outro para pisar na pedra. No polido. Mover o joelho. Aclamar o impulso. Deixar-se higiênico. Epidérmico. Pele aclamada por ser pele. Cortinas de pássaros. Na abóboda em que estás. Encartar-se na abóboda. Na nuvem de Jataí. Pluma a ajustar-se no ar. E outra cortina. Pássaros. Não olhar com fumaça. O ouvido alargado. Passar. Para o assalto ao território. Ao pouso. A cortesia do salto alto. Estar alargado em ti a partir de teu salto.

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Vamos nos descobrir fora Vamos nos descobrir fora Estar num círculo é ainda estar aprisionado Seja de amizade ou família/colar definitivo para agrupar os ossos no desenho de trabalho/roldanas que retornam com as deixas dos frutos agrupados ondas graves a rondar apenas na direção de nosso gesto Seja do quinino de quebrar a quieta paisagem circular na íris Onde se revoltarão os ventos os fios que arregimentarão a força de desmembrar as turbinas que circulam fixas na traquinagem do metal Chegar a futilidade de nos aprisionar em outro gesto que não se harmoniza com o abraço

Descobrirmos-nos descolados da mandala Restos de arrecife que não servirão de molde para a repetição Ficar num círculo ainda é ser prisioneiro Seja de tinta de arrancadas peças do molde corais de um fígado/o gesto que se incorpora ainda que nas riscas entre vãos estreitos de estrelas soletradas 28 Salomão Sousa


Temor de viver só numa fotografia temor de viver só numa fotografia articulada/crestada com artifícios não ter passado por uma bruma por um dorso/pelas arcadas da avenida por onde anda a sensatez/ser arco inflexível a atirar ao acaso o medo de um vizinho ruidoso/cheio de espuma das noites bêbadas sem a tez do suor/as mãos que saúdam que não articulem os gestos da degola o ridículo de uma representação oficial quando o diálogo não foi/não flui outra vez o temor do empacotamento dos homens todos/nas máquinas nas casas cercadas por segurança apartamentos a trancas/a barras/a traves outra vez o ridículo da interpretação ouvir os homens anchos de si/acham que não pode acontecer/o ridículo de pedir vez de entrar num shopping/na universidade outra vez o temor/outra vez o ridículo destrinchamentos/destazados estudantes em Iguala, Guerrero/na cadeira do dragão e outra vez Gelman vai estar no exílio e se alguém vai estar morto/outra vez na forca de uma cela o novo herói Salomão Sousa 29


Os balcões, as feiras, tudo retorna ao seu lugar Os balcões, as feiras, tudo retorna ao seu lugar Nenhuma ramagem nos corpos Céu sem melros, falcões. O céu está inteiro. Ninguém desfaz os tinteiros em objetos, kitsch. As fichas no tabuleiro. Para onde carregam a limpeza? Os olhos claros, as mãos puras Vão. Não preenchem os formulários para sujar o nome com injustiças Resta inteira a dança nas tendas o fogo dentro do carvão. Inteiro. Às vezes o ministro, o frentista economistas sem latifúndio os poetas, os pederastas sem exceção, com as umbigueiras Latifúndios não compartilhados. Sem leiras Para onde vão com as ferramentas? Vão. As vestimentas sem rasgos As águas sem regos. Vão inteiros sem proveito para a sementeira Corpos sem terra, sem mancha. Sem riso Tudo retorna ao seu posto O guarda e o gorro, os cones as pedras, o luar de maio a terra de maio, as propostas. O coureiro vai ao curtume. O torno

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Os presidentes aos seus postos. O general desce do cavalo e dependura a espada A mão do monjolo. A labareda O outeiro no horizonte A espada em seu lugar Em seus lugares, as larvas se alvoroçam dentro das polpas.

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Envelhecimento Visito, espero, passeio

– não passa quem era pra estar na cidade.

A cidade envelhece todo encontro.

Quem era pra estar

na cidade não passa. Não passa ninguém de-verdade.

Minha idade,

minha paciência

– a cidade enruga qualquer traço. Estar aqui hoje

é continuar aqui amanhã. Mas arrasto os passos como quem leva

todas as léguas nos pés.

Os telhados choram a chuva enquanto espio a rua vazia. Vem sol. Vem seco, pó,

e a cidade ainda sem rastro.

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Ninguém me socorre, morro de silêncio.

Ninguém pro socorro,

a cidade mata com a solidão. As janelas e as mamoneiras vigiam meus rastros no pó.

Até novo choro dos telhados, a cidade saberá o peso

e os rastros de alguém. (no alpendre,

a cadeira de balanço

que não se mexe de medo

também espreita os passos de minha presença.)

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Ainda que não venha nenhum barco Ainda que não venha nenhum barco e bruma alguma traga a carga de lenha Ainda que o barqueiro venha louco e todo o aço da certeza afundará Ainda que o vento atormente com fúria e vá a madeira polida afundar-se Ainda que a carga seja a lâmina com o colo certo de degolar Ainda que na porta anunciem que a florada do dia irá murchar-se Ainda que seja um vasto mar e a alma em deleite vá secar-se Ainda que o mar seja uma rocha e no deserto o coração vá navegar Ainda assim o faroleiro acenderá

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Navego e o mundo é só onde estou Navego e o mundo é só onde estou. Dizem que há nortes com flores e flautas. Dizem que há largos portos, o prumo nas mãos dos nautas. Amam nas águas as jias. Dizem que para os mil filhos. Não encontrei para as orgias as garotas indo sem rumo. Dizem que há os tálamos à espera cobertos de goivos. Foram vistos os acantos e as garotas ainda navegam.

