Inculturação e liturgia

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INCULTURAÇÃO E LITURGIA by Rev. Dessordi Leite 1 Coco grande ralado O mesmo peso de açúcar 2 claras de ovos sem bater Quem neste Brasil ainda não provou uma boa cocada baiana? Ler a receita não nos dará o mesmo prazer que sentimos ao olhar a branquinha açucarada ou mesmo tomá-la na mão e levá-la à boca. O gosto bom do açucar e do coco se desfazendo na boca e aos poucos tomando o nosso corpo com boas memórias e prazer. O mais interessante é que qualquer canto do Brasil se acha uma barraquinha com letras capitais: Aqui, Cocada Baiana! Minha avó, Chinoca, gaúcha por acidente geográfico e doceira por natureza fazia uma cocada de lamber os beiços. Era uma festa quando ela descobria o tacho e juntava os ingredientes para o doce baiano. Baiano? Se você leu a receita acima e gosta de desafiar a cozinha de sua casa já está matutando como poderia fazer diferente. De fato, a receita que era originalmente baiana passou de mão em mão e não se perdeu a tradição. A essência foi mantida e as mãos gaúchas, paulistanas, goianas e outras tantas foram transformando a Cocada baiana em “a nossa Cocada baiana”. Perdeu-se a experiência do tato? Ou do olhar sobre o desejo? Ou mesmo do paladar? Talvez não exista caminho melhor para começar uma conversa sobre inculturação e liturgia do que pela mesa ou pelo cotidiano da gente. Imagino que deva ser porque os dois maiores sacramentos da igreja são duas ações ligadas ao dia-a-dia de cada um de nós: o lavar-se e o comer. Quem na infância antes de vir à mesa não ouviu um adulto dizer: vá lavar as mãos antes da refeição. Batismo e Eucaristia foram os primeiros eventos que a igreja primitiva se apropriou e usou


para fortalecer sua relação com o divino. O Batismo conduz à Eucaristia e a Eucaristia sustém os votos do Batismo. Através dos séculos muita coisa mudou na realização de ambos, e continuará mudando. São pessoas diferentes querendo experimentar o mesmo sentimento (paladar) das primeiras comunidades cristãs. São pessoas de diferentes regiões, de diferentes culturas, adultos, jovens ou crianças, homens ou mulheres, que olham de diferentes perspectivas, mas que insistem no encontro com Deus. Ou seja, o que nos chama a reflexão não é apenas o como se faz (receita), mas o efeito final no rosto daquelas que provam e se lambuzam com a experiência. O Cristo reproduzido pelos artistas do sul da África vai ser diferente do Cristo apresentado por uma artesã peruana. A busca é a mesma, mas a expressão é diferente. Por exemplo, na liturgia o Kyrie Eleison cantado na Catedral de NotreDame em Paris vai ser com certeza diferente do Kyrie Guarani cantado num Encontro da CEB’s Santa Maria, porém ambos serão ouvidos pelo mesmo Deus. Ambos terão o tom penitencial que cada grupo necessita em acordo com a sua realidade. A última ceia de Jesus com seus amigos foi celebrativa e sacrificial, mas a ceia do Ressurreto com os discípulos no Caminho de Emaús foi memorial e redentora. Diferentes, porém ambas revelaram o mistério do Deus-Conosco. Em meio ao sofrimento e em meio às crises Deus se revela no pão repartido e transforma nossas realidades. Será que nossas celebrações reproduzem o mesmo sentimento?

