1 ui
2
The Shadow Girl of Birch Grove Marta Acosta
3
Querido Vampiro Suavemente adormecida de tua formosa face, hei de o púrpura sugar. Então, hás de estremecer no instante em que te beijar – e qual um vampiro beijar: quando, ao fim, fremir teu corpo e em meus braços desmaiares assim como tomba um morto, então hei de perguntar: minhas lições não superam as de tua mãe bondosa?
Heinrich August Ossenfelder (1748)
4
EPÍLOGO
NA NOITE em que morri a tempestade lá fora não era tão feroz quanto à fúria do meu padrasto dentro de casa. Sua mão está tão suada que consigo escapar de suas garras. Corro, atravessando a cozinha e passando pelo corpo de minha mãe. Meus pés escorregam na poça de sangue vermelha sobre o assoalho amarelo rachado. Abro a porta de trás com violência e corro para fora. A escuridão é impenetrável, a chuva cai forte. Sou pequena e estou aterrorizada. — Volte aqui! — meu padrasto grita e seus passos pesados batem na lama enquanto ele corre atrás de mim. O quintal descuidado tem cercas, e ele está mais perto do portão principal, onde estou. Corro em direção ao meu lugar secreto entre três árvores enormes na extremidade do jardim. É escuro demais para ver, mas consigo saber quando chego à maior árvore rastejando-me em torno dela e me escondendo atrás de seu largo tronco. — Jane! Embora eu não possa ouvir os seus movimentos, sei que ele está em algum lugar próximo. Olho cuidadosamente ao redor do tronco da árvore enquanto os relâmpagos iluminam momentaneamente o monstro em que ele se tornou.
5 Seu rosto se contorce pela loucura e sua camiseta está encharcada com o sangue da minha mãe e com a chuva. O metal escuro da arma reflete em sua mão. Tremo incontrolavelmente de medo. Movo-me por trás de outra árvore e agarro em sua casca áspera lutando para subir, mas a sola lisa do meu tênis escorrega e até os ramos mais baixos estão fora do meu alcance. Uma explosão ensurdecedora me atordoa e me joga contra a terceira árvore. Acho que é um relâmpago. Um segundo depois a dor se irradia de um ponto abaixo do meu ombro para cada parte do meu corpo. Meus joelhos dobram-se em agonia. Eu sei que se cair no chão morrerei. Contorço meu corpo contra a árvore enquanto o sangue do meu peito escorre por seu tronco e a chuva o lava em direção ao solo e às raízes das árvores. Ajude-me, penso, ajude-me. Quando começo a perder a consciência, sinto braços - não, não são braços. Sinto algo me pegar e me levantar para o alto, por entre os molhados ramos verdes. O raio explode ensurdecedor, limpando o ar com ozônio puro. Naquele clarão de luz branca e brilhante olho bem para baixo, para o pátio, e vejo o corpo do meu padrasto se mover violentamente, como se um raio de eletricidade o atravessasse naquele momento. Mais tarde, ouço as sirenes se aproximando e, em seguida, as vozes amplificadas por megafones. A tempestade passou e a chuva cai por entre os galhos em um suave chuvisco. Quero dormir.
6 — A menina, os vizinhos disseram que há uma menina aqui — alguém diz. Chamam meu nome e eu os ouço correndo pela casa e pelo quintal: — Jane! Jane! Não respondo, porque estou segura. — Aqui — diz um homem. — Um sapato! Eles estão perto agora e se movem abaixo de mim. Uma mulher diz: — Na árvore. Sangue. Oh, Deus, muito sangue. — Onde o sangue leva? — Para cima. Há algo lá em cima? Vire a luz para essa direção. — Para onde? — Na árvore! Ali em cima. Abrigo-me mais perto do tronco para que eles não me encontrem. Sinto como se estivesse à deriva em algum lugar. Então, a dor em meu corpo desaparece. Não consigo mais ouvir o barulho ou as vozes. Abro meus olhos e estou em uma floresta gloriosa e repleta de sombras. Aspiro o ar que cheira a coisas verdes - pinheiro, cedro, erva recém-cortada, o cheiro delicioso de anis selvagem e erva-doce. Quero ficar aqui para sempre.
7 Vejo alguém vindo em minha direção. Sei que ela é uma mulher por seus movimentos gentis, mas ela não é humana. Seu vestido flutua pela terra marrom e as pontas da bainha tocam o solo. Posso sentir a sua bondade, e ela começa a me levar para fora daquele mundo magnífico. — Eu não quero ir embora — digo a ela. — Estaremos sempre com você — ela me diz sem usar palavras. — Respire Jane, respire. Respiro com dificuldade e abro meus olhos. A dor inunda meu corpo. Estou deitada sobre uma superfície dura e um pano me cobre. Através dele, vejo luzes piscando. Ouço o falatório dos rádios da polícia e alguém orando nas proximidades. Tiro o pano que me cobre com meu braço direito e um homem grita: — Ela está viva! Oh, meu Deus, ela está viva! Luzes brilhantes iluminam meus olhos e pessoas vestidas em uniformes correm em minha direção. — Como ela conseguiu chegar lá em cima? — indaga alguém. — As árvores — respondo. — Ela está em choque. Uma máscara de oxigênio é colocada em meu rosto. — Você também estaria em estado de choque se tivesse acabado de voltar dos mortos.
8 AS SEMANAS SEGUINTES são tão vagas quanto fumaça. Analgésicos são bombeados para dentro de meu corpo para me fazerem dormir enquanto me curo. Quando fico acordada, sinto-me tonta e confusa. Já tenho dificuldade em me lembrar daquela noite: a voz de minha mãe, o maravilhoso mundo verde. Rostos se tornam familiares. Uma médica que tem um pequeno urso de pelúcia agarrado ao seu estetoscópio está muitas vezes lá. Quando ela fala comigo suas palavras são um zumbido agradável. Um dia, abro meus olhos e minha mente está nítida. A médica sorri: — Como você está se sentindo hoje, Jane? — Melhor — tento dizer através dos lábios entreabertos. Ela levanta meus ombros e segura um copo com um canudinho na minha boca: — Você foi reanimada e estamos muito satisfeitos com a sua recuperação. — Minha mãe — digo e percebo que estive chorando por ela durante dias, desde quando cheguei aqui. — Eu sinto muito — a médica me deitou novamente nos travesseiros, verificou meus olhos, meu pulso e as máquinas que estavam em torno de mim. Ela ajeitou os cabelos que estavam na minha testa para trás:
9 — Você sabe que escalou 27 metros em uma árvore, Jane? Você é uma garotinha muito forte. Eu sabia que eu não tinha subido: — Por quanto tempo eu estive morta? — Seu coração parou brevemente e eles acharam que você estava morta, mas eles estavam errados, não estavam? Não, eles estavam certos. No dia em que uma assistente social do Serviço de Proteção Infantil foi me retirar do hospital, a médica veio se despedir. — Não sei se você quer isso — ela disse segurando um pequeno envelope branco. — É à bala. Quero que se lembre de que você é mais forte do que isso. Você é uma menina corajosa. Pequei o envelope sentindo a solidez. Eu não me sinto forte ou corajosa. Estou assustada e sozinha.
10
Capítulo Um
Quando eu tinha sete anos, me tornei uma tutelada do Estado e fui inserida em um sistema de adoção. No começo, eu esperava. Esperava que a morte de minha mãe fosse um pesadelo e eu acordaria e descobriria que ela estava viva e bem. Esperava que o meu pai verdadeiro, onde estivesse e quem quer que fosse, iria me buscar e me levar para casa. Sonhava com uma família me adotando e me amando. Minha necessidade por amor era uma dor penetrante que vivia no lado esquerdo do meu peito de criança, próximo à cicatriz que ainda estava se curando. Ninguém nunca apareceu por mim. Aprendi a apagar a minha esperança como se apaga um incêndio, colocando sujeira sobre ele, privando-o de oxigênio até que sufoque. Quando crianças perdem suas famílias, aprendem que o mundo é um lugar onde o amor não tem nenhum poder, exceto o de quebrar os corações. Nós não podemos confiar nos adultos que nos dizem para acreditar que há uma razão para tudo. Eles não viveram no inferno e viram o que é estar sozinho em um universo cruel. Para sobreviver, retrocedemos à nossa essência, ao nosso eu animal. Algumas crianças eram como cobras, crescendo soltas e silvando alto para
11 afastar as ameaças. Algumas eram como macacos, que, ainda assim, não chamavam a atenção. Alguns eram camaleões, imitando aqueles em torno de si. Algumas criaturas jovens mancham a pele, o que permite com que se misturarem tanto na luz quando nas sombras, e se esconderem em plena luz do dia. A garota que eu tinha sido havia se perdido e eu me tornei uma sombra, deslizando silenciosamente naqueles lugares escuros, onde ninguém reparava em mim. Minha simplicidade, meu cabelo castanho liso, olhos marrons e minha pequenez eram minha camuflagem. Eu via os outros, mas não era vista. Ninguém quer uma simples e pequena criança de sete anos de idade. Fui transferida de lugar para lugar durante anos, até que, finalmente, fui colocada em um ‗lar‘. Era como se estivesse no exército, só que eu nunca havia me alistado. Era como a prisão, exceto que eu não havia cometido nenhum crime. Dividia um quarto com outras três meninas, e dois rapazes compartilhavam uma pequena sala ao fundo do corredor. A casa estava localizada em um bairro degradado, barras de segurança cobriam as janelas e os quintais da frente foram pavimentados para servirem de estacionamento. Os esquimós têm mais de cem palavras para descrever a neve, e deveríamos ter tantas assim para descrever ‗cinza‘, porque tudo na nossa
12 paisagem era cinzento, das calçadas de cimento sujo às paredes de concreto imundas aos carros caindo aos pedaços. Tínhamos refeições controladas e um monte de regras que sempre começavam com ‗não‘: Não xingar. Não a rádios. Não responder. Não levantar nossas vozes. Não namorar. Não à gíria. Não a visitas de amigos e não visitar amigos. Não mascar chiclete. Não dormir juntos com alguém. Não à música popular ou a shows de televisão. Parecia mais fácil se sentar e não fazer nada do que fazer algo e ter que ouvir gritos. Tínhamos que chamar os adultos de senhor ou senhora, desligar a nossa luz às 21h30 e levantar às 5h30, exceto nos finais de semana, quando podíamos dormir até 7h00. Não podíamos usar maquiagem e cada um de nós tinha um par de jeans, um par de — bonitas? — calças, três camisas e alguns moletons.
Nossa mãe adotiva, a Sra. Richards, afirmava que era rigorosa porque, do contrário, seguiríamos os caminhos dos nossos pais, que eram tão irresponsáveis que morreram ou foram presos. — Há sangue ruim correndo em suas veias — ela me disse. — Você nunca vai conseguir nada. Você não é algo bonito de se olhar e os garotos não se interessarão por você, não te perseguirão. Não, os meninos não me perseguiam. Eu podia ver todas aquelas meninas bonitas rindo e vivendo vidas reais e os rapazes que se sentiam atraídos por elas, mas ninguém me via nas sombras próximas às paredes.
13 Então, quando penso em mim mesma, vejo uma criatura quase selvagem, sem palavras para compreender ou descrever suas emoções. Meu único objetivo era sobreviver dia após dia. Minha obediência não importava para Sra. Richards. Ela pegava o dinheiro que o Estado dava a ela - que deveria ser exclusivamente destinado a nós - e nos dava o mais barato de tudo. Não tínhamos festas ou dinheiro para sair, mas ela comprava roupas novas, comia fora muitas vezes e tinha consultas regulares para clarear os cabelos e manter seu bronzeado falso. — Ninguém gosta de uma criança mimada — a Sra. Richards dizia. — Além disso, quando você fizer 18 anos, estará fora do sistema e terá que se saber como se virar. Ela era uma desculpa miserável para um ser humano, mas eu não tinha para onde ir. Quando eu tinha catorze anos, um menino mais velho entrou na casa e eu gravitava em direção a ele tão naturalmente como se move um satélite em órbita em torno de um planeta significativo. A mãe de Hosea estava na prisão por causa de drogas e eu gostava dele porque ele não conversava. Passava os dias pensando sobre o propósito da vida. Muitas vezes, eu o encontrei deitado em sua cama de beliche lendo a Bíblia. Eu sentava no carpete fino ao seu lado e o ouvia suspirar: — Hosea, o que você está lendo agora? — Levítico. Por que ele odeia as coisas que rastejam sobre a terra? Por que ele odeia os porcos? Ele pensou que a fé era odiar — Hosea suspirou
14 novamente. Sua pele era da cor de chocolate derretido e sua voz era um ruído baixo e atraente — Deus fez todas as criaturas. E eu amo uma bela costelinha. — Eu nunca comi costelinha. Eu sentia o cheiro quando tinha festa aqui no quarteirão, mas a Sra. Richards não me daria nenhum maldito dinheiro para um prato pra jantar. — Não xinge, Jane, é feio — ele disse. — Elas são como o céu na sua boca, picantes e carnosas. Algum dia levarei você para comer costelas e você vai comer tanto que vai ter que dormir por dois dias. Eu sorri: — Por que você precisa entender por que Levít... o cara que odiava as coisas? Como um livro antigo poderia te dizer alguma coisa? Arranquei com a boca um pedacinho da pele da minha cutícula enquanto esperava pela resposta de Hosea. — Isso é como telefone sem fio em que a história começa bem longe da verdade propriamente dita. Deus nos deu um cérebro para descobrir as coisas — disse. — Desonramos Deus se não usamos nosso cérebro. Você tem um cérebro muito bom, irmãzinha, e você deve usá-lo e entrar na luz do sol do Senhor em vez de se esconder no escuro como um pequeno rato louco e irritado. — Queria ser um rato raivoso, porque, pelo menos, poderia morder — eu disse com uma risada. — Se eu entrasse na luz do sol, alguém maior pisaria em mim, porque é assim que eles fazem.