Navego num mundo sem prumo e sem nauta.

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Desperdício de um trem Desperdício de um trem a levar apenas o próprio ferro Treme aos solavancos treme em tantos choques de pranchas de lata Vê se um governante carrega um trem! Orizona abandonada perto da linha! Bonfim no bagaço em carregamentos de barro Toda abastança não passa de uma exploração daninha O trem deixou de levar o arrozal e já nem somos os meninos Lembranças de um cascavel na entrada do dia A rodilha negra engorda o nó que amarra extermínio

O sol e sua lâmina com as fatias de lástimas Desencontros e esquecimentos enfeitados com palmas de Santa Rita Ah! destino para a lacraia com tantos vagões de pernas! 36 Salomão Sousa


Depois da tribuna, do mastro depois da tribuna, do mastro em colos, cáries, universos sim, em pequenos jasmins dentro das celas, de cupins dos ocos, dos bons, dos ruins senão ácaros, inúmeros porcos porcarias, sânie no púlpito no corpo de jaspe, cuspe ícaros, as asas podadas os fachos, os poucos delírios e nas raras palpitações a poeira punha seu giz secos os grãos, janelas rostos sadios, as testas puras ali os côncavos, as cavas os estacionamentos, as barrigas as crianças vadias, os cotos inclinações quase viris assinaturas roubadas fáceis tapas nas caras facécias, adjetivos trouxas lâmpadas frouxas, grampos murchos nos cantos, uivos os badalos nos pescoços chiados, quase alívio, uivos ou dão para ser bons ser bravos, rachas, ficantes, com broches de autoridade

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bravuras, meretrizes vão ser achados felizes em montes de bostas vasilhas de pústulas dão para ser podres e para cuspir ao nosso lado, na nave no nosso rosto nas cabinas, dentro de mim

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Tudo fumaça do que foi posto tudo fumaça do que foi posto foi terra/ingresso/do que foi graça crosta/monitores arremessados ter de ir ao quebra-quebra às cortes dos protestos de atirar cadeiras/cones aparas de balcões partidos megafones/próteses partidas de dobrar as esquinas subir altos de escadas o ícone perde a cabeça descola o pescoço de pau o discípulo se desnuda/se desmembra desmonta a residência os dentes/a flutuação na quina sobem degraus/esvazia o palco desgastam o orador/devastam vitrinas/ônibus/túmulos entornam o carro egressos dos chicotaços abrem cicatrizes/perdem lares outros negam agregar numa nesga de casa/de quintal derrubado o aço/a resistência ah! se desse para unir a multidão dispersa/chumaço andarilho ao vento a partir do branco da ausência integrar o vidro feito em pedaços

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Viga amor de morcego Viga amor de morcego trote sem roupas e arreio encostado ânus no pelo felpudo escudo de tetas nada de Antártida degelo tempero nas peles ledas ávido tridente de Orfeu onde irá oferecer o sexo? onde banguela no seu? vistos na beira do brejo vistos lambendo lábios lapelas na altura do buço úmido muco dos dedos mãos correm nádegas agulhas de deserto degelo queda lenta de um galho verga amor de morcego ceias doses de aguardente arreio armado nas costas fogo apagado nas socas monte de cinza das bostas caras dentro de um rego esterco estéril no peito cascavel aleita um sexo úmido veneno nos dedos feito de coragem e de medo era para vir e não veio não cabe mais graveto

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a cabeça queima lenta fogosa lâmpada de azeite dois tiros rentes à cerca cinco cães na mesma teta o frio crispa o leite azedo vagens bojudas no seio era para sorrir e comeu não irá vender arreios coices num vácuo de Orfeu só o grunhir de morcego

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E se todos decidíssemos pela ausência? E se todos decidíssemos pela ausência? Ficássemos quietos sem nenhum verso os peixes secos esquecidos na travessa

Ficássemos com as nádegas mofadas capim assim torrando sem que viessem os bafos das bocas terras férteis sem chuva que as amoleçam Fôssemos as histórias perdidas se não vêm quem as ouça e outro que nunca soube do encontro que trouxemos tão perto

Estivéssemos onde nenhum herói aparece nas esquinas onde os homens não sabem qual será a conversa Sermos a lua dispersa o sol que não está mais no universo Trava que se quebra e nenhum rosto avança na fresta Fôssemos o que ria entre os olhos que padecem quando fossem as quedas dos planetas dos rubis adversos

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Poderia dar significado às florações rubras Poderia dar significado às florações rubras de enfeitar a estrada do homem de ontem mas as quaresmeiras existem na passagem do homem de hoje/que não mais busca que não mais deseja/abandonou o trem na velha estação/se está embarcado em vagões da incompreensão dos destinos Poderia entender a filiação e a irmandade

Os velhos adversários/corajosos só para mostrar o momento rude de existir E a palavra de hoje é só para marcar a presença num barranco/num corte sobrevoado de insetos. Demarcar a existência da palmeira no preenchimento de um vão da colina. A incompreensão que nos persegue ainda que seja fértil e útil

