Queria Tanto LĂvia Brazil
Queria Tanto - Lívia Brazil
Aos meus pais e à tia Leila, que me ensinaram a sonhar. À Bebel, Carol, Fabiane e Fabíola, que sempre deram força à Alice. Ao Raphael, meu Rodrigo.
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ALICE MARIA SANTORO SILVA IDADE: 22 anos NASCIMENTO: 24/7/1985, no Rio de Janeiro ALTURA: 1,65 metro PESO: 55 quilos OLHOS: Azul-escuros CABELO: Ondulado cor de mel na altura dos ombros COM QUE MÃO ESCREVE: Direita, mas morro de inveja dos canhotos PAIS: Ana Maria Santoro Silva, historiadora, e Álvaro Oliveira Silva, curador de galeria de arte IRMÃOS: Alan Santoro Silva (26 anos), fisioterapeuta, e Amanda Maria Santoro Silva (19 anos), estudante de veterinária SEGUNDA FAMÍLIA: Eu + 6 somos os sete PROFISSÃO: Cenógrafa RESIDÊNCIA: Moro sozinha desde os 19 (agora, em Santa Teresa), mas sempre visito meus pais no Jardim Botânico ODEIA: A mania dos meus pais de nos dar nomes que começam com A e terminam com Maria, no caso das meninas! E também maquiagem pesada, pessoas antipáticas e nariz em pé, remela, sol forte, sorvete de limão, chulé, varrer a casa, azul ADORA: Futebol, sorvete de chocolate branco, chiclete (qualquer sabor), chuva, bom humor, cantar, correr pela casa, passar a madrugada no telefone, cozinhar sobremesas, laranja com bolinhas brancas NÃO SE IMPORTA DE/EM: Lavar banheiro, bater perna atrás de peças para um cenário, ouvir desabafos dos meus amigos, levar tapa de criança pequena e nem arranhão de gato ESTADO CIVIL: Enrolada. Nunca namorei sério. Nunca transei sério também 2
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ESTADO DE ESPÍRITO: Livre, leve e solta, porém levemente despirocada O QUE MAIS FAZ ALÉM DE TRABALHAR: De tudo um pouco MÚSICA: Elis Regina e Caetano Veloso ATORES: Meryl Streep, Fernanda Montenegro e Gael García Bernal (ai, Gael...) FILME: A primeira noite de um homem
Quarta-feira, 26 de dezembro
Chega. Chega dessa besteira de namorar, entendeu? Isso tudo é uma armação criada pela sociedade pra fazer a gente se ligar em um só amor e comprar presente. Acredito que St. Valentine nunca existiu e que o Hallmark inventou tudo pras pessoas comprarem cartão. Vi num filme e concordei. É baboseira esse negócio de namoro. Quem precisa disso? Quem precisa disso quando se pode ficar com três na mesma noite, sair e beijar mais um na rua, quem sabe acordar numa cama diferente da sua (o que no meu caso é ótimo, já que minha cama é duríssima)? Por que não conhecer várias casas, não é mesmo? Rotina não tá com nada, com as nossas próprias paredes a gente já tá acostumado. Mudança é sempre bom. Pena que eu não penso assim. Pena que não consigo parar de querer que o gracinha (ironia, né, gente?) do Gabriel se decida de uma vez, pare de enrolação e fique logo comigo. Só comigo. O que vai ser meio difícil, já que ele é gay. Gay mesmo, de verdade, nada de atirar pros dois lados, não. Eu preciso me livrar dele. Dizer bye-bye, Gaybe, mas não dá. Ou melhor, dá, dá muito. Mas só pra mim. Mudança, galera, mudança é a palavra de ordem. Gaybe podia mudar e se desvirar. Ah! Quem eu tô querendo enganar? Se eu quiser mudança, é mais fácil ir... ao cabeleireiro! 3
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Quinta-feira, 27 de dezembro Cheguei arrasando. Também, se depois de quatro horas de salão eu não arrasasse ficaria puta. E olha que nem gosto de falar muito palavrão. Ah, eu precisava daquela mudança. Eu não disse que precisava mudar? Saí de manhã pronta, me sentindo o máximo, óculos escuros de besouro e com meu novo cabelo curto, loiro (mesmo sendo daquelas que dizem que NUNCA vão pintar o cabelo de loiro. Fazer o quê, né? O clichê é verdade: nunca diga nunca) e liso. Se bem que ele não parece liso, com todas as pontas pra cima e cheias de gel. Não! Não cortei tipo joãozinho, raspado e com aquelas pontinhas ridículas pra cima. Cheguei no teatro, e foi só colocar os pés dentro da sala que ouvi lá do palco: “Arrasou, Alice!”. Tão fantásticos esses amigos que adoram nos colocar pra cima, né? Vanessinha foi a primeira a dizer, e meu sorriso foi de um lado pro outro do rosto, mais um pouco e a pele rasgava. Tirei os óculos — não tinha percebido que ainda estava com eles —, fingindo me achar a gostosa, e depois ri só pra não acharem que eu realmente estava me sentindo a gostosa. Mas tava. Se não posso ter Gaybe só pra mim, terei o olhar dos outros como consolo, nem que seja dos meus queridos amigos e/ou companheiros de trabalho. Sim, porque nem todos os meus amigos são companheiros de trabalho e nem todos os companheiros de trabalho são meus amigos. Como o mala do Antônio. Ô, bicha nojenta! Não tenho preconceito nenhum contra gays, se tivesse não pegaria um, não é mesmo? Mas ele me faz odiar profundamente esse tipo de gay: a bicha invejosa. Na verdade, odeio qualquer invejoso: hétero, animal, vovô, criancinha, homo ou bi. Não suporto! E o Antônio é o extremo do extremo da inveja. Tem inveja de todas as mulheres porque queria ser uma, mas não tem coragem de cortar o dito-cujo dele. Então, é só alguma mulher ser elogiada que lá vem ele falar. E ele veio, assim que a Vanessa gritou aquelas palavras pra mim. “Hum... Tem certeza que o cabeleireiro usou a quantidade certa de tinta?”, ele disse, olhando minha cabeça bem de perto. “Tá mais escuro no meio.” “É pra ser assim”, respondi, ignorando o tom sarcástico da sua voz. Estava muito extasiada para isso. 4
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“Sei não...” “Antônio, deixa de ser implicante e vai fazer seu trabalho!” Juju era a única que ainda se dava ao trabalho de responder ao Antônio. Todo o resto da equipe fingia não escutar, e ele acabava falando sozinho. Tadinho, eu tinha pena, mas não dá, sabe? Ele é insuportável! Acho que só continua trabalhando com a gente porque é um tremendo iluminador. Antônio desapareceu de vista no instante em que subi no palco. “Palco bom esse, hein?”, eu disse, “grande...” “Não é?” “Adorei! Acho que é o maior em que a gente já atuou.” A Ju é uma das atrizes do grupo. Somos onze, sete atores, uma figurinista, um iluminador, uma cenógrafa e o Fábio, que cuida da música. Juliana, Roberto, Gabriel, Cínthia, Mila, Caio e Elisa se conhecem do colégio. Montaram o grupo de teatro depois de uma experiência bem-sucedida em uma festa de final de ano da escola. Eu entrei há dois anos, quando Elisa me disse que eles estavam precisando de alguém para fazer o cenário, antes função da Mila, que já estava de saco cheio. E eu já trabalhava com isso fazia algum tempo. Amo demais trabalhar com eles, mas nem tudo é um mar de rosas. Como somos independentes, falta grana, por isso fazemos nossa própria produção. Ah! Do que tô reclamando? É muito gostoso, o meu trabalho. Mal entrei no camarim — pois é, temos um camarim, onde até cabe todo mundo —, senti uma mão me puxando pelas costas. O vapor quente no meu ouvido denunciou: era Gabriel me agarrando contra ele. “Bom dia pra você também”, eu disse, fingindo não me afetar com aqueles lábios macios no meu pescoço. “Sabia que seu cheiro ia estar diferente.” Gabriel estava de olhos fechados, com certeza. Ele sempre fecha os olhos quando quer sentir melhor o cheiro de alguma coisa. “Cheiro de cabelo novo.” Brochei. Brochei, mesmo com a respiração dele tão perto, o que sempre me faz derreter. Cheiro de cabelo novo? Quão gay alguém pode ser? Quer dizer, 5
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quão gay alguém com quem estou ficando pode ser? Gaybe deve ter percebido que eu não estava como sempre — o fato de não jogá-lo contra a parede deve ter me entregado — porque se afastou. Deu mais uma olhada para o meu cabelo e falou: “Você ficou linda assim. Muito mais sexy.” Eu não disse nada, e ele deve ter entendido meu silêncio como um sinal para continuar, porque me puxou de novo, desta vez com a mão na minha bunda e completou: “Se a cama do cenário já tivesse sido comprada, eu te jogaria nela agora!”. Me afastei dele com um empurrão. O objetivo da minha mudança radical era esquecer o Gabriel, e não o contrário. “Gabriel, você é gay!”, falei bem alto, crente que ia abalar o menino, mas que nada! “E você sabe que é a única mulher que me dá tesão.” Juro que não sei se me senti elogiada ou insultada. Isso quer dizer que pareço um homem? Fiquei olhando pra ele, sem saber o que dizer, o que não é comum. Eu SEMPRE sei o que dizer. Mas o Gabriel mexe comigo de um jeito... Pra minha sorte, como uma intervenção divina, o Antônio entrou. Tá, uma aparição não tão divina assim, mas pelo menos suficiente para fazer o Gabriel me largar. Porque ninguém ali, além da Elisa, sabe o que rola entre a gente. Acho que alguns desconfiam, até porque é meio difícil encontrar maneiras e lugares novos pra se esconder durante um ano inteiro. Mas acho também que eles não devem acreditar nessas suspeitas porque, afinal, o Gabriel é GAY! Onde fui me meter, Senhor?
Sexta-feira, 28 de dezembro Sempre adorei bater perna atrás de objetos para os cenários. Garimpar bugigangas de loja em loja é um ótimo exercício, nem preciso ir à academia! Mas sozinha. Quando a Juju vai também, cruz-credo! Juliana Vargas — nenhum parentesco com Getúlio — é um amor de pessoa. Meiga, simpática, carinhosa, difícil encontrar alguém que não goste dela. 6
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Mas, quando vai às compras, sai de baixo! Desanda a falar sem parar, para em todas — eu disse TODAS — as vitrines, anda dando saltinhos, fica chata como uma criança pedindo brinquedo. E nem percebe que tem gente em volta. E que tá me matando de vergonha. Tenho que dizer a toda hora: “Menina, volta aqui!”, ou “Para de pular, Ju!”, ou então: “Se fosse sapo você estaria na lagoa”. Sem contar os cento e um “ã-hans” que solto, fingindo que tô ouvindo o que ela diz. Porque não dá pra acompanhar uma mesma história que dura uma hora e vinte e quatro intermináveis minutos. É isso mesmo! Cronometrei! Por isso foi um alívio quando entrei no meu apartamentinho silencioso sozinha — e sem compras, porque com a Ju junto é impossível. Mas é tão difícil dizer não pra ela... O silêncio, óbvio, não durou muito. É bem difícil manter a casa silenciosa quando você mora no mesmo prédio que seus amigos e todos eles têm sexto sentido pra saber quando você está em casa. Também, nos conhecemos desde crianças, alguma relação tinha que ter se estabelecido. E a nossa é quase paranormal. Foi só eu desabar no sofá vermelho, depois de beber um copão de água, que o telefone tocou. “Tá em casa?” “Não, aprendi a me teletransportar. Mas que pergunta, Estevão!” “Tô indo praí!” O prédio onde moro é bem antigo. Pequeno, sem play, sem garagem e sem elevador. Por isso mesmo, a maioria dos moradores é universitário duro ou recém-formado, igualmente duro, porque esses “sem, sem, sem” todos diminuem o preço do aluguel. E foram o aluguel baixo e a presença de meu lindo amigo Fausto, recém-saído do prédio em que eu morava com meus pais no Jardim Botânico, as razões de eu me mudar pra cá quatro anos atrás. E também porque eu morria de inveja da independência do meu irmão, que morava sozinho desde os vinte e um. Com o passar dos anos, a galerinha do prédio no Jardim Botânico foi migrando pra Santa Teresa. Depois de mim veio a Elisa, então o Ulisses, três meses depois o Estevão, mais dois o 7
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Bernardo, e por último a Valentina, que há um ano divide o apartamento com o Estevão, namorado dela. O pessoal não conseguiu viver longe. Depois de quase a vida inteira praticamente grudados, viver sem um pedaço do grupo foi impraticável. Por isso os Sete migraram todos para a zona artística/boêmia da cidade, e cá estamos!
Sábado, 29 de dezembro Chega um ponto em que eu paro e grito: QUERO IR PRA MACHU PICCHU! OK, não grito isso a toda hora, mas, quando o Bernardo chega aqui em casa dizendo que conseguiu um lugar for free pra se hospedar perto da cidade dos incas (um amigo do pai dele tem casa lá e vai passar um tempinho no Brasil, deixando a casa livre para os filhos dos amigos dele, ou seja, para o Bernardo e sua trupe: nós), eu me arrependo imensamente de ter escolhido essa minha profissão. Ou de ter aceitado fazer parte desse grupo de pessoas — desculpe o teor da palavra — fodidas, sem dinheiro. Por que não sou cenógrafa da Globo? Creio que até uma estagiária ganha mais do que eu. Não que eu ganhe mixaria — até porque trabalho (escondida) por fora também, fazendo assistência de cenografia em algumas peças aqui e ali — mas minha grana só dá pra pagar as contas e algumas eventuais (leia-se: quase todo fim de semana) saídas à noite. Não posso chamar de noitadas, porque pra mim noitada é sinônimo de coisa grande, uma big festa, uma discoteca superbadalada e coisas assim. Costumo ir a muitas festas, sim, mas na casa de amigos. E mesmo assim gasto uma quantia razoável de dinheiro. Mas, enfim, quando o Bernardo entrou na minha casa falando: “Bora pra Machu Picchu?”, a primeira coisa que aconteceu, depois que eu vi que ele tava falando sério, que não tava brincando, foi ficar com os olhos cheios d‟água. Claro que ele não se assustou nem nada, porque isso é normal. Choro à toa mesmo, ainda mais quando as coisas não acontecem do meu jeito. Mas nem todo mundo sabe que sou assim, já que só choro na frente de pessoas que sei que não vão me ridicularizar depois. Ou seja, só dos amigos. Dos meus Seis. E do Gabriel. Bernardo: “Alice, você não vai chorar, né?”. 8
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Eu (embolando as palavras): “É que... eu... queria tanto VIAJAR!” (nessa última palavra não aguentei mais segurar o choro e explodi). Bernardinho só faltou me pegar no colo. Sentou ao meu lado no sofá e ficou fazendo carinho na minha mão enquanto o mar afluía de meus olhos. Ele sabe que odeio que me abracem quando tô chorando, a não ser que eu esteja mal de verdade, por alguma coisa realmente triste. Senão, me sinto como uma pobre coitada e não gosto de me sentir assim. Na verdade, nem sei como chorei tanto por causa de uma viagem. Tá certo que eu amo viajar e estou há décadas (dois anos) sem sair do Rio de Janeiro, querendo como um viciado pegar um avião/ônibus/trem, mas não era motivo pro berreiro que abri. Acho que esse lance todo com o Gabriel tá me afetando. Porque, vamos ser sinceros, eu AMO o Gabriel. Amo mesmo. E ele ama homens. Por que, meu Deus, por quê? Depois que parei de chorar por conta de um telefonema que recebi da minha irmã e que me deixou nervosa — ainda não convém falar disso, porque senão fico nervosa de novo —, Bernardo me contou suas ideias pra essa viagem. Seu objetivo número um é convencer a Érica, garota que ele quer pegar faz meses, a ir com ele. Como não vai sozinho e está claro que a garota quer ficar com ele também (tá só fazendo doce) acho que ele consegue. Também, é complicado não aceitar uma proposta dessas do Bernardo, porque ele é um amorzinho. Deve ter falado de um jeito tão sincero e bonitinho que a garota talvez tenha precisado fazer um baita esforço pra não dizer sim logo de cara. Não sei como ela tá resistindo a ele por todo esse tempo, porque, além de fofo, ele não é de se jogar fora. Moreno, o cabelo liso mais lindo que já vi, suuupersedoso (eu, Elisa e Valentina brigamos pra sentar perto dele só pra ficar passando a mão), os olhos que parecem duas jabuticabas, alto, dentes perfeitos (só podia ser filho de dentistas mesmo!). E ele tá apaixonado, dá pra ver pelo sorriso enorme que aparece quando fala dela, apesar de a expressão “dar uns pegas” aparecer várias vezes também. Fausto concordou comigo, quando deu as caras uns quarenta minutos depois, que era só insistir mais um pouquinho que Bernardo conseguiria. “Elas sempre cedem”, disse com aquela 9
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cara de safado que ele tem. Fausto faz jus ao nome: ele parece ter vendido a alma ao diabo, de tanta sacanagem que faz. Nunca entendi como duas pessoas tão diferentes (Fausto e Bernardo) podem se dar tão bem, mas enfim... Amo o Fausto com toda a fúria do meu ser, porque ele é um amigo e tanto. Quem mais iria me buscar às quatro da madrugada em uma festa em Jacarepaguá? E quem mais entenderia por que eu não consigo largar o Gabriel, mesmo sabendo que isso não vai dar em lugar nenhum? E quem mais ficaria segurando minha cabeça enquanto eu vomitava depois do meu primeiro — e único — porre? Ninguém além do Fausto. OK, me buscar na festa em Jacarepaguá, admito, meus outros amigos também fariam se tivessem carro e/ou soubessem andar por lá. Mas também confesso que morri de ódio quando ele disse que iria pra Machu Picchu com o Bernardo. “Não! Você não pode ir!”, eu quase gritei. “Por que não?” “Porque você tem que ficar aqui comigo.” “Você não sabe que a Alice é assim? Se ela não pode, ninguém mais pode.” “E quem mandou você se intrometer, Bernardo?” (É, eu sou muito legal, mas também sei ser uma vaca.) “Tá, desculpa”, Bernardo disse, jogando as mãos pro alto, e foi pra cozinha. “Querida.” ODEIO quando Fausto começa as frases assim. “Eu tenho dinheiro, eu posso ir.” Tive vontade de arrancar o olho dele. E ele sabia, por isso falou assim. Porque o Fausto é muito legal, mas sabe ser uma vaca. “Tá, então vai! Ninguém vai sentir sua falta!” Agora eu tava gritando. Fausto não respondeu, continuou olhando pra mim com um sorrisinho irônico.
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“Se você não pedir desculpas em dois segundos...”, Bernardo falou, voltando pra sala com um pedaço de queijo minas na mão (Bernardo é fanático por queijo), “... ela vai te atacar”. “Não vou, eu sei que ele tá brincando”, eu disse, rindo. Essa é a nossa dinâmica, minha e do Fausto. A gente se ataca verbalmente, mas é tudo brincadeira. Adoramos uns joguinhos psicológicos. Mas como as pessoas parecem não gostar muito, fica só entre nós dois. Eu não disse que entre meus amigos rolam umas ligações indescritíveis? Só que nem sempre são muito saudáveis...
Segunda-feira, 31 de dezembro São três os meus desejos pro ano-novo: 1. Ganhar dinheiro. Toneladas. Quem sabe ganhar na loteria. “Será que é possível mesmo sem jogar?” 2. Adquirir o poder de teletransporte. Via no seriado Charmed e achava incrível. Desde então venho pedindo pro Papai Noel, pra Jesus Cristo, pro Papai do Céu e pra todos os amigos de presente. Por que será que nunca ninguém me dá? 3. Que Gabriel se descubra hétero e declare sua paixão por mim — e somente por mim, e não também pelos caras com quem ele fica toda noite, ou quase toda noite. Acho que, se eu for pedir que o terceiro desejo se realize, melhor checar minhas mãozinhas e ver se elas não estão cheias de dinheiro ou soltando raios azuis brilhantes que me façam ir daqui até Paris, porque com certeza seria bem mais possível.
Terça-feira, 1º de janeiro. Madrugada “Então, Johnny, me diz o que você quer.” Ulisses me chama de Johnny. Ele diz que é porque, se eu fico com um gay, tenho que ter um codinome masculino. Mentira, porque não é de agora que ele me chama assim. O desenho 11
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favorito do Ulisses sempre foi Johnny Quest, e, quando éramos pequenos, ele dizia que eu era igualzinha ao personagem — não sei como, se eu tinha cabelão (a não ser na época em que teve um surto de piolho no prédio e minha mãe cortou o cabelo de todo mundo lá de casa pra ela ter menos trabalho. Vai ver é daí). Agora já me acostumei com o apelido, acho até bonitinho, mas antes eu ficava possessa. Eu não era garoto pra ser chamada de Johnny! Só não batia no Ulisses porque ele e Bernardo sempre foram meus protegidos, por serem os mais novinhos. Eu fui a primeira a chegar à festa de fim de ano na casa do Ulisses. Cheguei antes mesmo da Elisa, que divide o apartamento com ele. Nossa festa de fim de ano sempre foi na casa dele porque sempre foi a maior, seja no Jardim Botânico ou em Santa Teresa. No Jardim Botânico, ele morava — e seus pais ainda estão lá — na cobertura. Em Santa, o apartamento é no último andar, que dá pra um terraço supimpa! É fantástico passar a madrugada lá em cima procurando as estrelas entre todos os fogos no céu. É lindo mesmo. E meus amigos também são. Tá, eu sei que todo mundo me diz que eu puxo um saco danado dos meus amigos, e que nem todos são tão lindos como eu digo, mas dane-se! Pra mim, eles são. E Ulisses tava lindinho. Todo de branco, como a gente tinha combinado. Cada réveillon vamos todos de uma cor só. Ano passado foi vermelho, o retrasado foi verde e, antes disso, amarelo, porque tava todo mundo precisando de grana. Este ano escolhemos branco, porque nos demos conta de que nunca tínhamos escolhido essa cor. E Ulisses não fez feio com sua bermuda branca, camisa de abotoar branca, tênis e meias brancos e gravata branca. Não consigo entender essa mania dele de usar gravatas! Já eram quase dez quando a gente decidiu ligar o som. “Então, Johnny, me diz o que você quer.” “Hum...”, pensei, deitada no sofá que também tava no clima de réveillon, branquinho. “Tem Jorge Drexler?” “Você sabe que não. Esse tipo de coisa é com o Bernardo.”
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“Você tem que começar a ouvir coisas mais românticas, Ulisses. Senão o que vai colocar quando estiver com a Daniella? Metallica?” Não suporto a Daniella! Até hoje não sei por que, entre tanta gente legal do estágio dele, o Ulisses foi escolher logo ela pra namorar. Acho que uma grande razão pra esse ódio que eu, ou melhor, nós sentimos por ela é o Ulisses se recusar a contar pra ela que mora com a Elisa, pra evitar deixar a Daniella com ciúme, e volta e meia a Elisa fica desabrigada, tendo que dormir na casa de um de nós seis. É um absurdo! Afinal, ela também paga aluguel — apesar de menos da metade — e tem direito de dormir na sua cama, assim como ele! Mas eu, ou melhor, nós não dizemos isso pra ele. Talvez as indiretas sejam o suficiente. Ele não precisa ouvir com todas as letras, né? Ficamos ouvindo Incubus por uns vinte minutos sozinhos até o pessoal começar a chegar. Onze horas o apartamento já tava cheio — incrivelmente, nenhum dos nossos convidados, sete por pessoa, faltou. Nem o Gabriel, que chegou carregando um primo que tava na casa dele. Uma droga, porque eu tava rezando pra ele não ir. Claro que secretamente eu queria que ele aparecesse, mas fingia que não. Tô tentando fazer as pessoas que sabem do nosso caso — os Seis mais meus irmãos — acharem que eu nem ligo pra ele, que fico por ficar. Mas ninguém acredita em mim. Por que será? A festa tava bombando. A seleção de músicas do Estevão e da Valentina estava demais. Eles vão ser os melhores produtores musicais ever! Têm um gosto maravilhoso pra música! Difícil era ver alguém parado. OK, havia aqueles eventuais garotos encostados na parede com um copo na mão, secando as garotas que dançavam por perto. Mas eram poucos. E aposto que depois de alguns minutos eles já estavam se esbaldando na “pista de dança” (ou seja, qualquer espaço livre que houvesse), assim como eu. Tava com minha prima e as amigas dela, e a cada música a gente ficava mais animada. Só parei uma vez pra beber alguma coisa, porque, apesar de lá ter janelas enormes, não dava vazão pra tanta gente suando e o apartamento já tinha virado quase uma sauna! Pra que eu fui sair dali? Não dei nem dois passos e ouvi o pessoal gritando “dez, nove, oito...”. . Faltavam oito 13
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segundos pra meia-noite e eu nem percebi. E agora, pensei, volto pra sala? Mas já que eu tava quase na cozinha, resolvi matar minha sede mesmo assim. Na cozinha devia ter alguém pra eu abraçar à meia-noite. É, tinha sim. O Gabriel tascando um baita beijo no “primo” quando gritaram “zero!”. Primo uma ova! Fiquei parada na porta olhando o beijo que não acabava nunca, estática, até ouvir alguém dizer “Feliz ano-novo!” atrás de mim. Tadinho do Fausto, porque eu nem respondi. Passei direto por ele e fui pro quarto da Elisa, que eu sabia que estaria vazio depois das precauções antidescobrimento que Ulisses tinha tomado por causa da Daniella. Que droga! Por que eu tenho que me importar tanto com isso? Nós não somos namorados, não somos nem ficantes! Somos “peguetes”, como diz a Elisa. A gente se pega de vez em quando, ou seja, sempre que estamos sozinhos, porque é impossível ficar perto do Gabriel sem querer atacá-lo. Ele é tããão gostoso — considerando que é possível achar um cara alto e magrelo gostoso, é claro, como é meu caso. Mas ele nem é tão magrelo assim... Ai! Por que eu tinha que ficar tão triste por vê-lo beijando um cara? Como se eu não soubesse que isso acontece... Mas ver é outra coisa. Ver é muito mais difícil. Deve ter sido por isso que chorei. “Alice?” Fausto e Elisa entraram no quarto. “O Fausto me contou o que aconteceu. Você tá bem?” Eu, claro, não respondi. Quer dizer, se você considerar que um rio de lágrimas não é resposta suficiente... Eu estava sentada na cama da Elisa, e ela sentou na minha frente. Fausto me deu um abraço. Ele cisma em desrespeitar minha regra de não me abraçar quando estou chorando. Mas, quer saber, ele pode. “Se eu estivesse lá, teria dado um pontapé nas bolas dele. Queria ver se, capado, ele ia fazer qualquer coisa com outro bofe.” Elisa fez o gesto de tesouras cortando algo no ar, e só com isso já fiquei um pouco menos desanimada. Ainda mais por Gabriel ser tão orgulhoso de seus acessórios de baixo. 14
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“Eu poderia ter feito isso, mas vai que ele se apaixona por mim”, Fausto disse, puxando a cadeira da escrivaninha da Elisa pra sentar. “Alice não ia ficar feliz.” “É, porque todo ser humano é louco por Fausto Meirelles”, Elisa brincou. Depois virou-se pra mim e falou: “Agora pare de choramingar por esse traste e vamos voltar pra festa”. Olhei pra ela, secando as lágrimas. Depois olhei pro Fausto. “Ele não te merece, pequena. Manda ele tomar naquele lugar e vamos nos divertir.” É tão bom ter meu próprio exército de salvação.
Terça-feira, 1º de janeiro Mais tarde, bem mais tarde Almoço de ano-novo na casa dos meus pais, que virou tradição desde quando meu irmão foi morar sozinho. Foi só eu chegar e minha irmã me escoltou até o quarto, que costumava ser nosso. (Esse foi outro motivo pra sair de casa: falta de privacidade no meu quarto porque, apesar da gente morar no Jardim Botânico e todo mundo pensar que a gente é rico, nosso apê não é lá tão enorme.) Incrível como ela transformou o quarto. Depois de uma semana morando fora, o lugar já era outro. Agora então, acho que a única coisa que se mantém original é o Fluffy, cachorrinho de pelúcia que deixei com a Amanda quando me mudei, porque desde pequena ela vivia tentando roubá-lo. “Amanda, o que é isso?”, perguntei quando ela fechou a porta com chave. “Tá rolando um assalto?” Ela se virou pra mim, toda séria. “Lembra aquele dia que te liguei?” Ai meu Deus, pensei. Porque eu lembrava. Lembrava muito bem, apesar de não querer, apesar de ter passado os últimos dias tentando não pensar no assunto. E por isso mesmo, e por causa da expressão concentrada da minha irmã, comecei a me preocupar. “Sei...”