15 — Isso é o que quero dizer por louco. Se você fosse raivosa, isso te mataria. O ódio mata — ele bateu no meu braço com a mão quente e grossa. — Jesus ama os pobres, Jane, e sua recompensa virá se você deixar a bondade que eu sei que há em você transparecer. Balancei minha cabeça: — Tudo que eu sinto dentro de mim é fúria, Hosea. Você é bom por nós dois. Quando ele estava lavando os pratos naquela noite, olhando a espuma e contemplando os mistérios do universo, a Sra. Richards gritou: — Pare de sonhar acordado, mudinho preguiçoso, e termine suas tarefas! Olhei para cima enquanto varria: — Deixe-o em paz. Ele não fez nada. — Oh, a menina-fantasma fala! — ela disse. — Se você se importa tanto, pode lavar os pratos nas próximas duas semanas, de manhã e à noite, e fazer todas as suas outras tarefas. No dia seguinte, na escola, Hosea me falou: — Você tem que parar de se meter em apuros por mim. Tínhamos começado o ensino médio na Central City. Durante o almoço, sentávamos em volta da área mais baixa da cantina, zona ocupada por atletas negros do time do colégio.
16 — Estou pouco me fodendo — eu disse. — Odeio a Sra. Richards mais do que eu detesto ir ao banheiro aqui. Todos os banheiros estão quebrados e, mesmo se não estivessem às veteranas fazem você pagar para usar o banheiro, do contrário, elas te batem. A Bíblia de Hosea estava na mesa, ao lado de sua bandeja de comida. Ele alisou a capa de couro desgastado com a mão: — O Senhor disse: ―Mas eu vos digo: amai os vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que maliciosamente usá-lo, e vos perseguem.‖ — Por quê? — perguntei. — Por que devo perdoar as pessoas que são egoístas e desagradáveis? — Deus quer que sejamos bons uns com os outros, Jane. — Talvez você devesse dizer isso a Sra. Richards. — Não se preocupe com a alma dela. Preocupe-se apenas com a sua. E pare de usar palavrões porque as pessoas vão pensar que você é ignorante. Um jogador de time de basquete caminhava por ali e gritou: — Levante a cabeça, Rev! — e jogou uma caixa de suco para Hosea. Os atletas tinham uma afeição por Hosea, a quem chamavam de Reverendo, ou Rev. — Obrigado, irmão — Hosea olhou para mim — Você quer?
17 — Não obrigada, mas se você tiver um biscoito... — eu poderia pagar para ir ao banheiro com um biscoito. — É todo seu — disse ele. — Nós temos um lugar para dormir e comida na casa da Sra. Richard. Ela está fazendo o melhor com o que ela tem, abençoe-a. — Comer, dormir e não apanhar – é isso que nossas vidas serão? — Vamos passar por isso, Jane, e vamos seguir em frente. A vida vai ficar melhor, eu prometo. Uma semana mais tarde Hosea ficou doente e a Sra. Richards passou pelo quarto dele: — Levanta-se, você é está fingindo! Entrei no quarto, passando por ela, e coloquei minha mão em sua testa: — Ele está queimando. Ela franziu a testa e veio a verificar por si mesma: — Tá bom, você pode faltar na escola hoje, Hosea, mas não se acostume com isso. No dia seguinte, porém, ele não saiu da cama. Quando eu tentei lhe dar água, ele só conseguir tomar um pequeno gole antes de deixar a cabeça cair para trás no travesseiro úmido: — Meu pescoço dói — disse ele. A Sra. Richards se aproximou e ficou na porta do quarto:
18 — Jane, não se atrase para a escola. Deixe Hosea. A gripe deve seguir seu curso. Fiquei preocupada durante todo o dia. Corri de volta para casa depois da escola e descobri que meu amigo estava muito pior. Deixei minha mochila na porta do seu quarto e toquei sua suada testa quente. Tentei chamar a atenção da Sra. Richard enquanto ela fofocava ao telefone. Ela fez um gesto para que eu me afastasse e continuou falando. Do nada, veio uma imagem indistinta de alguém com cabelo escuro e olhos afetivos - minha mãe - colocando uma toalha fria na minha testa. Enrolei cubos de gelo em uma toalha e tentei esfriar a febre de Hosea. Eu podia ver seus olhos se movendo rapidamente para trás, ainda que as pálpebras estivessem fechadas. Sua camiseta estava encharcada de suor e eu tentava consolá-lo: — Eu estou aqui, Hosea. Vou ficar aqui até você ficar melhor. Você vai ficar melhor. Não sendo confortada por mim mesma, eu não tinha as palavras certas para acalmá-lo e continuava repetindo aquilo a mim mesma, esperando que ele pudesse me ouvir. Uma hora mais tarde, Hosea abriu seus olhos escuros da cor café e olhou para mim: — Eu estou indo agora, irmãzinha. Seja uma boa garota — ele me deu um de seus belos sorrisos e caiu inconsciente. Corri para a Sra. Richards gritando:
19 — Hosea desmaiou! Precisamos de um médico agora. Ela colocou o telefone contra seu ombro e tentou me empurrar para fora de seu quarto: — Eu estou conversando com alguém, Jane! Agarrei o telefone da mão dela e pulei para fora de seu alcance: — Se você não levar Hosea para o hospital neste minuto, vou ligar para o Serviço Social! — gritei. Sempre chamados o Serviço de Proteção à Criança, SPC, porque eles tiram as crianças de seus pais. — Você não me faça ameaças, Jane Williams. Eu posso enviar você para o reformatório juvenil com um telefonema! Eu não tinha tempo para discutir com ela. Ainda segurando o telefone, corri para fora da sala e fui para o quarto das meninas. Eu não poderia trancar a porta porque nenhuma das portas tinha fechaduras, e a Sra. Richards me encurralou enquanto eu estava discando 911. — Devolva-me! — ela disse. — Vou levá-lo ao hospital. As outras crianças me ajudaram a levar Hosea para o carro. Suas pálpebras estavam parcialmente abertas e ele não parecia capaz de se concentrar em nada: — Olhe para mim, Hosea — eu disse, lutando para suportar seu peso. — Vai dar tudo certo. A Sra. Richards não disse nada quando entrei no banco de trás com meu amigo.
20 Logo que chegamos à sala de emergência, Hosea desfaleceu. Os enfermeiros de azul vieram imediatamente e colocaram-no em uma maca. Eles perguntaram a Sra. Richards enquanto levavam a maca por um vasto conjunto de portas duplas: — A senhora é parente ou responsável legal? Quando eu ia acompanhá-los, um segurança entrou no meu caminho: — Apenas os parentes — disse ele. — Os pais dele não estão aqui. Eu preciso ficar com ele. — Desculpe. Deixe que os médicos façam o trabalho deles. Você tem que esperar aqui, como qualquer outra pessoa. Sentei-me em uma cadeira de plástico rígido cinza e ouvi gritos de feridos e doentes. Os sons e odores químicos despertaram uma memória: estou em um quarto branco, em uma cama branca, rodeada por máquinas, e uma mulher em um jaleco cor-de-rosa está segurando a minha mão e falando comigo. A imagem piscou e desapareceu e eu não tentei recuperá-la. Essa parte da minha vida tinha acabado e eu nunca quis recordá-la. Depois da meia-noite o segurança deixou seu posto. Esperei até que uma mulher em um jaleco branco de laboratório abriu as portas trancadas. Entrei cuidadosamente depois dela e encontrei-me em uma colmeia de áreas de exame.
21 Entre as partições, vi pacientes ligados a fios e equipamentos. Eu não vi Hosea logo por causa da multidão que o cercava. Então, alguém se moveu e eu localizei a cabeça louro-clara da Sra. Richards no canto da sala. Um médico disse: — Acabou. Uma enfermeira falou: — Hora da morte: uma e dois da madrugada. O grupo se afastou do meu amigo. Corri para a cama e peguei a mão de Hosea, querendo que trazê-lo de volta à vida: — Hosea, Hosea — eu disse, mas eu sabia, olhando para seu rosto, que ele não era mais o Hosea. — Por favor, por favor! ‗Por favor‘ é uma palavra tão simples. Dizemos isso sem pensar. Por favor, passe o sal. Por favor, feche a porta. Esquecemos que ‗por favor‘ é também um apelo, uma súplica por misericórdia. Eu gritava: — Por favor, por favor! Por favor, traga ele de volta. Você me trouxe de volta - traga ele de volta, por favor! Um médico me levou para longe do corpo de Hosea: — Nós fizemos tudo que podíamos. Ele se foi. — Por que ela não pode... — eu comecei. — Ela? Quem? — perguntou ele.
22 Balancei minha cabeça tão exausta, ferida e com raiva que não conseguia organizar meus pensamentos: — Eu não sei. — Foi meningite bacteriana — o homem disse quando me levava. — A bactéria entrou em seu corpo de uma maneira que não poderíamos ter controlado. Entendemos como você se sente. Dei uma olhada em seu rosto sereno e soube que ele não entendia, porque se entendesse estaria chorando também por aquele menino que amou um mundo que nunca o amou. Um segurança veio e me levou para a sala de espera. Caí em uma das cadeiras duras de plástico e minha mente se desligou de modo que eu não teria que pensar no que aconteceu. Um homem transpassou uma das portas de vidro automática da entrada apertando o pulso esquerdo com a mão direita. Ele moveu a mão e seu sangue espirrou em toda a minha camiseta. A equipe do hospital se apressou. Adormeci em meio aos gritos dos pacientes, aos roncos dos familiares e o cheiro fétido do sangue em minha roupa. Um médico acompanhou a Sra. Richards para fora da sala de emergência ao amanhecer. Ela parecia pálida sob o bronzeado falso e estava rasgando um tecido. Levantei-me. Meu corpo doía por ter dormido naquela cadeira. — Pensei que era gripe — a Sra. Richards falou ao médico.
23 — As pessoas cometem esse erro — disse ele. Quando a Sra. Richards finalmente pareceu me ver, ela disse: — Você tem sangue na sua camiseta. Você deveria ter esfregado com água fria e sabão. Se o sangue seca, a mancha nunca vai sair. Eu não tinha palavras para a fúria que sentia. Atirei-me contra a Sra. Richards, chegando a bater seu rosto e, em seguida, ela jogou os braços para proteger-se. Um segurança apareceu e me levou para longe dela. O corpo de Hosea foi entregue a uma avó em Louisiana. Passei o dia após a sua morte sentada e entorpecida durante as aulas, pensando em ser enviada para outra casa. Apesar de a Sra. Richards nunca ter mencionado o incidente, ela olhava para mim de forma diferente depois do que aconteceu. Quando minha mente clareou, tentei ligar para o Serviço Social no intervalo do meu almoço. Eu ficava parada em frente ao único telefone público que havia na escola com a mão repleta de moedas. Fui transferida de pessoa para pessoa. Disse a todos eles como a Sra. Richards havia ignorado a febre de Hosea. Minha vida como criança adotiva e o tempo que passei na City Central me fizeram compreender como o sistema legal funciona. — É negligência criminosa — eu disse. — Vocês deveriam investigar. O último atendente disse com irritação: — Você de novo? Olha, seu amigo pegou um vírus. Às vezes é fatal. Sua tutora não foi responsável por isso. — Foi uma infecção, não um vírus.
24 — De qualquer maneira, ele está morto e não há ninguém para culpar. Deixe isso passar e siga em frente. O quarto de Hosea foi limpo e tudo foi desinfetado. Compulsivamente, preenchi um caderno escrevendo o nome do meu amigo várias vezes, na frente e no verso de cada página. Uma nova colega de quarto, magra, com feições nítidas dos seus dezesseis anos que se denominada Wilde me perguntou: — O que você está fazendo? — ela torceu uma mecha de seus longos cabelos negros. — As pessoas morrem ou vão embora e você esquece o som das vozes delas, a forma como elas são. Eu nem sequer tenho uma foto dele e eu não quero esquecê-lo nunca. — Que tal uma tatuagem? — Com que dinheiro, Wilde? — Eu mesma faço. Já fiz várias. Sou um artista — sua própria pele pálida era adornada com tatuagens profissionais e ela nos disse que tinha negociado o pagamento delas com sexo. — É seguro? — Não se preocupe — e pegou um caderno de esboço da sua mochila de lona. Suas unhas, com esmalte lascado nas cores preto e azul, estavam roídas até a carne viva e sua mão se movia habilmente enquanto ela esboçava versões simples e ornamentadas do nome do meu amigo.