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Se não for Chanel, cicatrizes à pele Se não for Chanel, cicatrizes à pele Dar um propósito ao corpo Crosta de graxa, de grume, torções e rasgos ao arrochar arruelas Levantar-se e instalar a porta e por-se ao longe ao ultrapassá-la se todos se mostram indigentes juntos na mesma sala da ausência

Se for debaixo de um fardo irá desconhecer se era para cair em si se ir é a forma de reconhecer-se após dar cova à semente, força ao dardo

Às vezes escuras, às vezes vermelhas, há fervura quente sobre o fogo das acesas achas. Resinosas e cheiro! Está quente quem acolhe, acende a madeira Dar nervura e molde ao barro e montar tijolos e telhas. Sob um teto. Repousa feliz dentro do cansaço aquele que deu dobras ao aço

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Enquanto nada acontece Enquanto nada acontece vamos fazer uma pergunta ou dar uma resposta Ou dar um oi já que hoje não temos passeio ao rio dos Bois Para ceifar o matagal tirar as foices da viga do paiol Chegou a visita? Ronda teu nariz algum mosquito? Há a rua enorme e vazia e silenciosa à espera das crianças com os skates Ou só o dia enorme e indiferente com a igreja do Senhor do Bonfim no fim da rua Vestir a boa roupa e ficarmos elegantes para pensar coisas grandes e não surgem na rua os elefantes Até as formigas descansam a esta hora e vazio fica o terreiro Quase estamos presos numa masmorra de Palmelo Já assisti nessa paisagem de adormecida poeira e de desânimo

Salomão Sousa 45


Para quando será a entrega? Para quando será a entrega? Está sendo aguardada com todas as ardentias Virá num ribombar de raios e nada deixará sobre o solo Não será o tridente ou a tocha de ferro dos deuses Também a semente prepara o estalo de alguma entrega Dará as veias da madeira ou a arrogância do espinheiro Também o sol prepara o esvaziamento de uma entrega Dará um barro quebrado no poço onde estaria a aguada Virão as ardências da pele e a esfrega será putrefata Virá a violência do meteoro e a estrela será de pedra Se não for de fogo derramará seus grotões de água E se a entrega for de leite este também será derramado nos intentos de impedir a trégua E será possível tocar na dor com a entrega do balde de lágrima 46 Salomão Sousa


Safras No primeiro ano de casado, a roça deu maravilhas. Deu o que plantou e o que não plantou. O arroz, a taioba, o joá na queimada. E assim nos próximos cinco anos até que o quinto filho nasceu. Daí a roça se afastou para os matos de mais longe.

Quando os cambitos dos filhos deram para afinar e ficar descobertos, o mato de dar de comer acabou. Teve que repetir na terra de antes. A plantação para o nono filho não vingou.

Salomão Sousa 47


Uma hora de equilíbrio Uma hora de equilíbrio do pássaro no fio é minha gala até o domínio do estio. Às vezes eu gosto do torpor da nuvem negra e seu estilo relâmpago.

O ex, o expatriado, a espiada nos ossos do guerreiro em Ur. Expele e expectora quem deseja o íntimo claro em tour. Eu gosto das travessuras do obscuro, às vezes da truculência do inaudito.

O que constrói, o que impõe o muro, a folha em paliçada de bastões de tinta, sem o que desmorone, o que aprume, o que rasgue em flor, arrume. A atração da ausência incolor. Que ninguém se endivide com a luz de expor a minha morte. O que se impõe na claridade corre para revelar-se bolor. O que eu gosto é do escuro e seu grilo breu.

48 Salomão Sousa


Já estou a postos para o dia Já estou a postos para o dia. Venha a tua vigília/a tua provocação o silêncio interpretativo do repouso do caracol recolhido em sua casa do caminho esquecido em seu musgo.

Move-se o galho em minha sacada para o canto do pássaro que agora voa. Destravam-se os ferrolhos ao que agora em si o canto se descasa. De desperdício/nem o da luz que o corpo de um homem não antepara. Corteja em mim a claridade a espera pelo que invada a estrada de visgo em minha porta em minha linha do tempo. Estou pronto para a invasão do que vive.

Salomão Sousa 49


Acende as prontas palhas Acende as prontas palhas ouro sólido escorre pelas calhas e ergue-se o desengano em outras praias pensa campos e nuvens e oásis e deixa falhas frestas faias e vai anoitecer em outras florestas em baías sem ancoradouro às cascas às naus e depois de alegrar poças com outras luas de brilhar espantalhos em outras touças a tempestade retorna aos desertos ameaça minhas tortas tralhas e volta sem os corais do repouso em meus dias de trapaças lodaçais não varre o alcatrão de meus beirais espalha o amor onde o sol trabalha

50 Salomão Sousa


Conhecemos dias de ira, de fogueira Conhecemos dias de ira, de fogueira de goivas nos músculos, de cão destravado Mas sobra o vento novo sobre as orlas Em Thule sobra o transe dos guerreiros Sobram limões, palavras renovadas Vêm galhos ornar lábios e janelas Vão vê-los só quem busca por beleza só quem pensa colheita, quem deseja quem pensa fruto e desfrutar desejos Vamos falar daqueles cogumelos cresciam rente ao rego e às formigas Já chegam outros oferecendo sol com seus lábios abertos e janelas Muito existe, menos o país da ferrugem