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“Então, foi alarme falso.” “Ai, garota! E precisa fazer esse suspense todo?”, eu disse, dando um baita suspiro de alívio. “Quase me mata de susto!” “Desculpa. É só porque eu não queria que mais ninguém ouvisse”, ela apontou pra direita, que era a direção do quarto dos nossos pais. “E queria te contar logo também. Sabia que você ia ficar preocupada e tal.” “Mas é lógico!” “Tsc, não sei por que tanta preocupação. Viu? Não é nada de mais.” “Ah é, né? Não é nada de mais? Por isso então que você me ligou apavorada aquele dia? Dizendo que sua vida tinha acabado? Que você queria se matar?” “Ah, você sabe como eu sou dramática...” E é mesmo. Quando tinha seis anos, ela caiu do balanço e abriu um berreiro, dizendo que tinha quebrado o braço. Foi só um cortezinho leve. Aos 11, entrou em casa berrando que ia morrer porque estava tendo hemorragia externa que nunca mais ia parar de sangrar. Era sua primeira menstruação. Com 15, fez greve de fome até meu pai permitir que ela namorasse o Rafael. Três meses depois, fez greve de fome de novo, quando o Rafa terminou com ela. Deu certo outra vez, porque ele voltou atrás e estão juntos até hoje, o que continua não deixando meu pai muito feliz, já que ele não vai com a cara do menino. Bobagem do meu pai, porque o Rafael é muito legal. E tem que ser mesmo, pra aturar minha irmã, credo! Eu tenho certeza de que, se ela estivesse mesmo grávida, ele daria apoio total e não iria fugir. Mas eu bati muito na madeira e Deus ouviu minhas preces: ela não está! Muito obrigada, anjinhos! Depois da revelação tranquilizadora, voltamos pra sala. O restaurante ao lado é mesmo “uma cozinheira de mão cheia”! Cada comida maravilhosa que meus pais trouxeram de lá, e tudo variado. Bacalhau gratinado (pra mim, que só como peixe), picadinho de carne (pra minha irmã, que só gosta dessas coisas “refinadas”), uma superomelete de queijo de cabra e tomate seco 16
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pro meu irmão e pra minha mãe (os vegetarianos da casa) e pro meu pai... Bem, ele comeu um pouquinho de tudo. E ainda tinha arroz de brócolis e lentilha (pra dar boa sorte), salada Caesar (à la meu irmão, única coisa que não era comprada), maionese de legumes (sem maionese) e um molho de queijo pra salada maravilhoso! Das sobremesas nem vou falar pra não me dar água na boca. Mas... uou! Depois do almoço foi aquela coisa de sempre. Todo mundo no sofá, sentadinho (ou seja, sem conseguir levantar depois de tanta comida), falando sobre como foi a virada de ano de cada um, como vão as coisas, o que pretende fazer no novo ano, e por aí vai. Até que decidimos jogar um jogo, mas tava todo mundo com tanta preguiça de levantar que concordamos que assistir a um jogo seria muito mais legal, e ligamos a TV. E assim foi o resto da nossa tarde, vendo TV, falando (ouvindo “Cala a boca”. Não sei qual a diferença de ouvir e não ouvir um jogo, você não entende o que os jogadores falam mesmo! E era um canal japonês! Até parece que meu pai ia entender alguma coisa!), bebendo água, dormindo, essas coisas superprodutivas. Cheguei tão tarde em casa que nem passei na casa de nenhum dos meus amigos, não liguei pra ninguém, e muito menos respondi a mensagem que o Gabriel deixou na secretária. É um cara de pau... Vai beijar o primo, vai!
Sexta-feira, 11 de janeiro “Eu tenho uma ideia! Eu tenho uma ideia!” “Fala então, Ju.” Depois de mais de uma hora tentando pensar em uma saída pro nosso problema, não era a situação mais favorável ter logo a Juliana gritando que havia achado uma solução. Ela não é conhecida por ter as ideias mais, vamos dizer, executáveis. Por isso não foi surpresa pra ninguém quando ela disse: “A gente tira dinheiro de alguma outra área pra comprar!”. É, por que ninguém tinha pensando nisso antes? Será porque NÃO TEMOS DINHEIRO!?! Boa, Ju. Se fosse possível. 17
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O problema: zero patrocínio. Pequeno desespero, já que a maioria das nossas peças teve pelo menos um pequeno patrocínio das lojinhas do entorno de onde seriam apresentadas. Se não isso, um apoio. Dessa vez, nada, o que fez nosso chão desmoronar, já que estávamos certos de que teríamos alguma ajuda. Ô, povinho mais pão-duro, esse da Tijuca. E até agora não dá pra acreditar na incrível solução que a Ju nos deu, sendo esse o problema. Por causa disso, foi confusão total no trabalho. Todo mundo estressado, o que fez ator brigar com ator (principalmente com o Roberto, que é também o diretor dessa montagem), figurinista brigar com a cenógrafa (ou seja, eu!), cenógrafa brigar com diretor musical, e todo mundo brigar com Antônio. Mas também, quem mandou ele dar ataque de pelanca logo no dia do caos? Senti um alívio tremendo quando saí de lá. Nem a chuva de janeiro que começou a cair me desanimou, pelo contrário. O barulho da chuva limpou meus ouvidos das gritarias daquele grupo. Ô, loucura! Eu e Gabriel — é, ele também fugiu de lá — andávamos pelas ruas, debaixo das marquises, dando graças ao Divino por termos conseguido escapar ilesos da confusão. Mal sabia ele que estava prestes a se ferir, já que eu não ia deixar aquela história do anonovo ser esquecida. “Tava lendo as previsões pro meu signo esse ano.” É, Gabriel é do tipo que acredita nessas coisas, o que não condiz muito com sua personalidade, já que ele é cético em relação a tudo. tudo. Nem em Papai Noel ele acreditou algum dia. “Os meus planos profissionais e amorosos vão ser excêntricos. Queria que o Caio fosse o diretor dessa peça, ele é excêntrico.” “Gabriel, que primo é esse que você sai dando beijo na boca?” Por mais interessada que eu estivesse — ou não — no que iria acontecer na vida de Gabriel Duarte, não podia mais segurar e praticamente vomitei a pergunta, depois de longos onze minutos me forçando a não dizer nada. Parabéns, Alice, foi um recorde! Gabriel não estava esperando ouvir o que ouvira. Porque, por mais nonchalant que eu tenha soado — outra vez: ou não —, ele não está habituado às crises agudas de namorada ciumenta que de vez em quando baixam em mim. Não, não, não! Gabriel está acostumado com a Alice relaxada, confiante, segura e, por falta de 18
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palavra melhor, excitada. A Alice paranóica, guardo pros amigos, coitados deles. Deve ter sido por isso que ele sorriu, como se achasse que eu tava brincando. E foi com o tom mais natural do mundo que me respondeu. “É que ele é um primo muito distante.” E continuou andando olhando pro seu All Star preto, que chutava uma latinha de refrigerante. Simples assim. “Simples assim é o cacete!”, pensei e falei. “Quê?”, perguntou, já que ele não lê meu pensamento e não entendeu o motivo da minha revolta. Mas quando ela bate, minha filha, é difícil desviar! “Você acha mesmo que é assim, né? Você vem, diz „vamos‟, e eu vou, na hora que você quer?”, a minha insatisfação com esse relacionamento de mão única apareceu e se recusou a ir embora sem pelo menos dizer “oi”. Gabriel continuava andando, mas começava a olhar pra mim de relance. “Aí, vai na MINHA festa, para a qual EU te convidei, e leva o „primo‟ porque EU deixei, e fica a noite toda beijando o „primo‟, que, pelo amor de Deus, admite logo, não era primo coisa nenhuma!” Eu parei de falar — mas não de andar —, esperando uma resposta. Qualquer uma. Não veio. Acho que ele ainda tava achando que eu tava de sacanagem. Ou que peguei o ataque de pelanca do Antônio — porque ataques de pelanca são contagiosos. Foi só quando chutei pra longe a porcaria da latinha que ele continuava chutando cada vez mais para a frente como um jogador de futebol obsessivo que ele finalmente olhou pra mim e perguntou: “Ah, é pra eu falar mesmo?”. Não respondi. Me recusei. “Tá, ele não era meu primo”, ele disse, e seu tom de voz fez parecer que aquilo era a coisa mais óbvia do mundo. Pior que era mesmo. “Mas o que você queria, que eu e você transássemos num dos quartos? O pessoal do teatro estava lá, Alice. E se alguém pegasse a gente?” “Qual o problema?”
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“Eu sou gay!”, gritou. “Eles iam achar que eu sou bi, e eu não suporto os bi.” Sério, eu quis rir na cara dele. Mas não ri. Em vez disso, falei que não ia mais pra cama com ele. “Não senhor!”. É, eu acrescentei essa parte dispensável. Gabriel sorriu e disse: “Chegamos. São quantas resmas de papel pra comprar?”, e entrou na papelaria me deixando com o sangue fervendo e gotas de chuva caindo no ombro da minha blusa, no lado de fora. Saímos da papelaria calados, e a viagem no ônibus foi assim também. Eu não sabia se choraria ou berraria se abrisse a boca, então achei melhor mantê-la fechada. Gabriel ficou contando as folhas de papel dentro da mochila, e depois de conferir que estava tudo certo, fechou a dita-cuja e ficou olhando pela janela as poças de água que a chuva tinha feito. Eu olhava para a frente séria e concentrada, tão concentrada que só fui perceber que tinha passado meu ponto quando estávamos em Botafogo. Então me levantei e puxei a cordinha pra descer, mesmo sem ter muita noção de onde estava. “Peraí, faltam dois pontos pro meu”, Gabriel falou, indo atrás de mim. “E?” “Ué, espera.” Claro que entendi que ele queria que eu fosse pra casa dele. Até parece! Desci do ônibus dois pontos antes do dele e fui andando até o sinal pra poder atravessar a rua. Gabriel fez o mesmo caminho. Então estávamos eu e ele, lado a lado, esperando o sinal abrir, eu sem olhar pra cara dele, ele olhando pra minha. E aí a coisa mais estranha aconteceu. Começou a chover de novo. Forte, bem chuva de verão mesmo. O estranho é que eu sabia que gostava de chuva, mas não tanto a ponto de ficar feliz por sentir os pingos grossos batendo no meu cabelo. Mas parece que sim, porque mesmo depois de o sinal abrir fiquei ali, parada na chuva, nem aí para o fato de que provavelmente minha blusa branca estava ficando transparente, com um sorriso de orelha a orelha que eu não sei de onde surgiu.
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“Você fica ainda mais linda debaixo de chuva.” Vi que minha blusa estava mesmo transparente no espelho que tinha no caminho da porta pra cama do quarto do Gabriel. É, eu sei que devia ter resistido, mas fazer o quê? A carne é fraca. Já a pegada dele... Cheguei arrasada no meu prédio. Dois motivos: Eu tinha dormido com o Gabriel de novo; Eu estava exausta depois de todo o sexo, e ainda tinha que subir seis andares de escada até meu apartamento. Amaldiçoei minha preferência por andares altos, mas, sem nada mais a fazer, já que não tenho asas e ainda não aprendi a voar sozinha, comecei a subir as escadas. No segundo andar eu já estava me escorando na parede, então antes de colocar o pé no primeiro degrau que me levaria ao terceiro andar, resolvi visitar Valentina e Estevão. Foi uma vontade tão grande de ver meus amigos que moram no 204, sabe? Dessas que dão de repente! Quando Estevão abriu a porta, eu estava pronta pra ir direto até o sofá, deitar, e me deixar ser servida por Valentina, que é de longe a melhor anfitriã que conheço. Ela não faz você se sentir em casa, porque em casa não tem um banquinho especial com almofada para colocar os pés, não tem 22 tipos de biscoitos amanteigados à sua disposição (que estão lá somente para você), e nem saquinhos de chá, sabor todas as frutas, esperando para ser consumidos na hora em que você quiser. Ela faz você se sentir em um hotel com serviço de quarto excepcional — e, melhor ainda, sem precisar dar gorjeta! Porém eu não me joguei no sofá, não comi biscoitos (o que foi bom, porque tô precisando perder uns quilos) nem coloquei meu pé em cima de um banquinho porque, quando Estevão abriu a porta e eu disse “Oi”, ouvi lá de dentro alguém gritar: “Tia Alice!!!”, e segundos depois uma pessoa em miniatura se jogou nas minhas pernas. Lucca estava lá, e isso mudou tudo. Peguei aquela criança no colo e só de ver seus olhos verdes brilharem ao me ver, os meus próprios ficaram mais vivos. Como um serzinho desses pode transformar o dia de alguém tão drasticamente? Lucca é irmão de Valentina. Nasceu quatro anos atrás. Valentina já era “velha”, tinha 16. Lembro que todos nós fomos ao hospital no mesmo dia em que Lucca nasceu. Lembro também de 21
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me apaixonar por ele no momento em que o vi mordendo o próprio pé, na primeira vez que coloquei os olhos nele. Talvez tenha sido porque Lucca era o primeiro bebê que via nascer, estava ao lado de Valentina quando seu pai apareceu todo orgulhoso dizendo que agora ela tinha um irmão, e que ele estava bem. Foram lágrimas pra tudo que é lado, e até Fausto chorou! Por sorte, muita sorte, Lucca também se apaixonou por mim. Na verdade, ele adora todos nós; que criança não amaria pessoas que a mimam e vivem dando presentinhos? Mas, entre nós sete, Lucca tem um carinho especial por mim e pelo Bernardo — tirando Valentina e Estevão, é claro, que são como seus segundos pais. Toda vez que me vê é a mesma coisa: vem correndo, grita “tia Alice!!!” e se joga nas minhas pernas, acho que por não ter força suficiente pra pular no meu colo de uma vez. Ele é tão lindo! “Meu pequeno!”, eu disse, ao segurá-lo de frente para o meu rosto. “Minha grande!”, ele respondeu como fazia toda vez. Esperto, né? “Veio visitar sua irmã?”, coloquei ele no chão. Tava com mais ânimo depois de vê-lo, mas nem por isso me tornei a Hulka. “Não, ela foi me buscar na creche.” “Creche?”, perguntei olhando pra Valentina, que arrumava algumas almofadas no chão pro Lucca brincar. “Em janeiro?” “É. Pros pais que trabalham em janeiro.” Notei um leve ressentimento em sua voz, e eu sabia por quê. Valentina é 100% contra a política de seus pais de trabalharem o ano inteiro sem tirar férias. Eles realmente não tiram férias NUNCA, vai saber por quê. E olha que Valentina saiu de casa também pra que seus pais pudessem dar atenção exclusiva ao novo filho, já que ela agora podia se virar sozinha. Mas o garoto passa mais tempo na creche do que com os pais. Essa é uma das únicas coisas que tiram Valentina do sério.
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Pra melhorar o clima que esquentei com minha simples pergunta, levei Lucca até as almofadas pra ele me mostrar o jogo que ganhou de Natal. Eu cuidava do garoto, Estevão que cuidasse de Valentina agora! E ele deve ter cuidado bem, porque quando fui embora, não muito tempo depois, que já estava tarde e Lucca ainda tinha que tomar banho e jantar antes de dormir, Valentina estava em seu estado normal: calminha, calminha. Assim como eu. É, um beijinho babado de criança no rosto faz toda a diferença!
Domingo, 13 de janeiro “Por que você não o trata só como um objeto sexual?”, Elisa perguntou, deitada na canga que dividíamos. “Tipo, só pra aliviar a tensão?” “Não era assim no começo?” Ulisses conseguiu escapar das garras de Daniella e foi pra praia com a gente aproveitar o sol depois de tanta chuva. “É, mas antes ERA só isso”, respondi, sentada na minha metade de canga. “É só voltar a ser „só isso‟.” Típico de Fausto. Como se fosse muito fácil, não é? Bem, pra ele é. “Como? Eu ignoro que tô apaixonada por ele e pronto?” “É”, Fausto continuava a falar como se suprimir os sentimentos fosse tão fácil quanto olhar para a direita. “Até porque não tem muito mais o que você fazer em relação a essa paixão.” Ele debochou mesmo: “Ele é gay”. “Olha! Aquela mulher corre estranho.” As palavras de Elisa ficaram suspensas no ar enquanto eu parava pra pensar e os outros paravam pra ver a mulher que corria estranho. 23
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“Vocês estão certos”, eu disse decidida, e eles voltaram a atenção pra mim. “Vou fazer isso. Vou ignorar a paixão dilacerante que se alojou em mim e usar o Gabriel como ele me usa, como um boneco inflável que respira.” “É.” “Isso.” “You go, girl.” Me senti invencível depois da minha súbita decisão. Podia colocar a mão pra cima e gritar “She-ra!”, se eu tivesse uma espada comigo na hora. Minha autoapreciação foi cortada quando ouvi de repente a voz de Bernardo, que pra mim estava dormindo na cadeira dele. Parece que não. “Faz dele um simples fofi.” “Um o quê?” “Fofi”, ele repetiu diante de nossas expressões confusas para depois explicar: “Foda fixa”. Ah, os jovens e suas gírias novas...
Quarta-feira, 16 de janeiro Estava eu tomando banho feliz e contente, gritando, quero dizer, cantando meu repertório de músicas de banho (“O amor e o poder”, “Bitch”, da Meredith Brooks, “You oughta know”, “Como nossos pais”, “Tropicália”, “Faroeste caboclo”, “Morango do Nordeste”, entre outras) quando, de repente, me vi morrendo. Ouvi um barulho estranho e, do nada, o teto ficou escuro. Juro. Uma sombra pairou sobre minha cabeça e achei que o prédio fosse desabar. Desde que aquele prédio caiu na Barra, a minha certeza de que o lugar que a gente mora é 100% seguro se desfez. Eu não fico encucada, pensando que posso me ver sem o chão a qualquer minuto, mas naquela hora quis ser mais paranóica, porque se eu fosse, teria tomado as devidas precauções para não morrer, caso minha casa desabasse. Se bem que não sei se existe alguma precaução a tomar em relação a isso.
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Segurei minha cabeça e dobrei os joelhos, como as pessoas costumam fazer quando veem algo caindo, como se isso fizesse a coisa parar de cair, ainda mais sendo um prédio. Como tapar a cabeça ajudaria nessa situação? Segurei a cabeça, dobrei os joelhos e fechei os olhos — se eu for morrer, não ver a hora da morte nem me ver morrendo, ainda mais se estiver pelada, são opções mais satisfatórias. Ainda bem que não morri, senão iam me encontrar nua debaixo dos escombros, olha que situação constrangedora! E também não senti nada bater em mim. Se o prédio estivesse caindo eu sentiria algo, acho. Ou será que já tinha morrido e nem havia me dado conta? Que bom, morri sem dor, pensei. Com medo de abrir os olhos e ver diabinhos sorrindo malvadamente para mim — não sou ingênua de pensar que vou pro paraíso —, abri os olhos pela metade e olhei pra cima, já preparada pra sorrir de volta pros diabinhos. E lá estava ele, Snoopy, olhando de volta pra mim em cima do boxe, com carinha de quem não tava entendendo minha forma de agir. Acho até que li seus lábios dizerem: “Tá maluca?”. Supergato ataca outra vez, falei me recompondo antes de acabar meu banho, toda orgulhosa dos pulos do meu gato ninja.
Domingo, 20 de janeiro Vou confessar um segredo. Mas... será que devo? Bem, que adianta guardá-lo? Não contar não faz o segredo deixar de existir. Nem a vergonha fica menor porque ele não é comentado. Já participei de um ménage. Ménage à trois. Foi no início de um namoro, eu tinha uns dezoito anos e conhecia o garoto havia três. A gente agora nem se fala mais, mas na época eu o amava. Ou achava que amava, como a gente sempre acha que ama a pessoa com quem a gente está no momento. Ou vai ver eu amava mesmo, sei lá! Sempre me confundo com essas coisas. Estávamos juntos fazia quatro meses, e — olhe bem — nunca tínhamos transado. NUNCA. Nunquinha. Fui inocentemente (mentira, porque nunca fui inocente nessa vida) com ele até a casa de uma amiga. “Só buscar um livro”, ele disse. Com essa desculpa 25
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esfarrapada eu já sabia que coisa boa não era, até porque ele não aguentava mais nosso namoro de criança, só de mãos dadas e beijos calorosos — e não cansava de repetir isso. Chegando à casa da tal garota, a gente entrou e ela foi pro quarto pegar o livro, enquanto esperávamos sentados no sofá. Não tinha mais ninguém na casa, por isso mesmo ele aproveitou esses minutos sozinhos pra começar o jogo: veio pra cima de mim beijando meu pescoço. Desde aquele tempo, o pescoço é meu ponto fraco, por isso não consegui resistir por muito tempo, e, quando a menina gritou lá de dentro pra gente ir até o quarto, já estávamos atracados feito macacos no sofá da sala. Levantei e segui o meu namorado até o quarto, que ele parecia saber muito bem onde ficava. Até aí, nada de mais, já que eles eram amigos e eu também sabia onde ficava o quarto do Ulisses, do Fausto, do Estevão... Mas, quando cheguei no quarto e as cortinas estavam fechadas, comecei a achar algo estranho. Tava um ventinho bom lá fora, quem não ia querer aquela brisa pra refrescar um pouco a casa? Mas tudo bem, não falei nada. Daí sentei na cama (não havia sinal de cadeiras), o garoto sentou do meu lado. A menina disse que não estava achando o tal livro, que, se não me engano, era O apanhador no campo de centeio (aliás, o livro era meu, já que eu tinha emprestado pra ele), e foi procurar na biblioteca da casa. Aí fui inocente mesmo: se ela estivesse procurando um livro, por que não teria começado logo na biblioteca? Perguntei isso pro menino, e ainda falei que a garota era meio burrinha! Mal sabia que a burrinha era eu... Assim que a menina saiu do quarto, ele me agarrou de novo e eu, mais uma vez, não resisti. Nunca fui nenhuma santinha, sempre gostei de um bom amasso, e tava tão a fim... Deixei rolar, mesmo não estando na minha casa nem na minha cama. Ah, sim, eu não era mais virgem fazia pouco mais de um ano, o que não era motivo pra eu dar uma de vadia e ir pra cama de outra pessoa com meu namorado! Mas na hora nem pensei. Pensei menos ainda quando, enquanto ele tirava minha blusa, a garota apareceu com os peitos de fora e se meteu entre a gente. Tipo: como assim? Mas eu não estava nem ligando! Nem percebendo nada... Continuei a beijá-lo e a achar tudo muito bom. Só quando deparei com uma boca com batom demais — e de cor diferente do meu — é que vi que não estávamos sozinhos. 26
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Parei na hora, claro. O menino disse algo como: “Relaxa e goza” (claro que não foi exatamente isso), e então percebi toda a armação. Como já tínhamos começado e estava com a vontade explodindo, joguei tudo pro alto e... Ah! Quem eu tô querendo enganar? O que realmente aconteceu foi que eu e o garoto ficávamos (nada sério) fazia quatro meses, um pouco de sexo já havia rolado, ele me perguntou se eu faria um ménage, eu — curiosa, porém me borrando de medo — aceitei, fui, fiz, foi uma droga, descobri que não gosto de mulher MESMO e nunca mais na minha vida quis ver o garoto. Muito menos a garota. E nunca mais aceitei fazer algo só porque tava morrendo de tesão. Bem... tirando o Gabriel. Ui, tô bem mais leve agora...
Quinta-feira, 24 de janeiro Hoje eu quase apertei uma bunda. No meio de um supermercado. Tá, não no meio porque a gente não tava bem no centro do supermercado — nem eu nem a bunda, quer dizer, nem o garoto dono da bunda. Eu tava passando e ele tava parado, de costas e sem blusa, conversando com uns amigos que estavam no caixa. Meu olho bateu e ficou. Olhei tudo. Sim, nós meninas também olhamos tudo. Pelo menos as safadinhas — e espertinhas — como eu. Se tá lá, à disposição, por que não aproveitar e dar uma espiadinha, né? Mas acho que, esse, até as não safadinhas olhariam, porque era lindo! Moreno de praia, cabelo de surfista, corpo sarado e tatuagem (do tamanho ideal) nas costas. E uma bundinha... Tava olhando de longe, de cima a baixo, e parei lá, na bundinha. Tamanho ideal, redondinha, perfeitinha. Aí eu já tava perto dele, e minha mão foi quase que automaticamente chegando para a frente. Eu não tinha controle sobre ela, juro! Mas a bundinha era perfeita pra isso, pra ser apertada! Porque tem algumas que parecem ter sido feitas só com esse objetivo. E a dele era uma dessas. Minha parte preferida do corpo do homem é a bunda, é verdade. Às vezes, quando o garoto não tem bunda bonita, até desisto dele! Aconteceu uma vez, mas isso não vou contar agora, até porque já fui muito recriminada por esse fato e por minha obsessão por bundas. 27
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A bunda do Gabriel, claro, é linda. Você não imaginaria que uma pessoa magra tem uma bunda tão carnudinha, mas a dele... uiui. Igual à desse garoto que eu quase apertei. Porém o que apertei foi o passo, pra minha mão não conseguir alcançar seu objeto de desejo. Já pensou: o garoto ia achar que eu sou uma maluca, no mínimo! Ah, mas que deu vontade, deu...
Quarta-feira, 6 de fevereiro Tenho oito mandamentos para o Carnaval: 1. Não beberás do copo de outrem (como mamãe já dizia, vai saber o que podem ter jogado lá dentro!); 2. Irás à maior quantidade de blocos e festas a que conseguires ir; 3. Dançarás até o amanhecer. Todos os dias!; 4. Ficarás de olho em seus amigos para que não deem vexame (principalmente Fausto e Bernardinho); 5. Não pensarás em homens, somente em divertir-se; 6. Usarás a criatividade para inventar fantasias dignas de primeiro lugar; 7. Não esquecerás de tomar banho, mesmo que acordes às onze horas para sair às 11h01; 8. Não se darás ao trabalho de assistir aos desfiles das escolas de samba, pois são mera desculpa para dezenas de artistas desesperados por lugar na mídia mostrarem o corpo. Tirando o primeiro mandamento, não segui nenhum. Não fui a festas, não fui a blocos, não dancei a noite inteira. Passei os quatro dias de busca enfurecida aos pecados carnais em casa, arrumando meu apartamento. Por livre e espontânea vontade! Desde que me mudei, os meus papéis estão jogados no armário, a roupa de cama está desconjuntada na gaveta de baixo, e o estoque de Fandangos que trouxe da casa dos meus pais está estragando na cozinha (tenho uma mania doentia de comer Fandangos na 28
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frente da TV, vestindo meias coloridas até o joelho. Tem que ser com meias coloridas até o joelho). Joguei fora os salgadinhos com muito dó no coração, mas admito que já estavam começando a feder — não sei por quê, mas na casa dos meus pais comia Fandangos usando meias coloridas, na frente da TV, com muito mais frequência — e no meio de tanto papel e lençóis espalhados por meu pequenino apartamento, tive que recusar todos os convites para sair. O que me rendeu uma baita dor de estômago. Imagine o esforço que é negar algo que já está intrínseco em seu ser. Isso há de repercutir negativamente em seu corpo! Foi um Carnaval patético, solitário e sem fantasias: de fantasia só a que imaginei em um dos dias mais tediosos. Gabriel estava envolvido, o que arruinou: 1. Um dos motivos por que decidi passar o Carnaval em casa; 2. O mandamento número cinco, um dos mais importantes da lista. Falando em mandamento importante, outro que era muito valioso era o quatro, e por esse não ter sido seguido chegavam a mim vários babados, ou melhor, fofocas, ou melhor, acontecidos. Eu sempre digo que Bernardinho tem que saber a hora de parar de beber! Enfim, melhor nem comentar... Assim como é melhor não comentar o fato de que fiquei dois dias sem tomar banho (porque, afinal, eu não saí de casa!). Mas, pelo menos, minha casa agora já está com cara de gente grande (se ela fosse pessoa), e agora eu também sei quem arrasa na passarela! Ai, ai, ninguém merece...
Quinta-feira, 14 de fevereiro “São sete dias de pecado. Sete dias em que os anjos fecham os olhos e fingem nada ver. Sete dias em que a Terra se transforma no inferno dos Céus. E foi durante esses sete dias que Nero e Eva se conheceram.” 29
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É assim que começa nossa peça. Pode ser que ocorram modificações — o roteiro quase sempre muda, até o dia da estreia —, mas por enquanto é isso. Palavras de Roberto, que disse ter escrito o roteiro inspirado em Macbeth, na Grécia antiga e em Pulp fiction. Então tá. Nero: Mila França Eva: Caio Andrade Mas eu juro, com o figurino completo (a única coisa completa da peça, e só os dos personagens principais), não dá pra perceber que o Nero não é homem e que a Eva não tem peitos. Tô me matando com o cenário. Os detalhes, as coisas pequenas, tudo bem. O difícil é achar os grandes móveis cor de cereja. Veja bem, não é um vermelho normal, é cor de cereja, porque eu não queria um simbolismo de inferno tão convencional. Por que eu tenho que ser tão altamente genial? A gente estreia em três semanas (graças à Casa do Carvalho, que nos deu dinheiro. Yay!) e até agora só comprei balangandãs. Vem todo mundo pra cima de mim: “Como posso fazer a cena da cama sem cama?”. Abstração, people, abstração! Quem mandou querer estrear a peça tão já? Tô ficando louca! Completamente! Já escutei “Perfecta”, do Miranda, umas 935 vezes (por um motivo que desconheço, essa música me acalma muito) e não está tendo o efeito esperado. Já puxei o rabo do Snoopy, o que sadicamente me relaxa, mas depois de algumas unhadas decidi parar. Quero porque quero achar tudo — e com preços baixos de preferência — em um piscar de olhos! Será que se eu desejar com força acontece? Ou será que vou precisar de PADRINHOS MÁGICOS?!