25 Ela me mostrou um esboço, um rendilhado ‗H‘ sobre uma folha alongada: — Eu posso usar sua cicatriz para a folha, você sabe, e torná-la ornamental, como eu fiz com a minha — Wilde estendeu seu braço para mostrar-me as flores tatuadas em torno das cicatrizes arredondadas causadas por sua mãe viciada em metanfetamina com cigarros acesos. — Então, é algo que você fez para si mesma e não algo que alguém fez para você. — Não, obrigada — eu disse. — Este aqui — falei e apontei para um ousado e maiúsculo ‗H‘. Eu mostrei a ela o lugar em que queria fazer, abaixo do meu peito esquerdo. Esperamos até que a Sra. Richards saísse de casa para fazer suas compras. Wilde foi rapidamente ao lugar onde ela escondia seu estoque de bens ilícitos. Voltou carregando uma bolsa de seda chinesa vermelha e preta. Ela reuniu suas ferramentas no gabinete velho que compartilhávamos: lápis, linhas de costura, nanquim, toalhas de papel e menos de meio litro de vodka. Nossos outros companheiros de casa estavam sofrendo também e eles não disseram nada quando ela colocou uma agulha em uma panela de água fervente e esfregou as mãos na pia com um produto químico. Voltamos para o quarto, e, em seguida, Wilde utilizou a linha para unir a agulha firmemente ao lápis: — A linha segura a tinta — explicou ela. — Tenho um pouco de vodka, ajuda.
26 Lembrei-me do odor de álcool do meu padrasto: — Não preciso disso. — Você vai se arrepender de não ter tomado — ela me alertou. Deitei na cama e levantei a minha camiseta surrada. Wilde já tinha desenhado a letra ‗H‘ com uma caneta de ponta porosa. Agora, ela se sentou sobre mim: — Isso dói, então você que ser machona — levantou seus cabelos para trás em um nó e começou a trabalhar. Ela estava certa. Doeu muito. Ela espetou a agulha repetidamente em minha carne e eu lutei contra o instinto de empurrá-la para bem longe. Meus olhos se encheram de lágrimas e eu rangia os dentes para não gritar. — Um dia você vai me dizer como conseguiu essa cicatriz — ela disse. — Eu não me lembro, e eu não quero me lembrar. — Cadela sortuda. Lembro-me de cada maldita cicatriz que tenho. Muito tempo depois, Wilde esfregou a tatuagem com papel toalha: — Pronto! Dê uma olhada! Levantei-me sentindo-me tonta e olhei no pequeno espelho sobre a cômoda. Minha pele estava vermelha, manchada, e as linhas negras do ‗H‘ eram finas e claras. Agora Hosea estaria perto de meu coração enquanto eu vivesse: — Obrigada — disse a ela. — Eu te devo uma.
27 — Não se preocupe. Você sempre me dá cobertura quando estou fora — disse e sorriu. — Você é uma garota durona. Vá lavar isso com água quente e sabão. Ela vai virar uma ferida primeiro, com casquinha, mas depois disso vai ficar legal. Wilde e a Sra. Richards tiveram uma discussão feia no final daquela semana. Eu estava na mesa pequena no nosso quarto quando Wilde entrou tempestuosamente, gritando palavrões para a Sra. Richards. Ela pegou sua mochila e começou a colocar suas coisas dentro. — Estou dano o fora daqui — ela falou. — Para onde você vai? — Eu tenho amigos. Você quer vir comigo? Eu ainda estava pensando sobre isso quando ela balançou a cabeça: — Você é pequena e os policiais vão te notar. Se não eles, os pervertidos notarão. Isto aqui é uma merda, mas, pelo menos, você está segura aqui. — Espere um pouco — disse. Fui para o meu próprio esconderijo, um buraco entre a cômoda e a parede que era estreito demais para alguém alcançar. Apalpei até sentir a ponta fina de um envelope. Eu o trouxe para fora e tirei os poucos dólares que eu tinha guardado. Entreguei o dinheiro a Wilde: — Leve isso. — Você não precisa fazer isso, Jane.
28 — Você precisa mais do que eu — disse, mas ela não queria pegá-lo. — É o pagamento da tatuagem. Ela tirou os brincos que imitavam prata da sua orelha: — Para você. Da próxima vez que nos encontramos, vou furar suas orelhas. — Obrigada. E tenha cuidado — respondi. Ela sorriu de um modo que seus dentes apareceram: — Eu conheço as ruas. Estou bem. Ok, então, tchau. Quando ela me abraçou, senti o cheiro dos seus cigarros de cravo e de seu óleo de plantas. Segurei-a firme até que ouvimos a nossa mãe adotiva gritando do quarto ao lado: — Adeus, Wilde — e ela seguiu até a sala, onde a Sra. Richards estava bloqueando a porta da frente. — Você não vai à lugar algum — disse a Sra. Richard. — Eu já chamei o Serviço de Proteção à Criança e eles disseram que você tem que ficar aqui. Você é menor de idade e não pode sair. Wilde disse: — Foda-se você — e passou pela direita da Sra. Richards. Segui Wilde até lá fora e assisti seus passos pela calçada cinza e suja, passando pela casa em que o proprietário vive bêbado e jogado na varanda, pelas crianças que vigiam a rua para os traficantes, pelo quintal em que os
29 pitbulls avançam através da cerca de arame e pela velha sem-teto com seu carrinho de compras cheio de papelão e trapos. Quando Wilde chegou à esquina, ela se virou. Eu acenei para ela e ela acenou de volta e, em seguida, ela se foi. Mesmo Wilde parecendo durona, eu sabia que haviam predadores sorridentes lá fora caçando garotas como ela: meninas cheias de vida e barulhentas como pássaros engaiolados, meninas tão frágeis quanto aquelas criaturas tropicais. Eu esperava que ela conseguisse, mas eu temia que falhasse. Eu já odiava a Sra. Richards antes da morte de Hosea e quanto Wilde foi embora eu a odiei mais ainda. Eu não queria estar lá, mas tudo que eu conhecia era aquela paisagem horrível e perigosa ao meu redor. Eu era muito pequena e muito pobre para me proteger sozinha. Dois dias depois, eu estava sentada no meu lugar habitual na lanchonete quando um jogador de futebol negro e musculoso veio e parou ao meu lado. Já que eu não poderia deslizar por debaixo da mesa para ir embora, continuei sentada, olhando para meus pés, até que ele disse: — Oi. — Olá — respondi. Quando levantei os olhos, vi-o olhar impassível para mim. As pessoas sentadas por perto ficaram quietas, esperando para ver o que estava acontecendo e eu tentei não deixar o medo transparecer em meu rosto.
30 O atleta chegou até a torcer um dos grandes diamantes falsos brilhantes em seu lóbulo: — Não posso deixar você ficar aqui, agora que o Rev se foi. Pegue suas coisas, pequenina, porque você tem que ir. Olhei para refeitório lotado: — Ir para onde? Ele inclinou a cabeça, pensativo, jogando seus dreads para o lado: — Vou te arranjar um lugar. Joguei minha mochila no ombro e peguei minha bandeja com as almôndegas especiais de segunda-feira, na esperança de que ele não me fizesse sentar lá fora, no chuvisco gelado. Enquanto eu o seguia em direção à parte de trás da cantina, olhei em volta em busca de ajuda. O segurança estava ocupado com uma briga perto da máquina de refrigerante. — De qualquer maneira, não é mais a mesma coisa sem o Hosea — disse para quebrar o medo que se instalou em mim. O atleta falou tão baixo que eu quase perdi suas palavras: — Ele tinha algo especial. — Você viu isso também? — Minha mãe diria que ele tinha o dom da graça — ele me olhou nos olhos e, por um segundo, tivemos uma ligação, ambos feridos pela perda.
31 Em seguida, a conexão se foi e seu rosto tornou-se tão impassível como uma máscara. Ele apontou para uma cadeira vazia na mesa. As crianças sentadas ali olharam para o atleta da mesma maneira que coelhos olham para lobos, congelados pelo desejo de correr e os sabendo que os lobos amam uma perseguição. — Ela se sentará aqui a partir de agora — o atleta disse. Uma das meninas falou: — Você não pode nos dizer o que fazer. Ele riu: — Oh, sim, eu posso! — Você é um idiota — ela disse recuando, como se esperasse que ele a socasse. — Cale sua boca. E ela se sentará aqui — e lhe deu um olhar intimidador antes de caminhar de volta para a sua área. Aquelas crianças inteligentes chamavam a si próprias de ‗Alfas‘ e eles me ignoraram completamente durante dias, não percebendo que eu me sentia mais confortável quando era ignorada. Embora eu nunca tivesse sido uma má aluna, também não tinha sido boa, e eu mal ouvia o burburinho das conversas deles enquanto olhava para a parede ou fazia minha lição durante o intervalo. Mas quando os Alfas falavam sobre sair dali e ir para uma faculdade, eu prestava atenção. Lily, a garota que tinha respondido para o atleta, disse certa vez:
32 — Eu quero ir para uma faculdade o mais longe possível dos meus pais. Nós somos como água e potássio. As outras crianças riram e eu disse: — O quê? — Se o potássio entra em contato com a água, ele entra em combustão instantaneamente — Lily explicou lentamente, como se estivesse falando com uma criança. Um menino disse: — Jane, se você se importar um pouco mais e elevar suas notas, você pode conseguir uma bolsa de estudos completa. Administradores de faculdades adoram crianças órfãs. Desta vez eu consegui falar mais do que um ‗o quê‘ novamente: — Você pode me explicar o que você quer dizer? — Eu estava começando a me perguntar se você falava mesmo inglês — disse Lily. — Ele quis dizer que se você quiser ser mais do que uma dessas meninas repetentes, como a maioria dessas — disse levantando o queixo, apontando para um grupo de meninas rindo alto — estude muito e tenha notas altas. Muitas universidades particulares pagariam por toda a sua educação, além de suas outras despesas. Um menino do grupo disse:
33 — Uma bolsa integral é uma bolsa de estudos que cobre tudo, dinheiro para ir à faculdade, dormitórios, livros. Você se qualificaria, já que não tem nada. — Você consegue sair daqui se você realmente quiser — disse Lily com um olhar desafiador. Era como se eu estivesse olhando para uma porta de aço trancada e alguém apontasse uma janela aberta no alto da parede. Olhei em volta da mesa e disse: — Eu quero. Vocês podem me ajudar? Lily sorriu e olhou para seus amigos: — Viram? Eu não disse que havia alguma coisa por trás desses olhos castanhos? Os Alfas me aceitaram e me chamaram de ‗sua experiência social‘. Eles me ajudaram a mudar o meu horário de aulas, me ensinavam durante o intervalo, corrigiam meus trabalhos e a minha gramática. Como a Sra. Richards não permitia que eu saísse de maneira alguma, coloquei toda a minha energia nos estudos, como uma válvula de escape, e minhas notas melhoraram rapidamente. Eu nunca pensei em mim como uma estúpida, mas nunca tinha me esforçado antes; e agora eu sentia uma satisfação cada vez que um trabalho voltava com um ‗100%‘ circulado em vermelho na parte superior da página. Lá pelo início do segundo ano, fui incluída no grupo dos Alfas. Meus
34 amigos pediam minha opinião sobre os professores e pediam minha parceria nos projetos. Ouvi atentamente a meus novos amigos e aos anúncios na televisão. Meu discurso evoluiu para uma linguagem educada e controlada que eu ouvia em documentários. Agora é difícil me lembrar de como conseguia dizer ‗cum‘ ao invés de ‗com‘, ‗preguntar‘ ao invés de ‗perguntar‘, ‗blibioteca‘ ao invés de ‗biblioteca‘... Aprendi os nomes das coisas, das ideias e dos sentimentos, e meu mundo tanto se expandiu como se focou. Eu não tinha uma palavra para descrever minhas emoções. Eu era irritada, furiosa, deprimida, triste, com raiva... Às vezes, também, eu estava satisfeita, grata, otimista e ansiosa... No final do meu segundo ano, os outros alunos me tratavam como se eu sempre tivesse sido uma nerd, uma Alfa. Em vez de ficar feliz com minhas notas, a Sra. Richards acusou-me de colar. — Eu não trapaceio — disse a ela. — Eu não preciso colar porque sou inteligente. Sou inteligente o suficiente para saber que Hosea não teria morrido se a senhora não tivesse sido tão estúpida, má e preguiçosa. Quando você morrer, ficarei feliz, porque eu sei que você vai queimar no inferno por ter matado-o. Ela empalideceu sob a ríspida pele cor de laranja: — Que coisa horrível de se dizer depois de tudo que fiz por você! Bem, não fique aqui se não quiser. Estou chamando o Serviço de Proteção
35 à Criança para que possam te levar de volta. Você vai gostar de mim quando estiver faminta e for espancada por viciados, Jane Williams! — Prefiro viver com os viciados a conviver com uma assassina — disse. Não nos falamos por semanas desde aquela conversa e quando o conselheiro da escola me chamou antes das férias de verão daquele ano, pensei que a Sra. Richards tivesse seguido com a sua ameaça. Fui ao escritório do conselheiro esperando ver pequenos criminosos, pronta para ser trocada por um cheque mensal dado pelo sistema de crianças órfãs. Mas a mulher sentada na sala do conselheiro era diferente de qualquer uma que eu já havia conhecido. Ela era alta e magra, bonita, e vestia um casaco azul marinho e saia. Ela tinha uma pele perfeita de marfim, olhos azuis claros e cabelo castanho escuro trançado em um coque. Em torno de seu pescoço comprido havia um colar de pérolas. Tudo o que ela vestia era simples e imaculado. Eu não conseguia ver uma bolinha de tecido, uma dobra ou marca. Deslizei minha mão para baixo para cobrir um buraco humilhante em minha velha camiseta (cor de pêssego com um grande urso de pelúcia roxo escrito ‗distribuo abraços‘) que a Sra. Richards havia encontrado em uma caixa na calçada. O conselheiro disse: — Jane, esta é a Sra. Monroe, a diretora da Academia Birch Grove, uma escola apenas para garotas. Ela gostaria de falar com você por alguns minutos. Tudo bem por você? Concordei com a cabeça e me perguntei o que estava acontecendo.