Toda Liturgia é Transformadora As histórias da Bíblia são cheias de luta, esperança, sofrimento, lágrimas e alegrias. Biblistas concordam quando dizemos que a linha que costura o Antigo com o Novo Testamento é a promessa do Messias encarnada na pessoa de Jesus. As Sagradas Escrituras compõem a liturgia da Igreja trazendo o mesmo


espírito de luta, esperança, morte, ressurreição e vitória para dentro do louvor e da adoração. Nesse diálogo entre a Bíblia e culto abrimos uma janela para vislumbrar o Reino de Deus. O documento sobre “Missão e Ministério” no parágrafo 179 traz uma clara idéia da relação entre Culto e Missão: “É vero quando dizemos que na liturgia a igreja deve redescobrir a si mesma e também o propósito de Deus para ela. Ali cada membro deveria encontrarse com Deus e com o Povo de Deus, para que através do ritmo diário de adoração todos sejam ricamente equipados para o serviço no mundo. A liturgia da igreja, dessa forma, torna-se atenta a sua missão, e atualizar a liturgia da igreja é também renovar a sua missão no mundo.” Durante o Vaticano II um dos termos usados para discutir sobre adaptação de textos litúrgicos foi “Encarnação”. No artigo 10 do documento Ad gentes vemos uma referência do evento da Encarnação de Jesus como um paradigma para novas igrejas: “Se a igreja encontra-se na posição de oferecer o Mistério de Salvação e de vida instituida por Deus, deve também, da mesma forma, implantar em cada grupo o caminho que Cristo através de sua Encarnação comprometeu-se, em seu contexto social e circunstâncias culturais do povo com quem ele viveu.” Através dessa visão, podemos dizer que imitar a Cristo implica na sua atitude para com os grupos sociais e políticos de sua época e também os seus conflitos, ou seja, a igreja deveria buscar se identificar com seu próprio povo em seu próprio contexto. A leitura de adaptação é para transformar não apenas o contexto local, mas também a forma de como a igreja se manisfesta no mundo.


Nesse diálogo entre igreja local e sociedade inevitavelmente transformamos a forma de adoração, de culto. A tradição da igreja deve ser sensível a tradição cultural de seu povo e com ele dialogar. Esse desafio somente será realizado por completo quando a igreja apresentar ao seu povo ritos e liturgias que incorporem as expressões culturais de seu próprio contexto.

Na realidade latino-americana muitas vezes falamos no “Cristo Companheiro” ou como mesmo no “Jesus histórico”, e através dessa lente alguns liturgistas vão fixar sua reflexão na experiência da Ressurreição de Jesus. Sua intenção é linkar esse entendimento de “encarnação” com “inculturação litúrgica” e assim reafirmar a possibilidade do mistério pascal na vida das comunidades. Baseado nessa teoria o teólogo canadense E. Kilmartin afirma: “a analogia primeira da inculturação é a encarnação, vida, morte e glorificação de Jesus Cristo”1 Porém não devemos nos fixar na imagem do Cristo vitorioso sentado à direita de Deus o Pai, mas na real intenção do termo “encarnação” aqui, a qual se revela na presença do Jesus ressurreto no meio de nós. Quando falamos em encarnação da liturgia partimos do pressuposto teológico do Jesus histórico, porém a discussão teológica nos chama a adaptação dos ritos e assim um enriquecimento de nossa compreensão litúrgica. Importante ressaltar aqui as raízes primeiras do termo liturgia que se revela como “ação conjunta do povo”. Quando a liderança da igreja passa a “encarnar a liturgia” passa também a conhecer o seu povo e dar-se à conhecer. Em nivel ecumênico, no contexto brasileiro, vemos especialmente nos encontros Intereclesiais das CEB’s uma busca dessa experiência de encarnação. O que nos 1

E. Kilmartin, “Culture and the Praying Church”, Canadian Studies in Liturgy 5 (1990) 62.


chama a atenção é ausência da cultura regional nas liturgias. Por estarmos num país geograficamente grande e de uma rica diversidade cultural a liturgia das CEB’s focaliza este ou aquele contexto cultural, fala de questões sociais de forma ampla como a pobreza, o analfabetismo, a exclusão, mas falha no “olhar para a cultura local” de cada grupo. A riqueza litúrgica neste caso reside no encontro das Culturas, mas se perder ao tentarmos impor este modelo num contexto local. Quem já passou por esta experiência sabe, que quando participamos de um Encontro Diocesano ou Ecumênico nos inflamamos de espírito novo, porém contestamos que ao retornar para nossa realidade local não conseguimos passar a mesma experiência para nosso grupo. Então vale a pena lembrar que encarnação litúrgica não é imposição cultural. Que não se pode trazer uma verdade desta cultura e aplicá-la sem maiores justificativas em uma outra. É por esta razão que o documento Ad gentes do CVII substituiu o termo adaptação evitando a idéia de imposição para encarnação que brota do meio cultural em que se vive.