Salomão Sousa 51


Dar-te o deserto cheio de artemísia Dar-te o deserto cheio de artemísia de cheiro amargo sob os cascos o deserto de invisíveis insetos de crostas duras e sem o afeto e sem as nuvens e sem a chuva por onde transitarás com o colo nu e irás aprendendo com os insetos a arte de arrancar vivacidade da secura quem tem um deserto terá de ter um úbere dar-te punhos fortes e também o úbere

dar-te a estrada da infância com o guatambu ao lado do rego cheio de casas de joão-de-barro e cogumelos após as longas nublagens o rego cheio de pequenos peixes de prateado vidro transparente por onde transitarás sem envelhecimento sem ter de encontrar um corpo seco levando deserto aos rumos de um rego quem tem um rego terá de ter água dar-te a água e chávenas de prata

52 Salomão Sousa


dar-te a montanha cheia de córregos com lâminas de água a montanha cheia de gomos e raízes e não terás de transitar rasgando o úbere em corpos secos dar-te uma lenda onde a aventura traz a espada úmida de sangue e sêmen

dar-te uma viagem pelo deserto onde não terás de encontrar o impacto de um verme ou de um corpo levarás a espada com punhos fortes e a tua lenda nunca se perderá

Salomão Sousa 53


Fala pensando em ti Relembro a pelúcia de tuas nádegas, o que desencadeia as astúcias do prazer. Só a ideia de vires já é um gozo que não se contém.

E quando chegares nenhum gozo já me convém. O clarão de teus olhos irá se apagar? Acabará a loucura que me detém?

Tudo que possa ser feito não irá apaziguar a vontade de evaporar-te, de sumir teu sangue em mim. O desejo é uma ideia querendo apagar a tez bela, arrancar toda doçura do favos do teu corpo.

A paixão jamais será se não for aquilo que destrói.

54 Salomão Sousa


Vem com os favos de teus lábios e vê se me sangra, mel.

Salomão Sousa 55


Viver como se nunca Viver como se nunca tivesse de morrer Aguando a petúnia Um sêmen depois da tarde O que é concebido nunca irá trair O deserto chegará perto Basta juntá-lo na areia do escorrer das horas

56 Salomão Sousa


Cresce um lodo Cresce um lodo que impede no homem o gesto da vez

E esta trapaça vem na barcaça de outras portas do tempo Alguém posto no palácio dele se apossa como de uma manga de camisa de um suspensório todo pessoal Cresce uma lama que esquece no homem que também se ama

Salomão Sousa 57


E eu que não tive uma estrada sem retorno E eu que não tive uma estrada sem retorno tipo assim a insônia de Ulisses por caminhos sem retorno para casa e eu que não empenhei as alianças tipo assim um povo que viajasse sem a certidão de uma gleba e eu que não arranjei flores tipo assim os jardins da Babilônia

58 Salomão Sousa


E este dardo da dúvida E este dardo da dúvida e esta lâmina da dor e esta noite sem lírio

lanham minhas nádegas desequilibram minha astúcia e os poços das ausências

estou perdido das constelações e perseguido pelo deserto dos famintos cascavéis

só uma lua sem a flor das águas arrancará do frio as minhas raízes derramará mares nos meus vazios

só uma lua fora de estação fora de órbita de todo planeta vai me arrancar dos dentes do martírio

Salomão Sousa 59


E há os que ficam E há os que ficam dentro da margaça apenas carregando os fardos E há os que são pura massa sem nenhuma levitação que lembre a graça

E há os que em estado de nenhuma graça nem se sentem desgraçados E há os que silenciam a mágica da graça vestidos com suas fadas

E há os que arregaçados de tanto levar coiçadas recomeçam para alcançar a graça

60 Salomão Sousa


No galho a casca não é definitiva No galho a casca não é definitiva Para filhotes surgem tocas, as juntas amontoam pó e surgem trevos Muda o pássaro a plumagem só para ter outra mais viva e assim combinar com a nuvem

Vivo de me mudar de caminhos para não ter de dar o mesmo tédio Dar outro gosto à ternura Vamos mudar de banda Vamos bandear de brisa E em meus braços nasçam ninhos

Salomão Sousa 61


Avistar um palmo Avistar um palmo na frente do nariz uma ideia infeliz Ainda mais quando ficamos sem ideias nada a gente já não diz Está tão escuro que a gente só contradiz Quando a gente arregaça as mangas e apalpa não sente que está espantando a garça

62 Salomão Sousa


Derrocada Compor os dias com muito sangue, o meu empenho. O meu desejo arquivado. Lutei e não escorreu sequer a flor dos lábios. Não eram flâmulas ou anúncio das astúcias. Não arranjei árvores para a paisagem do dia. Ou a estria de abrir a picada do dia. Nem lírios para enfeitar a crueza do dia.

Não aprumo o dia, sequer a rota de um dia. Os dias ficaram todos dentro da derrota.

Salomão Sousa 63


Durante o dia que não acaba Já reclamei do mundo em diversos pensamentos negativos Escrevi cartas para amigos Limpei a seda do umbigo Pensei na amada cotidiana e estive nos limites dos tesões Já me sentei de quinhentos jeitos e o dia continua inteiro Nada pior do que a ociosidade Cava a eternidade e deixa apenas uma cantiga de interminável grilo que nada amarra para acontecer

E vai se gastando em nada a vida enquanto o tempo sobra e o mundo está todo para ser feito

64 Salomão Sousa


O sol da ânsia Vejo o vento e seu passeio ao sol Eleva e volta serenando a plumagem branca Num bico recurvo o ganso estica o seu alcance

Até onde vai minha ânsia não me avanço Também ela não é assim tão calma que possa pairar sobre o lago e olhar sem que ninguém saiba

Salomão Sousa 65


Esqueceu o vértice de uns ombros Esqueceu o vértice de uns ombros, da prata de uns umbrais. Da possível palmatória na hora do crime, das algas já em águas claras.