36 — Jane, que bom te conhecer. Por que você não se senta? — a voz da Sra. Monroe era suave e clara. Ela usava um perfume que cheirava como uma erva de jardim que havíamos usado em um projeto de biologia. Sentei-me em uma cadeira oposta, enfiando os pés debaixo da cadeira para esconder minhas finas meias. Ela me perguntou: — Você já ouviu falar de Birch Grove? Os Alfas tinham falado das escolas particulares para meninas espertas e ricas no mesmo tom que as crianças pequenas falam sobre a Disneylândia: — Sim, senhora. Ela sorriu: — Nós, em Birch Grove, procuramos por estudantes excepcionais e sempre temos um lugar para uma jovem que se mostra promissora. Damos a nossas alunas uma excelente educação, bem colocada, em um ambiente de apoio. Nossas alunas vão para as melhores universidades e muitas ganham o curso de pós-graduação. Ela fez uma pausa, como se esperasse uma resposta, e acenei com a cabeça para mostrar que eu tinha entendido, mas eu me perguntava o motivo dela estar na em City Central me fazendo um discurso daqueles: — Jane, entrei em contato com sua escola perguntando se havia uma estudante que se encaixava nas nossas qualificações e me falaram sobre você.
37 Então ela me perguntou: — Você tem alguma família, Jane? Respondi porque estava curiosa: — Minha mãe está morta, senhora. — Sei que ela faleceu — disse a Sra. Monroe e eu fiquei imaginando o quanto ela sabia sobre a morte da minha mãe. — E a respeito do seu pai... avós? Existe mais alguém? — Não conheço meu pai e, até onde sei, ele não sabe da minha existência. O Serviço de Proteção à Criança não encontrou ninguém da minha família — eu não sabia o quão duro eles tentaram; Williams era um dos nomes mais comuns daquele país. — Você está sozinha então — a Sra. Monroe disse, parecendo que minha resposta a satisfazia. — Sim. — Temos uma bolsa disponível para uma estudante digna — a Sra. Monroe tocou o meu joelho. — Você gostaria de ser aluna de Birch Grove, Jane? — É claro que gostaria — respondi. — Eu estou onde estou não por opção própria. Tentei ser transferida para outros ‗lares‘ que tivessem um sistema educacional melhor, mas todas às vezes meus pedidos foram rejeitados. A assistente social que cuida do meu caso diz que não há vagas suficientes e que a estabilidade é boa para mim.
38 — Você pode fazer uma petição para ser uma menor emancipada e, em seguida, você estaria livre para viver onde quisesse. Forneceríamos a você um antigo chalé — ela falou. — Embora seja pequeno, ele será todo seu Jane. Você será independente e terá o nosso apoio. Vamos ajudar a cuidar de você e ensinar como cuidar de si mesma. Eu estava tão atordoada com sua oferta que tudo que eu consegui fazer foi olhar para ela por um minuto: — O que eu tenho que fazer? — A única coisa que você tem que fazer é fazer um exame físico e um hemograma. Você não se importa de ter seu sangue coletado? Eu pergunto porque algumas pessoas odeiam agulhas. Eu estaria disposta a ter o meu sangue colhido todos os dias se isso significasse ficar longe da Sra. Richards: — As agulhas não me incomodam. — Isso é maravilhoso, Jane. Então eu posso dizer ao conselho de diretores que você está interessada? Era surpreendente e maravilhoso e eu quase ri de alegria quando pensei em ter liberdade: — Sim, eu estou interessada. Parecia bom demais para ser verdade. E era.
39
Capítulo Dois
―A Academia Para Garotas Birch Grove se esforça para educar a pessoa por completo, promovendo o avanço intelectual, espiritual, físico e social de cada jovem.‖ Manual da Aluna de Birch Grove
Meu conhecimento sobre riqueza se limitava aos parentes de traficantes que reluziam seus diamantes e ouro e vinham para a escola em carros novos. Mas esse tipo de riqueza é ilegal, e a riqueza da Sra. Monroe é do tipo autorizada pela lei. Dois dias após encontrar a Sra. Monroe, fiz o teste físico em uma clínica elegante e particular da cidade. Depois do meu exame, a enfermeira veio e me disse: — Precisamos de uma amostra de sangue. Você é canhota ou destra? — Destra. Vi como ela amarrou uma tira de borracha ao redor do meu braço esquerdo e limpou o interior do meu cotovelo com álcool: — Pode olhar para longe, se isso incomoda você. — Eu não me importo senhora. Ela deu batidinhas no interior do meu cotovelo:
40 — Lá vamos nós. Isso é uma veia boa para uma menina tão pequena. Senti uma pequena picada quando ela espetou a agulha na minha pele e fiquei fascinada ao ver que o sangue que encheu a seringa era tão vermelho e escuro, quase negro. — Pronto! — a enfermeira pressionou uma bola de algodão contra o furinho que ela acabava de fazer enquanto retirava a agulha. Ela colocou a amostra de sangue em uma prateleira e usou uma fita adesiva médica para segurar a bola de algodão no lugar. — Direi a Sra. Monroe que você é uma boa paciente — disse ela. — É só um pouquinho de sangue — em algum lugar no fundo da minha mente, eu ouvi uma voz dizendo tanto sangue, mas eu não conseguia me lembrar quem tinha dito aquilo ou mesmo quando. Enquanto eu estava esperando para pegar o ônibus de volta para casa, mantive minha cabeça para baixo em um guia de estudo para o vestibular. Aprendi que as pessoas me deixariam em paz se eu estivesse lendo, mas eu estava sempre ciente do que estava acontecendo ao meu redor e o grito de uma mulher me soou familiar, por isso levantei meus olhos para ver o que estava acontecendo. Uma prostituta estava cambaleando pela rua ao lado de um homem mais velho que tinha uma cara de viciado. A prostituta balançava porque estava bêbada, ou muito drogada, e um de seus saltos estava quebrado. Tatuagens cobriam seus braços nus e a saia curta mostrava seu osso fino e suas pernas machucadas.
41 Ela pareia ter uns 30, mas eu sabia que tinha apenas dezessete anos. — Wilde — eu disse. Seus olhos escuros alinhados moveram-se em minha direção e, finalmente, se focaram em mim. — Sou eu, Jane. Wilde parecia confusa: — Jane! — Oi! O homem – seu cafetão, seu namorado? – veio em minha direção: — Você tem algum dinheiro? — Não, desculpe. — Me dê seu passe de ônibus — quando ele se inclinou sobre mim, o odor fétido do seu corpo me envolveu como uma nuvem gordurosa. — Não — eu disse e me afastei. Wilde agarrou seu braço: — Deixe-a em paz — e então o ônibus parou no ponto em que eu estava. Corri para dentro dele logo que as portas se abriram. Quando olhei pela janela, Wilde e o homem estavam trocando golpes. Meu coração doeu por aquela menina. Uma semana depois, eu estava ao lado de um advogado na frente de um juiz. Um advogado de cabelos grisalhos com um terno risca de giz fez o
42 seu trabalho tão rápido que foi impossível acompanhá-lo. O juiz me concedeu a emancipação, tornando-me livre do controle dos adultos. Eu lia e relia os documentos legais para me certificar de que não havia cláusula que pudesse me fazer voltar para o sistema de adoção. Tudo parecia bastante claro. De agora em diante, eu era dona do meu próprio nariz, o que era tão assustador quanto maravilhoso, porque agora minha sobrevivência dependia da Birch Grove. Enquanto eu fosse uma estudante, teria um lugar para morar e alimentação. No sábado, antes do início do semestre, arrumei minhas poucas roupas em uma bolsa de esportes barata de vinil. Mudei a posição da cômoda no meu quarto, a fim de alcançar o meu esconderijo. Então embalei a Bíblia de Hosea, os brincos de prata da Wilde, USD 19.59 e o envelope branco com a bala destroçada. Coloquei tudo na bolsa. Despedi-me dos meus colegas de casa e passei reto pela Sra. Richards. — Jane Williams, você não vai me agradecer por tudo o que fiz a você?— ela acenou o braço para mim, balançando uma dúzia de braceletes dourados em seu pulso. Virei-me para encará-la: — Você nunca fez nada por mim que não fosse obrigada para continuar recebendo os cheques do Estado. Você teria me jogado na rua no momento em que eu completasse 18 anos. Em voz baixa e trêmula ela disse:
43 — As crianças não podem ser indulgentes, se não se dão mal. Eu fiz o que era o melhor para você. — Não, você fez o que era melhor para você, e nunca deu uma palavra gentil ou um sorriso sincero a qualquer um dos seus filhos adotivos. Quando eu ficar mais velha, vou ter certeza de que sua licença será cassada e direi a todos a verdade sobre você. A expressão temerosa da Sra. Richards me fez sentir uma mistura de algo excitante e estranho: era o poder. Um motorista em um terno escuro estava estacionado com um Lexus azul-escuro próximo à calçada. Ele se apresentou como Jimmy, pegou minha bolsa e colocou-a no porta-malas. Abriu a porta traseira do carro para mim, mas me senti estranha sentada na parte de trás e, além disso, eu sempre tenho um pouco de enjoo. — Tudo bem se eu me sentar na frente? — perguntei. — Claro. O que quiser. Você pode ouvir rádio se quiser. Sentei-me no banco do passageiro e liguei o rádio para que eu não tivesse que pensar em algo para dizer. O rádio estava pré-definido em uma estação de notícias e ouvimos todo o noticiário por duas vezes enquanto Jimmy dirigia por uma série de autoestradas que me levava para longe da minha antiga. O sol, já baixo no céu, desapareceu atrás de nuvens pesadas quando finalmente chegamos à cidade de Greenwood. Ela estava localizada em um pequeno vale abaixo das colinas verdes.
44 Jimmy ligou os faróis: — Este lugar é um cinturão de nevoeiro. Nunca é verão aqui. Eu nunca estive em um lugar tão bonito como aquela cidade. As estradas eram limpas e calmas, e eu vi magníficos edifícios antigos que eram tão grandes que pensei, à primeira vista, serem apartamentos. Apenas depois de ver os endereços e as garagens percebi que eram casas. Jimmy pegou uma rua próxima repleta de colinas e, então, virou em um estacionamento particular marcado por pilares de pedra cinza e um arco de ferro negro que me lembrou os desenhos que Wilde costumava fazer. O estacionamento de cascalho tinha em seu centro um jardim exuberante. Parecia um parque para as pessoas ricas: um gramado verde impecável com suas bordas floridas e uma imensa lagoa com uma fonte. Quando o carro virou em uma curva, vi pela primeira vez: Birch Grove Academia Para Garotas. O edifício principal tinha um tom de corde-rosa escuro, emoldurado por enormes árvores verde-escuras que contavam suas histórias até o alto, contra o céu cinzento. À medida que me aproximava, podia ver os degraus largos das escadas que iam em direção às portas de madeira esculpidas em forma de arcos que levavam em seus topos anjos pálidos de pedra. Jimmy estacionou o carro em frente às escadas e saí antes que ele pudesse abrir a porta para mim. Enquanto ele pegava minha bolsa barata no
45 porta-malas, olhei para o topo da escola, que foi esculpido em pedra escura, logo acima da entrada.
Academia Birch Grove estava esculpido em um arco sobre um escudo com uma lanterna, uma raposa e galhos. Sob o escudo, havia um lema, Ut
incepit fidelis sic permanet. Alguns dos Alfas e eu tínhamos estudado um pouco de latim e pude traduzir o lema: ‗Tão leal quanto começou, permanece.‘ À direita do edifício principal existiam campos de esporte e quadras de tênis. À esquerda, havia um edifício um pouco mais novo. — Aqui está — disse Jimmy, entregando-me a bolsa. — Obrigada, senhor — eu disse, e ele me deu uma segunda olhada. — Senhor! — ele falou com um sorriso. — Eu normalmente não sou chamado assim. Boa sorte, senhorita! O carro partiu e fiquei lá, sozinha na névoa. Não tinha a intenção de depender de sorte, que foi muito pior do que boa comigo, até onde posso dizer. Então, alguém gritou: — Olá, Jane! Virei-me para ver a Sra. Monroe saindo por detrás do prédio, carregando uma cesta cheia de galhos. Apesar da névoa, ela usava um chapéu de palha com uma blusa branca engomada, um casaco azul-escuro e calça azul-marinho. Mais tarde, aprendi que ela quase sempre usava marinho e branco, as cores da escola.
46 — Olá, Sra. Monroe. — Você chegou cedo. Deixe-me colocar isso aqui dentro e então vamos fazer um tour pela escola e vou te mostrar o chalé. Eu queria ver o chalé imediatamente, mas sorri: — Isso seria ótimo — e caminhamos pelos degraus de mármore branco em direção ao interior da escola. — Como foi sua viagem até aqui? — Bem, senhora. É um longo caminho. — Sim, e eu não acho que você poderá visitar os seus velhos amigos — ela me levou por um corredor de assoalho brilhante – muito limpo! – azulescuro. Prêmios e troféus enchiam vitrines de vidro e retratos de mulheres de cabelos brancos estavam pendurados nas paredes. — Você logo fará novos amigos aqui — ela falou. A Sra. Monroe abriu uma porta que tinha Administração escrito em ouro envelhecido. Um balcão separava a área da frente da recepção das escrivaninhas e dos arquivos. Ela me levou ao lado do balcão: — Este é meu escritório — e abriu a porta. Parecia um quarto de um dos filmes ‗Masterpiece Theatre‘ que tínhamos visto na aula de inglês. A sala foi decorada com móveis de madeira antiga e escura e tapetes orientais, lâmpadas de vidros escurecidos e certificados em molduras de ouro.