Segunda-feira, 18 de fevereiro Alice Maria está triste hoje. Não sou de falar de mim em terceira pessoa: essa foi uma das primeiras frases que Ulisses disse ao me ver. 30
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“Não tô não”, rebati. “Eu sei, na verdade quem tá triste sou eu.” Devia ter percebido, Ulisses tem essa mania de dizer que o outro está sentindo o que ele está sentindo, geralmente quando é uma emoção negativa — e espera que o outro perceba que na verdade ele está falando de si. Não sei se ele faz isso porque acha mais fácil — leia-se menos degradante para seu ego masculino — do que dizer com todas as palavras, ou se tem medo de sentir-se mal — sabe essas pessoas que não sabem lidar com sofrimento? — mas não tento mais entender. Foram muitos anos tentando sem encontrar uma resposta. E sim, claro que já perguntei pra ele, mas necas de me responder... Foi fogo arrancar dele o que estava acontecendo. Eu e Valentina penamos, mas conseguimos descobrir que o tio dele está no hospital, internado em estado grave. Acho que esse é o pior jeito de enfrentar a mortalidade: quando alguém perto de você, de quem você gosta muito, está tão próximo de morrer. Mas infelizmente é a única maneira de pensarmos nisso. É difícil alguém pensar que somos todos seres passíveis de não existir mais (pelo menos não como somos agora) quando tudo está bem. Geralmente só pensamos nisso quando passamos por uma tragédia, ou uma quase morte nossa ou de alguém querido. Tudo bem, eu sei que fiquei muito chocada com a morte do Heath Ledger (afinal, eu dizia que me casaria com ele caso o Gael me rejeitasse), mas não me fez parar pra pensar que um dia eu também vou morrer ou que vou sentir falta do Heath, porque eu nunca o conheci de verdade. Bem diferente de quando meu bisavô morreu. Apesar de eu ser bem pequenininha na época, lembro como se fosse hoje. Eu, aquela criança gorda de cinco anos, me acabando de chorar no corredor de casa, com minha irmã do lado sem entender nada (afinal, ela só estava com dois anos). Depois disso emagreci pra caramba e meus coleguinhas pararam de me chamar de filhote de orca. Será que tem ligação? O tio do Ulisses não morreu, nem os médicos disseram para perder as esperanças, mas Ulisses já perdeu as dele. São quase dois anos vendo o tio lutar contra uma doença que só piora, e agora parece que ele está em coma, depois de uma crise. É 31
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realmente difícil ver a luz entre tanta tinta preta. Claro que a gente tentou animá-lo, disse todas aquelas coisas que as pessoas dizem quando tentam dar esperanças para alguém, mas não adiantou muito. É tão difícil ver um amigo sofrer e não poder fazer nada pra ajudar. Nessas horas eu queria ser Deus.
Quarta-feira, 20 de fevereiro Eram três da manhã. Não dizem que essa é a hora em que tudo acontece? Quem tá dormindo acorda, quem tá morrendo morre de vez, quem tá em coma desperta, quem tá no meio do rala e rola tem um clímax... Bem, acho que me fiz entender. Foi a hora que aconteceu. Estávamos em um mini-show, quer dizer, um show que não era um concerto. Porque concertos são shows grandiosos, de bandas ou cantores grandiosos, como Skank, Marisa Monte, Caetano. Não, estávamos em um pequeno festival de bandas alternativas (leia-se não conhecidas). Um amigo do amigo do amigo do Bernardo estava tocando, então Bernardo nos chamou pra ir. Nos chamou Elisa e eu, já que o Fausto nunca vai num evento desses (ele é mais “chic‟”, sabe? Nunca pisaria numa espelunca como aquelas, nem que fosse chic), e Valentina e Estevão estavam completando não sei quantos anos de namoro, então recusaram. Enfim, arrastamos Ulisses junto, pra ver se ele deixava a deprê um pouco de lado. As bandas eram boas, e isso foi uma surpresa. Geralmente, num festival desses, encontro duas ou três bandas que dão vontade de assistir, mas dessa vez quase todas eram realmente de qualidade. E olha que eram umas dez! Talvez por ter também bandas de fora do Rio, tenham dado uma refrescada no estilo, na mesmice. Tinha uma banda maravilhosa, tocava rock instrumental, nada de letra. E foi uma das que mais gostei. Nunca achei que ouviria/veria tão atentamente uma banda de rock que não canta. É que preciso de letra, preciso de palavras pra sentir emoção, a não ser quando é música clássica, que ultrapassa as palavras. E essa banda também ultrapassou, porque deu pra sentir tudo que eles queriam passar com a música só com os instrumentos. Eles eram de Maceió, mas agora esqueci o nome da banda.
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A gente pulou, gritou, cantou muito quando tocavam covers (uma banda de Minas tocou “Cartomante”, que a Elis cantava, e eu quase fui à loucura!). Fiquei feliz em ver Ulisses aproveitando, bom que ele tivesse decidido deixar a vida um pouquinho pra lá pra se divertir também — e sem a Daniella, que havia uma semana praticamente morava na casa dele, o que fez a coitada da Elisa virar sem-teto de novo. Mas eu estava falando da hora, a fatídica hora em que, ao contrário dos contos de fadas, as abóboras viram princesas. Eram três horas, metade das bandas tinha tocado, e eu aproveitava a festa mais do que nunca, mais do que ninguém. Eu já tinha visto de longe, que não sou boba, reparo nas coisas. Sempre me disseram que sou observadora, às vezes até demais (quantos segredos já não descobri só observando...). Eu já tinha visto, olhos castanhos à espreita. Eu, nada boba como já disse, mandava meus olhos de volta: pro seu corpo, seu rosto, seus braços. E que braços! Por isso sempre gostei de bateristas. Meus preferidos nas bandas geralmente são eles. Nada de vocalistas, esses são óbvios demais. Os bateristas dão o ritmo, é por causa deles que a gente sente a música, eles são a força de uma banda, e é disso que gosto: do que faz o corpo pulsar. Então eu olhava, ele olhava, nossos corpos faziam aquele jogo e diziam o que queríamos um para o outro. Nem a boca precisou entrar na jogada: bem, não naquele momento. Eu estava longe dos meus amigos. Elisa tinha sumido fazia muito tempo, depois de dizer que ia ao banheiro — em uma direção totalmente diferente de onde os toaletes ficavam. Sei... Ulisses, Bernardo e os amigos do Bernardo estavam na boca do palco curtindo uma banda chata de heavy metal (a tal banda do amigo do amigo do amigo), então eu estava sozinha. Bem, na companhia desse jogo besta que todos nós seres humanos insistimos em jogar. Não seria mais fácil se simplesmente chegássemos na pessoa e falássemos que estamos a fim? Não, temos que complicar tudo, nosso maior talento. Depois de olhares, mexidas na orelha e jogadas de cabelo (dele, porque meu cabelo não tem mais tamanho pra jogar pro lado, apesar de já ter crescido um pouco desde que cortei), e da certeza de que ambos estávamos a fim, ele chegou. Perto de mim, quero dizer. Graças a 33
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Deus não era desses babacas que vêm com cantada, frases de efeito decoradas, nem nada disso. Aliás, palavras foram poucas. Uma breve apresentação: “Oi, Felipe. Prazer.” “Alice. Você não é daqui, é?” “Não, sou de Maceió.” “Puxa, adorei sua banda, a emoção é bem intensa mesmo.” “Obrigado, esse é nosso objetivo.” “Há quanto tempo vocês tocam?” “A banda tem cinco anos, tocamos juntos desde os 19.” Mais alguns blá-blá-blás e, pouco depois, eu sentia aquele hálito gostoso de menta. Ele deve ter jogado uma caixinha inteira de bala na boca (graças a Deus!). Foi tão bom. Há tempos só sentia a língua do Gabriel, e eu nem mais lembrava como era beijar sem culpa. Porque eu sempre me culpo quando fico com o Gaybe, por que sei que ele é gay e que tô completamente apaixonada por ele, mas que tenho que acabar tudo, mesmo sendo impossível. Então, ficar com o Felipe essa noite foi um êxtase pra mim, uma libertação! Sem contar que ele beijava suuuperbem. Nada de desentupidor, nem de pontinha de língua, nem de beijo sem língua. Foram beijos e beijos maravilhosos, com a quantidade certa de língua e na velocidade exata. Felipe devia dar aula de como beijar a alguns garotos. Sem contar os braços fortes me segurando, e o cabelo dele, que caía no meu rosto e fazia uma cosquinha gostosa. Ai, ai... Santa três horas da manhã...
Domingo, 24 de fevereiro Hoje eu quis parar o mundo. Deitar e olhar pro céu. Pintar tudo de estrelas. Hoje eu não fui ninguém. E assisti alguém não querer mais ser alguém. Hoje a amizade foi forte, mas seu efeito foi inexistente. 34
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Hoje as palavras foram levadas pelo vento, mesmo não sendo pronunciadas um só instante. E ainda assim, entendidas. Hoje os noticiários deram inúmeras notícias, mas esqueceram da única importante. Porque nada mais importante, e tocante, e abalador, que as lágrimas de um amigo. Hoje o mundo parou por alguns instantes, enquanto tudo virava incerteza na cabeça de um homem que se transformava em menino. Hoje vi o que é amar de verdade, amor incondicional por alguém além de seus pais e irmãos. Hoje vi a importância da família. Hoje vi a importância dos amigos. Hoje, mais ainda do que antes, eu quis ser a dona do mundo. Que o tio do Ulisses descanse em paz.
Sexta-feira, 7 de março Caetano já disse: “É proibido proibir”. Como posso então proibir Gaybe de me chamar no meio da madrugada para uma rapidinha? Ainda mais quando sei que eu também tenho liberdade de fazer o mesmo? E, no estado fragilizado em que estou, está sendo muito difícil resistir às coisas, especialmente àquelas que me fazem bem — pelo menos por um momento. Por isso cedi. Precisava ceder. Ando necessitada de um tempo para descansar, porque só o que tenho feito é me preocupar. Ainda mais com a peça — pois é, a peça estreou. E, apesar de a estreia ter sido melhor que a nossa expectativa, cheia de gente e tal (amigos e família, mas tá valendo porque eles pagam e estamos precisando de muito dinheiro!), os problemas não acabaram e fizeram questão de aparecer bem antes do grande momento. Alguns ainda estão por aí, como o forro do vestido do Roberto, que, descobrimos (fomos avisados), deixa as partes íntimas dele à mostra. A transparência seria ótima se a plateia fosse feita de mulheres hétero ou caras gays, mas com as vovós sentadas nas cadeiras não dá muito certo. Além da peça, tem o Ulisses, que 35
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anda superdeprimido desde a morte do tio. Nós seis estamos fazendo revezamento pra ficar com ele, pois sozinho ele fica mais melancólico ainda. Estamos tentando de tudo pra alegrá-lo, até chamar a Daniella pra sair com a gente. O que a gente não faz pra deixar um amigo mais contente?! Com isso fico pra lá e pra cá, do teatro pro apartamento do Ulisses, e praticamente só volto pra casa pra tomar banho e dormir. Ou seja, tô mais que cansada. Tava gritando por um pouco de prazer. Por isso cedi. É entendível, certo? Ou não?
Segunda-feira, 10 de março Estava eu comprando meu chiclete de todo dia (de melancia, meu preferido agora) na banca de sempre — apesar de não gostar de rotina, tem vezes que não dá pra fugir — quando dou de cara com a minha mãe. Digo: “Mãe! O que você tá fazendo aqui?”. Ela: “Filha, eu trabalho aqui”. Ah, é verdade. Não na banca, claro, mas em frente. Não sei se é porque estou acostumada a vê-la no Jardim Botânico, pelo menos desde quando saí de casa, mas sempre esqueço que ela trabalha no Catete de manhã. À tarde é outra história, literalmente e com péssimo trocadilho: ela vai pra Gávea exercer suas funções de pesquisadora. Mas, durante a manhã, ela atura um bando de adolescentes que se acham adultos, no colégio em que dá aula. No Catete. Pertinho, considerando que descer várias ruas e andar mais uns bons metros é perto de minha casa. E eu nunca a encontro! Hoje encontrei. Mamãe saindo do colégio, eu na banca comprando meu chiclete. Me perguntam por que saio de casa só pra comprar chiclete. Ora bolas, melhor do que ficar em casa sem fazer nada, que é o que aconteceria às segundas, meu dia de folga, se não saísse para comprar chiclete! Minha mãe me convidou pra almoçar com ela. Apesar de estar com um short jeans, uma blusinha simples e sem graça e Havaianas vermelhas, aceitei. Ah, ninguém no restaurante vai ficar reparando na minha roupa, né? E se reparar também... quem se importa? Abaixo às pessoas que ficam metendo o bedelho na vida dos outros! Na verdade, eu tenho 36
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até uma certa pena, porque elas devem ter a vida muito chata pra ficar prestando tanta atenção na vida alheia! Fomos a um restaurante que a professora de física do colégio em que minha mãe trabalha recomendou. Aceitar sugestão de professores de física... sei não, hein. Eles são todos meio loucos. Mas até que essa física tinha a cabeça no lugar — pelo menos gastronomicamente falando. Nós adoramos. Na verdade, minha mãe adora qualquer lugar, desde que ela não tenha que cozinhar! Me diverti muito. Há tempos não ficava sozinha com ela, só conversando, e eu não tinha percebido como sentia falta. Morar sozinha tem suas vantagens: você pode fazer as coisas do seu jeito, na hora em que quiser e se quiser, você compra as coisas que tiver vontade, leva pra casa quem achar melhor e a qualquer hora, ou seja, você tem liberdade e independência. Mas também dá aquela saudade das conversas em volta da mesa, das risadas em frente à TV, dos jogos de tabuleiro à meia-noite de sábado, do colinho do pai, dos conselhos da mãe... E naquela hora e trinta e sete minutos que passamos juntas senti falta de tudo isso. Porque minha mãe representa tudo: ela mesma, mas também meu pai, minha irmã, meu irmão... afinal, ela é a dona da casa! Era tão bom quando todos morávamos sob o mesmo teto e conversávamos sobre tudo. Porque a gente falava sobre tudo. Meus pais foram os primeiros a saber do meu primeiro beijo, aos onze anos. Até porque a mãe do Bernardo foi logo tirar satisfação. “Como sua filha beijou meu filho, um garoto de nove anos beijando na boca?! Ele ainda é uma criança!” E blá-blá-blá. A cara dela caiu no chão quando ouviu a resposta do meu pai: “Você tem que ensinar seu filho a ser mais atirado, se ele quiser ter alguma namorada no futuro. Meninas não gostam de homem banana”. A gente ri disso até hoje — e, graças a Deus, dona Lúcia não tem mais raiva de mim. Conversamos sobre o tio do Ulisses, sobre o Ulisses e sua tristeza, sobre meu trabalho, o trabalho dela, sobre meu pai, minha irmã (parece que ela terminou com o Rafael pela terceira vez nessa semana, mas daqui a vinte minutos liga pra ele, arrependida), meu irmão (que eu não vejo desde o almoço de anonovo, tô morrendo de saudade!), o pessoal do prédio do JB, o pessoal do meu prédio de ST, sobre política, sobre a minissérie 37
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que estreou (que é maravilhosa!). Muito papo pra pouco tempo, mas a gente fala rápido e se entende que é uma beleza! Me senti amiga da minha mãe, e acho que foi a primeira vez. Talvez esse seja o primeiro sintoma de que estamos realmente crescidos e mais maduros: quando conseguimos conversar com nossos pais de igual pra igual, e não como eternos adolescentes — alguns como eternas crianças. Me despedi dela com saudade, mas de coração alimentado.
Quinta-feira, 13 de março Eu PRECISO parar de pensar no Gabriel! Preciso, é necessário, é questão de sobrevivência! Hoje fiz algo bizarro, inacreditável, fora do comum. Hoje é aniversário da Cínthia, uma de nossas AT (atrizes triunfais), e como a peça está indo às mil maravilhas, muito obrigada, resolvemos comemorar em alto nível: fomos todos para a Lapa. Pra gente isso é alto nível, sim, porque a Lapa agora é cult, nada mais custa cinquenta centavos. Enfim, estávamos lá, jogando uma sinuquinha, meninas contra meninos, meninas ganhando (somos demais! E somos mais do que eles, também, mas isso não quer dizer muita coisa). Na vez de os meninos jogarem, Caio diz que está com uma vontade louca de ir ao banheiro e se vai, BEM QUANDO ERA A VEZ DELE JOGAR! Sabe qual o nome disso? Cagaço! Cagaço de perder pras meninas e admitir de uma vez por todas que somos seres superiores! Tudo bem, não vem ao caso agora. Eis que, enquanto esperávamos Caio tomar coragem e voltar para aceitar a derrota, surge ele, Sérgio Malandro! Mentira! Tô brincando, claro, não resisti. Enfim, surge um garoto muito do bonitinho, com suas covinhas na bochecha e um cabelinho cacheado de dar inveja ao Anjinho da Turma da Mônica. E o que acontece? O mais improvável: ele vem falar comigo. OK, não tão improvável assim, porque eu tinha me arrumado, passei até maquiagem completa (nada forte, claro)! E o vestido vermelho que roubei da Elisa fica bem em qualquer um, então acho que eu estava bonita. Mas, sinceramente, eu não esperava que ele viesse falar comigo, achei que ele ia falar com a Ju, que é sempre a primeira pros garotos. A voz dele era linda, 38
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grave e suave ao mesmo tempo — se é que isso é possível. Ele cheirava bem — muito bem! —, tinha os dentes bonitos e uma conversa inteligente, pelo menos achei, nos cinco minutos em que conversamos. Sim, cinco minutos, porque DISPENSEI o menino! Juro, um garoto lindinho daqueles me pede pra ficar com ele e eu digo não por causa do Gabriel!!! Isso não é atitude de alguém são! Eu não posso ser normal! Como eu troco um HÉTERO por um GAY? Nossa, como eu queria ficar com o garoto, de quem eu nem sequer ouvi o nome porque só conseguia pensar que o Gabriel estava a pouquíssimos metros de mim, que ele ia me ver ficando com outro cara e que, pô, ele ia ficar chateado. Ia nada! Se ligasse alguma coisa pro que eu faço, penso ou deixo de sentir, não ficaria com cinco — eu disse CINCO — caras na minha frente! E na frente dos outros que tinha pegado antes, o que achei total sacanagem. Não! Isso tem que parar! Já chega! Chega de sofrer por homem que NUNCA, NUNCA MESMO vai se apaixonar por mim! Pior de tudo foi ter que explicar pras meninas porque não fiquei com o garoto. “Ah, eu nem achei que ele era bonito...” Odeio mentir, até porque não sei mentir direito e sempre fica claro que tô escondendo alguma coisa. Mas pior ainda foi ter que responder que não quando a Mila, nossa figurinista, perguntou: “Então você não vai se importar se eu ficar com ele, não é?”. Não, Mila, mas com certeza o Afonso, seu NAMORADO, vai! Ainda bem que o garoto não quis nada com ela. Depois disso não deu, tive que ir embora, mesmo ainda sendo dez horas da noite e tendo que perder o jogo pros meninos, que inventaram que, como eu ia embora, a gente tinha desistido, e isso dava a vitória pra eles. Chegando em casa mandei tudo pro alto: literalmente. Foi almofada, caneta, borracha e até minha bolsa voando pela sala. Snoopy, que correu pra falar comigo assim que coloquei os pés dentro de casa, voltou correndo, cheio de medo de que algo acertasse seu focinho. Coitado. Coitada de mim! Na verdade, eu tava é com raiva de mim! Não sentia mais pena, sentia raiva! Raiva por ser idiota o suficiente para acreditar que o Gabriel algum dia ia deixar sua homossexualidade de lado pra viver comigo o resto de seus dias. Como se isso fosse possível! Não, não é possível, e eu tenho que enfiar isso na cabeça de algum jeito. E 39
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tenho que deixar de atender a chamados de madrugada, por que mesmo sendo apenas sexo, NÃO é apenas sexo! Não pra mim! Como vou esquecer Gaybe tendo que vê-lo todo dia — e sendo agarrada por ele todo dia, como acontece — eu não sei. Vou apelar pra simpatia, macumba, qualquer coisa tá valendo! Só sei que não dá mais! NÃO DÁ MAIS!!! E tenho dito. Boa sorte pra mim. E bota boa sorte nisso!
Sexta-feira, 14 de março Hoje tem confusão? Tem sim, senhor! Ou melhor, já teve. Eu sinceramente não sabia que Ulisses seria capaz de tal ato de coragem, mas nem sempre nós conhecemos nossos amigos como achamos que conhecemos. Tudo começou com nós sete — sim, TODOS nós sete juntos, como não ocorria desde o enterro — nos deliciando no apê de Ulisses. Valentina agora compra bolos e os decora, desde que aprendeu com a tia dela, que é doceira. Ela decora e mostra pra gente conferir a obra de arte — e devorá-la logo depois, que é a melhor parte. Geralmente ela faz na casa dela mesmo, e só chama alguns de nós. Mas dessa vez resolveu chamar todo mundo, então teve que ser na casa do Ulisses, que é a maior — e a mais legal também, sejamos sinceros. Estávamos lá, lambendo os beiços (literalmente) e falando bobagem quando a Daniella chegou. Escolhemos logo a hora em que ela foi à academia pra ir lá porque, bem, ela não estava em casa. Não adianta, por mais que ela esteja passando uns tempos no apartamento do Ulisses, e a gente tenha que vê-la quase sempre, não conseguimos nos acostumar com a presença, ou melhor, com a chatice, dela. Ela é o exemplo vivo de que, quando uma pessoa nasceu pra ser chata, não poupa esforços para tanto! Bem, ela chegou e vimos que não ficou muito satisfeita de nos ver por lá. Ela é do tipo de namorada que não gosta de dividir 40
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o namorado nem com os amigos, então nos odeia, porque estamos SEMPRE com o Ulisses — se não fisicamente, pelo menos por celular ou internet. Mas como ela é educadinha — falsa — nos cumprimentou com um sorriso no rosto. E como nós somos educadinhos — falsos — a cumprimentamos com sorrisos iguais. A Valentina até fez mais: ofereceu um pedaço do bolo decorado para a menina. Tudo bem que só tinha um pedaço desfigurado, mas ela ofereceu! Claro que a Daniella recusou. “Acabei de vir da academia, não quero estragar todo o trabalho. Vocês entendem, né?” Então ela pediu licença e entrou pra tomar banho. Demos graças a Deus, mas como tudo que é bom dura pouco... Quando saiu do banho, Daniella sentou no sofá de pernas e braços cruzados e ficou nos encarando, calada. Aquilo não era nem um pouco confortável, ter alguém olhando pra você fixamente, com raiva no olhar, querendo claramente que fôssemos embora. Nós não fomos, evidente. Não iríamos sucumbir à vontade da mimadinha. Ainda mais quando estávamos tendo uma conversa superempolgante sobre Os cavaleiros do zodíaco. Não dava pra parar na metade. Depois de algum tempo, acho que ela cansou de esperar e disse sutil: “Uli”, é, ela chama o Ulisses de Uli. Ai. “Você não acha que é melhor descansar agora, não? A gente pode ver aquele filme que eu peguei...” Sutileza em pessoa. “A gente pode ver mais tarde, Dani”, ele respondeu. “Mas já tá tarde. São seis horas.” “Então a gente vê amanhã”, ele respondeu, sem olhar pra ela. “Mas eu tenho que devolver amanhã, senão pago multa”, ela retrucou, com voz — e cara — de sonsa. “Eu pago, pode deixar.” “Mas, Uli...” Foi então que aconteceu. O inesperado. O que eu, e a Valentina, o Estevão, o Fausto, o Bernardo e ainda mais a Elisa achávamos que nunca iria acontecer. Nossa cara foi até o chão e voltou, juro. Ulisses virou pra Daniella, sério — nunca o vi tão sério — e falou: “Você não diz que quer me ver mais feliz? Pois você não tá vendo que eu tô me divertindo com eles? Que eu quero ficar com 41
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eles e não tô nem um pouco a fim de ver filme nenhum, que não vai me fazer rir como tô rindo agora? Dá pra parar de implicar com meus amigos, caramba? Não adianta ter ciúmes, porque eu nunca vou deixar de encontrar com eles.” E ainda acrescentou, para o nosso choque: “Ah! E a Elisa mora aqui. Ela tá por esses tempos com o Fausto por sua causa”. A gente congelou, sério mesmo. E a Elisa, instintivamente, se escondeu atrás de mim. A gente sabe muito bem do que essa mulher é capaz quando se sente ameaçada: uma vez ela mordeu uma garota! O rosto da Daniella passou direto pelo vermelho e ficou roxo. Ela ia explodir, com certeza. E os pedacinhos iam nos perseguir pelo resto de nossas vidas. Não sei o que aconteceu depois, porque ao contrário de Ulisses nós fomos covardes e saímos correndo. Mas que com certeza teve confusão, teve sim, senhor!
Domingo, 16 de março Estou em greve de homens. É isso mesmo, decidi, depois de muito pensar. Sem homens é muito melhor. Eles não nos acrescentam nada, muito menos depois da revolução feminista. Nós trabalhamos, portanto não precisamos mais deles pra trazer dinheiro pra dentro de casa — até porque, se eu quiser ajuda de alguém nesse aspecto, é só gritar: MANHÊÊÊ!!! Nós sabemos fazer as tarefas de casa, coisa que fazemos desde bem antes da revolução feminista, aliás, depois dela, mais e mais mulheres deixaram esses pequerruchos afazeres para outrem (leia-se outras mulheres que não podem se dar ao luxo de ser feministas). Quanto ao sexo... bem, nada que um bom rabbit (ou horse ou bug, e todos esses derivados) não dê conta. Escovo os dentes sozinha, sei tomar banho sozinha, sei pedir comida sozinha, sei ir de casa para o trabalho sozinha, olha como sou esperta! Então, pra que homens? NÃO aos homens que só nos fazem chorar, nos humilham, deitam e rolam em cima da gente, acham que são superiores, e ainda por cima emporcalham 42
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nossas casas porque, por mais limpinhos que sejam, nunca são tão limpos e organizados quanto uma mulher (não que eu queira uma mulher para mim). OK, existem exceções, mas a gente ignora... Por isso, minha mãe mandou eu escolher esse daqui, mas como eu sou muito teimosa não escolhi NENHUM! Tem também outro motivo pra minha greve de homens, infelizmente. Quando fico com outros, me lembro do um. Do um que começou essa revolta toda (não a feminista, a minha). Um cara coloca a mão nas minhas costas, penso na mão do Gabriel deslizando sobre o meu corpo. Me beijam a nuca, lembro da respiração dele no meu pescoço. E os beijos eu sempre acho que não chegam aos pés dos dele (tirando o do Felipe, porque aquele era hors-concours). Para não pensar mais em Gabriel Moon, não pensarei em homens de jeito nenhum. Fazer o quê, né?
Segunda-feira, 17 de março Foi como sempre. Cheguei mais cedo no teatro pra ver se algo precisava de reparos (não, graças a Deus. Tudo inteiro!) e fui direto pro camarim, onde senti aquela mão forte e grande me puxando pelas costas. Quase caí de bunda no chão, mas o corpo de Gabriel me amparou. “Senti seu cheiro”, ele falou, quase colado à minha orelha. Senti seu cheiro? Brega, amigo! Bem, eu já tô acostumada com as frases bregas tiradas de novela mexicana que sr. Gabriel Moon tanto adora. Também, com esse nome artístico, já era de esperar. “Sentiu o cheiro de suor depois da caminhada debaixo do sol e do ônibus cheio?”, perguntei, propositalmente irônica e não necessariamente sincera. “Pois pra mim”, ele disse, colocando ambas as mãos na minha barriga por baixo da blusa (ele tem uma tara pela minha barriga meio incompreensível — ela nem é lisinha!), “seu cheiro 43
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continua a mesma delícia de sempre. E, mesmo que não tivesse, gosto dos meus homens com cheiro de trabalhador.” “Pera lá!”, minha voz subiu alguns tons ao rejeitar as maliciosas garras dele... Vixe! Breguice é doença, e contagiosa! “Eu não sou homem e muito menos sua!” “Mas é tão sexy quanto um.” “Gabriel, você precisa parar de assistir Record e SBT. Esses canais não vão te fazer um ator completo, nem sequer melhor.” Acendi a luz — ele tem mania de escuro e raramente acende as luzes de onde está, deve achar que fica tudo mais “sensual” assim — e pousei minha bolsa na bancada pra procurar alguma coisa que não descobri o que era. “Tá, tá, desculpa Alice”, Gabriel disse, se reaproximando de mim. “Mas adoro quando você fica brava, porque fica muito mais intensa.” “Gabriel.” Virei bruscamente pra ele e olhei fixo nos seus olhos. Eu acho que tava meio séria, apesar de sentir vontade de pegar ele de jeito e tascar um beijo. “Será que você não percebeu que não vai rolar nada?” “Como assim?”, ele perguntou, visivelmente confuso, o que me deu uma renovada inexplicável. Vê-lo, sempre tão seguro de si, com aquela cara de quem não estava entendendo nada, foi um combustível pra mim. “Você é burro ou simplesmente tá com dificuldade de compreender hoje?”, eu disse, pegando minha bolsa novamente. “NÃO VAI ROLAR. Entendeu ou quer que eu desenhe?” Saí do camarim sem olhar pra trás e cheia de orgulho de mim mesma. Dei uma espiadinha no espelho e pude ver a expressão perplexa do menino. Ah, que sentimento maravilhoso, o poder...