b. Inculturação e suas ramificações Já falamos aqui da intensão de encarnar a liturgia através da cultura de um povo, porém, não somente entre os liturgistas, mas em outros segmentos da sociedade usamos outras terminologias que são associadas ao tema da inculturação. Vejamos, a Adaptação é uma prática frequente em liturgias associadas a grupos específicos ou sodalícios da igreja. Por exemplo, quem de nós não participou de um culto dedicado as mulheres ou aos jovens e nestes ouviu trechos bíblicos ou canções com adaptações para aquele culto/público específico? Outro exemplo é quando em ordenações ou sagrações adaptamos o ritual com particularidades e


símbolos que serão reconhecidas pela congregação que ali se reúne, para aquele evento único. Adaptação aqui é uma acomodação de interesses particulares de grupos específicos. É quando a igreja é chamada a adaptar-se às necessidades de seu tempo de acordo com seu público. No passado acreditava-se que o uso do termo adaptação na liturgia era o mais correto, porém adaptação não é um termo antropológico. Como vimos anteriormente é conflitante com a idéia perpetuada pelo colonialismo, onde “adaptação cultural” referia-se à manipulação cultural sofrida pelos indígenas por parte dos colonizadores. Em alguns contextos podemos dizer que a expressão adaptação tanto historicamente quanto teologicamente possui conotação paternalista e por vezes pejorativa. Porém, se olharmos para as Sagradas Escrituras, encontraremos alguns exemplos acertados de adaptação como no Novo Testamento em Atos dos Apóstolos 17,22-23. “Então Paulo levantou-se na reunião do Areópago e disse: Atenienses! Vejo que em todos os aspectos vocês são muito religiosos, pois, andando pela cidade, observei cuidadosamente seus objetos de culto e encontrei até um altar com esta inscrição: AO DEUS DESCONHECIDO. Ora, o que vocês adoram, apesar de não conhecerem, eu lhes anuncio!” Outra terminologia que teve sua importância nos meios litúrgicos é o termo Contextualização. Graças às discussões do Conselho Mundial de Igreja no início da década de 70, o termo passou a ser usado para chamar atenção à relevância do ser igreja em meio a um mundo de opressão, pobreza, divisões e conflitos sociais e políticos. O termo contextualização ganhou chão firme nos discursos de Teologia da Libertação nos países latino-americanos e ajudou na produção de muitos materiais teológicos e litúrgicos que falam sobre a restauração da justiça, da paz e da dignidade de vida. Sua meta é objetiva. Contextualizar para ser a voz


do povo sofrido, para ser fermento de transformação social e fortalecer os movimentos com um novo espírito. Durante as décadas seguintes muitos temeram que púlpitos fossem “palanque” para falar de questões políticas, foi um processo lento e necessário pelo qual a igreja passou. Contextualizar a liturgia era mostrar aos poderosos que a Boa-Nova do Evangelho era também linguagem de protesto contra toda forma de opressão sofrida pelos pobres. Muitas liturgias contextualizadas nasceram nas ruas, em marchas de protesto ou em praças. Muitas destas liturgias nasceram no contexto de ditadura e fortaleceram o povo a ser resistência contra o poder vigente. Liturgias contextualizadas possuiam no seu rito escrito palavras de inspiração bíblica como luta, resistência e “exaltou os humildes”. A celebre oração: “Senhor, dá pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem pão”, é um exemplo de contextualização litúrgica. Toda liturgia contextualizada é evocativa das leis de Deus no sentido de que excita o protesto e chama à ação concreta da comunidade ou grupo onde se realiza. Para nossa reflexão a respeito da inculturação litúrgica, podemos dizer que o termo contextualização não está diretamente ligado ao tema da cultura. Mas certamente podemos afirmar que se uma liturgia é inculturada também deverá ser contextualizada. Outro tema abordado por conhecido teólogo e liturgista, Aylward Shorter, professor em Londres para assuntos da cultura Africana é o tema da Aculturação. Profundamente associado à inculturação teológica, e que por vezes partilha das mesmas aspirações, o tema da aculturação é uma condição necessária da inculturação. “Por aculturação compreendemos o encontro de uma cultura com outra, ou apenas o encontro entre diferentes culturas”.2 2