Não se lembrou do instante de inclinar a palavra – a palavra que liberta o escravo. Esqueceu de enfiar outra saliva na travessia de uns umbrais. Abandonou o sopro se achou a florida calêndula. Diante do que dizer, deixou-se escrava nas escarpas. Fiquem incompletas as fendas da fala.

66 Salomão Sousa


Em honra ao que se perfilou Em honra ao que se perfilou na primeira batalha/na audiência que assistiu a última proclamação mover-se para a Bizâncio milenar/tantas vezes reerguida das ruínas. Por Constantino das dominações perpétuas em cada cálice elevado nas assembleias turcos possantes para encher o horizonte com o vértice das abóbadas distendem a tua fama pelos territórios mutáveis dos séculos Subir por tuas vielas de puro manto com ossos de ouro e de vidências Perpétuo regozijo do esplendor

Na fortaleza/renovar a proteção dos próximos acordos/isentos de discórdia/de invasões/de guerreiros envolvidos em túneis de tormento Estocar a madeira de estender a ponte/de vencer a truculência do abismo e do pó/desfile das hordas das mochilas e das máscaras Mover a hélice para calcificação da vitória e do vigor dos grãos em cada avanço mudar as bordas alcançar outra aparência/de covas

Salomão Sousa 67


jamais demarcadas/de cicatrizes que lembrarão novos gestos na paisagem Circulará o pai que tossiu solitário sem que a isca tenha se perdido O que manteve a guarda ao balcão em vigília ao estoque de peças a todo instante reclamadas Dar audiência à voz do herói que por mim aguarda em Bizâncio na beira das capoeiras do rio dos Bois estendeu sobre os lombos a arreata em debruns de vernizes cautelosos/nós resistentes aos mais bruscos saltos

Deixar o território livre dos destroços sem os ossos do convidado na forca do pequeno sírio de borco com a boca na areia em que virão circular heroicos orgulho para a ordem da progenitura e da voz

68 Salomão Sousa


A secura ancora belos navios A secura ancora belos navios na tremulação das luzes/viagens petrificadas na imobilidade Demoro a notar a manifestação de outra parte sólida/de outros sais a ocupar as vias transversais das águas Alguém paralizou as roldanas de avançar as escadas até meu cais

Não me inquieta o distanciar-se das quilhas enquanto dura a façanha do tédio Demoro a oferecer as pálpebras à fluidez a dispersar em faces de soberanias juvenis/a disfarçar o enfado de ouvir as repetições O que é mar e água se oferecem e as estudantes não fazem algazarras e as alfândegas não dão visto nas notas dos carregamentos

Quem me abandona/em algazarra nas amuradas com One Direction/One thing/One selfie das nádegas indiferente às minhas quietas paralizações se com enfado construo a partida Fica a clareza a ressaltar os poros nos rostos de incertas bússolas partir para encontrar as solas dos inalterados azulejos do que fui

Salomão Sousa 69


Os navios ocupam o vácuo do que foi a linha do horizonte em frente às cidades Dali eu crescia prenúncios de vitórias a me acolherem depois das revoluções Nenhum vivente desce com euforia para o adjutório do acolhimento de um homem Quietas bandeiras inflamáveis portfólios onde se inscreveram as façanhas da juventude em fogo Aceno com tochas lentas de preguiça Quem vai se ocupar em voltar-se para o continente/se a paisagem se desdobra no discurso de meu quisto Espojo-me sobre meu ordenado lixo sobre os excrementos de ridículas firulas Inquietam-me os ancoradouros da imprevista lama tóxica/a delação da lama entorpece no corsário os postulados de partir A Andressa Frazão

70 Salomão Sousa


Desarmo-me. Fico sem porrete Desarmo-me. Fico sem porrete, sem maça, cacete, estopim. Deixo de armar armadilhas. Poderão andar tranquilos como amigos no estupor do dia. Poderão colher as pérolas, antecipar a percentagem extra. Não quebro, não amasso, não torturo. Permaneçam incólumes o fogo e as torres, íntegros os latifúndios. Pode se descuidar. Ninguém estará exangue. Ninguém sairá derrotado. Não é um armistício ou ausência de furor. Só quero estar pobre de vitórias. Cada um plante o seu alecrim. Desarmo-me. Nenhum blindado ou pata da cavalaria destruirá por mim.