Terça-feira, 18 de março Enquanto Machu Picchu não vem (pro Bernardo)... 44
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“Bora pra Búzios nesse feriado?” Nem lembro quem soltou essa pérola, só sei que fez meus olhos brilharem. Dim-dim-dim! (Onomatopeia de olhos piscando como luzinhas.) O quê? Viagem? Longe do trabalho? Longe do Gabriel, pra ser ainda mais fácil esquecê-lo? Quando é que a gente parte? “Pórem” (assim mesmo, com sotaque “baiân‟”), depois da bonança vem a tempestade, então logo após a empolgação vem a lembrança, ó triste lembrança, de que euzinha não tenho nem um verdinho sequer. Com o dinheiro que ganho pago minhas contas, minha comida, minha locomoção e, no máximo, meu chiclete. Nem as festinhas de fim de semana estão rolando, apesar de ter entrado uma graninha a mais com a estreia da peça. “A gente fica na casa do Fausto, já sai mais barato”, Bernardo sugeriu. “Indo no carro do Ulisses e no do Fausto, então, fica praticamente de graça!” “Só do Ulisses”, Fausto disse, desanimando todo mundo. “O meu tá no conserto.” “Sete pessoas em um carro é impossível.” “Seis”, Elisa falou tristonha. “A peça não para nos feriados, esqueceram?” “Ah, Elisa, teu papel nem é assim tão importante.” Valeu, Ulisses, muito legal da tua parte. Elisa agradece e fica feliz com o comentário. “Tô falando a verdade. Você quase não tem falas, não dá pra arranjar alguém da equipe pra ficar no seu lugar? Você aparece, sei lá, duas vezes na peça inteira!” OK. é verdade, mas isso não quer dizer que seja superagradável ouvir que você não faz falta. Mas como Elisa é tranquila quando quer, ainda mais quando quer MUITO viajar, ela nem ligou pro comentário. Ah, se fosse eu... “Acho que dá pra Vanessinha ficar no meu lugar, já que ela sabe todas as falas. Mas só por esses dias”, ela fez questão de frisar, como se a Vanessa pudesse ouvir. “Mas só vou se todo mundo for.” 45
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“Não acho que Estevão e Valentina vão se opor.” Fausto estava certo, eles não se opuseram. Portanto, Elisa não teve escapatória (não que ela quisesse ter), e eu também resolvi ir, com a condição de que Fausto me bancasse por lá, o que ele aceitou, claro. Primeiro porque não sou muito de gastar, segundo porque o que seria de Búzios sem mim? (Palavras dele, não minhas!) Só havia um pequeno, mísero problema: o carro. Como caberiam sete pessoas sete malas sacos cheios de comida em um único Palio? “A Daniella tem carro”, Ulisses falou. Nós seis olhamos pra ele com cara de desespero (agora ele já sabe que não vamos lá muito com a cara dela). Tudo bem que ela está bem menos irritante desde o dia em que Ulisses resolveu ser homem, mas passar quatro dias INTEIROS com ela? É de dar medo! “É isso ou ir de ônibus, o que vocês preferem?” Por falta de opções melhores, acabamos concordando em dividir nosso recanto sossegado com a Daniella, esperando que continuasse a ser nosso recanto sossegado. E contanto que Ulisses a mantivesse longe pelo menos dois terços do tempo. “Pode deixar que vocês mal vão ver a gente... se é que vocês me entendem.” Homens...
Sexta-feira, 21 de março Mala, cuia e comida, e fomos pra Búzios. No carro da Daniella, ela, Fausto (pra guiar a menina), Valentina e eu. Tenho tanta sorte que fui sorteada pra viajar com a graciosa da Dani. “Uhu” irônico. Mas até que a viagem não foi assim tão ruim. Não sei se estava com medo de se perder e atenta às orientações de Fausto, mas ela quase não abriu a boca. Quando disse alguma coisa foi pra perguntar se queríamos fazer uma parada pra comer ou ir ao banheiro. Achei simpático da parte dela e quase senti pena por não gostarmos dela. Quase, porque eu sei que até as pessoas mais repugnantes têm seu momento de paz, e esse pode 46
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ter sido o dela. Depois de quase três horas chegamos à casa escondida e maravilhosamente grande do Fausto, sem paradas. Essa casa tem tanta história... Mas essa é outra história, sem trocadilhos. Divisões de quartos — Daniella e Ulisses, Estevão e Valentina, eu e Elisa, Fausto e Bernardo (que eu sei que até o final do feriado vai ser Fausto e Elisa, e eu e Bernardo) —, arrumações e forrada no estômago feitas, todo mundo correu pra praia. Menos Fausto e eu. Primeiro dia, uma hora da tarde, muito tempo pela frente pra colocar nossos pezinhos na praia ainda. O chamado da piscina foi mais forte. E lá nós ficamos, eu e Fausto, Fausto e eu, o chão onde deitamos e o sol. “Tô de saco cheio.” “De quê?” “De não fazer nada.” “Então faz alguma coisa.” “Não quero.” “Então não reclama.” “É que não sei o que fazer.” “Inventa.” “De onde você acha que surgiu o vento?” “Do Big Bang.” “Do Big Bang surgiu o mundo, não o vento!” “Se do Big Bang surgiu o mundo, e o vento faz parte do mundo, então do Big Bang nasceu o vento.” “Você tá chapado.” “Não tô, você sabe disso.” “Eu sei, você não fuma. Não quando não tá trabalhando.” “Eu não fumo no trabalho.” “Não, você fuma antes.”
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“É preciso, senão não tenho ideias.” “Quer dizer que as ideias só aparecem quando você tá chapado?” “Pode-se dizer que sim.” “Então não são válidas.” “Por quê?” “Porque não são suas. São do ser em quem você se transforma quando fuma.” “Então quer dizer que eu não sou eu quando fumo?” “Exato.” “Quero ser sempre esse outro ser então, porque já ganhei muita grana com as ideias que ele teve.” “Publicitário é tudo doidão?” “Alguns ficam, pra ter ideias.” “Então publicitário é o novo cantor de rock.” “Alice, você é doidona.” “Não, Fausto, você se confundiu. Eu não sou publicitária.”
Terça-feira, 25 de março Finalmente fui à praia. Às duas horas da manhã. “Alice, você é maluca”, sempre ouço. Mas é um negócio meu, eu adoro ir à praia de madrugada. É tão calmo, quieto. Acho que é isso que me atrai, a quietude. Vivo cercada de tanto barulho diariamente que eu gosto de ter um momento sem ruídos ensurdecedores, só a tranquilidade do mar nos meus ouvidos. É quase celestial. No Rio não dá pra ir à praia de madrugada. Só se eu quiser ser assaltada, sequestrada, esquartejada e colocada em vários saquinhos que serão jogados em lugares diferentes. Então aproveito Búzios. Búzios e seu céu estrelado. Búzios e a brisa da praia. Búzios e vários nomes que poderiam ser filmes. Pisei na areia com minhas 48
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Havaianas vermelhas e mudei de estado de espírito imediatamente. É mágico: piso na areia e estou em outro lugar, sou outra pessoa. Tava procurando um lugar pra estender minha canga, quando vi que a praia não estava como eu achava que estaria. Deserta, quero dizer. Uma incógnita, porque eu não conseguia identificar o que era. Tinha quase certeza de que era uma pessoa, mas e se fosse um ET? Estava em pé perto da água, meio sem saber se entrava ou não. Por pura petulância de minha parte, me deu vontade de mergulhar! Só pra me mostrar, mostrar que eu tinha a coragem que faltava naquela pessoa — ou ET. E foi o que fiz. Larguei a canga e o vestido na areia e corri pra água de biquíni, esbarrando propositadamente no ser que se decidia na beira do mar. A água estava deliciosa, como eu previra. Como boa aluna que presta atenção nas aulas de física, eu sabia que a água estaria quente. Mas que maravilha! Fiquei nadando, tendo plena noção de que estava sendo observada e, por isso, me senti a tal. Lógico, porque com toda certeza aquela pessoa — ou ET — estava pensando em como sou ousada, diferente, original, e essas coisas todas. Como sou metida quando quero! Quando achei que minha demonstração de desprendimento estava de bom tamanho, resolvi voltar pra areia. Voltar pra encarar de perto o olhar admirado da tal pessoa. Tamanha minha frustração quando vi que ela não estava mais lá. Que ódio! E eu rezando pra ela elogiar minha coragem. Teria que me contentar com meu orgulho de mim mesma. Uma droga, porque eu tava esperando inveja alheia, e não autoapreciação. Muito sem graça! Eram umas duas da tarde. Duas da manhã em uma praia, duas da tarde na rua das Pedras. Não era pra ser o contrário? Eu tava sentada em um banco, olhando a Brigitte Bardot. Ainda não entendo o motivo dessa estátua — muito bem feita, aliás — em Búzios. Só porque a Brigitte visitou a cidade não sei quantos milhões de anos atrás? Se fizessem o mesmo no Rio, as calçadas só teriam estátuas e nenhum espaço. Enfim, eu estava sentada no banco, olhando a Brigitte Bardot. “Você se acha a rainha da cocada preta, não é?”
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Hein? Como assim? Como uma voz desconhecida ousa me insultar? Olhei pro lado e quase corri pra abraçar Brigitte, tamanho meu susto. A voz desconhecida não era tão desconhecida assim. Era o menino dos cachos de anjo! O menino da Lapa, do aniversário da Cínthia. Aquele pra quem eu disse não. Inacreditável. É coincidência demais! Por causa do choque, fiquei calada. Fazendo o máximo de esforço pra não abrir a boca feito peixe morto e deixar meu queixo cair no chão, porque os olhos de assombro eu não consegui esconder. “Rodrigo, prazer.” Ele esticou a mão na minha direção, como se não tivesse me agredido verbalmente dois segundos antes. “Alice Maria”, respondi pegando a mão dele, esquecendo que ele tinha me agredido verbalmente dois segundos antes. “Então, cocada preta, te vi de madrugada na praia.” Ele soltou minha mão. “Era você?” Me diz, qual a probabilidade? “Eu.” Ah, tinha que contar isso pro Fausto. Agora não tem como ele dizer que não acredita em coincidência! “Por que você não entrou na água?”, perguntei quando ele sentou ao meu lado no banco. “Achei que você queria ela toda pra você.” “Pra você eu abriria uma exceção.” RIDÍCULO! Me senti ridícula quando falei isso, como me sinto toda vez que flerto com alguém desse jeito. Flerte: a própria palavra soa tola. O ato de flertar é ainda pior! Pelo menos quando é feito com frases patéticas como a que usei. Por isso achei que era hora da retirada. Por isso e pelo fato de que, se eu continuasse mais tempo com o menino da sinuca, ia começar a pensar em talvez, quem sabe, esquecer da minha greve de homens, e isso nunca! Promessa é promessa, e eu não quebro promessas! Nem que pra isso eu tivesse que dizer não a ele pela segunda vez (realmente espero que ele não se lembre da primeira. Mas tenho quase certeza que não se lembra). 50
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Levantei do banco. “Onde você vai?”, ele perguntou, olhando pra mim enquanto tentava proteger os olhos do sol com a mão. E que mão! “Sei lá, andar por aí.” Fugir de você, na verdade — eu pensei. “Vai não, fica aí.” Ele segurou meu pulso. Por que, meu Deus, sou tão sensível ao toque masculino? Quase seis horas da tarde, pedra. “Treze fantasias.” “Treze fantasias? E quais são elas?” “São segredo.” “Por que você mencionou então?” “Porque queria te deixar curiosa.” “Você é babaca.” “Se sou babaca, por que você não vai embora?” “Não vou entrar nesse jogo.” “Que jogo?” “Nesse jogo bobo de ficarmos implicando um com o outro como dois adolescentes e ficarmos falando besteiras que, se alguém ouvisse, dariam a impressão de que não temos cérebro.” “Você liga pro que os outros pensam?” “Já disse que não vou entrar nesse jogo.” “Você é diferente, Alice.” “Eu sei. E você é muito gostoso. Ah! Eu sou sincera também.” Um pouco mais de seis da tarde, ainda pedra. “Agora me conta as treze fantasias.” “Não.” “Ah, vai...” Mordiscada na orelha. 51
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Suspiro longo. “Tá bom. Zorro, Batman, Jack Sparrow, Luke Skywalker, Grinch, Eric da Caverna do Dragão, Tennenbaum, Chaves, Chapolin, policial, faroeste, Wally e hippie.” “Não era desse tipo de fantasia que eu tava falando.” “Mas era desse tipo que eu tava falando.” “Você é muito irônico.” “E você é sádica.” “Pensei que fosse dizer que sou gostosa. Ou linda, pelo menos.” “Não.” Ódio. Me levanto. Desço da pedra. Olho pra ele, viro de costas pra pedra e ando. “Gostosa!” Sorrio. Adeus, greve de homens!
Domingo, 30 de março “Você não tem vontade de às vezes fazer alguma coisa louca?” “Tipo sair daqui correndo sem pagar?” “Não, tava pensando em algo como derrubar a bandeja do garçom só pra ver tudo cair, mas sua ideia me parece melhor. Bora?” “Agora?” “Quando eu falar já... Já!” Não fomos, claro. Mas foi divertido pensar sobre. “Chega de crepe?” “Chega.” 52
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“Então...” Dance! Dance! Dance! Entramos na boate. Lotada. Parece que todo mundo resolveu dar um pulo em Búzios no fim de semana. E todo mundo de Búzios resolveu ir a essa boate nesse sábado. Vi Fausto e Valentina lá longe, mas fiz questão de andar na direção contrária. Nada a ver apresentar seus amigos pra carinha de fim de semana. Isso é coisa pro quinto encontro, o encontro do “vai ou racha”. A vida não foi feita para lugares apertados como aquela pista de dança, por isso fomos para o lounge da boate. É assim que costumo chamar os lugares abertos de lugares fechados, bem mais bonito que respiradouro, que é como Ulisses chama. A gente não dançou. Nem eu nem Rodrigo. Tarefa impossível. Em vez disso ficamos sentados no lounge tomando água com limão — Fausto cumpriu seu prometido (“Só te banco quando você sair comigo”), então tenho que ficar nas coisas baratinhas. E nada ver seu carinha de fim de semana pagar as contas pra você. “Você já pensou que a cada beijo que você dá em alguém está compartilhando a saliva de pelo menos mais três?” “Três? Com que garotas pudicas você anda ficando?”, falei em tom irônico, que eu adoro. Rodrigo sorriu. “Sete?” Franzi as sobrancelhas. “Nove?” “Que tal um número de pelo menos dois algarismos?” “Duvido.” “Quer sentir?” “E o lance de não fazer joguinhos?” “Tá vendo algum tabuleiro aqui?” Crise de riso. Dos dois. Uma hora e alguns minutos depois...
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“Você não tá achando incrivelmente chato aqui?” Concordei. “Vamos embora?” Concordei de novo. Mas... “Pra onde?” A gente olhava a lua, deitados na areia da praia deserta. Era madrugada. “Você já se apaixonou, Rodrigo?” “Todo dia. Pela vida.” “Clichê. E levemente brega. Mas foi uma boa saída.” Ele é lindo. Lindo mesmo, daqueles que sorriem com o corpo inteiro e você tem vontade de morder. Mas ele é ainda mais lindo porque com ele não tem compromisso nem sentimento. Bom beijar sem sentimento depois de todo o teatro com Gabriel. Gabriel me deixou insegura, previsível, não Alice. Com ele é muito esforço: pra ser divertida, pra agradar, estar bonita e sexy o tempo todo... Isso cansa! Antes era fácil, quando era só sexo. Sexo é fácil. Depois o sentimento deu “Olá” e estragou tudo. Com Rodrigo é fácil, porque é só sexo. Bem, só beijo, que é um tipo diferente de sexo. É sexo na vertical, sexo sem cama. Mas continua sendo pura carne. Tudo bem simples, como deve ser. Já tava ficando tarde. Quer dizer, mais tarde que o já tarde. Tava bem tarde. Antes de ir embora, uma corrida até Brigitte, nossa recém-descoberta musa. Rodrigo chegou antes, questão de segundos. Roubando, claro. “Você roubou!”, eu disse, ofegante, pro sorriso triunfante dele. “Você começou a correr antes do „já‟. Isso não vale!” Ele não respondeu. Ficou olhando pra minha cara, enquanto recuperávamos o ar. “Eu lembro de você”, Rodrigo disse, do nada. “Dã, você acabou de me ver, tipo, dois minutos atrás, antes da corrida.” “Não, eu lembro de você do bar da Lapa.” 54
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“Quê?”, exclamei, hipersurpresa. “Eu sabia quem você era desde o dia da praia, Alice. E eu sei que você também lembra. Pela cara que você fez no dia que nos „conhecemos‟ aqui.” “Eu...” “Não, tudo bem, não precisa se explicar. Aliás, eu nem quero que você se explique. Eu também fingiria não lembrar se reencontrasse uma pessoa em quem dei o fora uma vez. Só falei pra você saber que me lembro de você. E foi exatamente por isso que decidi falar com você aqui.” “Já sei, você é daquele tipo de homem que não aceita ser rejeitado por uma mulher e faz de tudo até que ela diga sim, né? Por isso você quis tentar de novo, pra conseguir ficar comigo e levantar seu ego.” “Não.” Fiquei levemente envergonhada com a resposta dele, por causa do que eu havia acabado de dizer. “Você é diferente, Alice. Dá pra perceber de longe.” “Você já disse isso.” “Foi por isso que quis tentar de novo. Porque aquele dia na Lapa eu percebi. E não suporto o comum.” “Já notei.” “Achei que era o cara mais sortudo do mundo quando te vi aquele dia na praia. Eu tinha que falar com você, porque não ia perder a chance de novo. Porque eu quero você desde aquele dia na Lapa. Entendeu?” Eu não sabia o que dizer. O que se responde a uma revelação dessas? “Entendi”? Seria o máximo se eu pudesse dizer que também não parei de pensar nele, mas na verdade eu nem prestei muita atenção, tanto que nem lembrava o nome dele! E eu não podia mentir. Fiquei lá, estupefata, olhando Rodrigo, muda, sem saber o que fazer. Não sei se por perceber meu estado catatônico ou por pura impaciência com a minha falta de reação, 55
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Rodrigo se inclinou, me beijou suavemente nos lábios, depois na testa e foi embora. Simplesmente assim. Ele apenas se foi. Sem olhar pra trás, sem nada. Eu fiquei imaginando ele virando pra mim, dando um sorriso e depois voltando a andar, mas isso é vida real, e não um filme, então não aconteceu. O que aconteceu é que ele foi embora e eu fiquei com cara de boba, esperando que ele voltasse. Na verdade, melhor ele não ter voltado, senão o que eu iria dizer? “Desculpa?”
Sexta-feira, 4 de abril Rezo todo dia por uma revolução. Mas a revolução não aconteceu e nós tivemos que limpar a casa. Nada de revoltas, de “nós não obedecemos ao poder repressor” (no caso, o Fausto, obcecado com limpeza), não: fomos todos cordeirinhos obedientes que abaixaram as orelhas e seguiram sem questionar o que o grande Fausto Meirelles ordenou. Bem, na verdade, já estamos acostumados com isso. Quando vamos pra Búzios sabemos que o último dia será perdido com esfregões, panos e sabão, por isso só viajamos em feriados prolongados, porque se fôssemos em um fim de semana seria um dia pra ir e outro pra arrumar. No começo ninguém queria fazer nada, até porque éramos novos e nossos pais iam junto. Eles é que acabavam com a sujeira nas mãos — literalmente. Depois passamos a ir sozinhos, e o serviço ficou todo com a gente mesmo. Mas nem nos importamos tanto assim em limpar tudo. Primeiro porque acaba sendo divertido (tirando as horas em que Fausto entra gritando: “Que brincadeira é essa? Só temos duas horas pra limpar tudo e vocês ficam de graça?!”), e segundo porque também queremos deixar impecável a casa que abrigou tantos jornalistas fugidos da ditadura, o pai de Fausto incluso. É, essa casa tem história. E também sabemos que a casa é muito importante pro Fausto, porque é muito importante pro pai dele, que ele idolatra. Quando se é abandonado por um dos pais, acaba-se ficando muito apegado ao outro, e foi o que aconteceu com Fausto e o seu Maurício. Por conta disso tudo fizemos a faxina sem pensar duas vezes. Bem, todos menos Bernardo, que, como sempre, acabou se machucando na viagem. Incrível como toda vez que Bernardo vem pra Búzios, alguma coisa absurda acontece com ele. Da última vez fomos a um restaurante e todo 56
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mundo pediu a mesma coisa. Só a salsicha do Bernardo estava estragada. Uma outra vez, ele levou uma pranchada na cara. Outra, ele pulou de um muro super baixinho (se fosse qualquer outra pessoa não teria acontecido nada) e torceu o pé ao pousar no chão. Desta vez, foi uma briga na boate, a mesma em que eu estava ontem. Coisa boba. Bernardo estava dançando na pista — sozinho, porque tinha se perdido do resto do pessoal — e muito sem querer a mão dele bateu na bunda de uma menina. Acontece que a menina estava com um namorado que, claro, avançou no Bernardo. Bernardinho não teve nem tempo pra pensar: de repente viu uma mão em sua cara, depois no estômago, depois ele nem sabe mais onde. O babaca só parou de bater quando Estevão e Fausto se meteram no meio e o afastaram do Bernardo — que a essa altura já estava todo quebrado. Eu queria ter visto isso pra dar uns chutes bem naquele lugar do idiota! Mas, pelo menos, Bernardinho ficou deitado sem ter que fazer nada. Ô, moleza... Eu estava colocando a minha última mochila no carro quando ele apareceu. “Oi.” Oi? Oi? Quem disse que eu quero te dar oi? Quem disse que depois de tudo que você me falou ontem eu quero falar com você? Tudo que eu queria era enfiar minha cabeça dentro de um buraco igual a um avestruz. Tive inveja do avestruz no momento em que ele disse oi. E eu ali, achando que se fosse um avestruz minha existência seria muito melhor. Eu tinha que falar alguma coisa pra ele? “Oi”, respondi pra logo depois completar: “Tô indo”. “Tô vendo”, ele respondeu com um sorriso de quem acha que tem poder sobre mim. Não sei se era isso que ele tava pensando, mas foi o que eu pensei. Sei que se a Elisa estivesse ali e lesse meu pensamento, diria: “Alice, deixa de ser boba. VOCÊ tem poder sobre ele, já que ele disse que te quer, que precisa te ter. Ele não sabe se você o quer, então quem está com as cartas é você!”. Mas a Elisa sempre reclama que eu não a escuto. Pra mim, ele tinha poder, porque eu tirei uma conclusão totalmente errada dele, que não hesitei em falar, quando na verdade não era nada daquilo. Então, ele tem poder porque ele tava certo sobre mim, e 57
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eu errada sobre ele. E diante dessa situação, o que mais eu podia falar? E quer saber a verdade? Ele se acha muito. “Mas não foi exatamente isso que você achou errado dele?”, a Elisa me diria. “Então, meus amigos estão esperando. Tenho que ir, tchau.” E assim, cuspindo palavras, entrei no carro do Ulisses sem voltar a cabeça pra trás. “Não vai apresentar o cara pra gente, Johnny?” “Cala a boca e dirige.” Partimos eu, Ulisses, Elisa e Bernardo. Ulisses e Elisa falavam sem parar. Bernardo dormia no meu colo. Eu ouvia tudo e esboçava reações mecânicas: apenas imitava o que eles faziam. Porque na verdade eu não estava ali. Não em pensamento. Mas não quero falar sobre isso. Bernardo dormiu na minha casa. Ele sempre dorme aqui quando voltamos de Búzios. Porque ele sempre tá doente quando voltamos de viagem, e eu sempre tomo conta dele. Todas as vezes foi assim, desde pequenos. Pelo menos alguma coisa é certa na minha vida agora, né? “Bom dia, flor do dia!”, já era bem mais de nove quando chamei Bernardo. “Hmpftgstjl”, foi o que entendi do que ele falou. “Bernardo”, eu disse, sentada na cama que cedi pra ele, mexendo em seu cabelo: “Não vai pra faculdade?”. “Que faculdade?”, ele grunhiu abrindo os olhos. “Tô todo quebrado e você quer que eu pense em faculdade? Nem morto”, e fechou os olhos novamente. Eu o deixei dormindo no meu quarto, morrendo de pena do bichinho, e sentei em frente à TV, pronta pra assistir a meus desenhos da manhã. Mas eles tiveram que esperar, porque meu celular apitou em cima da mesa. Cheia de preguiça, afinal eu já tinha me sentado, colocado as pernas pro alto, pegado meu pote de biscoitos matinais. Bem aí o bicho resolve tocar? Só levantei porque achei que podia ser minha mãe, preocupadérrima porque não liguei quando cheguei no domingo. Mas não. O visor mostrava
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Rodrigo — Búzios. Ligou também na noite anterior, mas não ouvi tocar. Caramba. Olhei, olhei e olhei ainda mais o visor, até a luz apagar. Daí apertei qualquer tecla, o visor acendeu de novo, e olhei ainda mais. Patético, aquilo. Então digitei. Chamou uma, duas, três, quatro, cinco vezes. “Alô”, disseram do lado de lá. “Oi, Gabriel.”
Segunda-feira, 7 de abril É bom. Bom não se preocupar. Bom livrar a mente de todo mal, amém. Acho que foi a primeira vez que Gabriel veio aqui. Sempre foram na casa dele as “coisas” que a gente fazia. Ele me chamava e eu ia, ou eu ligava e aparecia lá. Não sei direito por que sempre preferi que fosse lá. Talvez pra manter uma distância da minha vida de verdade. Quando entrava no apartamento dele, era como se entrasse em outro mundo. Não em um mundo celestial, como eu me sinto quando piso na praia de madrugada. Mas em um mundo fictício. Lá, eu não sou eu, Gabriel é personagem e nós dois atuamos em um mundo que só existe na minha imaginação. Quando acabávamos e eu ia embora, era como se nada tivesse acontecido. Era um espaço descontínuo, um mundo virtual no não virtual. Mas dessa vez eu não quis assim. Dessa vez, eu quis aqui em casa porque queria me lembrar. Não queria que, quando nos separássemos, eu esquecesse que aquilo realmente aconteceu e não soubesse mais como me sinto. Não, porque dessa vez eu queria tirar a prova. Então o chamei, ele veio sem hesitar — o que uma greve não faz com os homens... —, depois foi embora. Não senti nada. Não senti nada antes, não senti nada depois. Durante senti o de sempre, graças a Deus!
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Nada. Nada de falta de ar, nada de ansiedade, nada de querer agradar, nada de ciúme, nada de coração palpitando, enfim: nada. E foi tão bom saber disso. E é tão bom poder lembrar isso. Bom poder dizer “Adeus, Gabriel”.
Quinta-feira, 10 de abril Vida dura, essa de cenógrafa! Depois de um fim de semana inteiro de descanso e sombra, chego ao teatro e é só reclamação. “Alice, a cortina caiu!” “Alice, o pé da cama quebrou!” “Alice, essa mesinha não tá dando!” Vou mudar de nome, pode? Como alguém (ou “alguéns”) consegue quebrar várias coisas em quatro dias?! “Ah, Alice, foi na empolgação da cena.” Que cena é essa, hein, que faz quebrarem vários artefatos! E por que não resolveram sem a minha pessoa? Sou tão genial que só eu consigo consertar as coisas? Não sou egoísta nem orgulhosa quanto a isso, não gosto de reter poder e funções, gosto de delegar, então façam! Não esperem minha volta pra consertar tudo. Mas não, tive que ir lá, colocar o pé da cama de volta no lugar (era só encaixar!), mudar o lugar da mesinha (difícil fazer isso...), rependurar a cortina e arrumar outras tantas minúsculas coisinhas que poderiam ter sido feitas sem mim. Se eu morrer, como é que eles ficam?! Gabriel parece ter entendido que aquele dia foi um goodbye. (Adeus é tão forte, não é mesmo? Parece que alguém vai morrer.) Ele nem me agarrou, nem tentou me beijar, nem nada. Só ficou me olhando de longe com cara de abandono e um “pííí” (tesão). Mas não me afetou em nada, nada mesmo. Tô achando tão legal
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poder colocar as palavras “Gabriel” e “nada” na mesma frase sem ter no meio “o que ele sente por mim”. Às cinco da tarde fui tomar sorvete com Estevão. Faz tempo que a gente não conversa de verdade, só eu e ele, como fazíamos na adolescência (leia-se: antes de ele começar a namorar Valentina). E eu precisava conversar com ele, sabia que tinha um assunto pendente que martelava minha cabeça e que eu precisava falar com alguém. E esse alguém tinha que ser o Estevão. Ele é a pessoa mais sensata que conheço, a melhor pessoa para dar conselhos. Conselho sem julgamento, e não como os da Elisa: “Não acredito que você ainda não fez isso, Alice! Deixa de ser lerda!”. Então, enquanto eu tomava um sundae de chocolate e Estevão tirava do copinho colheradas de sorvete de maracujá (tão saudável... que inveja!), contei tudo sobre Rodrigo. Primeiro disse que terminei com o Gabriel (“Como se vocês tivessem alguma coisa”, Estevão disse em um raro momento “julgativos”), depois contei do Rodrigo. Falei do dia em que o conheci na Lapa, depois da praia, do dia em que ele resolveu falar comigo na Brigitte, o que ele disse no sábado antes de ir embora e, por fim, do que eu não deixei de falar no dia em que voltamos, e que a partir desse dia eu não consegui tirá-lo da cabeça. Estevão me olhava sério, e eu já estava com medo do que ele poderia dizer. De certa maneira, eu meio que já sabia o que era. “Você gosta desse cara, Alice?”, ele me perguntou depois de toda a minha falação. “Não, eu só fiquei encucada com o que ele falou.” “OK, deixa eu reformular a frase. Você gosta desse cara, Alice. E você sabe disso. É por isso que você tá fugindo desse jeito.” “Não tô fugindo e não gosto dele.” “Presta atenção”, ele disse, ignorando minha última frase. “Você sempre faz isso. Por que você acha que tava com o Gabriel? Por que você nunca teve um namoro sério até hoje?” “Já tive namoros sérios...”, eu disse, quase sussurrando, porque sabia que era mentira. 61
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“Não, você teve quase namoros sérios, porque quando chega perto de ficar sério você sempre cai fora.” “E o Gabriel?” “O Gabriel não foi namoro, né Alice?” E tive que concordar. “E você se apaixonou por ele exatamente porque sabia que não ia dar em nada, porque você sempre foge de coisas sérias.” “Tá, já entendi, Estevão”, disse, levemente irritada. “Mas por quê?” “Porque você tem medo.” “De...” “Por mais brega que isso soe, de se machucar.” OK, choque. Eu não estava preparada para ouvir isso. “Você tem medo de se apaixonar e de o cara te largar depois. Sei lá o que é, Alice. Mas que você tem medo de se apaixonar, tem.” Coloquei a mão em cima do sorvete pra nenhuma lágrima cair sobre dele. Eu e meu choro fácil. “O que eu faço, então?” “Liga pra ele.” Simples assim. Simples?