th

Shorter, Toward a Theology of Inculturation, 6-8, 12 6 ed. Maryknoll, New York (1999).


Esse é o primeiro entendimento de uma mudança cultural. Para que ocorra uma mudança numa determinada cultura é necessário o contato com uma outra. O ser humano possui a capacidade de transformação à medida que se encontra com o diferente, é um processo que se desenvolve no subconsciente da pessoa humana, ou mesmo num processo coletivo para o caso de grupos de pessoas. Esse é um processo histórico é constante nas culturas. Não pára no tempo, não há um fim demarcado, mas uma contínua renovação de comportamento e idéias. A aculturação deve se dar numa relação onde a comunicação entre ambas as partes é de respeito mútuo e tolerância, pois falamos de aculturação dentro do contexto da fé cristã, pois proclamamos a Igreja de Cristo católica (universal). O desafio litúrgico de aculturação se apresenta hoje em liturgias ecumênicas e também em ritos de diálogo inter-religioso. Muitas de nossas paróquias hoje já possuem esta realidade e muitas são as dúvidas sobre o “como fazer” ou quais são “os limites” dos rituais ecumênicos ou inter-religiosos. Há muito ainda que se exercitar, experimentar e produzir no meio litúrgico no sentido de aculturação e não de imposição ou sobreposição de culturas ou tradições. Como muitos já o sabem, o povo anglicano é conhecido como “o povo do livro”. E o livro que nos referimos aqui não é a Bíblia, mas o Livro de Oração Comum. Herdamos uma grande tradição litúrgica que foi salvaguardada em textos escritos e que no último século retornou ao processo de modificação. Portanto, outro termo que devemos abordar aqui é a Revisão considerando que estamos falando de liturgia como um todo, gestos e palavras (ritos escritos). Com certeza você já ouviu a célebre frase: “se não damos símbolos ao povo eles vão buscá-los em outros lugares”. Tudo o que fazemos, vestimos ou comemos é simbólico. Alguns destes símbolos são universais, encontramo-los em todas as culturas. Outros são específicos de acordo com o grupo ao qual está relacionado. Revisar a linguagem (gestual ou escrita) litúrgica é fundamental em nosso trabalho


religioso. Para muitos de nossa geração a afirmação “o que é novo é bom e o que é antigo não nos serve” continua sendo uma errônea idéia. Essa conceito é produto de uma geração de consumo, a qual vai sempre buscar algo pra preencher o “vazio” supostamente sugerido por velhas idéias. Portanto, para os mais jovens revisar é não deixar rastro do que era antigo, é substituir tudo. Para a geração anterior revisar ainda é uma palavra que gera temor, pois como é possível modificar aquilo que aprendemos que é sagrado? Estes sentimentos vão estar sempre presentes nos processos de revisão, é sempre necessário um grupo de trabalho que consiga visualisar ambos os lados e satisfazer os questionamentos da comunidade. Como se diz em centros de estudos teológicos: tomar o cuidado de despejar fora apenas a água do Batismo e não a criança. Substituindo o que é renovável e mantendo o que é essencial. Na questão linguística veremos mais adiante que o desafio varia de povo para povo, de cultura para cultura. Por exemplo, há a preocupação em tornar a linguagem inclusiva. Dependendo da língua encontraremos maior ou menor grau de dificuldade nessa empreitada. Enquanto na língua inglesa os termos saint e prophet são usados para ambos os gêneros, na língua portuguesa os termos variam para o feminino e o masculino. Discussões sobre revisão textual de ritos estão mais em moda hoje do que há 20 anos. Ao que parece, todos os lados querem ser ouvidos e incluídos. A importância hoje em revisar livros litúrgicos é primordial porque graças à velocidade dos meios de comunicação, em especial a Internet, a linguagem muda rapidamente. E mudança aqui significa não apenas novos sentidos para as palavras, mas também novas palavras e novos maneirismos. Novos sentidos e novas palavras. Alguns termos mudam de sentido e sem a revisão ficamos com uma linguagem desatualizada e menos compreensível ao povo.