Salomão Sousa 71


Fazer um movimento separatista Fazer um movimento separatista eu gostaria de me separar de minha chatice de minha desumanidade do meu desamor das acusações que passam pelas janelas do dia Aí eu sei de minha acolhida em qualquer vagão/voaria em qualquer espaço aéreo dos instantes integrados de Norte a Sul Separar-me de minha segregação do cancro de minha intolerância da minha ganância fora dos contratos de minhas gelosias do obscuro Aí eu sei que por mim e por outros das várzeas e por outros dos varjões tenho de dar meu trabalho minha paz por um Peloponeso

72 Salomão Sousa


Poemas traduzidos Espanhol

SalomĂŁo Sousa 73


74 SalomĂŁo Sousa


¿Y si todos nos decidiésemos por la ausencia? ¿Y si todos nos decidiésemos por la ausencia? Si quedásemos quietos sin ningún verso los peces secos olvidados en la bandeja Si quedásemos con las nalgas enmohecidas hierba así tostando sin que viesen los alientos de las bocas tierras fértiles sin lluvia que las aflojen Si fuésemos las historias perdidas si no viene quien las oiga y otro que nunca supo del encuentro que acarreamos tan cerca

Si estuviésemos donde ningún héroe aparece en las esquinas donde los hombres no saben cual será la conversación. Seremos la luna dispersa el sol que no está más en el universo Traba que se quiebra y ningún rostro avanza en la grieta. Si fuésemos lo que ríe entre los ojos que padecen cuando fuesen las caídas de los planetas de los rubíes adversos Traducción de Silvia Long-ohni

Salomão Sousa 75


Enciende las listas pajas Enciende las listas pajas oro sólido se escurre por las tejas y se yergue el desengaño en otras playas imagina campos y nubes y oasis y deja fallas grietas faias y vete a anochecer en otras florestas en bahías sin ancladero a los cascos a las naves y después de alegrar charcas con otras lunas de lucir espantajos en otras tocas la tempestad retoma los desiertos amenaza mis torcidas baratijas y vuelve sin los corales del reposo en mis días de traperos lodazales no barre el alquitrán de mis orillas despaja el amor donde el sol trabaja

76 Salomão Sousa

Traducción de Silvia Long-ohni


Ya estoy listo para el día Ya estoy listo para el día Venga tu vigilia/tu provocación El silencio interpretativo del reposo Del caracol guardado en su casa Del camino olvidado en su musgo.

Se mueve la rama en mi balcón Al canto del pájaro que ahora vuela. Se abren los cerrojos Al que de su canto se separa. De desperdicio/ni el de la luz Que el cuerpo de un hombre no depara.

Corteja en mí la claridad La espera por lo que invada El camino de visco en mi puerta En mi línea del tiempo. Estoy listo para la invasión del que vive.

Traducción Arturo Ramírez Hernández

Salomão Sousa 77


Temor de vivir solo en una fotografía temor de vivir solo en una fotografía articulada/envejecida con artificios no tener pasado por una bruma por un dorso/por las arcadas de la avenida por donde anda la sensatez/ser arco inflexible lanzando al azar el miedo de un vecino ruidoso/lleno de espuma de las noches ebrias sin la tez del sudor/las manos que saludan que no articulen los gestos del degüelle el ridículo de una representación oficial cuando el diálogo no fue/no fluye otra vez el temor del empaquetado de todos los hombres/en las máquinas en las casas cercadas por seguridad departamentos con cerraduras/con barras/con vigas otra vez el ridículo de la interpretación oír a los hombres llenos de sí mismos/piensan que no puede suceder/el ridículo de pedir su turno para entrar en un Centro Comercial/en la universidad otra vez el temor/otra vez el ridículo destrinchamentos/destazados estudiantes en Iguala Guerrero/en la silla del dragón y otra vez Gelman va a estar en el exilio y si alguien va a estar muerto/otra vez en la horca de una celda el nuevo héroe

78 Salomão Sousa

Traducción Arturo Ramírez Hernández


Si no fuera Chanel, cicatrices en la piel Si no fuera Chanel, cicatrices en la piel Darle un propósito al cuerpo Costra de grasa, de grumo torsiones y rasgos al apretar las tuercas Levantarse e instalar la puerta y ponerse a lo lejos al sobrepasarla si todos se muestran indigentes juntos en la misma sala de la ausencia

Si fuera debajo de un fardo Desconocerá si era para caer en sí mismo Si ir es la forma de reconocerse Tras acoger a la semilla, dar fuerza al dardo

A veces obscuras, a veces rojas Hay hervor caliente sobre el fuego De leñas encendidas. ¡Resinas y olor! está caliente quien acoge, enciende la madera Dar forma y cuerpo al barro y montar ladrillos y tejas. Bajo un techo. Reposa feliz dentro del cansancio aquel que dio forma al acero.

Traducción Arturo Ramírez Hernández Salomão Sousa 79


Se olvidó del vértice de unos hombros Se olvidó del vértice de unos hombros, de la prata de unos umbrales, de la posible palmatoria en la hora del crimen, de las algas ya em aguas claras. No se acordó del instante de inclinar la palabra – la palabra que libera al esclavo. Se olvidó de lanzar outra escupida em la travesia de unos umbrales. Abandonó el soplo se encontro florida la caléndula. Frente al que decir, se dejó esclava en las escarpas. Queden incompletas las fisuras del habla.