47 A sala era muito interessante, mas minha atenção se prendeu nos galhos que estavam na cesta da Sra. Monroe. Ela me viu olhando-os: — Isso é bétula pendula, ou a Europeia Madeira Branca. O fundador da nossa escola plantou um bosque de bétulas para lembrá-lo da casa de sua família na Romênia. Essa é a origem do nome da nossa escola. Dê-me licença enquanto os coloco na água — ela passou por uma porta e ouvi o som de água corrente. Fileiras de anuários estavam em uma prateleira próxima e um deles foi aberto sobre uma mesa polida. Folhei-o e vi as fotos das meninas com nomes antiquados, como Emily, Mary Helen, Grace, Roselyn. Eu estava prestes a verificar a data do anuário quando a Sra. Monroe voltou com os ramos em um vaso. — Pronto — ela disse. — Agora vamos dar um passeio pela escola. Ela me mostrou as salas de estudo, as salas dos professores e a enfermaria. Chegamos a uma série de portas altas: — Aqui está o auditório onde acontecem assembleias e performances dos alunos. O auditório da City Central parecia e cheirava como um corredor de uma prisão. Este aqui tinha painéis de madeira clara na seção inferior. As paredes superiores tinham murais de árvores de casca branca que se estendiam até o fim do balcão curvo. Cortinas de veludo azul da meia-noite no palco combinavam com os assentos de couro azul.
48 — Este painel aqui é de madeira de bétula — disse a Sra. Monroe — e quando nos encontramos aqui, é como se estivéssemos em uma floresta. A Sra. Monroe, em seguida, me levou para conhecer as salas de aula que eram velhas e perfeitamente limpas - e o ginásio de esportes. Eu nunca tinha visto nada parecido com o vestiário, que tinha chuveiros em cabines individuais e espaços privativos para a troca de roupa. A Sra. Monroe viu minha confusão e sorriu: — As jovens eram bastante recatadas na época em que esta escola foi construída. Procuramos manter esta tradição. Muito frequentemente, as pessoas comparam exibicionismo como autoestima. Ela também me mostrou uma pequena capela. Era uma sala simples com paredes cor de creme e uma fileira de janelas em arco com vidros amarelos que deixavam entrar a luz dourada. — As cerimônias religiosas eram realizadas aqui décadas atrás quando a maioria dos nossos professores vivia no campus. Embora Birch Grove não seja uma escola religiosa, promove o desenvolvimento espiritual — a diretora me explicou. Hosea teria gostado da capela. Ele poderia ter se sentado em um dos bancos de madeira envernizada e estudado a Bíblia sem ser perturbado pela voz estridente da Sra. Richards, ou pelo som desagradável da cantina da escola.
49 Pensei em Hosea dizendo que a minha recompensa viria, mas o que eu fiz para merecer Birch Grove? O que alguém já fez para merecer este luxo, enquanto meninas como Wilde vivem nas ruas? A Sra. Monroe me levou para fora do edifício principal do prédio mais moderno, que abrigava salas de aula e ateliês de arte. Após visitar o prédio todo, fomos para fora e respirei profundamente. Até o ar aqui era melhor - úmido e fresco e limpo. — Vamos para o chalé — disse a Sra. Monroe, mostrando o caminho em torno do edifício de artes. Eu estava tão animada sobre viver a vida do meu jeito, que nem me importava se o chalé era um caixote velho. — Aqui é o bosque que havia comentado — disse a diretora. Estremeci e pensei que era por causa da brisa da noite, mas agora eu sei que foi por causa das árvores. Levantei minha mão para alcançar um galho mais baixo e então percorri com os dedos sua delicada casca, tão fina que se desprendia do tronco. Seguimos um caminho sombrio de terra através do bosque. A Sra. Monroe me disse que a matrícula seria na segunda-feira e as aulas começariam na terça-feira, mas eu estava ouvindo o silencioso vai-e-vem dos galhos. — Minha casa é aquela lá em cima da colina — ela falou, apontando para uma trilha que continuava através do bosque. — Por favor, apareça se precisar de alguma coisa ou quiser companhia. Aqui estamos nós.
50 A pequena casa branca tinha uma varanda com duas cadeiras de madeira e um pote de gerânios vermelhos. A Sra. Monroe abriu a porta e eu a segui, entrando em uma sala com paredes azuis acinzentadas e ornamentos brancos. — É tão bonita! — eu exclamei. O sofá e duas cadeiras com almofadas florais estavam posicionadas na frente da lareira com estantes embutidas. Uma mesa de madeira com um vaso cheio de margaridas cor-de-rosa foi colocada próxima à janela que tinha vista para o bosque. Uma pequena televisão foi colocada no canto da sala. — Eu disse que era pequena. Tentamos fazer com que ficasse aconchegante. Aqui está o quarto. Atrás da porta havia um quarto amarelo pálido que mal cabia a cama de casal com cabeceira branca e uma cômoda, também branca. Próximo à cômoda, estava um banheiro com azulejos azuis e brancos com uma banheira branca profunda. Do outro lado do chalé havia uma cozinha arrumada, com um fogão estreito, geladeira tamanho econômico, um micro-ondas, uma mesa quadrada e duas cadeiras. A Sra. Monroe abriu a geladeira: — Você está abastecida com o básico: ovos, leite, suco. Bem, você vai ver. Você sabe cozinhar, Jane? — Aprendi na casa onde morava.
51 — O que você acha?— perguntou ela. — Acha que é o suficiente? Eu sorri: — É incrível. Obrigada, senhora. — Não é mais do que você merece, Jane — disse ela, sorrindo para mim. — Por favor, vá jantar em minha casa amanhã, às seis horas. Se você seguir o caminho até a colina, irá vê-la. Tudo bem ficar sozinha esta noite? Assenti: — Obrigada. — O número da minha casa está programado no telefone, caso venha precisar de alguma coisa. Estou realmente feliz por você estar aqui. — Eu também. Boa noite Sra. Monroe. Quando ela saiu, fui de cômodo em cômodo, atônita de que tudo aquilo era meu. Então, examinei a casa mais uma vez. Descobri saches com cheiro de lavanda no armário, xampus de marca e absorventes no banheiro. O armário estava cheio de comida boa. As gavetas estavam lotadas com papéis com o logotipo da escola, cadernos e revistas, duas dúzias de lápis e canetas e uma calculadora. Um fichário de alças com o emblema da escola estava pendurado no encosto da cadeira. Havia um pequeno quarto atrás da cozinha com uma máquina de lavar e secar roupa e um varal para secar pequenas peças.
52 Eu não conseguia entender por que meu coração estava acelerado e minha garganta se comprimia. Foi só quando comecei a gritar que percebi: eu nunca estive tão feliz. Quando abri minha bolsa de vinil para tirar minhas roupas, vi, escondidos, meus pertences pessoais. Embora não houvesse mãe adotiva para vasculhar minhas coisas aqui, ou mesmo colegas cleptomaníacos, eu sentia uma necessidade imensa de esconder os meus pertences. Coloquei a Bíblia de Hosea na estante e meu dinheiro em uma gaveta, junto com brincos manchados de Wilde. Algum dia furarei minhas orelhas e os usarei. Uma coisa eu mantive em um esconderijo: a bala dilacerada que tinha rasgado minha carne. Eu não me lembro da noite em que fui baleada e eu não quero recordar daquele repulsivo momento. Fui para fora e atirei um pedaço curvado de metal para dentro do bosque o mais forte que pude e o ouvi cair em algum lugar distante. A simples refeição que eu comi - um sanduíche de queijo grelhado, uvas e biscoitos de chocolate - parecia fantástica, porque eu mesma decidi o quê e quando queria comer. Liguei a televisão e zapiei os canais, observando todos os programas-lixo de celebridades que os meus colegas falavam. Fiquei acordada até as 2h da manhã, quando não conseguia mais manter os olhos abertos. Depois de tomar um banho, escorreguei entre os lençóis, movendo as pernas para sentir a suavidade, que era tão diferente dos lençóis de nylon barato da Sra. Richards. Puxei o edredom até o queixo, fechei os olhos e ouvi as árvores lá fora.
53 Os galhos soprando e batendo contra o telhado eram como se as árvores estivessem sussurrando para mim. Uma sensação estranha percorreu-me, mas era uma lembrança de algo muito vago para me lembrar. Levantei-me uma vez para olhar pela janela. Não havia nada além da escuridão e as sombras adoráveis dos galhos se movimentando. De repente, percebendo o quanto eu estava isolada, chequei as travas das janelas e portas antes de voltar para a cama.
NO LAR ADOTIVO nos era permitido banhos de cinco minutos em dias alternados. Se os outros cortassem a fila, como os meninos costumavam fazer, a água já estaria morna e o jato muito fraco para tirar o xampu barato dos meus cabelos. Agora, eu enchi a banheira com água super quente. A banheira era tão profunda, que eu podia me cobrir inteira de água. Alisei minhas mãos sobre minha pele para sentir quaisquer indícios de danos, além do óbvio. Não me lembrava de quase nada sobre o meu passado e me perguntava se eu tinha sido abusada assim cimo Wilde foi. Mas a pele de minhas pernas e braços não continha marcas e meus dedos percorreram sobre a minha pele sem surpreender nenhum tecido grosso cicatricial. Enxuguei-me com uma toalha grossa e suave e, em seguida, examinei meu corpo no espelho de corpo inteiro que estava embaçado pelo vapor e preso à porta do banheiro. Esfreguei com força a cicatriz com meu polegar, desejando que pudesse arrancá-la. Ela tinha uma forma oval com uma
54 saliência maior em seu cumprimento, atravessando horizontalmente marcas estreitas e mais claras do que a pele, marcas causadas por pontos cirúrgicos. Então, toquei a tatuagem abaixo do meu seio esquerdo. Hosea teria 18 anos agora. Meu aniversário de 16 anos não tinha trazido melhorias milagrosas. Meus olhos eram de um marrom comum, assim como meu cabelo, que corria reto até um pouco mais do que o meio das costas. Meu nariz era um nariz e minha boca era uma boca. Pensei que a minha melhor característica, provavelmente, fosse meus dentes, que eram bem formados e brancos. Juntei com minhas mãos meus pequeninos seios, mas o resultado disso podia ser comparado a um acessório de luxo em um carro econômico. Virei-me e verifiquei minha bunda. Não era completamente plana, mas não era curvilínea também. Eu era o que sempre fui: a simples Jane. Pelo menos aqui, em uma escola só de meninas, eu seria poupada da miséria de cobiçar caras que nunca olhariam para mim. Mesmo entre os Alfas, eu era vista como um tipo de amigo assexuado. Embora fosse mais seguro ser ignorada, meu coração ainda ansiava por amor e meu corpo ainda ansiava por carícias. Foi mais um dia nublado, então vesti um jeans, uma camiseta e um agasalho. Enquanto eu comia uma tigela de granola, li o Manual da Aluna de Birch Grove. O cronograma de aulas era uma grade elaborada de blocos de curto e longo prazo, e não havia dois dias da semana que tivessem aulas na mesma ordem. Depois que folhei o manual, decidi explorar o campus.
55 Não vi outra alma enquanto caminhava em direção aos pilares de pedra da entrada. Virei na direção dos edifícios escolares e peguei um caminho que dava em um jardim de rosas e um terraço que era sombreado pela cobertura de videiras. Uma estátua de pedra de ninfa estava em uma fonte. Cortei caminho pelo campo de esportes e encontrei-me na parte detrás do bosque de bétulas. O céu, por um instante, ficou límpido e a luz do sol cintilou por entre os ramos graciosos. Pensei ter visto algo, alguém, mas era apenas a sombra dos ramos dançando na brisa. No centro do bosque de bétulas, descobri um anfiteatro, que tinha cerca de 20 metros de diâmetro. Duas bancadas de mármore branco em forma de meia-lua rodeavam um espaço plano e vazio. Fiquei ali sentada ouvindo os pássaros e vendo os esquilos correndo por entre os galhos. Enquanto apreciava a beleza, tive um momento de déjà vu. Mas ele se foi tão de pressa que apenas segurei uma imagem de folhas, umidade e alegria. Eu não sabia o que aquilo poderia significar. Prossegui com a exploração, indo na direção oposta ao meu chalé. Eu estava olhando para o bosque enquanto andava, tentando ver se havia mais surpresas quando ouvi um ruído alto. Virei a cabeça na direção do som e vi uma bicicleta vindo direto para cima de mim. — Cuidado! — o ciclista gritou enquanto tentava se desviar para não bater em mim. Seus pneus derraparam nas folhas, deslizaram para o lado e ele saiu voando da bicicleta, caindo no mato.