Segunda-feira, 14 de abril Chega de loucura! É uma afirmação que creio impossível existir em meu vocabulário. Freud diria... Freud não diria nada, ou talvez que sou uma pessoa que fez muita maldade no passado, por isso tem que passar pelas mais doidivanas situações no presente. Não, Freud não diria nada. “Cheguei-me ao shopping a fim de comprar alguns regalos para companheiros meus (estou a sentir desejos de escrever 62
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floreado). Tarefa simples a ser seguida: entra-se em uma quantidade razoável de lojas com o pretendido presenteado em mente, entre tantas escolhe-se uma em que as condições sejam ideais — por ideais entenda-se custo baixo e objetos que não ferem a vista — e faz-se a troca do tal objeto por uma certa quantia de papéis coloridos. Haveria de ser simples, porém, todavia, contudo, algo de atípico ocorreu-me. Estou eu a caminhar calmamente pelos campos brancos dos corredores do estabelecimento milagrosamente vazio, quando mais ou menos ao longe vejo um velho a discutir com outro senhor. Eles têm a seu redor mais três pessoas: duas senhoras que assistem e mais uma terceira, que vê-se estar assustada. Todos eles estão sentados em diferentes sofás: os dois a discutir em um, as senhoras que assistem em outro, a terceira sozinha em uma poltrona. Eu, curiosa de nascença, finjo estar enviando mensagens de meu aparelho móvel, quando na realidade estou a xeretar todo o acontecido. Pelo que pude ouvir, o senhor dizia ao velho a seu lado o absurdo que era o jeito como ele havia tratado sua digníssima esposa, a senhorinha assustada, obrigando-a a levantar-se da poltrona para ceder lugar ao marido. A senhorinha, já levemente caduca das ideias, não entendia, e o velho seu marido tentou levantá-la à força, daí a expressão assustada em seu rosto. O velho, por sua vez, perguntou ao senhor defensor quem era ele para dizer-lhe como tratar ou não tratar sua própria esposa. E o senhor respondeu ao velho mal-encarado que ele não deveria ter de dizer nada, pois o velho é que deveria conhecer as leis da educação, ainda mais em se tratando de sua própria mulher, que já não batia bem (claro, não falou desse jeito, essas são palavras minhas). Foi então o estopim para a irritação do velho nervoso, que se pôs em cima do senhor educado a lutar — ou tentar —, cabelos brancos e tudo. Me assustei, obviamente, assim como as outras duas senhoras que assistiam a tudo aquilo sem se intrometer — a senhorinha da discórdia não apresentou reação. De duas, uma: ou estava acostumada com o jeito irritadiço do marido, ou não fazia ideia do que estava a acontecer. Fico com a segunda hipótese. Olhei para os lados e nenhum sinal de seguranças encontrei. Decerto pensaram que um grupo de idosos não necessitaria de 63
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vigias. Não contavam eles que vilões também envelhecem. Então, não sabendo mais o que fazer, cheguei-me perto dos vovôs lutadores e dei uma bolsada no velho rabugento, para que largasse o outro. O tempo que estive a observar havia sido o suficiente para escolher um lado. Para minha surpresa, o velho parou de bater no senhor agradável. Mas somente para levantarse e me empurrar, vê se pode! Depois pegou a senhorinha sua esposa grosseiramente e saiu resmungando qualquer coisa, me deixando caída de bunda no chão, cotovelo sangrando e mão ralada! Velho besta! Agora me diz, por que na minha vida só acontecem loucuras?” “Mas isso é um absurdo! Se eu estivesse lá teria enchido esse velho abusado de porrada!” “Não ia adiantar nada, Ulisses. Só ia servir pra você ser preso.” “Por quem? Pelo guarda do shopping? Que perigo, hein?”, Ulisses disse, colocando uma almofada debaixo do meu pé, que estava em cima da mesinha. É, parece que na queda também torci o pé. “Vou ter que desmarcar o encontro de hoje com o Rodrigo.” “Na-na-ni-na-não!”, Elisa veio gritando lá da cozinha. “Nem pense em não ir a esse encontro!” “Mas eu tô toda quebrada!” “Todo quebrado ficou o Bernardo quando a gente voltou de Búzios”, ela respondeu. “Você está levemente amassada.” Risos. “É, não faça desse acontecimento uma desculpa pra não ir, só porque você tá receosa com o que pode acontecer.” Odeio quando o Estevão dá uma de psicólogo sem eu pedir.
Sexta-feira, 18 de abril
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Rodrigo não tem carro, é pobre como eu. Por isso ele não me buscou em casa — ninguém merece ir até Santa Teresa de ônibus sem ser morador. Por isso marcamos de nos encontrar no shopping, de lá a gente via o que fazer. E foi lá que descobri que virei Brigitte. Ele chegou primeiro, claro. A mulher sempre chega atrasada para não demonstrar ansiedade. E tem que chegar meio blasée, meio “não tô me importando nada com esse encontro, pra mim é só mais um passeio no shopping (ou qualquer outro lugar em que estiver)”. Porque nós mulheres não temos que esperar pelos homens, eles é que têm que esperar por nós, porque nós somos a atração principal de um encontro. Então ele chegou primeiro. E quando me viu, toda linda, poderosa, nariz empinado (e mancando), abriu um sorriso e disse: “Brigitte!”. “Passou tanto tempo que já está me confundindo com outra?”, brinquei, porque fazer piadinhas é essencial pra esconder o nervosismo. Ainda mais depois de uma última conversa como a nossa, se é que aquilo pode ser chamado de conversa. Ele sorriu de novo e só então lembrei do poder daquele sorriso, que parece ter uma linha extensora que deixa ele todo bonito. Mais lindo ainda por não ter sentimento envolvido, lembrei o que eu havia pensado no feriado. Ainda bem que ainda é assim (ainda que meus amigos insistam que não é verdade). Esse shopping tem uma coisa boa. Dois bancos bem na porta de entrada, que disfarçaram meu estado “tortístico”, já que sentamos logo nele. Não conversamos amenidades, aquele teatrinho bobo que todo mundo faz em vez de ir direto ao ponto. Pra que isso, se a gente sabe do que quer falar? Eu realmente não entendo joguinhos e leis sociais ou de interação — chame do que quiser, continua sendo uma bobagem. “Tô morrendo de fome, você não vai me alimentar?” “Te alimentar?” Fiz que sim. “Isso quer dizer que você espera que eu pague pela sua comida.” 65
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“Mas é claro!”, respondi. “O que aconteceu com „eu faço questão de pagar a minha parte‟? E o feminismo?” “Isso era quando não estávamos em um encontro. Em um encontro eu faço questão que o outro pague. Hoje você é o outro, então... aonde vamos?” Duas opções: Lagoa ou a Cobal do Humaitá. Como estava ameaçando chover, ficamos com a segunda. Ah, a Cobal... Ponto de encontro da elite alternativa da zona sul — ou do pessoal que não sabe pra onde ir, então “vamos pra Cobal mesmo”. Lá tem de tudo, de restaurante light a pizza gordurosa. Só não tem McDonald‟s. Milagre. Fomos de mexicano, o que talvez não tenha sido lá tão boa ideia, porque o restaurante é muito exposto, nada daquela coisa íntima de primeiro encontro. Se bem que nem era um primeiro encontro. A viagem até lá foi divertidíssima. A pé, porque é tão pertinho do shopping que não valia a pena gastar dinheiro com ônibus ou táxi. Porém, meu pé não quis colaborar. “Por que você tá mancando?” Contei toda história do velhinho maluco enquanto eu andava — ou tentava andar. Ele deu risada. Melhor, gargalhada. Agora, sério, rir da desgraça alheia? “OK, OK, desculpa, mas é que fiquei imaginando o coroa te empurrando e brigando com o outro...”, e, quanto mais ele tentava se explicar, mais ele ria. O que não seria problema se meu pé não estivesse doendo! Mas tentei manter a calma — tentei várias coisas durante esse percurso: andar, não bater no Rodrigo... — e continuei meu caminho. Até que a dor foi tão forte que tive que parar. O que foi bom, porque só então ele parou de rir e se mostrou realmente preocupado. Ah, a culpa... “Tem certeza que você não quer pegar um ônibus? Ou um táxi?” “Tenho!”, eu disse, querendo me mostrar forte. “Se a gente for um pouco mais devagar não tem problema.”
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Fomos devagar quase parando. Ou melhor, devagar parando. Era um passo e uma pausa, mais dois passos e parava de novo. Nunca aqueles poucos metros foram tão longos. Tava ridículo, aquilo. Mas eu não ia sucumbir à dor, ao sistema capitalista que faz a gente pagar por transporte quando devia ser de graça, aos meus sapatos, ao velhinho que devia estar rindo em casa sabendo da minha desgraça. E, além do mais, era tão perto... “E o que você sugere então?”, Rodrigo me perguntou, vendo que aquilo, claramente, não ia sair do lugar (sendo que aquilo era eu). “Pegar carona, com um cachorro?” Peguei carona, sim, mas com o Rodrigo. Ele me colocou nas costas e me levou de cavalinho até a Cobal. Por isso foi tão divertido! Sempre adorei brincar de cavalinho, desde pequena, quando eu e minha irmã brigávamos pra ver quem ia ser a primeira a montar nas costas do meu pai. Ela sempre ganhava por ser a mais nova, e daí eu não queria mais, porque queria ir antes. E meu irmão, com pena, colocava ele mesmo a irmã mimada nas costas. Tão bonzinho... Depois a gente cresceu e meu pai veio com a desculpa de que não aguentava mais o peso. O que pra mim não foi problema, já que eu ainda tinha o Alan, que estava tão acostumado com o meu peso ao longo dos anos que não se importava de brincar comigo — e só comigo, porque quando a Amanda vinha pedir ele dizia que uma irmã já era o suficiente. Rarará, toma essa! Quando chegamos à Cobal eu tava tão feliz com a minha carona que tasquei um beijaço no Rodrigo, assim que ele me colocou no chão. Ele merecia uma recompensa. O beijo acabou durando mais do que o previsto. Acho que foi porque só quando encostei minha língua na dele é que lembrei como era bom beijar o Rodrigo, um beijo na medida certa, e aí eu não queria mais parar! Mas como tudo que é bom dura pouco, menos água de coco, nós tivemos que descolar nossas bocas. Uma pena... “Então, vamos alimentar você?” “Depois de você...”, eu disse, abrindo o caminho pra ele passar. 67
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“Não suporto Saramago!” “Que é isso, Alice? Não fala besteira. Ele é um dos maiores escritores que já existiram.” “Pois eu não suporto. Primeiro por que ele escreveu A caverna baseado em Platão, que já é de fazer criança dormir.” “Ah, não, para!” “Segundo”, enfatizei meu “segundo” pra ele não me interromper, “o que é aquela loucura toda daqueles cegos? Uma imundície total, nojento!” “É uma sociedade sem regras, o caos total, foi isso que ele quis mostrar.” “Mas precisava de tanto cocô?” A nossa última conversa em Búzios? Parece que nem existiu. Ainda bem.
Domingo, 27 de abril “Nome?” “Rodrigo Drummond Santiago. Nada a ver com Carlos Drummond de Andrade, antes que me pergunte.” “Idade?” “23.” “Profissão?” “Jornalista desempregado.” “Recém-formado?” “Exato.” “Entendo. Pais casados ou separados?” “Casados.” “Bom... irmãos?” 68
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“Uma irmã.” “Algum bicho?” “Dois cachorros.” “Own, que fofo! Que raças?” “Beagle e yorkshire.” “Yorkshire?” “Da minha irmã.” “Ah, sim...” Deve ser uma patricinha... “Time?” “Flamengo. Por que a cara contorcida?” “Logo Flamengo?” “Claro, existe outro?” “Existe. Fluminense.” “Fala sério.” “Bem melhor que Flamengo. Mas meu time não vem ao caso agora. Tatoos...” “Só a que você conhece.” “Nenhuma escondida?” “Não.” “Tem certeza?” Ele sorriu: “Tenho”. “OK... Fuma?” “Não.” “Bebe?” “Quase nunca.” “Esporte.” “Trilha e surfe.” 69
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“Comida.” “Sopa de abóbora.” “Sabia!” “O quê?” “Quase não bebe, faz surfe e trilha, tinha que ser natureba.” “Não achei que você fosse do tipo que rotula as pessoas.” “Não sou. Mas os homens são fáceis de decifrar, não têm muitas variações. Ou são de um jeito, ou de outro.” “Você realmente acha que somos simples assim?” “Acho. Tirando os gays, que esses têm dezenas de camadas que eu já desisti de entender.” “Experiência ruim com algum?” “Não. Continuando... bebida?” “Não.” “Olha, não sei onde você foi criado, mas aqui no Rio, „não‟ não é bebida. Aliás, onde foi criado?” “Você se recusa a entrar nos meus jogos, então eu me recuso a entrar nos seus.” “Isso não é um jogo, é um „bate-bola‟ pra eu ter uma noção geral sobre você. Nunca leu revista de celebridade?” “Não é assim que se conhece alguém. O conhecimento vem com o tempo, com a convivência, e não numa entrevista que mais parece um julgamento.” “Eu não tô julgando você.” “Claro que tá. Pra cada resposta minha, você tem uma coisa a dizer. Eu posso até ver você anotando os comentários. Certo. Errado. Devia ter respondido outra coisa. É, isso eu posso considerar.” “Você tem medo de julgamentos, então?” 70
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“Não, mas isso não quer dizer que eu quero ser testado o tempo todo. Eu já saí da escola faz tempo, já acabei a faculdade, não preciso mais ficar respondendo perguntas que precisam de uma resposta certa. A não ser que você vá me dar um emprego.” “Eu não sou dona de jornal.” Precisava dessa resposta? Me diz? “Então para de querer me testar, de tentar achar um defeito, ou sei lá o que você tá procurando. Relaxa... „Let it be‟. „deixa a vida te levar‟. E todas essas músicas que têm mensagens parecidas.” Fiquei olhando pra ele sem saber o que dizer. Pela segunda vez em três semanas, ele me deixava sem ter o que dizer. E eu costumo ter resposta pra tudo! Mas, quando é em relação ao Rodrigo, parece que isso não é mais tão verdade. Olhei pra baixo, pras minhas mãos em cima da mesa, pra xícara de café vazia, pra minha sandália que estava a um fio de arrebentar; por alguns segundos, eu desejei não ter largado a psicóloga aos doze anos. Quem sabe, se ainda me analisasse semanalmente, eu saberia o que fazer naquele momento em que me encontrava totalmente sem controle. E sem ter a mínima ideia de como agir. “Alice”, Rodrigo disse, e eu olhei relutante pra ele, mas fingindo que nem ligava. “Você vai falar alguma coisa ou vai sair e me deixar falando sozinho, igual em Búzios?” Aí eu ri. É, eu ri. Porque desde nosso segundo primeiro encontro as pessoas têm me falado que um dia a gente ia ter que conversar sobre A Conversa. Mas eu sempre olhava pra cara da pessoa e dizia: “Quem disse? A conversa ficou enterrada nas areias de Búzios”. Eu não ia tocar no assunto, e podia jurar que ele também nunca mais ia falar daquilo. Mas eu estava errada. ODEIO estar errada. Mas quando tô errada admito. Bem, eu ri, muito. Em parte porque A Conversa já não era nada comparada a esta conversa. Em parte porque, bem, eu sempre rio quando sei que tô errada. Rodrigo ficou me olhando, meio sem entender, meio entendendo. Depois de um tempo 71
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convivendo comigo já dá pra perceber que não sou muito normal, e as pessoas já esperam comportamentos estranhos vindos de mim. “Você não vai querer conversar sobre A Conversa, vai?”, perguntei, quando consegui segurar (um pouco) o riso. “Que conversa?” Expliquei pra ele. “Não, não quero. Só quero que você aja normalmente comigo. Sem racionalizar tanto as coisas.” “Sem racionalizar?” “É.” Engraçado, porque eu não sou de racionalizar as coisas. Eu tava racionalizando? Tava racionalizando... Racionalizando sem pensar, não é irônico? “OK”, eu disse. “Então vamos lá pra casa.” “Para...” “Sem racionalizações, Rodrigo.” Levantei, puxei- o pela mão, fazendo-o levantar também. “Sem racionalizações...”
Sábado, 3 de maio Eu tento. Meu Deusinho bem sabe que eu tento. Mas não adianta. Rodrigo não quer transar comigo. Por mais que eu escorregue “sem querer” minha mão pelo cós da calça dele, ele sempre arranja um jeito de remover minha mão do “esconderijo”, parando de repente nossos amassos bem amassados. Olha pra mim e, cínico, diz uma coisa bem besta, do tipo: “Seu apartamento tá um forno, posso abrir a janela?”. Valentina disse que é tudo coincidência ele dizer coisas idiotas toda vez que tento algo mais safadinho. Ah, santa inocência... E depois da última vez eu tive a certeza de que a hipótese dela não era correta. 72
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Já cansada de ser rejeitada — já são duas semanas e meia saindo juntos desde o segundo primeiro encontro, e o número de vezes que já tentei... —, fui tirar satisfação. Eu sabia que falta de atração física (leia-se “tesão”) não era, porque desde Búzios ele já vem demonstrando bastante „atração‟, mas mesmo assim me fiz de boba e perguntei se o motivo era, e cito eu mesma, “falta de vontade de me levar para a cama”, coisa que disse em uma súbita explosão de impaciência. “Claro que não”, ele respondeu. O que quer dizer que ele TEM vontade de me levar para cama. Menos mal. “Então, por que diabos você me freia?” “Porque você é muito especial pra eu te levar pra cama de primeira.” Ele não disse isso. Não podia ser. Tive vontade de rir na cara dele, sério. Que homem em sã consciência diz uma coisa dessas, sem ter como objetivo levá-la para a cama? Daí eu entendi tudo. Era isso! “Você tá se fingindo de romantiquinho exatamente pra poder me...” “E por que eu faria isso se desde o começo você já se mostrou favorável a dormir comigo?” Ele tinha razão. “É que você achou que eu fosse como as outras meninas, que depois que dão muito rápido, se arrependem. Mas não se preocupa, eu não tenho problema algum com isso.” “Eu sei”, ele falou. “Mas eu tenho. Pelo menos com quem, pra mim, não é só mais uma.” É, ele tava falando sério, apesar de eu não acreditar em nenhuma palavra. Quem ele tá querendo enganar com esse não machismo todo? NÃO EXISTE homem assim. Vide Gabriel, que qualquer um pensaria que é mais sensível por ser gay (estereótipo totalmente caído) e que, no entanto, não poderia ser mais distante disso. Homem quer sexo sempre. O Fausto, por exemplo, nunca fica com garotas que ele não tenha certeza de que vão transar de 73
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cara com ele. O Ulisses passa 80% do tempo que está com a Daniella entre quatro paredes, seja do quarto dele ou dela — e olha que os 20% restantes são o tempo que eles passam no estágio. O Bernardo não vê a hora de “deitar”, como diz ele, com a Érica, e eles ainda nem ficaram! E o Estevão... bem, o Estevão é a exceção, porque ele não é viciado em sexo, e, como ele é a exceção, não tem como Rodrigo ser. O que significa que ele está MENTINDO! Atuando! Isso! Vou chamá-lo pra atuar na companhia, tenho certeza que vai se sair bem. Se bem que ele não gosta de teatro...
Quinta-feira, 8 de maio Plena sexta-feira, declarei que estou de folga do trabalho e fui me divertir um pouco com meus amigos. Há tempos não saía: falta de dinheiro, de tempo, tudo impeditivo. Mas um dane-se foi mandado pelo ar, e saí assim mesmo, porque de vez em quando é necessário. E também fazia tempo que não saíamos juntos, nós sete. só nós sete. Elisa também tirou folga; porque, como diz Ulisses, o papel dela nem é tão grande assim... Então fomos dançar. Arriba! Fausto ficou reclamando que podíamos ter feito uma festa no apê do Ulisses, que era mais perto, mais cômodo, mais barato etc. etc. etc. Mas, pra ficar no apartamento do Ulisses e ver os mesmos amigos dos amigos dos amigos de sempre, eu ficava na minha casinha dormindo! Então deixamos a falação de Fausto pra lá e fomos pra uma discoteca. Talvez tivesse sido melhor ter ouvido Fausto, porque a boate que escolhemos foi uma decepção. Só tocou funk numa noite de hip-hop, com um bando de patricinhas e mauricinhos requebrando até o chão, eca! Quis sair de lá correndo. Mas, como somos muito otimistas, esperamos um pouco. Podia ser que melhorasse... Bem, melhorou... por cinco músicas! Depois voltou o funk, que não acabava mais. Decidimos ir embora, desesperançados e decepcionados. Ou melhor, decepcionadérrimos! Todo mundo na maior empolgação pra dançar... “É meia-noite ainda!”, Bernardo reclamou. “A gente não pode voltar pra casa tão cedo.” Todos de acordo. 74
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“Pra onde vamos então?”, alguém perguntou, ou talvez tenha sido todo mundo. “Vocês tão a fim de ouvir rock?” Estávamos. Diríamos sim para qualquer coisa naquele momento. Então, por sugestão do Estevão, nosso salvador em assuntos “eventísticos” musicais, fomos a um show de bandas diversas que estava rolando mais ou menos perto dali, em Botafogo. Quinze bandas, DJ entre elas (um alívio, já que nem todas as bandas eram boas), doze horas de música direto. Ótimo. Lembrei do festival em que fiquei com o Felipe. Ninguém supera aquele beijo... “Vocês já viram os nomes das bandas?”, Elisa falou, gritando no meio de tanto som, com o encarte da parada na mão. “Cada coisa estranha! Tem uma banda chamada Los Peidones!” Não acreditamos, mas era verdade. Uma das bandas realmente chamava Los Peidones. O pior, entre tantos nomes estranhos, como Ventiladores Voadores, Os Pires (que me remetia imediatamente a grupo de pagode) e Acabou a Mandioca. Pelo menos havia nomes que se salvavam, como Woody, Magnum, Et cetera (o nome mais legal!) e LMS (sigla para “Little Miss Sunshine”, em sigla exatamente para a banda não ser acusada de plágio, mas eu adorei!). Foi legal. Ouvir bandas novas é sempre legal. Dançamos muito, pulamos muito, cantamos muito (quando as bandas tocavam músicas conhecidas). A melhor de todas foi a Et cetera, que faz jus a seu título. Eles tocaram só músicas conhecidas, de Elis (diva!) a Djavan, de Capital a Paulinho Moska, passando por Los Hermanos e Vanessa da Mata, com arranjos próprios hipercriativos e instrumentos com arranjos próprios hipercriativos e instrumentos ainda mais, feitos por eles! Muito bom! Foi a banda que tocou por mais tempo, porque toda vez que tentava sair do palco, a plateia pedia bis e não deixava. Então foi uma hora e pouco de show, uma hora e pouco em que pulamos sem parar. Por isso, quando o show acabou, fomos, mortos e exaustos (seria isso uma redundância?), sentar à mesa com sete copinhos na nossa frente. E aí eu pensei “droga”. “Droga”, porque olhei pra frente e lá estava o Rodrigo. Por que o Rodrigo? Eu não queria ver o Rodrigo. Eu não esperava ver o Rodrigo. Eu não 75
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contava com o Rodrigo aquela noite. Pelo simples fato de que eu não queria que meus amigos o conhecessem. Não nessa noite. Estava muito cedo ainda. Muito cedo para eles se conhecerem. Ao se conhecerem, primeiro de tudo, eu teria que apresentá-lo como algo. Tipo: “Galera, esse é o Rodrigo, meu...”. E aí? O que viria depois do “meu”? Por mim seria “amigo”, mas e pra ele? Não... não quero nem pensar! Tá cedo, muito cedo pra se tornar algo oficial, ou mesmo sério. E é o que se tornaria se os meus Seis conhecessem o Rodrigo. Na-não. De jeito nenhum. Fingi que nem tinha visto ele. Graças a Deus ele não me viu. Mas outras pessoas o viram. “Ih, Alice, não é seu namorado ali?” “Eu não tenho namorado.” “Como não? Eles não estão há mais de um mês saindo juntos?”, ouvi Valentina cochichando pro Ulisses, mas resolvi ignorar tal comentário. “OK, então não é seu não namorado ali?” Rarará, como Fausto é engraçadinho... “É o Rodrigo ali, sim.” “E você não vai falar com ele?”, Valentina perguntou. "Não. Não combinamos que hoje seríamos só nós? Então assim será", eu disse, querendo cortar o assunto. Mas Valentina continuou. “Mas não custa nada você ir falar com ele.” Lancei um olhar tão fulminante, mas tão fulminante em direção a ela, que ela até começou a falar de outra coisa. Tadinha, se tem uma pessoa que não gosto de tratar mal é a Valentina, porque ela é muito boazinha. Mas ela pediu... Você olha de lado, tentando prever os movimentos, e, quando acha que podem talvez quem sabe perceber o seu olhar, desvia e se esconde discretamente atrás de um cardápio, um copo de refrigerante ou até de um amigo. É assim que se vigia alguém. E eu fiz tudo isso, tentando não ser vista pelo Rodrigo. O 76
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engraçado é que quem me visse agindo desse jeito diria, como meus amigos disseram, que eu tava querendo exatamente o contrário de não ser vista. Acho que era isso mesmo: eu estava me escondendo, mas querendo que ele me achasse. Eu não queria encontrá-lo por causa dos meus amigos, mas ao mesmo tempo queria encontrá-lo porque já fazia quatro dias que não nos víamos, e eu tava sentindo falta dele. Dos beijos dele. E talvez eu quisesse, sim, que ele conhecesse meus amigos. Não, isso não... Nesse momento parei de me divertir, pelo simples fato de estar absolutamente alheia ao que se passava em minha mesa, o fato de que quem tava tocando era uma bandinha muito da chata (quem sabe era o Los Peidones?) eu tinha que me esconder do Rodrigo! Daí o motivo de, quando Estevão disse: “Me apoia aí, Alice. Você também concorda que eu sei”, eu ter levantado e dito: “Vou ao banheiro”. Teria entrado no banheiro correndo não fosse minha desorientação. Fiquei alguns minutos perdida, rodando feito barata tonta pelo salão procurando os toaletes, até que uma garota pra lá de Amy Whinehouse (leia-se bêbada/chapada) me apontou a direção correta. Fui meio desconfiada, afinal o cérebro da menina gritava “álcool”, mas ela tava certa. Pelo menos no quesito localização ela tava melhor do que eu. Entrei enquanto várias garotas saíam rapidamente com expressões não muito animadoras. Estranho. Mais estranho ainda o banheiro estar vazio, a não ser por uma mulher fazendo sei lá o que em frente ao espelho. Quando as coisas estão muito boas, como falta de filas, você tem que começar a duvidar — pelo menos em relação a banheiros. Passei pela primeira porta, que estava trancada, e fui em direção à segunda. Porém dentro da segunda vi um garotinho sentado no vaso com a porta do “privativo” escancarada. O menino não tinha mais de sete anos, o que estava fazendo ali? Se ele não estivesse em situação tão constrangedora, eu teria perguntado se estava perdido, mas segui direto para a terceira porta, essa, sim, aberta e sem ninguém dentro. “Já acabou?”, alguém perguntou. “Não”, a voz fina da resposta vinha da cabine a meu lado.