Outra consideração a ser feita é a respeito das terminologias usada para referir-se a Deus. Sobre “Liturgia”, o documento de Lambeth 1988 no parágrafo 188 traz a seguinte recomendação: “A questão do uso da terminologia masculina referente a Deus é tratada mais amplamente nos parágrafos 77 e 78. Tem-se discutido em algumas partes da Comunhão Anglicana se tal forma não tem sido dominante em nossas fórmulas litúrgicas. Atualmente alguns textos litúrgicos tem buscado uma forma mais amena de apresentação sem eliminar ou aumentar as dúvidas a respeito dessa discussão.” Além dos termos apresentados acima ligados à inculturação outros mais derivam da experiência de diferentes grupos: indigenização, transculturação, simbiose e sincretismo. Todos com a intencionalidade de auxiliar o povo em seu diálogo com o divino e à sua Criação. Nesta lógica dizemos que o termo Inculturação foi emprestada aos teólogos, missionários e liturgistas por antropologos e moldado de acordo com a nossa necessidade. A preocupação pela Inculturação surgiu na igreja para salvaguardar a essência da mensagem Cristã através do curso natural de modificações culturais dos povos. O evangelho é anunciado para transformar a sociedade, mas não a cultura, preservando assim a natureza de cada nação. Creio que um dos cantos brasileiros que revela essa realidade é o que diz: “O Evangelho é palavra de todas as culturas. Palavra de Deus na língua dos povos...”. A inculturação litúrgica deve criar uma ponte entre o evangelho e a cultura de um povo. É a relação dinâmica e criativa entre a mensagem cristã e as culturas. Está sempre em contínua mudança assim como as culturas também não deixam de modificar-se. A inculturação é necessária para as igrejas pois nos é exigido formas culturais em nossos ritos. Um envolve o outro.


Em geral, nos contextos locais podemos utilizar três instrumentos para inculturar uma liturgia. São eles: a equivalência dinâmica, a assimilação criativa e por fim, a progressão orgânica. Para um resultado satisfatório desses métodos devemos observar que cada região possui diferentes tempos de maturação e de resposta. A grande diversidade nos resultados demanda esforço. Não raro, tendemos a deixar as coisas como estão, pois nos parece menos trabalhoso, porém torna-se pouco evangélico. Em muitas liturgias contemporâneas temos visto experiências de Equivalência Dinâmica. Ou seja, substituímos elementos tradicionais da liturgia por símbolos da cultura local que possuem o mesmo valor ou significado. O resultado dessa experiência é uma maior identificação do povo com a adoração e o louvor através da linguagem que lhe é conhecida. Já a Assimilação Criativa é uma experiência que vem desde os tempos da igreja primitiva. Incorpora-se elementos da cultura local para contribuir nos ritos litúrgicos. Alguns teólogos, como B. Neunheuser e A. Kavanagh, usam a imagem do rito do batismo para exemplificar: para o grupo chamado Caminho era apenas água e orações, porém nos primeiros séculos da igreja o rito foi transformado numa liturgia elaborada passando a ter: unção prébatismal, declaração de renúncia ao mal, profissão de fé, bênção da água do batismo, orações pós-batismais com uso do Crisma, troca de vestimentas para a cor branca e por fim, uma vela acesa. Vemos a incorporação de elementos mais frequentemente em ritos do Santo Matrimônio onde os noivos são convidados a trazer elementos relevantes de sua vida para somar ao mistério do amor divino expresso nessa liturgia. Para quem não pertence aquele grupo e olha de fora lhe parece desconexo e sem sentido, mas para o casal e seus convidados tem um profundo significado. Como foi sugerido anteriormente é imprescindível que aqueles que elaboram a liturgia possam orientar, os noivos na compreensão do que vai acontecer, para que na substituição de elementos não ocorra uma diminuição do rito sacramental à uma convenção social. Como exemplo disso, durante o ano de 1997 muitas noivas