80 Salomão Sousa

Traducción de Silvia Long-ohni


Despegues 1

El navío en una lámina estática que tremola por insistencia de ser visto desde un punto degradado Ser inútil como un navío en esta estática Sin nada que entregar en un punto de llegada se no se abarrotó en el punto de partida 2

Universo de engaños El lado bruto la cornucopia la malva florida y no passa de un amparo antes de la caída La delación dirá que la flor es de inga que espera mientras no se despega en otra rápida caída por el instinto de existir 3

Talvez estemos así como la flor de inga disfrazada de malva fortuinta después de despegarse por lo imposible del fruto

Salomão Sousa 81


sin un tallo que nos una al tronco lista para pudrirse 4

Navío anclado en un porto vacío para que salgan burladors os que esperam descargadores

82 Salomão Sousa

Traducción Tzintia Montaño


Al inicio la lluvia cae sobre una piedra Al inicio son interminables las definiciones si el fin es sólo agotamiento. La imposibilidad de despegarse de la deteriorada superficie, el agua que tornea una piedra y se agota antes que el brote rebase la formación de un tallo y seca las huevas de animales de disecada vitalidad de los nidos. El hombre que está en el resquicio de una cerca cuando aguarda el fin de una lluvia que cae en una piedra, y el tiempo escurre desperdiciado como el agua que tornea y sólo construye líquenes y limo, y no existe como tornear la frontera para ser útil a una patria, o unir el fusible de la claridad de la estación, tal vez la mano prisionera en una piedra insensata que aguarda la erosión del tiempo. Al inicio, somos lo que desata el agua prisionera detrás de un piedra, lo que acumuló la sed y la lluvia para el desastre. No regresan los vasos rotos, el agua acumulada ahora es una guía de lodo sobre las casas, lodo tóxico en los pulmones de la tierra. Queda un vehículo en el techo, el óxido en un casco, en un tronco que mañana servirá apenas para la definición del desastre. Al inicio no sería un desacato. Podrían venir otros habitantes para copiar otras formas de habitar.

Salomão Sousa 83


Otras formas de copiar indiferencias, temperatura de un polvo agreste de un vientre que podrá estallar gusanos en el hombro ajeno. Al inicio estamos trabajando como la lluvia que cae sobre una piedra sin lograr construir Para los resquicios, donde germinan victorias sobre el trabajo de la arena con las divisorias artimañas para que exista el laberinto. No siempre nos roza un árbol o la corpulenta fuerza de un tonel de melaza. Concientemente, se nos escapa la forja de existir, de tornear la sierra, la dodecafonía, extenuados cobramos toneles de aliento, nos sentamos en los balcones donde las damas de la noche florecen derrotadas minuciosamente después de años de cansancio en los corredores de las reparticiones de falsos filántropos. Y cuando seguimos para la frontera las yardas de un vientre rosa nuestra oreja. Sentimos la posibilidad de todo que presiona Y puede borbotear adentro de un sexo, Vientre que parece un tallo lechoso O un tonel de melaza que nunca nos inunda. Cómo no es inútil la lluvia sobre una piedra, un vientre duro de tripas y coágulos interfiere con el día que nos masacra con la impetuosidad fácil de la gestión. Hay una ubre llena de podredumbre que aumenta. Al inicio la lluvia cae sobre una piedra.

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Traducción Tzintia Montaño


A imagem no vidro José Fernandes A poesia é uma arte de linguagem, em que a palavra é vergastada, a fim de sangrar novos significados, obtidos, principalmente, através da imagem, definida por Octavio Paz, como a cifra da condição humana. O papel desempenhado pela imagem se reveste de singular importância no discurso poético, no momento em que transfere a palavra da esfera da denotação para a esfera da conotação, e ela ascende a uma dimensão metafísica, por intermédio da fusão de suas essências, responsável pela instauração do caráter polissêmico e estético próprio do poético. É com essa visão do belo estético que lemos Vagem de vidro, do poeta Salomão Sousa, uma vez que a despeito de suas imagens ensejam um discurso original, singular, pautado por jogos semânticos e interculturais que proporcionam verdadeiros dribles na esfera da linguagem. Não fosse sua conformação imagética sui generis e não teríamos a beleza da viagem empreendida pela história da poesia através da poesia e do entrecruzamento com a intertextualidade e, muitas vezes, com a interculturalidade, uma vez que se lê uma verdade histórica sobre a outra, em inusitado palimpsesto. Assim, na primeira estrofe, as imagens, muito bem construídas, remetem-nos a Shakespeare, nomeadamente à peça Macbeth, como sugerem as referências à luz, às ervas e ao bêbedo, em imagens que lembram bem o estilo maneirista praticado pelo dramaturgo: “Em meio ao espelhamento das escolhas/acontecerá o excesso de luz a ressecar as ervas,/ideias que se ligam ao soco, às intrigas,/o cervo a assistir a velocidade dos bêbedos.” Salomão Sousa 85


Além disso, a estrutura da tragédia, típica de Shakespeare, na palavra intriga, uma vez que, nessa peça, o trágico nasce dos limites da condição humana e do destino, fugindo um pouco da trama peculiar à tragédia grega. Mas, na segunda estrofe é que se encontra o móbil do poema de Salomão e da peça, uma vez que, ao nomear a palavra, está, além de referir-se à instauração do trágico, mediante a pronúncia de uma palavra, também lembra a carta escrita por Macbeth dizendo que permanecerá no castelo, ato que ensejará o assassinato. É exatamente por isso que a palavra “se precipita” e procede-se “a reabilitada confiança de volta ao conflito”. Sintomaticamente, às imagens construídas para lembrar Shakespeare, seguem-se, na terceira estrofe, em apenas dois versos, as que lembram Poe, com seu poema, O Corvo: “No momento que temos a satisfação do pássaro,/do estrangeiro na sacada a traquinar feliz. Feliz.” Exatamente pelo tema do destino, entendido como tragédia do homem, acoplam-se à intertextualidade de Poe imagens marítimas montadas sobre A divina comédia, de Dante, em que os dois últimos versos são lapidares, ao referirem-se à viagem prefigurada pelos remos e à chegada ao “porto do encalhes”: “Com o movimento dos remos, os comandantes./ A esquadra perfilada no porto dos encalhes.” Sabiamente montada, a sua viagem pela poesia é, também, aquela viagem própria do homem peregrino, do homem que mergulha dentro de si mesmo, como se verifica na quarta estrofe, constituída de apenas dois versos que resumem essa parte do poema: “Ah! a luz que resseca as ervas não perdoa o corvo;/invade os limites, danifica as trevas.” Ademais, na sequência do poema, temos imagens que lembram a figura de Ulisses, em sua conturbada viagem de homem e de semideus, a mar86 Salomão Sousa