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“Coloca logo tudo pra fora, filho”, a primeira voz voltou a falar, “pra eu poder te dar coca-cola logo, que é bom pra diarreia.” Desde quando coca-cola é bom pra diarreia? Só se for pra dar diarreia, ou pior, corroer todo o estômago de um garotinho de sete anos! Não quero nem imaginar o que essa mulher deu pro menino pra ele ter uma diarreia tão malcheirosa. Então descobri por que as outras meninas estavam saindo de lá tão rapidamente, e fiz o mesmo assim que lavei as mãos. Saí tão fugida da nhaca insuportavelmente difícil de aguentar que me esqueci totalmente de que Rodrigo estava lá — e que eu deveria evitar encontrá-lo. E aí dei de cara com ele. Quer dizer, de cara não, dei com as costas dele viradas para minha cara, a uns metrinhos de distância de mim. Olhei pros lados. Me senti como num filme de ação, quando o mocinho se vê impossibilitado de fugir de seu inimigo por causa de vários obstáculos à sua volta e acaba escapando por um gancho pendurado no teto. Mas como eu não estava em uma fábrica de automóveis abandonada nem nada do tipo, não vi outra possibilidade a não ser encarar o meu oponente — ainda mais porque na hora que comecei a fugir de fininho, ele se virou e me viu. Santo azar, Batman! “Olá”, eu respondi com um beijo o oi dele. “O que você tá fazendo aqui?” “Vim ver a banda de uns amigos meus. Lembra que te falei?” É verdade, lembrei. Pena que não foi mais cedo. “Magnum. Eles já tocaram.” “Ah, eu vi. Muito bons.” “E você?” E eu? Putz, e eu? “Eu... ah, eu vim... ver.” “Tá sozinha?” Instintivamente olhei pros lados pra ver se algum dos meus amigos estava por ali. Não podia mentir com a probabilidade de aparecer alguém logo na sequência. 78
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“Tô.” “Fica com a gente, então. Te apresento o pessoal.” Ele me apresentou. Fernando, Eduardo, baterista e guitarrista, respectivamente. Danilo, que toca baixo. Thales, que trouxe o trombone (não resisti à piada!), Breno, do trompete, Vitor, o tecladista, e Mansur, que fica na percussão. Ainda me apresentou ao Igor e à Thaís, irmão do Danilo e namorada dele (do irmão). Conheci todos eles, mas foi como naquele dia em que conheci o Rodrigo: não percebi a cara de ninguém, porque o tempo todo tava preocupada se meus amigos iriam aparecer. Eu tava meio neurótica. E tão preocupada que nem escutei COMO fui apresentada. Porque o jeito como você é apresentada aos amigos dele faz toda diferença. Espero que tenha sido “essa é Alice, minha AMIGA”. Tive um déjà-vu. Enquanto estava lá, sentada com a galera do Rodrigo, me vi repetindo o mesmo que estava fazendo mais cedo, mas dessa vez me escondida de Valentina, Estevão, Fausto, Elisa, Ulisses e Bernardo. Por que eles resolveram sentar tão perto do meu pessoal? Os amigos do Rodrigo devem ter me achado muito estranha pelo modo como me comportei. Mas eu não queria o confronto aquela noite, ainda mais com a galera dele junto também. Galera com galera fica mais sério ainda! Quando percebi que tava estranha demais, me escondendo atrás da cabeça cacheada do Rodrigo, pedi licença e me levantei. Dei a volta inteira no salão e voltei para a mesa em que eu estava antes. “Banheiro demorado esse, hein?”, Fausto disse, quando voltei a sentar na minha cadeira. “Que bom que você chegou. Bora dançar?” Mal sentei, Elisa já me puxou pra levantar de novo: “Eu e Valentina estávamos te esperando, porque esses garotos são muito frouxos”. “Tô cansado, pô. Tô em pé desde as nove da manhã!”, Bernardo reclamou. “E eu desde as sete”, eu disse antes de ir com elas. Fui porque assim ficava mais fácil manter os dois grupos longe, já que 79
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eu não seria vista no meio daquela multidão de cabeças pulantes. E de lá eu não saía. Mesmo quando as duas não aguentavam mais dançar, eu dizia: “Só mais uma”, e a gente ficava mais um pouco, e música após música eu enchia o saco delas pra ficar mais. Já eram umas cinco da manhã quando o meu artifício parou de dar certo e voltamos pra mesa. Quer dizer, eu voltei pra mesa solitária, porque Elisa já tinha sumido com um garoto mais ou menos meia hora antes, e depois Estevão apareceu na pista e agarrou a Valentina, e eu já sou velha demais pra ficar bancando o castiçal. Na mesa, só encontrei Bernardo e Ulisses. “Fausto saiu atrás de uma ruiva há mais de uma hora e disse que não precisávamos esperar por ele pra voltar pra casa.” Fausto... sempre igual. Como os dois não paravam de conversar sobre mulher, aproveitei e fugi dali pra mesa do Rodrigo, que tinha esvaziado consideravelmente também. Agora só quem tava lá, além dele, eram Mansur, Danilo, o casal, Thales e uma menina no colo dele, que deduzi ser sua namorada. Mas não fui apresentada a ela. Estranho, muito estranho. “Eu tava dançando...”, expliquei quando Rodrigo me olhou estranho por eu beber todo o guaraná que seu copo extremamente grande continha. “Tudo bem”, ele disse. “Só que o copo não era meu, era do Vitor, e não era guaraná, era cerveja.” Fiz cara de “ahn?”. “Você não percebeu?”, ele me perguntou, espantado com minha, ahn... burrice? “Não. Pra mim era guaraná.” “O que o Vitor colocou aí dentro pra cerveja ter gosto de guaraná?”, perguntou Mansur, o equivalente ao Fausto do grupo deles, pude perceber. Eu descobriria isso ao chegar em casa e colocar tudo pra fora, mas na hora eu não sabia. Comecei a sentir os efeitos do guaraná falso não muito depois. Não bebo exatamente porque sei como fico quando bebo, mesmo que seja só meio copo. Enjoada, tonta, aliás, muito tonta, e outras cositas más que não são nem um pouco legais. No exato momento em que meu estômago deu a primeira revirada, senti 80
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uma urgência imediata de ir embora. Me preparei psicologicamente para levantar sem cair, o que eu sabia que era difícil, juntei toda a minha força e concentração e me pus de pé, pensando a todo instante “não caia, não caia”. “Gente, já tá tarde, tenho que ir, tchau”, falei de uma vez só, mas tomando cuidado pra não tropeçar nas palavras. Não queria dar na cara que estava alta. Ah, a quem tô querendo enganar? Bêbada. Mas não por minha culpa! “Manda um tchau pro resto do pessoal por mim.” Rodrigo se levantou: “Peraí, eu te levo”. “Não!”, eu me desesperei. Se ele me levasse, teríamos que passar pela minha mesa, onde estava minha bolsa, e, mesmo que quem não estava na mesa quando saí ainda não tivesse voltado, ele conheceria pelo menos Ulisses e Bernardo, e isso eu não queria. Sem contar que havia uma grande probabilidade de eu cair ou vomitar em cima dele se ele continuasse comigo. De todo jeito, não seria legal. “Não, tudo bem, fica com seus amigos, eu pego um táxi, não tem problema. Beijo, tchau.” Dessa vez falei mais corrido ainda juntando uma palavra na outra, e fui embora, tomando cuidado pra não tropeçar nos meus pés. Corri como pude pra minha mesa: 1. Pra não ser seguida; 2. Porque precisava ir embora, e sem voltas pelo salão. Encontrei Bernardo e Ulisses ainda sozinhos. “Vamos”, puxei um dos dois, sei lá quem, não me importava. “Peraí, Alice”, sei lá quem me respondeu. “E os outros?” “O que aconteceu?”, Estevão perguntou, se aproximando e vendo a cena bonita: Eu, com um dos meninos em uma mão, metade sentado, metade em pé, e o outro confuso, só olhando. “A gente tá indo embora”, respondi, com o menino que eu puxava já em pé, o outro idem. “Mas a Valentina tá no banheiro”, Estevão disse. 81
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“Então você espera ela, né, Estevão?” “Mas a Elisa, o Fausto...” “O Fausto não volta hoje, e a Elisa sabe se virar. Tchau, Estevão.” “Mas...”, Bernardo — acho que foi o Bernardo — começou a falar. “Eu preciso ir embora... AGORA.” Fico total em pânico quando bebo. Porque sei que vou passar mal e, naquele instante, porque já tava passando mal. ODEIO ficar tonta — MUITO tonta. Bernardo e Ulisses perceberam meu estado nem um pouco tranquilo e saíram comigo, meus cavaleiros da armadura branca e cavalo prateado. Tá que no táxi Bernardo começou a me dar sermão. “Como você bebe de um copo que nem sabe de quem é?” Mas Ulisses mandou ele calar a boca e aí ficou tudo calmo — até eu chegar em casa e colocar tudo pra fora. Tá, esse final de noite nem foi muito divertido. Mas no geral até que a saída foi boa. Mesmo eu brincando de pique-esconde...
Quinta-feira, 15 de maio Acordei às duas da tarde com uma imensa dor de cabeça. Se eu contasse ninguém acreditaria. “Ressaca com um copo de cerveja?” Pois é, acho que é como alguém me disse uma vez: talvez seja porque eu já sou muito louca normalmente. Mas, poxa, o copo era grande! Bernardo e Ulisses estavam dormindo na sala, um no chão e outro no sofá. Ulisses deve ter usado o argumento “sou mais velho, fico com o sofá”, que Bernardo provavelmente não aceitou, porque não é bobo, e tiveram que decidir no par ou ímpar, palitinho, pedra, papel e tesoura ou qualquer desses joguinhos. Não importa qual tenha sido, Ulisses ganhou e Bernardo foi 82
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obrigado a dormir no chão de qualquer jeito. Ulisses tem uma sorte nessas brincadeiras... Não queria acordá-los, tadinhos, mas eu queria muito acordar a Elisa e o Fausto pra saber como tinha terminado a noite deles — se é que tinha terminado de fato. Levei o telefone até a cozinha, andando na ponta dos pés, porque só de pisar com o pé inteiro minha cabeça parecia que ia explodir. O único motivo pelo qual não tomei logo um remédio é que minha curiosidade ainda é mais forte que qualquer dor. Na cozinha, abaixei atrás do balcão, tudo para atrapalhar o menos possível o sono dos meninos — como se fizesse alguma diferença, já que o balcão que separa a sala da cozinha não é um empecilho muito grande para a propagação da minha voz. Isso que dá preferir beleza a praticidade, um telefone sem fio seria muito mais útil em uma situação como essa. Mas telefones com cara de antigo, desses de rodar o “disquinho”, são tão mais estilosos! Coloquei o telefone na orelha e imediatamente ouvi um alô. Mas peraí, eu já tinha discado? “Alice?”, a pessoa do alô falou. “Sou eu, Mila.” “Ué, eu te liguei?”, de ressaca e recém-acordada... difícil meus neurônios funcionarem direito. “Não, eu que te liguei”, ela disse, como se me achasse retardada. “Tá bêbada, Alice?” Rarará, que irônico. “Fala, Mila”, disse com a proporcional à minha dor de cabeça.
empolgação
inversamente
Ela falou, falou, falou, mas eu praticamente dormia ao telefone. Entendi algumas palavras soltas, como “teatro”, “hoje à noite”, “tem que ir”, “você”, “ganha pra isso”. Também ouvi algo como “anda meio irresponsável ultimamente”, mas essa frase resolvi ignorar. Acabei concordando em ir ao teatro à noite pra ficar na bilheteria — pelo menos acho que era com isso que eu tava concordando —, e desliguei logo que pude. Saí da cozinha depois de tomar um remédio, mas não liguei pro Fausto nem pra Elisa. Esqueci completamente. Fui cambaleante pro banheiro, e tomei um looongo banho, daqueles que gastam metade da água do 83
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mundo. Amo o meio ambiente, mas no momento foi mais que necessário ser egoísta. Saí de lá quase eu mesma novamente, com 75% da dor de cabeça fora de mim. Mas só me toquei do tempo enorme que levei no banho quando cheguei à sala e os meninos já estavam acordados, arrumados e tomando o grandioso café da manhã composto de suco e biscoito maisena. Nota para mim mesma: preciso fazer compras. “Tá melhor, Johnny?” “Tô”, respondi dando um beijo na testa de cada um. O Fausto tá certo, às vezes pareço uma mãe. “E vocês, dormiram bem?” “Não muito”, Bernardo disse. “Queria ter a sorte do Ulisses no pedra, papel e tesoura.” Ah, eu não disse? Agradeci novamente aos dois pelo que fizeram na noite anterior, antes de o Ulisses falar: “Estevão ligou pra ver como você tava. Me acordou, o filho da mãe”. “Elisa também ligou.” “E?” Minha curiosidade deu alô de novo. “O que aconteceu ontem?” “Nada.” “Nada?” “Não. Ela disse que o garoto era muito abusado e o dispensou depois de uns agarros. Voltou pra mesa pouco depois de a gente ir embora.” Ah, fala sério. Tanto afobamento pra isso? Elisa já fez melhor... “E o Fausto?” Os meninos se entreolharam, deram uma risadinha, e Ulisses respondeu: “Ninguém sabe onde está”. Por isso que eu gosto do Fausto, ele nunca me decepciona. Bom saber que terei historinhas pra dormir à noite. 84
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Calça jeans, blusa branca de abotoar com rendinha na manga, sapatilha vermelha e branca. Big bolsa com agenda, estojo, carteira, batom e outros apetrechos necessários. Faixa no cabelo cuidadosamente desarrumado. Olho no espelho, mão no controle remoto pra desligar a TV. Comida pro gato, água pro gato, janelas fechadas pro gato não cair, gás desligado pro gato não morrer asfixiado. Corrida até o quarto pra pegar a chave esquecida. Corrida até o banheiro pra dar uma última ajeitada no cabelo que já tá muito grande e precisa de um corte. Corrida até o telefone que não tinha nada que tocar quando eu estava prestes a sair. “Oi, Brigitte.” Reparei que as pessoas adoram me chamar de outro nome. É Ulisses com Johnny, Rodrigo me chamando de Brigitte. Será que Alice Maria é assim tão feio? “Oi, Rodrigo”, eu disse sem adicionar o típico “tudo bem”, porque minha atenção não saía do relógio. “Você foi embora tão intempestivamente ontem, o que aconteceu?” “É que tenho um sério problema com bebida, passo mal no primeiro copo, e aí não deu outra.” Eu estava com muita pressa pra ficar inventando desculpas. “Com UM copo?” É, ninguém acredita. “É, mas já tô bem. Olha só, tô muito atrasada pro teatro, não posso falar com você agora, OK?” Não queria ser grossa, mas já podia ouvir a reclamação do povinho no meu ouvido — ainda mais depois de três telefonemas da Elisa me apressando. E aquela frase da Mila, que eu tentei ignorar, ecoando na minha cabeça. Desliguei e saí correndo de casa, o mais depressa possível. Toquei a campainha do apartamento do Fausto, rezando pra já ter voltado de seja lá onde ele estava. Quando ele abriu a porta, quase pulei no pescoço do menino.
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“Fausto!!! Eu te amo, você é meu melhor amigo! Rola uma carona?” Rolou, claro. Fausto não sabe dizer não pra mim. OK, isso é mentira, porque ele e Elisa são os primeiros a me negar as coisas e só aceitam depois que eu deixo bem claro que é algo MUITO importante, mas dessa vez nem tive que implorar pra ele me levar ao teatro porque, graças a Deus e à ruiva, ele estava de bom humor. No curto caminho de vinte minutos até lá, ele fez um resumo rápido do que aconteceu. Ele conheceu a ruiva, deu uns pegas na ruiva (palavras dele), ele e a ruiva foram para um bar (“que clichê, Fausto”, eu falei), ele e a ruiva foram para a casa da ruiva (a convite dela), ele e a ruiva fizeram brincadeirinhas (com pouco barulho para não atrapalhar a roomate da ruiva), ele e a ruiva dormiram, ele acordou sem a ruiva, ele se arrumou pra ir embora, ele conheceu a roomate da ruiva na sala, que disse que a ruiva tinha ido trabalhar (coitada, em pleno sábado de manhã...), ele e a amiga da ruiva fizeram brincadeirinhas (dessa vez com o barulho que eles quiseram), ele foi pra casa. É, boa resumida. Fausto consegue ser pior do que eu em se tratando de sexo, é um verdadeiro piranha. Mas ele gosta — e eu gosto de ouvir as histórias depois, então tá valendo. Cheguei ao teatro com apenas dez minutos de atraso, mesmo assim já fui recebida com gritos histéricos que me fizeram correr logo pro meu posto de bilheteira. Vanessinha tava tendo um treco porque teve que ficar no meu lugar enquanto eu não chegava, e ela odeia esse “extrasserviço”. Eu gosto. É legal ficar conversando com as pessoas que vão lá assistir, nem que seja só pra falar “boa noite”, “boa peça”, “quantos ingressos?”. “Um só, por favor.” Eu olho pra frente e o que vejo? Os cachinhos, o sorriso, o peitoral levemente saradinho que eu bem conheço. OK, esse último eu não vejo, mas eu sei que tá ali, bem embaixo da blusa amarela. “O que você veio fazer aqui?” “Ver a peça, ora”, ele respondeu como se minha pergunta fosse a mais estúpida. E até que era. 86
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“Pensei que você não gostasse de teatro.” “E não gosto. Mas, quando eu tô saindo com a cenógrafa, tenho que prestigiar o trabalho dela, você não acha?”, e pegou o bilhete da minha mão. “E depois a gente pode sair, ontem não tivemos quase tempo pra ficar juntos.” “Boa ideia”, eu disse, sorrindo abobalhada. “Te vejo depois, então.” Se não tivesse uma grade na minha frente, juro que tinha pulado em cima dele e dado um beijo, mas um beijo... Preciso admitir, Rodrigo é um fofo. O que fazer com essa informação, meu Deus?! Quando a peça finalmente acabou — 85 minutos que nunca foram tão longos — mal ouvi as palmas, praticamente corri pro minissaguão por onde as pessoas saem. Depois pensei que eu não podia parecer tão desesperada para ver o Rodrigo, então voltei pro camarim, arrumei as minhas coisas, ajudei Vanessinha a arrumar as dela, dei um rápido tchau pro pessoal que chegava do palco, e só então retornei pra saída. Rodrigo tava lá, tão bonitinho, parado, sozinho, de cabeça esticada procurando alguém: eu! Quando me viu, veio em minha direção e me deu um beijo. Gostoso... “E aí, gostou?”, perguntei me referindo à peça, claro. “Da cenografia e do figurino, sim.” Fiquei toda orgulhosa de mim mesma quando ele respondeu, apesar de pensar que poderia ser só pra me agradar. “A iluminação é muito boa também, o jogo de luzes do final...” “Fantástico, né? Antônio é muito bom mesmo, apesar de ser um chato.” Ele riu. “Mas e a peça em si?” Ele me olhou, sério. “É pra ser sincero?” “Claro!” 87
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“Não gostei muito, não.” Aí eu olhei pra ele, séria. “Você não entende nada de teatro.” Foram duas horas — ou quase isso — tentando explicar pro ser humano a filosofia por trás do texto de Roberto. E a mesma quantidade de tempo o ser passou mostrando-me por que a história não tem pé nem cabeça. Dois sanduíches de ricota e cenoura depois, decidimos que essa conversa não chegaria a lugar nenhum e resolvemos mudar de assunto. E de lugar, porque meu bumbum não aguentava mais os bancos da cozinha. Sentamos — ou melhor, nos jogamos — no sofá e ficamos parados, calados, minha mão na dele, por um tempinho. Ele ainda tava cansado da noite anterior, eu idem (até por isso resolvemos ir do teatro direto pra minha casa, com uma breve parada para comprar os sanduíches), e, depois de tamanha refeição, estávamos bastante lerdos. Mas admito que achei bonitinha a cena, nós dois de mãozinha dada no sofá. (Tenho que parar de admitir tanto as coisas.) Depois de um breve cochilo de uns trinta minutos (COCHILO: essa palavra é estranha), ficamos menos torpes e nossas mentes nos permitiram pensar em algo mais além de ZZZZZ. Na verdade, ele devia estar pensando em coisas bem mais safadinhas, porque quando acordei (antes dele) notei um certo “estufamento” em sua calça. Minha vontade, claro, era aproveitar para agir, mas como sabia que não ia dar em nada porque “ele me acha especial” (ah, tá bom...), decidi ignorar e fingir que nem tinha percebido, então fui ao banheiro pra ele poder se recompor. Que avanço da minha pessoa! Quando voltei, ele já estava devidamente “abaixado”. Ainda bem que não sou homem, nunca ia conseguir controlar essas coisas. “E então, quer jogar alguma coisa?” “Eu gosto desses filmes cheios de diálogo.” Meia-noite e vários pontinhos, minha cama, eu e Rodrigo mortos de sono, mas sem vontade de dormir porque a conversa e os beijos estavam muito legais. Depois de vários jogos, um filme e uma quase aula de salsa, interrompida antes mesmo de começar, 88
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pelo cansaço dos participantes. Rodrigo só de calça, de lado, apoiado em um braço olhando pra mim, totalmente vestida e deitada, olhando pra ele. “Eu, não. Tem uma hora que eu canso. Sabe Antes do amanhecer?” (Resposta positiva dele). “Então, durmo nos primeiros quinze minutos, é entediante.” “Você gosta mais de ação, né?” “Muito mais.” “Eu gosto de Antes do amanhecer, e da sequência. Mas desse estilo o melhor pra mim é Waking life.” “Ah, de Waking life eu gosto também.” “Você não é só de ação, então.” “É, acho que não.” Nossas mãos se tocam. Ele fecha os olhos. Tá morto de sono, tadinho. “Rodrigo?” “Hum?”, um “hum” bem “eu tô praticamente dormindo”. “Você podia aparar esses pelos debaixo do braço, né?” Foi a segunda noite consecutiva que um menino dormiu na minha casa.
Domingo, 18 de maio Eu gosto de algumas coisas. Gosto de futebol, tanto de assistir como de jogar. Gosto muito de sorvete de chocolate branco, especialmente se tiver pedacinhos de chocolate, e mais ainda se tiver sido feito por mim (o chocolate em pedaços, não o sorvete, porque eu gosto de fazer doces, mas não sou tão boa assim). Amo cantar, amo correr, sobretudo com meu gato pela casa inteira, amo falar ao telefone, sobretudo de madrugada (não faço ideia de onde saiu essa minha preferência em falar ao 89
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telefone de madrugada, só sei que ela existe), adoro pessoas de bom humor. E amo muito, muito mesmo meu irmão. Por isso entrei em desespero quando a Amanda ligou dizendo: “Alan sofreu um acidente”. Sobretudo pelo tom de sua voz. Se ela tivesse ligado e falado: “Alan sofreu um acidente” rindo, ou acrescentasse depois um “mas não foi nada sério”, eu pensaria que ele caiu da escada, ou que só deu uma batida de lado com o carro assim, como vi acontecer uns dias atrás e ninguém se machucar (só o carro, que saiu um pouco arranhado depois disso, já que bateu em um reboque). Mas não, a voz dela estava séria, não ouvi nem sequer um pensamento risonho. Na posição em que estava fiquei, parecia uma estátua dentro do ônibus — olha só também o momento em que ela vai me ligar, o que eu podia fazer dentro de um ônibus? Ela não podia ter me ligado quinze minutos antes, quando eu ainda estava com o pessoal da companhia? Entrei em tamanho choque que a mulher sentada atrás de mim perguntou se estava tudo bem. Não consegui nem responder para a pobre coitada da moça, que ficou falando sozinha, já que assim que ela acabou a pergunta, eu levantei e puxei a cordinha do ônibus. Levei um tempo pra me localizar quando saltei do ônibus. Minha mente estava em tal frenesi que mal conseguia pensar. “Tenho que chegar ao hospital”, era só o que eu repetia sem parar. Fiz sinal pro primeiro táxi que passou e, obviamente, ele não parou. Os táxis nunca estão vazios quando a gente precisa. Já estava entrando em pânico quando, finalmente, o quinto táxi para o qual fiz sinal parou, e eu entrei. Dei o nome do hospital, felizmente o taxista sabia onde era, porque acho que eu não ia saber explicar. Peguei meu celular e de repente me vi ligando pro Rodrigo. Foi a primeira pessoa para quem pensei em ligar, não sei por quê. Quando ele atendeu, comecei a chorar. Assim, do nada. Até então eu estava em tal estado de choque, até porque eu não sabia direito ainda o que havia acontecido, que não tinha nem pensado em chorar, o que é muito raro em se tratando de mim. Mas acho que quando falei pra ele o que tinha acontecido, e lembrei da gravidade da voz da minha irmã, aí me dei conta, caiu a ficha, sei lá! Coitado do taxista, ficou todo preocupado comigo, dava pra ver pelos olhos dele, a única coisa que eu via pelo espelhinho do carro. E coitado do Rodrigo, tentando entender o que eu dizia em meio a todo aquele chororô e ainda tentando me acalmar. Não demorou muito e chegamos ao hospital. Desliguei o celular, 90
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paguei o taxista, que me disse que tudo daria certo (claro, o que mais ele podia dizer? “Seu irmão vai morrer?”), e entrei no hospital. Me vi perdida ali dentro, não fazia ideia de onde ir. Acho que nunca tinha entrado em um hospital antes disso, só quando minha irmã nasceu, mas eu era muito pequena pra lembrar. Não fazia ideia de como as coisas funcionavam, onde ficava a emergência, onde ficava a sala de espera. Achei que ia entrar no hospital e dar de cara com meus pais na sala de espera, como é em todo seriado e filme. Umas pessoas estavam sentadas por ali, o que me fez pensar que era uma sala de espera — pelo menos uma delas —, mas não vi meus pais em lugar nenhum. Isso só me fez chorar mais. Quando começo é difícil parar, a coisa só vai aumentando, é progressivo. Por isso foi bem difícil me fazer clara quando perguntei pra uma das moças que estava sentada atrás de um balcão aonde eu deveria ir. Ao contrário dos filmes e seriados também, não teve ninguém pra me levar até onde meus pais estavam, tive que seguir a indicação com medo de me perder, porque o hospital parecia bem grandinho. Mas consegui achar minha família, aí sim, como em filmes e seriados: meu pai em pé andando de um lado pro outro, minha mãe e minha irmã sentadas lado a lado, de mãos dadas, todo mundo com cara de enterro. Gelei. Meu pai me viu e foi falar comigo. Se ele não tivesse ido, eu teria ficado parada ali por um longo tempo, porque tava morrendo de medo de saber o que tinha acontecido de verdade. Antes de qualquer explicação, ele me abraçou e disse que Alan ficaria bem. “Pai, isso é o que todos dizem, mesmo antes de uma pessoa morrer”, falei, com as lágrimas molhando a camisa do meu pai. “Cala a boca, Alice!” Pelo visto, eu disse um pouco mais alto do que queria, e minha mãe e Amanda também ouviram, mas só minha irmã respondeu. Minha mãe, tadinha, acho que não estava em condições de falar nada. Se ela abrisse a boca iria chorar, e eu sabia que ela não queria isso. Ela precisava se manter forte pelas filhas dela, é o que ela sempre fez, sempre faz e sempre fará. Eu acho uma besteira. Meu pai também, o que dava pra perceber por sua barba úmida. O acidente de Alan envolveu um carro, mas não o dele. Ele estava saindo da clínica de fisioterapia na qual trabalha e foi atravessar a rua pra pegar o carro dele, quando um veículo veio a 91
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toda velocidade e o atropelou. Pior, nem parou pra ajudar! Devia estar bêbado, ou chapado, ou roubando o carro. Ou então era só um estúpido covarde mesmo! Mas na hora, não sei por quê, me deu mais raiva da clínica. Lugar idiota que não tem vaga pra todos os médicos que trabalham lá! Sempre achei um absurdo, agora mais ainda! A única coisa boa é a localização, porque os hospitais daquela área da zona sul são muito bons — e é rápido de chegar. Por isso ele não chegou morto ao hospital. Disseram que, com aqueles ferimentos, se demorasse muito não teria sobrevivido. Uma coisa muito agradável de dizer a uma família desesperada, não é? E, mesmo com essa rapidez, ele não estava seguro, porque alguma coisa podia acontecer durante a operação. Tão animador... Sentei ao lado da minha mãe e segurei a outra mão dela, a que não tinha uma Amanda de enfeite. Minha intenção era dar apoio, mas chorando do jeito que eu estava era um pouco difícil. Um tempo depois consegui parar de chorar, de tão revoltada que estava com a demora em obter alguma notícia. “Calma, Alice, só se passaram dez minutos”, meu pai disse, sentando-se finalmente. “É, mas vocês já estão aqui há mais tempo, eles vieram falar alguma coisa?” “Não, mas a gente chegou uns vinte minutos antes de você. É pouco tempo.” “Só isso já dá trinta minutos de operação, ele já devia estar sendo operado há pelo menos o mesmo tempo antes, e isso tudo dá uma hora. Uma hora é muito tempo!” “Alice, quer parar?”, minha irmã falou, apontando minha mãe com os olhos, mas eu sabia que na verdade era ela quem estava ficando assustada com o que eu dizia. Parei de falar. E até de pensar, acho. Por um momento fiquei no meu próprio mundo, de mãos dadas com minha mãe e olhando para a frente, como se nada tivesse acontecido e a gente estivesse numa peça, ou num filme, ou só visitando o hospital porque deu na telha. Entrei em uma negação estranha, tão estranha que comecei a pensar em cachorro-quente, eu, que não como carne 92
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vermelha! Muito estressantes.
louco
como
a
gente
reage
em
situações
Não sei quanto tempo passou até o Rodrigo chegar. Sei que ainda não tinham dado notícia nenhuma do meu irmão. Quando o vi comecei a chorar de novo. Descontroladamente. Ele correu até mim e se ajoelhou na minha frente, já que a cadeira ao meu lado estava ocupada pelo meu pai. Deu oi pra todo mundo e perguntou como Alan estava, e eu comecei a reclamar que ninguém tinha ido até lá falar nada ainda, que os médicos não se preocupavam com ninguém, que a sociedade era medíocre, tudo entre rios de lágrimas, falando bem embolado. Ele tentou me acalmar mais uma vez (em vão), e disse que ia tentar saber alguma coisa. Quando ele levantou, meu pai olhou pra mim e perguntou: “Quem é esse?”. Eu tinha esquecido completamente que meus pais ainda não conheciam o Rodrigo. E eu nunca nem tinha falado dele pra minha família. Por isso eles devem ter achado muito esquisito um estranho falando comigo assim. Se eu não estivesse em tal situação, com certeza ia estar morta de vergonha e nem um pouco feliz de os meus pais terem conhecido o Rodrigo, mas como eu não ligava para nada no momento, só para meu irmão, lógico, respondi apenas: “É o Rodrigo”. E quando meu pai perguntou de novo, “Rodrigo quem?”, abri o berreiro mais uma vez (eu não parava!) e comecei a balbuciar: “É um amigo, um ficante, um rolo, ah, eu não sei!”, e meu choro aumentou. E então minha irmã disse: “Eu queria que o Rafael estivesse aqui, mas ele tem uma prova!”, e começou a chorar também. E aí, vendo as duas filhas chorarem, minha mãe não aguentou mais prender o choro e começou também, e ficamos parecendo a Família Buscapé, superescandalosa. Quando Rodrigo voltou sem notícias, e meu pai entrou na onda também, piorou ainda mais! Fiquei com pena do Rodrigo, com quatro pessoas, três desconhecidas e parentes da ficante/rolo/peguete dele, chorando sem parar, e sem nada que pudesse ser feito. Não queria estar no lugar dele. Mas também não queria estar no meu. Se bem que entre o dele e o meu, eu preferia o dele. Posso mudar? 93
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Mais ou menos uma hora depois — e Amanda Maria um pouco menos triste porque Rafael havia chegado —, tivemos notícias do Alan. Tudo correu bem na operação, ele estava fora de perigo (“por enquanto”. Sério, esses médicos precisam aprender a ter mais tato), mas teria de ficar no hospital para observação. Respirações aliviadas (de todos), choro compulsivo (de minha parte, lógico, quem mais?), abraço (Rodrigo em mim, own). Meus pais correndo para ver meu irmão. Minha irmã foi com Rafael comer alguma coisa, eu e Rodrigo ficamos por ali mesmo. Fechei os olhos e senti como se aquilo tudo não tivesse realmente acontecido. Era uma sensação muito estranha, meio como o que sinto quando volto de viagem. Parece que nunca saí do Rio e que as fotos são todas montagens. “Você não quer ir lá pra fora, comer alguma coisa, andar um pouco?”, Rodrigo me perguntou. Eu fiz que não com a cabeça e, sem pensar, a deitei em seu ombro. Me senti protegida, não sei por quê. Eu também não sabia por que tinha ligado pra ele quando soube do Alan. Quando acontecia alguma coisa comigo, eu ligava pra Elisa, pra Valentina, pro Estevão, pro Fausto, pro Bernardo ou pro Ulisses. Sempre. Em toda a minha vida. Eles são minha família desde pequena, as pessoas que estão sempre ao meu lado e as primeiras em quem penso quando preciso de alguma coisa ou de alguém. Mas desta vez eu não tinha sequer ligado para qualquer um deles ainda. Estranho Rodrigo ter sido a primeira, na verdade a única, pessoa que pensei em chamar. Mas eu não ia ficar pensando nisso aquela hora. “Obrigada por ter vindo”, eu disse, finalmente abrindo os olhos. Ele sorriu e me deu um beijo suave. Não me arrependo de ter sido ele a pessoa que eu chamei.