entraram na igreja sob a canção tema do filme “Titanic”. Ausência de orientação a respeito do sacramento que está por acontecer. Por fim, o método Orgânico de Progressão tende a suplementar ou completar a forma litúrgica de um determinado rito. Esse processo é muito mais observado no contexto católico romano em função do Rito da Missa em latim ou o Missal, o qual não pode ser modificado. A razão pela qual chama-se progressiva é porque deveríamos partir sempre de ritos existentes, e ir aprimorando assim não perderíamos a nossa conexão com o passado. c. Reflexos de Inculturação na Comunhão Anglicana A inculturação na cristandade se deu em diferentes níveis e em diferentes processos através dos séculos. Alguns momentos históricos foram mais marcantes que outros e mudaram radicalmente a expressão litúrgica da Igreja. É um movimento cíclico de renovação da compreensão devocional da igreja, basta observarmos: o estabelecimento dos ritos na igreja primitiva, a conversão do Império Romano ao cristianismo e as suas adaptações, o cisma da Igreja entre Oriente e Ocidente, a Reforma Protestante, o Movimento de Oxford, a criação do CMI e o Vaticano II. Já é sabido que no contexto da Igreja anglicana o Livro de Oração Comum é a a bússola que nos orienta em nossa vida devocional, pessoal ou comunitária, e que nos conecta ao passado e nos impulsiona numa perspectiva de um Novo Tempo futuro. Ali também encontramos nos ritos sacramentais muito da doutrina de nossa igreja e expressamos o que somos. Mas será que sempre foi assim? O processo de criação de tal livro revela uma riqueza litúrgica que atravessa séculos. O Livro de Oração Comum é produto não apenas de uma mente brilhante mas de longa história religiosa de diferentes povos. Quando ouço alguém dizer que não precisamos mais do “velho” LOC me entristeço pois este livro é produto


de devoções e práticas que envolveram luta, suor e sangue. Nada mais humano. O mesmo se aplica à tradição de hinos que possuímos. Sim é preciso inculturar, mas tomemos o cuidado para “não lançar fora a criança com a água do batismo”. Desde o Primeiro Livro de Oração Comum em 1549 muita coisa foi modificada, ou adaptada. Em meio a uma situação de transformação social, política e religiosa vemos o livro de 1549 ser adaptado para o novo contexto Elizabetano e tornar-se a versão mais usada através dos séculos. Alguns historiadores dizem que o Livro de Oração Comum, a Versão Autorizada da Biblia King James e as peças de William Shakespeare moldaram a consciência de uma nação. Aqui um bom exemplo onde a religião e cultura se encontraram no tempo e no espaço devido. Nossa igreja teve se início na Inglaterra porém logo veio a expansão colonial para outros países, trazendo consigo a fé e tradição da igreja inglesa. Assim foi por quase cinco séculos, sendo que na virada do século XX podíamos dizer que 75% dos cristãos viviam na Europa e na América do Norte. Hoje porém, 6% de 2.1 bilhões de Cristãos vivem na África, Asia, América Latina e no Pacífico. Como seria possível manter um modelo inglês para uma diversidade tão cultural tão grande? A Comunhão Anglicana engloba hoje uma diversidade cultural, linguística e étnica muito grande e é chamada a inculturar-se e encarnar-se no meio do povo de Deus de forma sensível. As organizações missionárias em nossa igreja por muitas gerações localizavam-se em Londres ou Nova Iorque e proporcionaram algumas adaptações para diferentes grupos de missão. Talvez o principal tenha sido as traduções da língua inglesa para a língua vernácula de Bíblias e livros de oração. Algumas áreas da Comunhão Anglicana que passaram pelo processo Pós-colonial ainda hoje debatem sobre a questão de qual língua deve ser usada para o culto dominical. Vamos olhar por exemplo para a Melanésia. Em Papua Nova Guiné em função da diversidade de línguas entre os grupos e com a presença da língua inglesa não se pode dizer que há um Livro de Oração Comum. Existe o livro inglês e cada grupo étnico vai usar na sua língua local livretos com as liturgias necessárias para