56 Corri em sua direção: — Você está bem? O ciclista estava esparramado no chão. Levantou a cabeça e vi um emaranhado de longos cachos escuros e uma barba por fazer. Ele usava bermuda cáqui e uma camiseta cinza. Uma corrente de prata no pescoço caiu para dentro da gola da sua camiseta. Eu o estudei enquanto ele olhava para sua bicicleta, xingando em voz baixa. Ele era alguns anos mais velho do que eu. Tinha traços fortes e grandes olhos verdes com cílios negros e grossos. — Que diabos você estava fazendo aqui? — perguntou com um olhar zangado enquanto se levantava. Ele era um pouco mais alto do que eu e se eu contasse com seus cabelos emaranhados, ficava mais alto ainda. Seu tom brusco era muito mais confortável para mim do que as maneiras polidas Sra. Monroe: — Eu estava dando um passeio. — Você veio do nada — ele estremeceu e se inclinou para o lado. Tirando as folhas e a sujeira das suas pernas longas e bronzeadas, deixando à mostra longos e ensanguentados arranhões — Você se machucou. Fique aqui enquanto vou procurar ajuda. — Eu estou bem. Apenas pegue a minha bicicleta. Algo sobre ele me fez permanecer em meu lugar até que ele dissesse ‗por favor‘. Assim que peguei sua bicicleta ele perguntou:
57 — Da onde você veio? — Eu moro aqui. — Ninguém vive aqui. E é um dia de aula. — Acabei de me mudar para o chalé. — Uma fada vivendo em um conto de fadas em um chalé — ele disse com uma risada. — O que você está fazendo aqui fora? — Você faz muitas perguntas — disse. — Eu estava pensando em subir para a casa da Sra. Monroe. Ela é a diretora. — Você já conheceu a família Monroe? — Mais uma pergunta — olhei para ele e ele olhou para trás. Seu olhar direto me fez querer ser direta também. — Eu não os encontrei ainda. Vou jantar com eles esta noite. Você é algum delinquente? — Se importaria se eu fosse? — ele tentou colocar sua perna por sobre a bicicleta e quase perdeu o equilíbrio. — Venha aqui, por favor. Fiquei ao seu lado. Ele cheirava a terra quente e pinheiros. Quando ele se inclinou sobre meu ombro subindo na bicicleta, o calor da sua mão atravessou o algodão fino da minha camiseta surrada. Minha cicatriz pulsou em resposta - algo que nunca tinha acontecido antes - e propagou calor por todo o meu corpo. — Até mais tarde, fada — disse ele e saiu. Gostaria de saber quem ele era. Olhei para o lugar em que ele tinha colocado a mão. Havia uma mancha de sangue e sujeira.
58 Manchas de sangue. Em vez de ir à casa da Sra. Monroe, voltei para o chalé e tirei a camiseta para lavar a mancha antes de ela secar. Olhei no espelho o meu torso nu. O sangue tinha encharcado a camiseta e escorrido em minha cicatriz, era como uma folha de outono em tons salpicados de vermelho róseo e escarlate. Abri a torneira para lavar a camiseta e quando olhei novamente para a minha cicatriz, ela já estava com sua cor pálida normal. O sangue deve ter sido um truque da luz e do nervosismo, que agora fazia meu corpo formigar de uma forma que nunca havia acontecido antes. Troquei de roupa, vesti a minha melhor calça, a de veludo marrom, uma blusa azul e sandálias de couro falso que eram de um tamanho muito grande. Eu não tinha nenhuma maquiagem ou jóia, exceto pelos brincos da Wilde. Enquanto eu caminhava até a colina, tudo parecia mais brilhante e mais vibrante, desde as notas individuais do canto dos pássaros até as bordas serrilhadas das folhas das bétulas. Senti como se estivesse sonolenta por toda a minha vida e agora eu estava totalmente desperta. Foi fácil encontrar a casa dos Monroe. O prédio de dois andares estava à parte de seus vizinhos e tinha a mesma tonalidade rosada da escola. A casa tinha uma entrada principal que possuía um desvio para a rua que dava para o topo da colina. Pesados pinheiros verde-esmeralda cercavam a casa. Limpei as palmas das mãos suadas antes de tocar a campainha. Eu esperava ver a Sra. Monroe, mas a porta foi aberta por um bonito e alto
59 adolescente, com cabelos grossos cor de ouro e âmbar. Seus ombros largos enchiam a camisa polo azul-esverdeada e seus olhos eram do mesmo tom azul dos da Sra. Monroe. Apesar de ser final de verão, sua pele era pálida, da cor de nata, com um pouco de rosa nas bochechas. Ele era como um daqueles meninos que costumavam me empurrar para o lado enquanto caminhavam pelos corredores da escola, como se nem parecesse que eu estava lá. Mas ele era diferente daqueles meninos, assim como a seda verdadeira é diferente do tecido sintético muito brilhante da minha blusa. Ele sorriu. — Você deve ser a Jane. Sou Lucien — ele estendeu a mão seca e firme, apertando a minha pequena mão suada, e o formigamento no meu corpo fez o aperto de mão mais intenso do que aquelas sensações furtivas que tive com alguns dos meninos do Alfa. — Olá, Lucien — disse com a voz embargada com meu nervoso. — Todos me chamam de Lucky — ele disse. — Minha mãe está animada em tê-la conosco aqui. Entre. Ele me conduziu por um hall de entrada, onde um grande vaso de flores foi colocado sobre uma mesa circular. Depois passamos por uma elegante sala marfim com tons de cinza-esverdeado. Embora a tarde ainda brilhasse lá fora, o interior da casa estava escuro. Ainda assim, vi móveis de madeira polida, ricos tecidos e pinturas emolduradas. Lucky disse:
60 — Mamãe achava que você ficaria mais confortável na sala da família. É lá onde costumamos nos reunir. A sala da família ficava na parte de trás da casa, com janelas que davam de frente para Birch Grove. Havia uma passagem para uma grande cozinha, onde a Sra. Monroe estava, em frente a um fogão de seis bocas, verificando o conteúdo de um pote. — Jane, que bom ver você de novo. Lucky ofereça uma bebida a Jane. — Água ou refrigerante? — ele perguntou. Um era melhor do que o outro? — Qualquer um dos dois. Lucky pegou uma garrafa grande da parte da frente da geladeira: — Experimente esta soda de limão. É azedinha. Faz sua boca estalar. — Coloque em um copo para Jane, querido — a Sra. Monroe disse. Ela abriu o forno e tirou uma bandeja de algo que parecia tiras de pão. Lucky colocou o refrigerante em um copo, adicionou cubos de gelo, pegou um morango da fruteira, que estava no balcão, e colocou dentro do copo: — Prontinho — e piscou para mim. Foi apenas uma piscadela amigável, e um morango era apenas uma fruta. A maioria das meninas - as bonitas - estão acostumadas com a atenção. Elas conseguem diferenciar um gesto amigável de um flerte. Mas
61 eu não era uma daquelas garotas, e eu não tinha ideia do que fazer com o gesto de Lucky. Eu mal consegui sussurrar: — Obrigada. A Sra. Monroe disse: — Lucky, por favor, peça a seu irmão que se junte a nós. — Tentarei arrastá-lo para fora de sua caverna — disse ele, que, para mim, falou: — Ele é como um homem das cavernas. — Sem inventar apelidos — disse a Sra. Monroe enquanto seu filho saracoteava, assobiando fora do tom. Tomei um gole do refrigerante. Era um pouco amargo, mas delicioso: — Tem mais filhos, senhora? — Apenas Lucien e Jacob. Claro, tenho todas as minhas meninas de Birch Grove — ela colocou aquelas coisas que pareciam com tiras de pão em uma bandeja. — Você se importaria de colocar essas fatias de queijo na mesa, querida? Fiquei agradecida por ter colocado o prato na mesa antes que Lucky voltasse com o seu irmão: o ciclista, ainda vestindo o calção manchado de sujeira, mancando e com uma atadura na perna. Ele sorriu: — Esta é a fada que atropelou minha bicicleta hoje.
62
Capítulo Três ―A dignidade de cada aluna de Birch Grove é reconhecida e apoiada pela cooperação dos nossos rigorosos programas acadêmicos e curriculares.‖ Manual da Aluna Birch Grove
— Jacob! — a Sra. Monroe disse — Isso não são maneiras de receber nossa convidada. — Não é minha culpa que tenha me nocauteado — disse enquanto enchia as mãos de fatias de queijo (não eram pães!) e as colocava na boca. — Nossa isso aqui tá quente! — Eu não nocauteei você — eu disse. — Você caiu por conta própria. — Ela se defende como um advogado! — disse Jacob. — Ela provavelmente vai querer me processar por calúnia, com um esquilo falante como sua testemunha e o rei dos gigantes como juiz. Lucky bateu no ombro de seu irmão e disse para mim: — Não deixe que Jack a aborreça. Ele é um idiota. — Lucien, não diga de seu irmão, mas Jacob, francamente! — a Sra. Monroe deu a seu filho mais sorridente um olhar crítico de cima a baixo e cruzou os braços. Jack comeu outra tira de queijo:
63 — Isso está ótimo, mãe! Fiquei tensa, esperando que ela gritasse com ele, mas ela estendeu suas mãos e tirou os cachos caídos dele de seu rosto. O gesto de amor me chocou mais do que se ela o tivesse estapeado. — Jane, este jovem é Jacob, meu filho mais velho. Não há segredos de que o grande desafio da diretora é sua família. Jacob, diga oi para a Jane. — Oi Jane — ele disse como se fosse um papagaio, enfiando suas mãos nos bolsos do short, inclinando o corpo para a frente, em um gesto bobo. Não consegui decidir se aquilo era a coisa mais idiota que já tinha visto ou a coisa mais engraçada, então, o encarei. — A Jane pode aparecer do nada — ele disse. — Jack, por favor, pare de fazer brincadeiras e se faça apresentável — a Sra. Monroe disse. — Jane, você poderia ajudar com a salada enquanto Lucien arruma a mesa? — Claro! O que a senhora quer que eu faça? A diretora me mostrou uma tábua de cortar legumes e me entregou tomates e pepinos. Eu estava grata em ter algo para fazer enquanto observava os Monroe. No lar em que eu morava antes, comíamos em pratos de plástico com garfos que não combinavam com as facas e usávamos guardanapos finos que a Sra. Richard pegava quando ela comia em fast foods. Agora, eu estudava como Lucky arrumava os pratos, os guardanapos de papel, os copos e prataria ao longo da mesa retangular.
64 — Em que ano da escola você está? — perguntou Lucky. — No penúltimo ano. — Eu também — ele disse. — Qual é sua matéria preferida? — É uma mistura de matemática com ciência. Ambas juntas fazem todo o sentido. — Odeio ciências — ele falou. — Sou completamente estúpido em ciências. A Sra. Monroe trouxe uma cesta de pão e colocou na mesa: — Lucky, você não é estúpido. Você apenas não se dedica. Na verdade, pensei que a Jane pudesse te dar aulas de monitoria de química para você, assim ela ganharia algum dinheiro também. Pode pensar nisso, Jane? Pensei em como Lucky faria para se livrar daquela situação estranha, mas ele emendou: — Isso seria legal! — Como se aquilo fosse à coisa mais normal no mundo para uma bolsista dar aulas de monitoria para o filho da diretora. — Eu poderia fazer a monitoria, sim — disse rapidamente pensando
dinheiro e Lucky ao invés de estar prestando atenção no que eu estava fazendo. A faca escorregou da minha mão, cortou meu dedo e eu gritei. Lucky e sua mão vieram para ver o corte que gotejava sangue sobre as fatias verdes de brancas do pepino. Lucky correu para mim:
65 — Deixe-me ver. Estendi minha mão. Ele parou muito próximo e pude sentir o mesmo cheiro fresco, de ervas, que sua mãe usava. Ele olhou fixamente para o corte que escorria sangue e delicadamente curvou seus lábios, abrindo-os vagarosamente. Senti sua respiração forte na minha bochecha. — Lucien! — a Sra. Monroe disse rispidamente. — Deixe-me tomar conta disso! Ela então colocou sua mão no meu pulso e me virou em sua direção dizendo: — Não é profundo. Vamos enxaguá-lo. Lucky pegue um band-aid; seu irmão tem uma caixa no banheiro dele. Lucky foi buscar a caixa de band-aid e a Sra. Monroe abriu a torneira e lavou o corte com água quente. Suas unhas ovais, seu esmalte claro e seus dedos pálidos contrastavam com minha pele e unhas irregulares e roídas. — Eu deveria ter sido mais cuidadosa — balbuciei. — A maioria dos acidentes acontece na cozinha. Eu deveria ter um kit de primeiros socorros aqui. Vamos estancar isso — ela disse sem tirar os olhos da minha mão. Eu estava pressionando o corte com um papel-toalha quando Lucky retornou com a caixa de band-aid. Quando ela estendeu a mão para pegá-la, ele puxou a caixa: — Posso fazer isso, mãe. — Não é nada — eu disse — posso colocá-lo.