Sexta-feira, 23 de maio Estávamos indo pro hospital, de ônibus, levemente lotado. Não lotaaado, mas umas sete pessoas estavam em pé. Rodrigo era 94
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uma delas. Eu estava sentada na ponta de cá do banco, perto da porta de saída. A minha bolsa e a mochila dele no colo. Praticamente imóvel, com os dois trambolhos em cima de mim. Eis que Rodrigo vira pra mim e diz: “Tem uma menina me olhando”. “Quê?”, olho pra cima. “Tem uma menina ali atrás que não para de me olhar.” E eu com isso? “Legal”, respondi, e voltei a olhar para a frente. “Você não vai falar nada?” “Sobre...” “A menina me olhando.” “Deixa ela olhar, ela tem olhos pra isso.” “Tá”, ele disse e finalmente me deixou quieta. Eu preocupada com meu irmão, que tá há cinco dias no hospital, e ele falando de uma menina que fica olhando pra ele. E que insistência! Devia estar prestando muita atenção na menina pra chegar ao ponto de falar que ela tava olhando. E também, deixa a garota olhar! Se eu visse um cara gato no ônibus também olharia, mesmo que ele tivesse namorada. Bem, acho que nesse caso eu teria um pouco de respeito, mas, se a garota não é como eu, o que posso fazer? Cada um tem a liberdade de fazer o que quiser. Mas... Ele podia estar querendo provocar ciúme em mim. Não, não deve ser. Ele saberia que eu NÃO sinto ciúme de alguém que não é meu namorado. Se fosse, até poderia sentir, mas não é! “Se você fosse um homem comprometido, seria um pouco cara de pau da parte dela ficar olhando”, eu disse depois de um tempo de silêncio. “Mas você não é, então...” “Não sou?” “Não. Por quê? Tá em dúvida?” “Não, não. Eu não sou, eu sei.” 95
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Ficamos em silêncio de novo — bem, nós, porque do lado de fora era aquela confusão que toda rua é —, enquanto eu tentava equilibrar as coisas no meu colo. “Mas”, ele disse, me tirando da minha “equilibração”, e a mochila dele escorregou um pouco pra direita. “E se eu quisesse ser? Comprometido, antes que você pergunte „o quê‟?” “O que que tem?” “Você acha que seria possível?” “Ué, não sei. Talvez”, eu disse, meio sem ligar. “Mais pra mais ou mais pra menos?” “Não sei, Rodrigo. Como eu posso saber?” Ele olhou pro lado e depois olhou pra mim de novo. “Vamos criar duas hipóteses. A primeira é que eu estou enrolado com alguém, e a segunda é que a menina do ônibus não olha para pessoas que estão em um relacionamento sério. Você acha que tem alguma chance de a menina não olhar pra mim por causa desse alguém?” “Hum... Pode ser.” “Pode?” “É, acho que sim.” “Acha?” “É.” “É?” “É, tem sim.” “Obrigado pela dica, Alice.” “De nada.”
Quinta-feira, 29 de maio 96
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“Mas como você só conta hoje?” Em vez de cara preocupada, abraços e beijos de consolo e até, quem sabe, uma única e singela lágrima rolando no seu rosto, Elisa resolveu que gritar comigo é a melhor resposta para minha notícia. “Seu irmão tá no hospital há praticamente uma semana e você só conta hoje?”, ela continuou. “E pior, depois de contar pro Rodrigo, que não é NADA seu!” É, bem, nada não, né? “Estou chocada. Decepcionadíssima, Alice.” Nesses momentos de escândalo é que lembro de como Elisa é parecida comigo Expliquei para ela e para os outros — que não agiram como robôs psicóticos — que não deu pra falar nada antes porque estava, assim como toda a minha família, correndo de um lado pro outro: pegando roupas do Alan pra levar pro hospital, fazendo companhia pra ele, que ainda não teve alta, mas graças a Deus já tá fora de perigo, conversando com médicos, tomando todas as providências necessárias para manter uma pessoa em um quarto de hospital com o mínimo de conforto. Não pareceu adiantar muito, já que Elisa continuou reclamando como um papagaio, e Estevão não ajudou muito quando acrescentou: “Mas não custava nada avisar pra algum de nós, você ligou pro Rodrigo...” Fausto deu sua contribuição: “É, o Alan é nosso amigo também, lembra que eu só andava com ele até os treze anos?”. Eu mereço? Depois de a calma voltar a reinar e a compreensão parecer ter dado as caras, eles cismaram em visitar o Alan. Queriam porque queriam, e quem sou eu pra negar, não é? Ele já está bem pra receber visitas, e como está no quarto, agora pode. E ia ficar mais felizinho (olha eu, tratando meu irmão mais velho como uma criança), então fizemos uma escala (porque tem essas besteiras de horário de visita e blá-blá-blá). Hoje à noite: Elisa (pra parar de me encher o saco) e Fausto (“porque ele já foi meu melhor amigo”, blergh!).
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Amanhã de manhã: Valentina e Bernardo (os desocupados). Amanhã mais tarde: Ulisses e Estevão. “Agora que já tá tudo resolvido, vocês querem fazer o favor de me paparicar? Meu irmão quase morreu!” Era noite quando meu celular tocou. Eu tinha deixado Fausto e Elisa no quarto com Alan e minha mãe, e fui comer alguma coisa, porque eu não comia desde as duas da tarde. Incrível como não tenho lembrado de comer. Sempre alguém tem que me perguntar: “Alice, já comeu?”, e a resposta é sempre não, e só então percebo que tô com fome. O resultado disso é que acabo comendo uma vez ao dia... e perdendo peso, o que é algo positivo no meio dessa loucura toda. Eu sabia que era Rodrigo. Nesta semana, sempre que não está comigo, Rodrigo liga pelo menos uma vez pra checar como vão as coisas. Era mesmo ele. Abri o celular e lá tava o nome: Rodrigo. Feliz. “Oi, como foi a entrevista?” “Ih, Brigitte, foi boa, mas acho que não consegui não.” Rodrigo teve uma entrevista hoje. Uma revista abriu vaga e ele foi tentar a sorte, apesar de ser muito difícil porque era só uma vaga e a revista era conhecidinha. Mas pra quem tá sem emprego, ou seja, sem grana, toda chance é chance. Ainda bem que a Elisa não soube dessa entrevista, porque senão ela ia dizer que só fui falar com eles porque Rodrigo tava longe, e mais mil blá-blá-blás. Elisa está ficando expert em blá-blá-blás. Mas nesse caso, por mais que odeie admitir, acho que é verdade. EM PARTE! “Tinha tanta gente lá... Sei não...” “E daí? Vai que era todo mundo de faculdade particular!” “Podiam ser da PUC.” “É, aí você não tem chance...” Muito bom estar com um cara que tem a mesma implicância com faculdades particulares que eu (tirando a PUC, que apesar de ser antro de nojentinhos, é hors-concours), apesar de eu nunca ter estudado em nenhuma. 98
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“E você, como passou seu dia sem mim?” “Nossa, não sei como sobrevivi...”, eu disse irônica, claro. Depois ele perguntou do Alan, eu disse que tava bem, contei do escarcéu da Elisa, ele riu, e aí foram alguns minutos de conversas normais da vida, até eu me dar conta de que Fausto e Elisa deviam estar loucos atrás de mim pra ir embora. Disse que tinha que desligar, e ele me perguntou se eu ia dormir no hospital. Disse que não, já que eu tinha que encontrar os dois exatamente pra ir pra casa (às vezes ele é meio burrinho, tadinho). “Por quê?” “Tava pensando em dormir na sua casa hoje. Posso?” E precisa perguntar?
Domingo, 1º de junho Meu irmão finalmente foi pra casa. Nossa, foi uma festa! A gente vê as pessoas superfelizes quando alguém próximo recebe alta do hospital, e acha besteira aquele fuzuê todo que fazem, mas quando acontece com a gente dá para entender o porquê. Depois de semanas em um hospital frio (frio mesmo, eu só andava de casaco por lá), desconfortável, não íntimo, tendo que resolver problemas burocráticos (a família), ser submetido a mil e um exames (o paciente), colocar o pé em sua casa, seu refúgio, o lugar que você mais conhece, é um verdadeiro êxtase. No caso do Alan não é bem “sua” casa, “seu” refúgio, e sim refúgio dos meus pais. Ele foi pra casa deles porque, bem, meus pais são pais típicos, e não querem que ele fique sozinho, em recuperação, perambulando por uma casa vazia. Ele teria companhia, se desgraça pouca não fosse bobagem e a Rebecca, sua quase noiva, não tivesse dado bye-bye uma semana antes do acidente — o que a gente só descobriu por causa de tudo que aconteceu, senão ele nem teria falado! Íamos descobrir quando? Quando estivéssemos todos prontos pra ir ao casamento? Se bem que isso não aconteceria tão cedo, e na minha opinião, foi o motivo de ela ter ido embora. Depois de seis anos de namoro, o 99
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passo o passo lógico seguinte é casar: com esse tempo todo não tem como não estar acostumado com todos os defeitos do outro, então casa logo! Mas Alan, como bom Santoro-filho que é (porque os mais velhos não são assim, só os filhos), foge de compromisso sério e, mesmo morando com ela havia dois anos, não suportava ouvir a palavra “casamento” e praticamente matava a gente quando implicávamos, chamando-a de “quase noiva do Alan” — na frente dela! Ele queria enforcar todo mundo! Isso não deixava Rebecca muito feliz, e acho que foi por isso que ela se foi. Só não precisava ir de vez, porque depois de oito anos (eles já se conheciam dois anos antes de começarem o namoro), era de esperar que ela aparecesse no hospital quando soubesse do acidente, mas nem vimos a ponta do pé esquerdo dela. Isso foi sacanagem, e acho que todo mundo se decepcionou e ficou feliz por Alan não ter casado. Eu estava lá, arrumando as coisas no quarto do Alan na casa dos meus pais — bem Monica de Friends: arrumar as almofadas, tirar a poeira do criado-mudo, ver se não tem nada no chão para o Alan não tropeçar, tirar a foto da ex do porta-retrato, essas coisas —, quando Alan entrou SOZINHO. Realmente não sei como ele conseguiu se livrar das garras do resto da família. Eu, como boa Santoro que sou (não em relação a relacionamentos, mas a cuidados excessivos com membros da família), fui em cima dele como uma leoa com mil perguntas. “Você tá bem?”, “Precisa de alguma coisa?”, “Tá com fome?”, “Tá cansado?”, “Alguma coisa tá doendo?”. Enquanto eu o atacava com palavras e tirava uma poeira do chão, ele sentou na cama. Não respondeu nenhuma das minhas perguntas. Sentei na cama ao lado dele, já achando que ele tinha perdido a voz. Ia perguntar se ele conseguia falar, quando ele me abraçou. De verdade, não um desses abraços que a gente dá de vez em quando pra cumprimentar alguém ou por obrigação. Um abraço com significado. Meus olhos encheram de lágrimas instantaneamente. Mesmo não sendo irmãos desunidos, fazia tempo que Alan não me dava um abraço tão sincero, por isso desabei. Por isso e pelo fato de ter passado três semanas e dois dias em um hospital com medo do que podia acontecer com meu irmão, porque mesmo os médicos dizendo que ele tava bem, eu 100
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achava que a qualquer minuto ele podia pegar uma infecção e morrer. Também chorei de alívio por ele estar bem, de felicidade por ter uma família incrível, amigos incríveis, um Rodrigo incrível, enfim, foi uma mistura louca de emoções. Quando senti que Alan também estava chorando, e me dei conta de como isso tudo deve ter sido pra ele, e ainda vai ser, porque ele vai ter um longo período de recuperação, chorei ainda mais. E ficamos assim, abraçados e chorando por muito e muito tempo. Acho que eu tinha seis anos. É, eu tinha seis anos. Meus pais tinham saído às pressas de casa, porque minha avó estava passando mal, e nós três fomos deixados na vizinha, na época uma senhora de uns setenta anos, chamada Anita. Lembro do nome dela, mesmo depois de tanto tempo, porque meus pais brincavam que no nosso andar só podia morar gente com nome começado por A. Além de nós cinco (Ana Maria, Álvaro, Alan, Alice e Amanda), tinha o seu Adão, que tinha um cachorro enorme chamado Aipo, e antes da dona Anita moravam no apartamento dela dois irmãos bem velhinhos e solteiros, seu Alceu e dona Amália. Mas, depois que dona Anita saiu de lá, chegou um casal recém-casado, Tomás e Monique, que quebrou a regra. E depois vieram a dona Leila, a Isabel e a Julia, duas espanholas que estavam fazendo intercâmbio e viviam levando bala pra gente, a Marina, que era estilista, o seu Joel, o Rui e a Cristina, que tinham duas filhinhas, Cecília e Clarissa (de quem a gente não gostava muito), e várias outras pessoas, nenhuma com a letra A. Pensando bem, depois que a dona Anita se mudou, ninguém ficou naquele apartamento por mais de nove meses. Será que o andar só queria gente que tinha nome começado por A e aterrorizava os outros pra que fossem embora? Uau... Dona Anita era muito legal. Claro que a gente achava isso, já que ela adorava a gente e vivia fazendo docinhos pra nós três. Por isso ela não se incomodou quando meus pais deixaram a gente lá. Foi só entrarmos no apartamento que ela já foi perguntando quem queria biscoito. “Eu!”, os três gritaram, lógico. E lá se foi dona Anita para a cozinha, fazer biscoitos para as três crianças “adoráveis”. Ah, se dona Anita pudesse ouvir na época o que eu dizia agora... “Se eu fosse você, dona Anita, não deixaria três crianças, de quatro, seis e nove anos, sozinhas em uma sala com 101
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tantas, digamos, distrações.” Mas até que nos portamos direitinho. Ficamos superentretidos, brincando nas almofadonas que ela tinha no chão, fingindo que era um forte, um trem, uma cabana de acampamento, várias coisas. Até que euzinha aqui dei uma almofadada na cara de meu queridíssimo irmão mais velho, que não gostou nada da ideia. A partir daí, Alan me ignorou totalmente. Começou a brincar só com Amanda, que ainda era muito pequena pra ser malvada como eu — e como é agora — e, sempre que eu chegava perto, ele arranjava um jeito de me excluir. Até que ele começou com Amanda uma guerra de cosquinhas, coisa que ela adorava, e eu odiava. Ele sabia que eu não ia tentar entrar nessa brincadeira. Mas acontece que eu não ia deixar barato. Tenho uma confissão a fazer. Quando era criança, eu achava que podia voar. Até hoje tenho a sensação que um dia voei mesmo. As pessoas me dizem que deve ter sido sonho, daqueles que parecem de verdade e eu não esqueci da sensação que senti. Pois eu acho que não esqueci a sensação porque voei. De verdade. Alan é uma das pessoas que nunca acreditaram nisso. Ele vivia me dizendo que eu era maluca e mentirosa por dizer que sabia voar. Pois nesse dia resolvi mostrar pra ele que podia, uma pequena vingança infantil por ele ter me trocado pela pirralha da minha irmã caçula. É, eu sentia ciúme. A filha do meio é sempre meio esquecida, né? Eu não gostava disso. Então percebi que a linda e longa mesa de jantar da dona Anita era também alta, e seria um ótimo lugar de onde eu alçaria meu voo. Então subi em uma cadeira, depois na mesa e, com muita satisfação por provar que meu irmão estava errado e que eu era muito mais legal que a Amanda, pulei. Só que não voei, caí de cara no chão e quebrei o nariz. Viu, dona Anita, eu avisei pra não deixar três crianças sozinhas na sala — ainda mais uma insana como eu! Era sangue pra todo lado, choro da Amanda, que se assustou com meus berros, choro meu porque, bem, eu quebrei o nariz! Dona Anita veio da cozinha desesperada e, quando viu a cena, ficou sem saber o que fazer. A primeira coisa que ela fez foi ligar pra casa da minha avó, mas meus pais não estavam mais lá. E, naquela época, ninguém tinha celular ainda. Aí ela interfonou 102
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pro pai do Ulisses, que sendo cardiologista, seria o mais próximo de um médico que ela conhecia e estava por perto. Enquanto isso eu botava mais sangue e ficava mais desesperada, minha irmã e eu chorávamos ainda mais. Acho que dona Anita não tinha muita experiência em cuidar de crianças, porque ela ficou totalmente perdida com aquela situação. Ela nem sequer encostou em mim ou tentou fazer alguma coisa pra parar o sangue! Um mês depois ela saiu do prédio e foi pra Áustria: será que tem alguma relação? Estava esse caos completo, e dona Anita no interfone aos berros não melhorava nada, quando Alan chegou com um pano na mão, tirado sabe-se lá de onde. Ele me mandou colocar a cabeça pra trás e enfiou o pano no meu nariz. Tá que fiquei uns segundos sem respirar, porque aquela sangaiada parecia que tava entrando de volta no meu nariz, e também porque Alan enfiou o lenço quase dentro das minhas narinas! Mas depois que ele limpou o sangue do meu rosto ficou um pouco melhor, e eu já conseguia respirar de novo. Então ele olhou pra mim, a irmã do meio, capetinha, que tava bem desesperada e disse: “Calma, vai parar de doer, eu juro”. Não sei bem o que aconteceu depois. Sei que o pai do Ulisses desceu, fez meu nariz parar de sangrar e me deu um remédio, ou pelo menos acho que foi isso que aconteceu. Mas do que eu lembro mesmo é do Alan, que ficou do meu lado o tempo inteiro, e isso me fez ficar muito mais tranquila. E ELE SÓ TINHA NOVE ANOS!!! Por que eu, com vinte dois, não consigo passar a mesma tranquilidade e segurança que ele me passou naquela época? Tenho a obrigação de ser tão boa irmã pra ele quanto ele foi pra mim naquele dia e todos os dias depois disso. Mas eu não consegui ficar impassível e apoiá-lo. A única coisa que consegui fazer depois daquele abraço, que me abalou completamente, foi olhar pra ele e dizer: “Vai parar de doer, eu juro”.
Sábado, 7 de junho Nunca na minha vida conheci os pais de um namorado. Se eu conhecia, não era apresentada como tal. Namorada, quero dizer. Porque de fato não era. Meus “namoros”, se assim posso chamá-los, foram todos falsos. Eu dizia que era namoro, quando na verdade eram pegas. Somente peguetes. Ou rolos, ou ficantes, 103
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ou transas esporádicas, mas nunca namoro com N maiúsculo. Porque em namoros, os namorados não costumam fazer as coisas que eu e meu ficante/rolo/peguete/transa esporádica fazíamos. Exemplos: desmarcar um encontro pra passar a noite (conversando, please!) com outra pessoa que acabou de conhecer, ficar semanas sumido pra só depois aparecer como se nada tivesse acontecido, andar de mãos dadas com um ex (-ficante, rolo etc.) na praia, fingir ser a namorada de um amigo da escola (com direito a beijo de língua) para fazer ciúmes para a ex/ talvez presente dele, essas coisas. Por isso nunca conheci os pais de um namorado. E por isso também gelei quando escutei um barulho de chave na porta da casa do Rodrigo, e ele disse calmamente: “Relaxa, é só meu pai”. Só? SÓ?! Ai, meu Deuzinho do céu e das três causas! Um pai. Um ser adulto. Me conhecer. Conhecer a minha pessoa. Eu ser apresentada a ele. Eu ter que falar com ele. Por que, meu Deus, por que a gente não ficou na minha casa assistindo DVD como sempre? Que se dane que seu pai tem uma coleção de DVDs em casa. A locadora também tem! Por que na PRIMEIRA vez que fui à casa do Rodrigo eu tinha que me encontrar com um ser grande? Socorro! Rodrigo já tinha voltado a prestar atenção na TV, mas eu ainda suava frio, olhando para a maçaneta sendo virada — os mais longos quinze segundos da minha vida! —, como em um filme de terror em que o mocinho espera o assassino entrar, morrendo de medo. O que falar? O que fazer? Fazer cara de menina boazinha? Mas e se Rodrigo já tiver contado pra ele como eu sou de verdade — vai que eles são aquele tipo de pai e filho que têm uma ligação superprofunda, e um sabe tudo da vida do outro? Se eu fingisse ser a moça mais doce do mundo, passaria a imagem de hipócrita! Não sabia lidar com pais. Não SEI lidar com pais. O que eu estava fazendo ali? O que estava fazendo com Rodrigo? Será que é muito alto ou dá pra eu pular da janela? Com o braço dele em volta de mim, virei rápido pra TV quando vi a porta abrir. “Seja um sonho, seja um sonho, seja um
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sonho”, eu repetia como uma oração. Por que minha vida não é como um filme? Por que não posso usar um controle remoto? “Oi, pai”, Rodrigo disse depois de ouvirmos o inconfundível barulho de porta fechando. O pai respondeu. E mais alguém respondeu. Outra voz. Uma voz feminina. E o que era melhor, não era de mulher! Era de menina! De criança! Com criança eu sei lidar! Olhei pra trás e vi uma menininha de cabelos escuros e olhos animados parada na frente da porta, falando com o pai. A menina mais estilosa que eu já vi na vida! Bata cinza com um desenho rosa, lenço amarrado na calça legging branca, All Star, gorro na cabeça e uma mochila toda grafitada. Irada! “Você nunca me disse que sua irmã era pequena”, cochichei pro Rodrigo. “Por quê? Algum problema com crianças?”, ele perguntou. “Nem um pouco”, respondi, animada. Com a irmã dele ali, eu poderia me focar totalmente nela e esquecer que tinha um pai, um adulto, um ser grande por perto. E eu ainda ganharia pontos por tratar a irmã dele superbem. Olha eu, pensando em ganhar pontos com os pais de um menino. Não estou me reconhecendo. A tarde foi deliciosa. Passado o momento super hiper totalmente desconfortável de “pai, essa é Alice, minha namorada”, e eu ficar vermelha da cabeça aos pés dizendo somente “oi”, voltei logo minha atenção pra Larissa, a irmã mais nova. Eu quero uma irmã assim na próxima encarnação! Posso fazer uma troca? Aposto que a Amanda não ia se importar de ter Rodrigo como irmão. A minha impressão de que aquela era a criança mais legal do mundo era verdade! Bem, segunda mais legal, porque ninguém tira o lugar do Lucca. Mas ele é menino, ela é menina... Então ela é a criança menina mais legal do mundo! Putz, ela faz aula de grafite! Ela dança pra cacete (hip-hop!). Ela sabe conversar! Ela não é chata nem mimada! E olha que ela tem dez anos, a idade em que as crianças começam a ficar um porre! Passamos a tarde inteira conversando, jogando, dançando no DDR (ela tem DDR!!! Eu quero os pais do Rodrigo pra mim, só pra ganhar DDR!), vendo filme... Rodrigo, coitado, ficou de escanteio. Mas o que eu podia 105
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fazer se tinha uma minieu ali, do meu lado? OK, Larissa não é minieu porque é muito mais legal do que eu era na idade dela, mas que é parecida comigo, isso é! Já falei pro Rodrigo que vou pra casa dele agora só pra passar a tarde com a Larissa. Ela morreu de rir. Ele também. Ele adora a irmã, que também o adora. Eles parecem família de comercial de margarina, falando sério! Mas Larissa me disse que eles brigam de vez em quando. “Ah, é?”, eu disse. “Por quê?” “Por causa do banheiro. O Digo não sai de lá por causa do cabelo, parece até que tem cabelo de ouro!” E o melhor de tudo, só precisei falar “oi” e “tchau” pro pai deles. Agora me diz se é ou não é a menina mais legal do mundo?
Segunda-feira, 9 de junho Terminei com Rodrigo. Muito em pânico pra dizer qualquer outra coisa.
Terça-feira, 10 de junho Eu conheci a irmã dele. Eu conheci o pai dele. Ele conheceu TODA a minha família, de uma só vez, no nosso momento mais vulnerável. Eu conheci os cachorros dele. Ele conheceu o Snoopy. Ele aparece na minha casa quando quer, só falta ter a chave. A gente tá junto só há dois meses, e parece fazer dois anos. Já tá muito sério. Sério demais. Sério muito depressa. Quer dizer, tava. Eu entrei em pânico. E ainda tô muito em pânico pra dizer mais.
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Foi mais ou menos assim: a gente se encontrou no dia seguinte daquela tarde na casa dele. O dia em que eu conheci irmã, pai, cachorros. Ele, alegre e sorridente, me disse: “A Larissa adorou você. Quer saber quando você vai lá em casa de novo”. Eu, não alegre e não sorridente, o que seria difícil sentindo que podia vomitar a qualquer hora de tanto que meu estômago parecia estar brincando na roda-gigante, respondi: “Eu quero terminar”. E terminei. E voltei pra casa, ainda tremendo. Uma sensação muito estranha. Foi assim, pá-pum, porque desde o dia anterior, quando estava no teatro, depois de sair da casa dele, fiquei pensando. E fiquei pensando até o dia seguinte na rapidez de tudo. E comecei a entrar em pânico. Porque vi que o último passo que faltava era ele conhecer meus amigos. E eu conhecer a mãe dele. E no momento em que eu conhecesse a mãe dele e ele conhecesse meus amigos (a minha família 2) e eles o aprovassem, porque eles iam aprovar, seria 100% definitivo. Ele seria meu namorado mesmo, em letras garrafais, e não só como um resultado de uma conversa doida em um ônibus lotado. Seria de verdade. Seríamos Alice e Rodrigo, Rodrigo e Alice, uma dupla, um par, um casal. Vistos como um casal, um par, uma dupla. E as pessoas sempre se lembrariam de mim quando falassem dele. E sempre se lembrariam dele quando falassem de mim. E eu teria que me entregar de verdade, me mostrar, dividir ideias, sentimentos, dar satisfação, entender, ser cúmplice, estar sempre lá, saber o que falar quando ele precisasse, me comprometer. Isso assusta. Isso me apavora. Isso... não é pra mim. Não consigo. Por mais que sinta saudades.
Quinta-feira, 12 de junho E eu repito: Dia dos Namorados é um dia inventado pela sociedade e pelas lojas pra vender muito doce, cartão, flores e coisas inúteis que ficarão guardadas no armário até você terminar 107
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o namoro ou o casamento, e aí volta pro seu ex-par, e a coisa inútil fica guardada no armário dele. Eu preciso repetir isso sem parar, senão desabo.