realizar os sacramentos da igreja. Para aqueles grupos que possuem membros não-alfabetizados o Livro de Oração Comum traz ao lado das orações imagens que expressam o sentimento da oração. Os desenhos não somente perpassam o sentimento mas também estão contextualizados com as vestimentas tradicionais do povo local. Este é apenas um exemplo entre muitas situações de inculturação litúrgica na família anglicana. É sempre válido lembrar que estas foram preocupações da época da reforma Protestante e que, graças a inculturação ou tradução para a língua do povo inglês, é que o Livro de Oração Comum tornou-se possível.3 Pois esta era um dos fundamentos da Reforma onde acreditava-se que Deus se revela na língua do povo, através da cultura local. Portanto hoje vemos variadas províncias anglicanas se desvinculando da tradição britânica para assumir a sua expressão religiosa usando elementos da cultura local. Na Comunhão Anglicana atualmente há um grande reconhecimento de que a Província de Aotearoa, Nova Zelândia e Polinésia possui um dos mais inculturados Livros de Oração Comum.4 Não apenas por ser um livro bilingual, na língua inglesa e Maori, mas pela compreensão ritual estar ligada aos ritos polinésios ou aborígenes. Estes exemplo serão seguidos por outras regiões como países na África ou mesmo a variedade cultural da Ásia (por exemplo, a Província do Sul da Índia engloba igrejas do sul e norte da Índia, Paquistão e Bangladesh). Na América Latina ainda é muito forte a herança da Igreja Episcopal dos Estados Unidos da América na expressão litúrgica, mas graças ao envolvimento ecumênico e ao histórico de Teologia da Libertação temos desenvolvido muitas liturgias contemporâneas inculturadas. Enfim, nossa intenção como igreja não é de tornar a expressão litúrgica uniforme nas províncias anglicanas mas enriquecer o nosso clamor a Deus através da 3 4

Artigos de Religião XXIV e XXXIV do Livro de Oração Comum. Livro de Oração da Nova Zelândia / He Karakia Mihinare o Aotearoa


diversidade cultural que temos. Muitas vezes usamos a frase: “Unidade na Diversidade”, mas raramente aplicamos o conceito à liturgia anglicana pois tememos ferir uma tradição emoldurada na igreja inglesa. E não aprendemos com os reformadores que o sentido da relação com Deus brota dos meios populares e por meio destes a liturgia da igreja se torna plena. Liturgia, ação conjunta do povo de Deus. Rev. Sam Dessórdi Leite é Bacharel em Teologia pelo STIEAB – Seminário Teológico da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e mestrando em Estudos Teológicos pelo GTU – Graduate Theological Union em Berkeley, Califórnia. Atualmente é o Guardião do Livro de Oração Comum da IEAB.

Referência Bibliográfica Amalados, Michael Beyond Inculturation: Can the Many be One? Eugene, OR Wipf and Stock Publishers, 2009. Chapungo, Anscar Liturgical Inculturation: Sacramentals, Religiosity, and Catechisis. Colleageville: Liturgical Press, 1992. Irarrazaval, Diego Inculturation: New Dawn of the Church in Latin America. Orbis Books, Maryknoll, NY. 2000. Hefling, Charles and Shattuck, Cynthia The Oxford Guide to the Book of Common Prayer – A worldwide survey. Oxford University Press. NY. 2006. Kavanagh, Aidan The True Believer. Sign. April 1978.


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