66 — Você é a paciente, — falou Lucky enquanto abria um band-aid e descolava a parte branca do curativo, envolvendo-o cuidadosamente em meu dedo. Seus dedos eram tão pálidos quanto os de sua mãe e suas unhas eram limpas, de formato quadrangular. — Prontinho! Agradeça ao Dr. Lucky — ele disse com um largo sorriso. — Obrigada, Dr. Lucky — eu disse pensando que ele estava fazendo um enorme caso por causa de um simples corte. Não que eu rejeitasse a atenção dele, mas parecia estranho. Talvez aquela fosse a maneira como eles tratavam as visitas. — Obrigada, Lucien — disse a Sra. Monroe — no entanto, você precisará colocar um pouco mais de energia nos seus estudos se quiser fazer faculdade de medicina. Ele deu de ombros e ofereceu o prato com tiras de queijo para mim. Peguei um e dei uma pequena mordida; estava quente e amanteigado. Lucky comeu vários e me ofereceu mais. Peguei mais um e acenei com a cabeça numa espécie de reverência, desconfortável com sua atenção. A Sra. Monroe abriu o forno, retirando de lá um frango assado de pele brilhosa e marrom, o que me deu água na boca. Ela então disse: — Lucien vai para a Escola Preparatória Evergreen, um colégio só para garotos. — Jack se formou na escola pública no ano passado, — Lucky disse voluntariamente, pronunciando escola pública da mesma maneira que os
67 Alphas diziam facilidade para a juventude correta — e agora ele tem tempo de sobra. — Você está dando a impressão errada a Jane — sua mãe disse. A escola pública daqui tem um programa excepcional de música. Jacob está se dedicando este ano para se concentrar na música e considerar suas opções. — Opções como dormir tarde ou dormir realmente muito tarde — Lucky falou enquanto a Sra. Monroe o olhou de forma severa, e ele riu. — Você pode ver agora o motivo de eu ser feliz trabalhando com as minhas garotas de Birch Grove — falou a senhora Monroe. — Sei que você prefere ciências, Jane, mas espero que você aproveite os nossos estudos de artes liberais. Temos ótimos cursos de inglês e de idiomas. Você gosta de literatura? — Eu não ligo muito, na verdade. Prefiro matérias que me ensinem informações úteis. — Literatura tem muitas lições que podem ser aplicadas na nossa vida diariamente, Jane — emendou a diretora. — Agora você não vai conseguir fazê-la parar de falar — disse Lucky; e ele estava certo. Ela falou por mais dez minutos sobre a importância da ficção e da poesia, como se memorizar um soneto iria me ajudar a conseguir um emprego. Fingi que estava ouvindo enquanto assistia Lucky se inclinar contra o balcão. Seu nariz era longo e reto ele tinha uma pequena fenda em seu
68 queixo. Ele estava olhando fixamente a janela que dava para a escola e para a cidade abaixo. Lembrei-me do papel-toalha repleto de sangue que eu havia deixado no balcão e levei meu copo até a pia com a intenção de pegá-lo para que a Sra. Monroe não tivesse que pegá-lo. Então Jack, usando uma versão limpa da mesma roupa que usava antes, retornou com um homem alto, mais velho, e charmoso ao seu lado. — Bem na hora do jantar, querido — a Sra. Monroe falou ao senhor que chegava junto com Jack. — Jane, este é o meu marido, o Sr. Monroe. Tobias, esta é minha nova aluna, Jane Willians. — Prazer em conhecê-la — o Sr. Monroe me disse com um sorriso breve. Seus cabelos loiros se misturavam com os prateados, e seus olhos eram de um azul pálido, como uma manhã de céu límpido. Ele tinha a mesma estatura que Lucky, porém, mas mais magro, e havia uma espécie de sombra acinzentada abaixo de seus olhos. Em seu pulso, havia um solitário relógio de ouro, como se ele tivesse sido feito para um homem maior. O jantar foi mais generoso do que o jantar de Páscoa na casa da Sra. Richards. Tinha frango assado, salada verde, salada de repolho roxo, purê de batatas e um pão crocante. Seria uma refeição perfeita, exceto pelo fato de eu não conseguir comer direito o frango, já que quando fui me servir, vi sangue e osso. Tentei comer em volta da parte crua e então escondi o resto embaixo das folhas de alface.
69 Ainda tivemos sobremesa, uma espécie de torta de morangos coberta com creme e caldo doce de algo cor de rubi. Tento me recordar daquele primeiro jantar com os Monroe, mas tudo o que me lembro é a estranheza de sentar com o que eu pensava ser uma família feliz. O Sr. Monroe era agradável, mas discreto, frequentemente encarando a janela. A Sra. Monroe tentou levantar assuntos comigo e com seus filhos sobre o tempo, a vizinhança, a escola. A coisa mais estranha sobre a família era Jack, que parecia muito diferente da sua família alta e pálida. Algumas vezes, o peguei me olhando, mas não poderia dizer o que se passava por sua cabeça, por trás daqueles claros olhos verdes. Algumas das crianças do lar em que eu vivia antes falavam da vida
antes: antes da mamãe pegar o cano, antes do papai ser preso, antes da doença, da pobreza, da doença mental e da morte abaterem suas vidas, despedaçando-as. — Jane, quais esportes você pratica? — perguntou Lucky. — Não pratico esportes — disse pensando que esportes custam dinheiro e tempo, coisas que eu não tinha. — Teremos que encontrar um para você — disse a Sra. Monroe. — Ficamos mais felizes quando exercitamos corpo e mente — seus olhos foram de encontro ao marido, que servia a si mesmo mais um copo de vinho tinto. — O que acha sobre isso, Tobias?
70 Ele tomou um longo gole do vinho e me olhou, como se estivesse tentando me medir e disse: — Não sei... talvez golf? Lucky riu: — Os tacos são maiores do que ela! Mas eu ainda tenho meu conjunto de golfe infantil. — Compre uma bicicleta — disse Jack. — É um esporte e um meio de transporte. Além disso, não emite fumaças tóxicas. Você pode até construir a sua própria, como eu fiz. — Essas colinas são muito íngremes para uma iniciante — disse a Sra. Monroe. — Jane, você pode conversar no clube de esportes no setor de orientação na segunda-feira e ver se algum esporte interessa você. Eu sabia que esportes ajudavam para conseguir uma vaga na faculdade, mas deveria haver algo a mais do que isso. Vendo minha relutância sobre o assunto, a diretora falou: — Se você não quiser se unir a um time agora pode fazer isso mais tarde. Sempre temos algo que se encaixe em cada aluna. — Qualquer um pode andar de bicicleta — disse Jack — até mesmo um Elfo. — Jacob, pare de aborrecer a Jane. Nem todos apreciam seu senso de humor — disse a Sra. Monroe. — Meninos, limpem a mesa. Ela me levou até a porta da frente:
71 — Você gostaria que Jacob ou Lucien acompanhe você até o chalé? — Não é necessário. Obrigada pelo jantar, Sra. Monroe. Estava delicioso. — Estou feliz que possa ter se unido a nós esta noite. Amanhã, quero levá-la à cidade. Compraremos algumas coisinhas que você precisa e você pode abrir uma conta no banco para depositar seu ordenado. Ordenado era o pagamento que a escola me oferecia para as despesas costumeiras. Eu mal podia esperar para ter meu próprio dinheiro: — Tudo bem — respondi. — Que bom. Também precisamos dar uma passadinha no alfaiate para ajustar os uniformes — ela sorriu. — Depois de ter centenas de meninas passando pela escola, consigo adivinhar os tamanhos precisamente, mas sempre existe uma bainha para fazer ou um botão a ser removido. Podemos nos encontrar em frente à escola às 10h? — Sim, senhora. Boa noite. — Boa noite, Jane. Durma bem. Estava grata por caminhar sozinha na escuridão do bosque porque podia pensar em tudo o que aconteceu naquela noite. A maioria dos pensamentos era um quebra-cabeça da maneira como Lucky colocou a bandagem em meu dedo. Embora eu soubesse que não significou nada para ele, eu sonhava acordada com a proximidade dele, suas pernas longas, e o modo como seus lábios se abriram quando ele segurou minha mão.
72 Um vento soprou por toda a noite e minha disposição elevada me fez imaginar que os galhos balançantes que alcançavam meu pequeno chalé a protegia do mundo lá fora. Na manhã seguinte, o band-aid se tornou inútil quando tomei banho e eu o arranquei. O corte era apenas uma linha fina, nem mesmo parecia um arranhão. Tive um sentimento estranho de guardar o band-aid porque ele me lembrava à doçura de Lucky. Percebi que aquilo era loucura e o joguei no lixo. Já que eu não tinha mais o que fazer, fui cedo para a escola. Sentei-me nas escadas de mármore, que gelaram minha bunda, e levantei minha cabeça para admirar os anjos sobre as portas. A beleza deles, e suas faces impetuosas me fez pensar em uma palavra: andrógenos. Pouquíssimos adultos e professores (acredito que eram professores) disseram oi quando passaram por mim em direção ao prédio. Quando a Sra. Monroe saiu do prédio para me encontrar, ela vestia calças marinho e uma camisa branca de mangas longas. Ela levava em seus ombros uma fina luva de cotton e usava um chapéu branco de lona que fazia sombra em seu rosto: — Bom dia Jane. Pronta para ir? Caminhamos no estacionamento para um lado mais afastado da propriedade da escola. Eu não tinha notado essa parte do estacionamento antes porque galhos altos bloqueavam a passagem. O carro da diretora era um modelo antigo prata da Mercedes com o emblema Birch Grove na janela traseira.
73 Sentei-me no banco de couro e a Sra. Monroe esperou até que eu colocasse o cinto de segurança para ligar o carro. Enquanto ela descia a colina, disse: — Nossas alunas ficam tão ocupadas com os trabalhos e atividades escolares que não se importam de Greenwood não ser muito grande. Há um cinema, restaurantes, uma pizzaria, cafés, lojas e o Felon, uma sorveteria. — Passamos por ela na minha viagem — eu disse. — É muito distante de Birch Grove? — Apenas alguns quilômetros, embora a subida pela colina faça parecer mais longe do que quando subimos — ela disse com um sorriso. Quando chegamos ao final da colina, a Sra. Monroe virou em uma rua cheia de árvores com pequeninas e lindas lojas. As janelas eram brilhosas, as calçadas limpas e haviam muitas plantas. A Sra. Monroe apontou para uma intercessão: — Existe um ônibus que passa de hora em hora e sobe a colina. Você pode pegá-lo de graça se mostrar a identificação de aluna da Birch Grove. Ela estacionou em frente a uma loja que tinha uma placa escrito
Eunice, Costuras e Consertos. — Esta é nossa primeira parada porque quero ter certeza de que seu uniforme estará pronto.
74 Ela pegou meus uniformes do porta-malas; eles estavam envoltos em uma embalagem própria para roupas e, entrando na loja, uma campainha que ficava sobre a porta tocou. — Bom dia, Sra. Monroe — disse a senhora atrás do balcão. — Bom dia, Eunice. Trouxe os uniformes da Jane Willians. Ela é nossa nova aluna — a Sra. Monroe colocou os uniformes no balcão, abriu o zíper da embalagem e o uniforme apareceu. — Tenho certeza de que as blusas servirão, mas, de qualquer maneira, experimente-os, Jane. Ela estava certa a respeito das blusas, mas as mangas do blazer cobriam as minhas mãos. Eu era muito pequena e, geralmente, as jaquetas e calças ficavam compridas. Quando tropecei na roupa, a Sra. Eunice franziu a testa e ajeitou a minha roupa: — Vou marcar os ajustes com alfinetes. O meu uniforme consistia em dois suéteres em gola V, uma blusa de lã, um blazer, duas calças, duas saias xadrez – todos os itens na cor azulmarinho – e cinco blusinhas brancas de cotton. Tanto os suéteres quanto o blazer tinham o emblema da escola. A Sra. Eunice me fez ficar em pé em uma plataforma de madeira que dava para um enorme espelho e marcou a bainha. Eu havia sonhado com roupas novas, no entanto, aquelas roupas novas me faziam parecer uma moça que iria entrar para um convento. Lembrei-me dos gritos da senhora Richards, Mendigos não podem escolher, quando reclamei de alguma coisa que ela tinha comprado em um bazar beneficente.
75 A costureira nos disse que as alterações ficariam prontas até o fim do próximo dia. Quando eu e a senhora Monroe saímos para o banco, notei uma placa de identificação de rua com o nome ‗Monroe‘: — Aquilo é... — eu comecei. — Nossa família está neste lugar há algum tempo — a diretora falou. — Uma das vantagens de se viver em cidades pequenas é que seu nome pode estar em qualquer lugar. Você já teve alguma conta no banco antes, Jane? — Nunca tive nada para colocar no banco. — Encorajamos todas as alunas de Birch Grove a lidar com finanças. Você receberá seu ordenado uma vez por mês. Não é muito, mas deve ser o suficiente para o mercado, as necessidades básicas e ocasionais saídas para comer ou idas ao cinema. Não que você pareça uma esbanjadora, Jane, mas é sempre bom viver com o mínimo para que se possa ter algo em caso de emergências. — Serei cuidadosa, senhora — dinheiro era segurança e proteção, que era um passe de ônibus, um suéter, uma refeição, e um quarto para dormir. — Isso é bom. Já que tenho o número da sua conta agora, posso depositar o dinheiro da sua monitoria diretamente na sua conta — a Sra. Monroe me disse quanto me pagaria pelas aulas, o que era mais que o dobro do que eu esperava. Lucky e dinheiro. Vejo agora como o trabalho de tutora me fez associar Lucky com toda a estabilidade e segurança do dinheiro.