Terça-feira, 17 de junho Hoje salvei uma garota. Entrei no ônibus, tava cheio, fiquei em pé ao lado de um garoto. Depois de um tempo percebi que a garota com quem ele falava, sentada no banco na frente dele, estava com uma cara assustada demais para os dois serem amigos. A não ser que ele estivesse contando algo muito aterrorizante. Não era o caso. Eu percebi o que estava acontecendo. Reparei bem no garoto, ele não percebeu nada, até porque quando alguém está roubando só presta atenção no roubo. Ele não parecia estar segurando nada: nenhuma arma de nenhum tipo, só sua mochila, que ele matinha aberta, esperando que a menina jogasse suas coisas de valor lá. Contando parece que durou um século, mas foi tudo muito rápido. Depois de ter certeza que ele não tinha sequer uma caneta pra enfiar no meu pescoço, olhei pra menina e disse, bem alto: “Oi, Monique! Tudo bem? Quanto tempo!”, e comecei a conversar abobrinhas com ela. O ônibus todo olhou, provavelmente pensando que eu era uma pessoa completamente sem noção. Mas, com todos os olhares de reprovação voltados pra nós três, mesmo não sendo por causa dele, o garoto se sentiu acuado e desistiu de assaltar a menina, saltando no ponto seguinte. Ela, que não se chamava Monique, claro, senão seria muita coincidência, me agradeceu profundamente e disse que estava fazia um tempinho se recusando a entregar as coisas que ele pedia e tentando fazer alguém perceber o que acontecia. Eu fui a única que percebeu. E salvei a menina. E já é a segunda vez que “salvo‟” alguém. Por que isso não me anima? É uma droga. Nunca pensei que fosse tão difícil não ligar pra alguém. Não sabia que era tão difícil ficar sem ver uma pessoa por uma semana, sete dias. Nunca pensei que sentiria tanta falta de alguém. Se fui eu quem terminou, como posso querer tanto que a gente volte? Por que fico tão abalada quando vejo os e-mails, ouço os recados? Fui eu quem terminou tudo. EU! 108
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Dormi quatro dias seguidos na casa do Gabriel. Sabia que ele não me negaria sexo. Ele não é disso. Os outros dois passei na casa do Theo, um garoto da produção de uma peça na qual tô trabalhando como assistente de cenografia há pouco tempo, umas duas semanas. Ele é meio mala, mas é gostoso de dar dó. Desde que comecei a trabalhar lá,ele fica em cima de mim, me perturbando, dando em cima. Resolvi ceder, coitado, né? Eu não tenho mais nada pra fazer mesmo. Pelo menos assim eu não penso. Em nada. Só quando saio da casa deles, porque aí penso que sou um lixo. Me sinto sempre um lixo depois dessas “noitadas”. Ainda mais porque tô começando a achar que os homens estão precisando fazer um intensivão de “como agradar sua parceira”, porque até o Gabriel parece que desaprendeu. Isso é estranho. Tá tudo estranho. Acho que vou deitar na minha cama e dormir pra sempre.
Quinta-feira, 19 de junho Festa surpresa pro Estevão. Milhões de coisas pra comprar. Eles acham que só porque sou cenógrafa tenho que ficar responsável pela decoração. Sozinha. Ninguém tem tarefas solitárias. Valentina e Ulisses dividem as comidas, Bernardo e Elisa ligam para os convidados e arrecadam dinheiro, Fausto escolhe as músicas com a Valentina, e eu decoro. Sozinha. Isso além das minhas duas peças e a ajuda que tô dando na casa dos meus pais por causa do Alan! Mas, pra falar a verdade, até que é bom. Pelo menos assim fico com a cabeça ocupada. Com coisas saudáveis, quero dizer, porque se eu não estivesse feito louca correndo atrás das coisas pra festa, sei muito bem o que estaria fazendo (só não sei na casa de quem). Resolvi fazer a festa com tema japonês. Estevão é tão fanático pelo Japão quanto Valentina é pela Índia, então provavelmente ele vai gostar da decoração. Lá fui eu pro centro da cidade bater perna, aproveitando que tinha que procurar umas coisinhas solicitadas pela chefa do meu trabalho extra. Ela também é fã das coisas do centro, assim como eu. Mas como não 109
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ser, se tudo é barato? O barato sempre fala mais alto... Achei leques, hashis, abajures de papel e mais uma montoeira de coisas que eu via e não conseguia evitar. Saí de lá tão carregada que parecia um daqueles camelôs que montam barraca por lá. Peguei um táxi quase chorando, porque odeio gastar dinheiro que não será reposto (a não ser que eu dê uma enrolada na Grazi, a minha chefa), deixei tudo na minha casa (menos as coisinhas que comprei pra Grazi), saí correndo para a casa de um amigo do Bernardo que fala japonês (ele fez intercâmbio no Japão por um ano na época do colégio) e fez pra gente umas plaquinhas com dizeres em japonês — e uma com o nome do Estevão no idioma, pra colocar espalhado pela sala do Ulisses. Ficaram lindas, as placas. Eu queria conseguir fazer igual, ia vender horrores! De lá, fui direto pro teatro extra, com plaquinhas na mochila e tudo, pra entregar os objetos pra Grazi. Ajudei a montar a maquete do cenário (é... superprofissional, essa peça!), e depois de tomar um café, saí correndo mais uma vez pra tentar pegar aberta a lojinha onde eu tinha visto o presente perfeito pro Estevão. A loja estava fechando — já eram oito da noite! —, mas implorei (leia-se quase chorei) pra dona me deixar comprar o presente, que eu até já sabia o que era e ia ser “tão rapidinho!”. Era a miniatura de uma espada japonesa que era idêntica (bem, quase idêntica) à de uma lenda que o Estevão adora. É, sou uma ótima amiga, eu sei. Enfim, comprei a tal espada (com 20% de desconto! Até agora não sei como consegui, a moça deve ter simpatizado comigo, sei lá!) e ainda levei um vestidinho-quimono lindo, digno de Memórias de uma gueixa, porém não tão caro, que vou usar na festa. De lá, finalmente, fui pra casa e joguei minha mochila de lado e meu corpo na cama. Morta de cansaço. Snoopy veio falar comigo, tá com saudade, tadinho, ando uma mãe relapsa. O telefone tocou. Não atendi porque nada me faria levantar da cama, nem mesmo o prédio desabando. Caiu na secretária, e não deixaram recado. Odeio quando isso acontece, se tenho secretária eletrônica é pra falarem nela! E meu recado é tão bonitinho... Fiquei com raiva da pessoa que ligou, mesmo não sabendo quem era. Mas minha raiva passou quando o telefone tocou de novo. “Vai que é a mesma pessoa que se arrependeu de não ter deixado recado e agora vai deixar...”, pensei. Tocou a sexta vez, que é a última antes de entrar a secretária. Esperei ansiosamente pra ver se a pessoa se redimiria. 110
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“Alice, sou eu. Tô com saudade. Meio mulherzinha ligar pra dizer que tô com saudade, mas fazer o quê? Me liga.” Um silêncio de uns dois segundos me fez parar de respirar. Na verdade, eu já tinha deixado de respirar desde “Alice, sou eu”. “Quem eu tô querendo enganar? Você não vai ligar. De novo. Enfim, só pra dizer que eu tô com saudade. Tchau.” Um dia. UM DIA inteiro sem pensar nele, e agora...isso não é justo!
Sábado, 21 de junho Passei na casa dos meus pais à tarde. Por algum motivo incompreensível, todos os nossos computadores pifaram. Os cinco. Os deuses estavam contra nossa festa. Porém, tenho uma irmã compreensiva e desprendida que me emprestou seu laptop (se pra uma pessoa compreensiva e desprendida for normal falar: “Você vai levar uma porrada se ele voltar com um arranhãozinho sequer”, então é super mesmo! Juro, ela é tão chata com aquele computador quanto os homens são com os carros). Depois de eu prometer que trataria seu “filho” como o meu Snoopy em sua ausência (ela não ia à festa, porque ia sair com uma amiga), ela me entregou seu bicho, digo, computador. Antes de sair, passei no quarto do Alan, porque sou a pessoa mais neurótica do mundo e, mesmo ele estando melhor a cada dia, sempre acho que ele pode ter tido um treco e ter morrido . Mas ele estava bem, graças. E percebeu, como bom irmão mais velho que mais parece vidente, que eu é que não estava. “Há algumas semanas tô achando você meio desanimada”, ele disse. Claro que neguei de cara, mas depois confessei. E contei toda a história do Rodrigo. Isso depois de falar que eu estava desanimada porque estava cansada com meus trabalhos desgastantes, mas ele é esperto e essa desculpa não colou, então tive que contar a verdade. E então ele me disse uma coisa, UMA coisa que me surpreendeu. “Lembra da Rebecca?” E não precisou dizer mais nada, porque entendi na hora o que ele quis dizer.
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Aí a festa começou. Quer dizer, era pra ter começado, mas a Valentina não chegava com o Estevão. E olha que eu e Elisa já chegamos atrasadas, porque fomos direto da peça pra lá! O apartamento do Ulisses tava abarrotado de gente — e pior, a maioria desconhecida — e nada de os dois aparecerem. Cada um de nós ligou pro celular da Valentina umas quinhentas vezes, mas nada de ela atender. Já estávamos nervosos. Tinha passado uma hora do horário combinado para ela chegar com o Estevão, e a gente não sabia mais o que fazer com aquelas pessoas. Não podíamos ligar o som, porque se eles chegassem e a música estivesse ligada, o Estevão ia desconfiar. Se começássemos a servir, os sushis acabariam rapidinho (me deu um ódio de ter escolhido Japão como tema... se fossem salgadinhos seria bem mais tranquilo). E aquela galera que não conhecia a gente nos encarando como quem diz: “Isso aqui vai ficar bom alguma hora?”. Mas a culpa não era nossa! Juramos cair em cima da Valentina quando ela chegasse, mas eu sabia que ninguém ia ter coragem de brigar com ela, porque ela é muito boazinha. Uma hora e vinte depois do horário marcado, Bernardo recebe um toque no celular, o sinal que tínhamos combinado pra ser o aviso de que eles estavam chegando. Eu e Elisa ouvimos alguém falar que “já era hora”, mas resolvemos ignorar. Era melhor, porque estressadas do jeito que estávamos, se não ignorássemos a pessoa ia ouvir muito. Segundos depois estávamos gritando “Surpresa!”, bem como deve ser feito em festas surpresa. A cara do Estevão foi impagável: se ele sabia da festa, disfarçou muito bem. Enquanto ele cumprimentava os amigos, fomos interrogar a Valentina pra saber o porquê da demora. A menina ficou roxa, vermelha, laranja com bolhinhas rosas. “Desculpa”, ela disse, tropeçando nas palavras: “É que a gente...”. Nós a paramos bem aí, porque entendemos na hora e não queríamos fazê-la ficar ainda mais envergonhada. Mas bom pra ela, não é mesmo? Nunca vi pessoas devorarem sushis e sashimis tão rápido! Parecia um bando de esfomeados! Tudo bem que eles ficaram 112
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esperando um tempão, só comendo uns amendoinzinhos, mas não justificava aquela avidez toda! Pelo menos a comilança desvairada significava que a comida estava boa, assim como as músicas, porque logo que Fausto começou a tocar, as pessoas também começaram a dançar feito loucas. Comer e dançar freneticamente... Talvez não seja uma combinação muito boa. Ainda bem que durante a festa nada de mais ocorreu em relação a isso. Somente em relação a isso, porque no meio da festa, depois de eu já ter falado com o Estevão, ter entregue o presente dele (que ele adorou, aliás), ter ouvido meia dúzia de pessoas elogiando a decoração (como fiquei feliz!), eu vi o Rodrigo. Tipo assim, o que ele estava fazendo lá? Como ele apareceu ali? Todas essas perguntas passaram pela minha cabeça. Mas a mais importante de todas era: quem chamou o Rodrigo pra festa? Porque, não importa quem fosse, essa pessoa sofreria nas minhas mãos. A rapidez com que cheguei até ele foi assustadora até pra mim. Quando vi, já tava do lado dele, perguntando aos berros — por causa da música alta — quem o tinha convidado. Ele levou tanto susto quanto eu quando me ouviu, e, como provavelmente não tinha entendido nada do que eu tinha dito, perguntou: “O quê?”. “Quem te ligou pra te avisar da festa?”, repeti. “O Fausto.” Mal ele respondeu, eu já estava do outro lado da sala, onde estava a aparelhagem de som. Não quis nem saber se o Fausto era o DJ, comandando a música. Agarrei o braço dele e puxei com tal força que o fone de ouvido quase veio junto. Outro que levou susto. E pior, ele tentou reclamar, dizer que não podia sair dali, mas não adiantou, foi puxado mesmo assim. A Elisa teve que assumir as pickups, coisa que ela adorou, porque tá sempre querendo aprender a mexer naquilo, fica sempre observando o Fausto tocar, e ele odiou, porque não suporta que toquem na sua aparelhagem. Mas, como eu já disse, pouco me importava. Fechei a porta do quarto da Elisa, pra onde arrastei meu suposto amigo Fausto. “Qual seu problema, Fausto?” Ele nem teve 113
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tempo pra respirar. “Por que você teve que chamar o Rodrigo? Ficou louco? Eu por acaso pedi pra você chamar o Rodrigo? Porque, se alguém fosse chamar, teria que ser eu, né?” Então Fausto entendeu o porquê do escândalo e disse: “Se alguém fosse chamar, nunca seria você”. Parece que ele tem prazer em me irritar. E, na voz mais calma do mundo, completou: “E você vai voltar com ele hoje”. “Ah, é?”, eu respirei fundo. “Tá maluco?!” “Não, você que tá. Pela primeira vez na vida você tem uma relação que não é tóxica com um cara e você foge? Deixa de ser idiota, Alice. Você vai voltar com ele hoje”, e fez questão de frisar bastante esse “vai”. Eu tava possessa. Primeiro, porque ele me chamou de idiota. Segundo, porque ligou pro Rodrigo! Ou seria primeiro porque ele ligou pro Rodrigo, e segundo porque me chamou de idiota? Tanto faz! Só sei que o terceiro motivo foi por ele querer mandar em mim. Como assim? E como assim ele simplesmente virou as costas e me deixou falando sozinha no quarto? “Tenho que voltar antes que a Elisa destrua meu equipamento”, ele disse, já na porta, interrompendo a conversa. Fiquei puta. Ah, como fiquei. Me deu até vontade de dar um tapa nele, mas de que adiantaria? Se eu fosse dar um tapa nele, teria que dar também no Ulisses, na Valentina, na Elisa, no Bernardo... porque o Fausto pode ter ligado, mas com certeza a ideia foi de todos eles, e se o Estevão soubesse da festa ele também estaria no meio! Porque no dia em que contei que tinha terminado com o Rodrigo, e que tinha dormido com o Theo, eles começaram a me dar bronca, dizendo que não sou assim, de dormir logo de cara com qualquer um, que eu não devia ter acabado com o Rodrigo, e teriam dito muito mais se eu não tivesse proibido qualquer um de tocar nesse assunto depois disso. Ah, mas eles iam me pagar, todos eles. E o Rodrigo, por aparecer lá!
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Depois disso fiquei a festa inteira fugindo de todo mundo. Do Rodrigo e dos seis traidores. Quer dizer, do Estevão não. Ainda tive que ficar até o final, porque, quando eu tava saindo do apartamento pra ir pra casa, ficar lá sossegada e reclamar com o Snoopy, Estevão apareceu e me disse: “Não! Você não pode ir embora ainda!”. E eu não fui, né? Mas foi uma das piores festas da minha vida, se não a pior. Ainda mais quando eu via o Rodrigo de longe e me dava uma vontade imensa de chorar. Até agora não sei como não chorei. Deve ter sido a raiva, sei lá. Pra resumir, não aproveitei nada da festa. Porque, mesmo quando eu não esbarrava no Rodrigo e parecia que ele tinha ido embora, eu continuava com medo de encontrá-lo e ter que falar alguma coisa, ou de ser encurralada pelos meus amigos. Fiquei muito feliz quando vi que a festa estava esvaziando, a comida acabando, a bebida idem. Até que sobraram apenas nove pessoas na sala: Fausto com uma menina que nunca vi na vida, Estevão, Valentina, Ulisses, Daniella, Elisa, Bernardo e eu. Pelo menos nem sinal de Rodrigo, apesar de eu pensar que ele estaria lá. Senti um certo alívio. MENTIRA! Senti raiva, porque esperava que ele estivesse ali, esperando para falar comigo de qualquer jeito, inconformado. Mas não. Era assim que ele “precisava me ter?”, como ele disse em Búzios? Vai ver que, depois de me conhecer de verdade, ele viu que precisava era me ter longe dele! Depois de me despedir do Estevão, desci morta de cansaço, até porque já eram quatro da manhã. Não via a hora de me jogar na cama e não ter hora pra acordar — SE eu resolvesse acordar. Porém, ao chegar no meu andar, um empecilho. Um Rodrigo bloqueava minha porta. Então ele não tinha ido embora, ou seja, não tinha desistido de mim. Me senti tão idiota, talvez ainda mais do que quando o Fausto tinha me xingado, por pensar isso na hora. Tão dramalhão mexicano, esse pensamento... Algo como “Rodrigo Afonso, você não desistiu de mim! Ó! Rodrigo Afonso levanta, pega Alice Maria nos braços e a beija enlouquecidamente”. Ele se levantou, antes de eu ter tempo de bolar qualquer agressão verbal. E aquele homem de um metro e oitenta, com certeza, bloqueia qualquer palavra. Por causa da minha
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incapacidade, ele começou a falar, com uma voz mórbida e desanimada. “Eu só vim aqui para...” “Lembra de Búzios? Do que você me falou?”, eu me vi vomitando palavras, certamente não as que planejara falar durante toda a noite: “Você disse que tinha que me ter, porque eu era diferente”. “Lembro”, ele respondeu sucintamente, sem o sorriso costumeiro. Na hora senti falta daquele sorriso de sempre. “Não sei mais o que dizer, não elaborei nada depois disso.” Como sou patética. “Você quer saber se isso continua valendo?”, ele perguntou, ainda sem sorriso. “Na verdade não, porque não preciso que você me queira.” “Mas continua”, ele respondeu. E senti um alívio tremendo, porque o que eu tinha dito era mentira, apesar de só ter percebido na hora. Só que não fiz nada. Nem falei nada. Porque sou burra e orgulhosa demais pra dizer que sou completamente louca por ele e queria que ele nunca mais fosse embora. Nossa, eu realmente sou patética. Ficamos os dois olhando um para a cara do outro, até o silêncio se tornar insuportável. Então perguntei o que ele ia dizer no momento em que cheguei. “Você não quer saber o que eu ia falar, Alice.” “Não?” “Não, porque eu ia dizer que, por mais que eu gostasse de você, não dava... você sabe como continuaria.” É, eu sabia. “Mas eu sei que você não quer ouvir isso porque não quer acabar comigo, mesmo já tendo acabado. Então, porque você não esquece o que eu ia falar e abre essa porta logo pra gente...”
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Abri, claro. Porque tem certos comandos que não devem ser desobedecidos.
Terça-feira, 24 de junho Dei um baita beijo na bochecha do Fausto quando ele abriu a porta do apartamento. Ele ficou confuso. “Por que isso?” “Porque eu te amo!” “Pensei que você estava com raiva de mim.” “Eu estava, passado. Agora te amo.” “Você vai entrar e me explicar ou vai ficar aí falando nonsense?” Olhei pra dentro do apartamento. “E a menina?” “Que menina?” “A de ontem...” Ele me olhou como se eu estivesse maluca. “Alice, a essa hora ela já foi embora há muito tempo, né? Você deveria saber.” Eu? Não sei de nada... “Não posso entrar”, sorri maliciosamente. “Rodrigo tá me esperando.” “Ah, agora entendi...” Ó, o momento tão esperado! O momento tão temido! O momento em que Rodrigo conheceria minha “família”. Que ele conheceria os Seis. Chegamos ao andar do Ulisses às duas e pouquinho. Não sabia que horas ele tinha marcado com o pessoal pra arrumar o apartamento, porque saí de lá antes disso, mas como já era de praxe, depois de uma festa, nós sete arrumarmos o 117
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apartamento, fui pra lá. Fomos. A porta estava entreaberta, como sempre fica (a não ser que Ulisses esteja sozinho com a Daniella, aí fica fechada a cinco mil chaves). Abri a porta com o coração na mão, repassando minha frase de apresentação na cabeça. “Esse é o Rodrigo”, ou “Esse é o Rodrigo, meu namorado”, ou “Esse é meu namorado”. Qualquer opção soava meio ridícula, a meu ver. Entramos. Eu tinha que acabar logo com isso. “Oi, Alice. Oi, Rodrigo”, Ulisses falou logo que entramos, parado ao lado da porta da varanda. “E aí, Rodrigo. Tudo bem?”, Bernardo passou pela gente e deu um tapinha no ombro dele. “Olá!”, Valentina disse animada e deu um beijinho na minha bochecha e outro na dele. “Tudo bem, Rodrigo?” Peraí: como assim todo mundo já o conhecia? “Eu tinha que conversar com alguém na festa...”, Rodrigo cochichou pra mim. OK, menos mal. Me poupa de um trabalho enorme, mas... COMO ASSIM?! Demorei um tempo pra assimilar que eu não teria que passar por todo aquele desconforto e a vergonha de apresentar meu namorado para as pessoas mais importantes da minha vida. Como eles roubaram isso de mim? Por que eles tinham que ser tão simpatiquinhos e conversar com Rodrigo na festa pra que ele não se sentisse sozinho? Eu não pude ver as reações, as piadinhas bobas que, com certeza, Fausto e Bernardo fariam, a Valentina tentando fazê-lo sentir-se confortável entre nós... “Mas, pelo menos, você já sabe que ele foi aceito”, Fausto disse depois de eu reclamar com ele. “É, mas eu queria ver o processo!” De todo modo, não tive muito tempo de remoer o assunto, porque Ulisses logo veio com duas vassouras e foi logo dizendo que “o terraço precisava de cuidados”.
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“Até o Rodrigo e a Daniella estão trabalhando. Vocês não vão ter moleza de jeito nenhum!” É, com Ulisses, limpeza é assunto sério. Até o pobre coitado do Estevão tava limpando! Não sei quem é pior, se é o Fausto com a casa da praia, ou o Ulisses com esse apartamento.
Sexta-feira, 27 de junho Devagar, as coisas estão voltando ao normal. Está tudo mais ou menos como no ponto em que paramos, a diferença é que eu tô menos assustada. Continuo com um pouco de medo, essa coisa de relacionamento normal, saudável e maduro é muito nova pra mim, mas já está um pouco melhor. E Rodrigo entende meu ritmo, até por isso é impossível não ficar com ele. Entende, mas não me dá moleza, exatamente do jeitinho que preciso pra funcionar, senão empaco igual cachorro preguiçoso, e aí já viu! Mas agora não tô empacada, tô andando, funcionando, então tá ótimo. É bom saber que tem alguém do seu lado com quem você pode contar sempre. Pra tudo e qual quer besteira. E como eu falo (e faço) besteira... Se esse alguém for bonito e souber beijar bem (dentre outras coisas...), melhor ainda!
Segunda-feira, 30 de junho “Nossa, uma loucura! Sabe quando tudo acontece de uma vez? Às vezes é azar, dessa vez foi sorte, graças a Deus, Jesus e mais quem quis me ajudar! Tudo bem que me deixa completamente louca, né? Ainda bem que é a última semana da peça, porque eu tô tão cheia de coisa pra fazer! Arranjei um trabalho extra, e isso por favor fica entre nós, porque você sabe como tem uma galerinha que acha que temos que trabalhar pra companhia e somente pra ela. Tô sendo assistente de cenografia de uma peça superprofissional, cheia dos detalhes, o que significa uma trabalheira danada! Mas tá sendo ótimo, porque tô vendo o outro lado da moeda, é bem diferente do que faço na peça, porque aqui é tudo batalhado, suado demais. Lá é bem mais fácil, porque tem dinheiro de verdade, e não as migalhas que a gente consegue. 119
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Mas, como já falei, patrocínio não significa menos trabalho, até porque, tendo mais, dá pra fazer mais, aí trabalho das dez às cinco todo dia! Isso porque tô fazendo um curso e me deixam sair mais cedo de lá, senão seria até as seis, quase sete, por isso eu tava chegando no teatro sempre meio atrasada às sextas e aos sábados. É, trabalho sábado lá também. O curso é maravilhoso, mas são só três vezes por semana: segunda, terça e quinta. É com um superbambambã da cenografia. Ele tava parado fazia um tempinho, mas voltou pra dar esse curso, que deve durar uns dois, três meses. Poderia durar o ano inteiro! Apesar de ser superpuxado trabalhar o dia inteiro e depois ainda ir pro curso das seis às dez, supervale a pena! O cara é fantástico! Olha eu falando “cara”, um senhor já. Enfim, é melhor ainda porque ganhei bolsa. Eu não disse que a sorte veio toda ao mesmo tempo? Nem acreditei quando vi que tinha sido selecionada, ainda mais porque são 70% de desconto, o que deixa o curso beeem mais barato, e aí posso pagar com a grana do trabalho extra, sem precisar pedir pros meus pais. E foi muita sorte mesmo, porque vi o anúncio do curso um dia antes de fecharem as inscrições pra bolsa, depois passei por uma seleção, teve entrevista, tipo uma mini prova oral sobre cenografia, e perguntaram um monte sobre mim também, porque não queriam qualquer um no curso, ainda mais tendo vagas limitadas. E aí, uma semana depois, recebo uma ligação falando que ganhei a bolsa. Quase morri! Chorei horrores. Rodrigo e Bernardo, que estavam comigo na hora, tiveram que aguentar, mas eles já estão acostumados com meu chororô aberto. Faz parte do meu ser. E além do trabalho extra, do curso e da nossa peça, ainda tem o meu irmão, volta e meia passo lá pra ver como ele tá, já que voltou pro apartamento dele e fico preocupada com ele sozinho lá. Besteira, porque ele já tá bem melhor, a fisioterapia tá ajudando pra caramba, e ele é bom. Eu nunca teria a força que ele tem, suporta as dores na boa. Eu ficaria chorando, chorando... E também tenho que achar tempo pros meus amigos e, claro, pro meu namorado. Agora sou uma dessas pessoas que queria que o dia tivesse 342 horas, porque meu dia é praticamente cronometrado! Mas, enfim, já falei muito. E você? Tanto tempo que não conversamos de verdade, ainda bem que hoje a galera atrasou e a gente teve esse tempinho livre. Como é que estão as coisas?” 120
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“Ótimas. Tô namorando, sério mesmo, de compromisso e tudo. Tô completamente apaixonado.”
anel
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O quê? Gabriel namorando? Milagres realmente acontecem.
Quarta-feira, 2 de julho Saí mais cedo do trabalho, nem sei como consegui. O que fazer em plena quarta-feira, às quatro da tarde? Ora, sair com a cunhadinha, claro! Busquei Larissa na aula de dança, saímos de Laranjeiras rumo ao centro da cidade. Rodrigo tava lá, trabalhando. Ele conseguiu um emprego em um jornal povão, mas pelo menos é um emprego — e salário, seja qual for, é sempre bom. Pelo menos pra alguém que mora com os pais, porque tenho pena de quem se vira sozinho com um salário mínimo, até porque a maioria do tempo passo por esse sufoco. Nos divertimos horrores no metrô, tentando nos equilibrar sem segurar em nada. Quando caíamos em cima de alguém, porque o metrô já tava cheinho, aí é que ríamos mesmo! Gargalhávamos até! O pessoal devia achar que éramos duas loucas. Quer dizer, que eu era louca, porque pra uma criança de dez anos o nosso comportamento era normal, já pra uma de 22... Mas já tô acostumada com todo mundo pensando que sou louca, então nem ligo. Quando Rodrigo saiu do prédio, viu cada uma de nós com um pirulito na mão. Pirulito é o doce preferido do Rodrigo. Ele abriu o sorriso que eu tanto gosto. Não esperava a gente lá, muito menos segurando pirulitos. “E você acha que a gente ia deixar passar em branco seu primeiro dia de trabalho?”, perguntei. “Mas não é o meu primeiro, é o terceiro”, ele respondeu, sem graça. “Só que a gente não pôde vir antes, então pra gente é o primeiro”, Larissa disse, esperta. Essa menina é demais! Daí voltamos pra zona sul pra tomar sorvete. Não deu pra tentar se equilibrar dessa vez, o metrô tava lotado. Compramos um supersaco de jujuba, o doce preferido da Larissa. O meu doce preferido já estávamos indo tomar. Cada um encheu um copão de sorvete, com tudo que tinha direito: calda, castanha, pingos de 121
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chocolate, chantili e, claro, jujubas. Rodrigo colocou um dos pirulitos no sorvete dele, não acreditei! Que nojo! Homem não sabe mesmo combinar as coisas. Ficamos bastante tempo lá, rindo sem parar das piadas que a Larissa contava, algumas bem safadinhas pra idade dela, mas que os pais deles brigassem com ela, né? Se tava todo mundo rindo, pra que dizer alguma coisa? Até porque nunca dois sorrisos me deixaram tão feliz.
Quinta-feira, 24 de julho Meu aniversário. Praia do Arpoador. Tardinha. Os dois deitados. “Te amo.” Sorriso. Meu. “É sério, eu te amo.” Inexplicavelmente, não fugi. “Acho que também te amo”, eu disse. Mas eu tinha certeza. Ele disse que me ama. Alice Maria está no país das maravilhas. Quem diria, Alice, quem diria...
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