car a duplicidade do homem, que é ora sublime, ora miserável. A capacidade de síntese dessa estrofe, só possível mediante o uso de imagens, é realmente lapidar, em termos de discurso poético, pois encerra os aspectos físicos e metafísicos da aventura de Ulisses e a dimensão ontológica da fidelidade de Penélope. As imagens, nesse caso, tecem o texto, como a mulher tecia o amor intransferível, em seu fio de permanência e de fragilidade: “Ulisses, depois de ti, instaurado o fim das aventuras;/na antessala, extintos o bulício e a castidade dos amantes.” Muito significativamente, quase no centro do poema, opera, em uma espécie de cadinho alquímico ou de baricentro, a interação entre o passado e o presente da literatura e das artes, em que Homero dialoga com Quintana, com a simbólica Aldebarã e com a guerra fingida de Findley. A partir dessa estrofe, as imagens se tornam altamente irônicas, à medida que os elementos imagéticos e imaginários do ontem são utilizados para satirizar as mazelas do presente. Desse modo, as imagens náuticas usadas para se falar das aventuras de Ulisses e do amor fiel de Penélope, por exemplo, convertem-se em sátira aos costumes hodiernos, reflexos dos males que assolam a humanidade. Desses males de que Ulisses não escaparia, ressalta-se a imagem dupla da navegação, agora transferida para a internet, que estila forte ironia às viagens pelas redes sociais, que se desencontram “no led do papel”. A representação desse desencontro se faz mediante imagem poética singular que envolve tecnologias modernas, que nos levam a denominá-la imagem cibernética, ou ciber-imagem. Ulisses, dentro desse mundo, conformado em “costas dos encalhes”, revelar-se-ia impotente, porque, ao contrário das navegações antigas, as máquinas do presente perturbam “as noites de tua cidade, de tua mãe insone.” Salomão Sousa 87


Na ambiência do moderno, até o amor e seus símbolos, que o convertem em sentimento metafísico, desfazem-se, porque, como já dissera Albert Camus, tudo perde a importância. Se não se flerta mais um rosto à porta, até a noção de herói se desintegra, porquanto, repetindo Gaston Miron, o homem se transforma em restolho, porque, desprotegido como o calcanhar de Aquiles, o mundo se torna perigoso, como vemos na última estrofe desse poema ímpar: “O edema, o sequestro relâmpago. É a ausência do fluir./ Se não há herói para ir a Ítaca, à Esplanada,/ os homens a enrijecer-se. Secas as mãos de virar/a próxima página e de desnudar Eurídice.” A leitura desse poema constitui uma amostragem de quanto é rico, esteticamente, Vagem de vidro, pois, nele, o poeta trabalha a linguagem em imagens que cifram a condição humana, como se vê no contraste entre o passado e o presente poético e humano. O presente, pautado por transformações de valores nem sempre positivos, constitui uma nova forma de aventura revelada mediante refinada ironia, em que a imagem do corvo funciona como deglutição cultural e como matéria de um tempo sinistro. Confiram! Parabéns, Salomão. Deo gratias et Mariae!

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Em apoio à sustentabilidade, à preservação ambiental, Pronto Editora Gráfica/ Kelps, declara que este livro foi impresso com papel produzido de floresta cultivada em áreas não degradadas e que é inteiramente reciclável.

Este livro foi impresso na oficina da Pronto Editora Gráfica/ Kelps, no papel: Couche fosco LD 90g/m2, JUNHO, 2016 A revisão final desta obra é de responsabilidade do autor

Colofon Este livro, composto em fonte Cambria Match, 10/15, miolo em papel Couchê Fosco LD 90gr, capa em Supremo 250gr, foi publicado às expensas do autor, em edição de 1000 exemplares, em 2016, ano do 60º aniversário do romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa; 93º aniversário da publicação de Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke; 64º aniversário de publicação de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima; 100º aniversário de nascimento de Miguel Arraes e do poeta Manoel de Barros e de morte do poeta Rubén Dario; 150º aniversário de nascimento de Euclides da Cunha; 400º aniversário de morte de Cervantes e Shakespeare; 90º aniversário de nascimento de Miles Davis; 179º aniversário de morte, em duelo, do poeta russo Alexandre Pushkin; e 131º aniversário da morte de Victor Hugo, quando um milhão e meio de parisienses foram às ruas para o adeus ao ídolo nacional.

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DESPEGUE EDEsPEGU SDEPEUEG PDESEGUE EDESEGUP GDEPEUES UDESPEGE EUGEPSED 92 Salomão Sousa


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