76 O banco Evergreen era um prédio de porte médio e quando entrei era como se tivéssemos voltado no tempo. Os atendentes cumprimentavam a Sra. Monroe pelo nome e o gerente veio nos encontrar em seu escritório. Tentei preencher os formulários bancários o mais claro possível, mas a caneta ficava borrando. Quando cheguei na parte de endereçamento do formulário, a Sra. Monroe disse: — Academia Para Garotas Birch Grove, Rua Birch Grove, nº 10. O processo todo levou apenas 15 minutos e recebi um manual do banco, um cartão de débito e cheque. Nossa próxima parada foi uma loja de sapatos. Um vendedor mediu meu pé usando um objeto metálico e trouxe um sapato de couro que me pareceu pequeno, mas quanto o experimentei, ele era macio e confortável. As solas de couro escorregaram no carpete: — Esfregue a sola na calçada antes de usá-los para que crie tração — disse o vendedor. — Precisamos também de tênis branco, preto ou azul e chinelos — pediu a Sra. Monroe ao vendedor. A maioria das crianças ganha sapatos porque merecem, mas no sistema de adoção sapatos novos – os que servem e não apertam e não tenham sido usados previamente por alguém – são raros e muito importantes. Levantei a tampa da caixa para ver a brancura do tênis e o cheirei para sentir como era o cheiro de sapato novo.
77 Tomamos um lanche em uma drogaria muito antiga, sentadas em bancos próximos ao balcão. A Sra. Monroe sugeriu um sanduíche de rosbife e limonada rosada. Carne era algo tão raro para mim. Eu estava faminta e enquanto ela pagava, mordi o sanduíche, que era mais gostoso do que eu esperava. Enquanto comíamos, observei os clientes por um grande espelho na parede. Três adolescentes entraram na loja, de braços dados, rindo. Elas pararam de rir quando viram a Sra. Monroe e trocaram cochichos. Elas eram bonitas, com cabelos longos e brilhantes, pele macia e dentes perfeitamente brancos. Duas vestiam shorts e tops e a terceira vestia uma longa e leve saia branca, blusa lilás e um chapéu de palha. A Sra. Monroe as viu pelo espelho e os cantos de sua boca de elevaram. As garotas se aproximaram naquele jeito amigável e cauteloso que as pessoas têm quando há uma autoridade maior do que a sua no ambiente. — Olá, Sra. Monroe — elas disseram de uma vez. — Olá senhoritas! Como está sendo o verão de vocês? Embora as garotas tentaram ser sutis em seus olhares para mim, eu estava perfeitamente consciente das roupas que eu vestia, doadas, que não me serviam direito. Elas descreveram suas férias em uma confusão de palavras, tropeçando nas sentenças umas das outras. Uma foi velejar, a outra viajou para a Itália.
78 A mais bonita, a garota de cabelos castanhos que estava de saia, passou o verão em Montreal com um tio e uma tia. Ela era tão pálida quanto à diretora e captei uma brisa da mesma essência de ervas. A Sra. Monroe me apresentou: — Esta é Jane Willians. Ela se unirá a nós este semestre. Dissemos um oi estranho, sabendo que não nos falaríamos se não fosse pela Sra. Monroe. Seus olhos aguçados recaíram nas minhas roupas surradas e foram direto para a sacola da loja de sapatos que estava ao meu lado, no chão. — Não desperdicem seus últimos momentos de férias — disse a Sra. Monroe. — Vejo vocês na segunda. Quando o trio saiu, indo para a sessão de cosméticos, não podendo mais nos ouvir, ela me disse: — Sei que não é fácil ser transferida já no último ano. — Tenho certeza de que aqui é melhor do que o lugar onde eu estava — respondi. — Espero que você ache que somos mais do que meramente o menor mau entre dois demônios — ela disse. — Vamos comprar alguns itens de necessidade básica para você. Ela me levou a uma loja feminina muito organizada. Os preços das roupas ficavam dentro delas, em etiquetas, e quando olhei quanto custava uma calça jeans, fiquei atônita.
79 — Viu algo que te agradou, Jane? — a Sra. Monroe perguntou. — Na verdade, não. — De maneira alguma eu iria gastar todo o meu ordenado naquela loja de roupas para senhoras e de preços absurdos. Mas logo a Sra. Monroe se deu conta do motivo da minha hesitação: — Paga-se o preço pela qualidade e a qualidade é a que paga o preço no final. As roupas fazem parte do nosso presente para você. Aquilo mudava tudo. Eu não rejeitaria roupas de graça, mesmo que elas fossem sem graça. A Sra. Monroe deu sugestões enquanto eu escolhia camisetas de cor única e com estampadas, regatas com alças largas o suficiente para cobrir minha cicatriz, uma saia preta, calça cargo na cor caqui e duas calças jeans. A Sra. Monroe então caminhou até a sessão de lingerie: — Você deve se abastecer de dúzias de necessidades básicas — e pegou uma dúzia de calcinhas de cotton decoradas com laços, e também meias azuis que iam até o joelho e outras meias na cor branca. Olhando para o display de sutiãs, ela me perguntou: — Qual é o seu tamanho, Jane? Meu rosto ficou quente de vergonha: — Não sei senhora — e olhei para baixo, fitando o chão — eu não preciso usar sutiã. Eu havia implorado a Sra. Richards por um sutiã, mas ela me disse que eu não tinha nada para preenchê-lo e riu uma risada feia.
80 A Sra. Monroe fez um som de — tsc— com a boca: — Jovens devem ter roupas de baixo adequadas, e você é uma jovem, Jane. Ela chamou por uma vendedora e logo eu estava no vestiário, de braços levantados enquanto a vendedora tirava as minhas medidas com uma fita métrica: — Um refinado bojo — ela disse, em tom de aprovação. — Não tem nada aí — reclamei. — Tenho medido sutiã por 25 anos e nenhuma mulher acha que seus seios são suficientemente bons — ela disse sorrindo. — Você se poupará de muita infelicidade se aceitar e usufruir do que você tem; além disso, seios pequenos são chiques. Achei que ela estivesse completamente errada, mas logo eu estava experimentando um pequeno sutiã branco que fez ter – se é que eu tinha mesmo – uma forma feminina. A cabeça da Sra. Monroe despontou por detrás da cortina, dizendo para a vendedora: — Ficou muito bom! Levaremos três brancos, dois beges e um preto. Quando a vendedora saiu do provador, a Sra. Monroe continuou olhando e tive consciência do que ela olhava. Eu sabia que seus olhos estavam na pálida cicatriz acima do meu seio esquerdo e, então, seus olhos foram mais para baixo:
81 — Jane, sem mais tatuagens, por favor. Elas são inconvenientes e não saudáveis. Você pode pegar uma infecção fazendo uma tatuagem e nós não queremos isso. — Fui cuidadosa e estou bem — disse pensado que aquilo não era conta dela e ela não deveria me dizer o que fazer ou não com meu corpo. — Ainda assim, não queremos que você fique doente. Queremos você saudável. Quando ela saiu do provador, passei meus dedos pelo negro ‗H‘ e pensei se Hosea imaginaria que eu estaria nesta pequena cidade tão rica. Ele não se impressionaria com o dinheiro. Ele queria que eu fosse uma pessoa mais generosa, e não mais rica. Nossa última parada foi no mercado: — Você consegue fazer um molho de espaguete muito fácil com tomates amassados e ervas — disse a Sra. Monroe. — Aveia é mais econômica e saudável para você do que um pacote de cereais. Gosto de aveia com cerejas secas e açúcar mascavo. Já que as compras no mercado seriam debitadas no meu ordenado, segui as instruções dela, escolhendo as marcas próprias do mercado, mais baratas, mas que me seriam mais saudáveis e durariam mais. A Sra. Monroe aguardou por mim na entrada enquanto eu retirava meu cartão do banco para fazer o pagamento do mercado. A caixa era uma latina de cerca de 20 anos, bonita e usando uma saia rosa brilhante por baixo do avental do Mercado Greenwood. Ela me perguntou:
82 — Você não é dessas redondezas, não é? — Isso é tão óbvio? Vou começar a estudar na Birch Grove. — Sério? Aquela escola é muito cara — disse, entregando-me um recibo. — Tenho uma bolsa de estudos lá. — Que bom para você. Vejo você por aí então. — Sim, obrigada e até mais — respondi pegando o recibo, dobrando-o para colocá-lo dentro do meu talão de cheques. Enquanto voltávamos para a escola no carro da Sra. Monroe, reconheci casas nas montanhas e as voltas em torno da colina e pensei: eu
posso fazer isso.
83
Capítulo Quatro
―Os alunos formados em Birch Grove se tornam cidadãos produtivos, morais e éticos, e entendem suas responsabilidades como líderes da nossa comunidade.‖ Manual da Aluna Birch Grove
Depois de me despedir da Sra. Monroe, andei pelo caminho em direção ao meu chalé. As folhas das bétulas voavam com a leve brisa, revelando uma luz verde do lado oposto. Uma vez dentro de casa, tirei minhas novas roupas das sacolas de compras e as espalhei no sofá e nas cadeiras, colocando-as em diferentes combinações para saber o que poderia ser vestido com o quê. Então eliminei os quatro itens mais desnecessários, duas camisetas e um par de jeans; eu as coloquei de volta na sacola de compras para que pudesse devolvê-las e pegar o dinheiro de volta. Coloquei as outras roupas no guarda-roupa, mas mantive as etiquetas nelas. A Sra. Monroe tinha as ideias dela sobre o dia que choveria dinheiro e eu tinha as minhas. Depois de ter ligado a televisão para ter algum barulho, movi as coisas pelo chalé, só porque eu podia. Eu achei uma lanterna em um armário na lavanderia e a coloquei na mesa perto da minha cama no caso de uma emergência.
84 Estudei um capítulo do meu livro de vocabulário para o vestibular. Escrevi as palavras em frases e então as falava em voz alta até que saíssem naturalmente. Agora, que eu tinha privacidade, praticava as palavras enquanto ficava na frente de um espelho, fazendo frases como, — Ele tem um semblante avuncular, — e — Nós estávamos habituados à aspereza do pedagogo. — Bem, algumas coisas nunca soavam naturais. Parecia que havia sido um longo dia, mas quando olhei o relógio, era apenas seis horas. Desejei ter um computador para que pudesse escrever para alguns dos meus amigos. Sempre usei o computador do laboratório do Colégio City Central para as minhas tarefas de casa, mas eu não lembrava de ter visto nenhum computador no meu passeio pela escola. Eu deveria ter perguntado para a Sra. Monroe, mas agora era hora do jantar, não era uma boa hora para telefonar. A batida na porta me surpreendeu. Fui para a janela da frente e puxei a cortina para o lado. Jack estava na varanda segurando um caixa de pizza. Sua bicicleta estava encostada no balaústre. Quando abri a porta, ele disse: — Oi, Jane, pensei que você pudesse querer comer alguma coisa. Como não consegui encontrar nada da sua dieta natural, folhas e raios lunares, trouxe pizza.
85 Ele estava usando aqueles shorts velho, e cascas marrons haviam se formado nas suas pernas musculosas. Eu o havia notado como um homem, não um menino. Tinha mais a ver com seu jeito descompromissado do que com a sua idade. Aromas de dar água na boca emanavam da caixa e debaixo disso eu podia sentir o perfume fraco de pinho e terra de Jack: — Sua mãe me levou ao mercado hoje — eu disse relutantemente. Ele caminhou bem para o meu lado: — Eu sei como se parecem as compras de mercado da minha mãe. Cheio de antioxidantes e comidas frugais de caráter moral — ele olhou ao redor da sala e então foi para a cozinha, onde colocou a caixa na mesa. — Pegue os pratos para nós, Elfo — ele disse, tirando sua mochila, abrindo-a e retirando dela duas latas de cerveja preta. — Você está inventando essa palavra — eu o achei esquisito, mas a pizza estava cheirando maravilhosamente bem, então peguei dois pratos do armário e guardanapos da gaveta. — Ela é tão real quanto você. É alguém que é meio humano e meio criatura mágica. Eu também acho que você é parte duende, só espero que não seja daqueles malvados — ele disse. Você é? — Sou o quê? — Você é metade duende malvado? — Eu não sei o que é um duende.
86 — São criaturas que são quase do tamanho dos humanos. Às vezes eles ajudam as pessoas; eles gostam de música, de dança e de laços bonitos. — Acho que você perde muito tempo jogando RPG e lendo Tolkien. — Quem não gosta de uma boa luta de espadas? — quando Jack sorriu, seu rosto inteiro se iluminou. — Sim, eu leio Tolkien e minha mãe nos contava contos de fadas todas às noites. Eu sou especialista em criaturas mágicas e posso reconhecer uma quando eu a vejo. Tem um resplendor do brilho das estrelas nos seus olhos castanhos que entrega a sua verdadeira identidade. — Jack abriu a caixa. A pizza tinha escorregado para um lado e a maior parte da cobertura estava presa na tampa. Ele deu de ombros: — Esta é a razão das pessoas não entregarem as pizzas de bicicleta — disse. Nos sentamos e Jack falou: — Mamãe disse que te arrastou para fazer compras hoje. Ela ama fazer compras com meninas. Não poder vestir a mim e ao Lucky com roupas de marinheiro combinando a mata. Enquanto pegávamos um pedaço daquela bagunça melequenta, perguntei: — O que mais sua mãe gosta? — Além da família dela? Das garotas dela — ele aumentou o tom da voz, imitando-a. — Uma garota de Birch Grove é uma garota excepcional.
87 Ele estava esperando por minha reação. Eu encarei aqueles olhos verdes enormes. Eles eram verde musgo da mesma cor do lago da escola com pontos dourados como o reflexo do sol. — Então? — Jack disse. Eu mordi a pizza. Mesmo não estando quente, foi a melhor pizza que eu já comi: — Está ótima. — Quais são suas matérias favoritas? — ele me perguntou. O irmão dele havia perguntado a mesma coisa: — Matemática e ciências. — Por quê? E me responda em sentenças completas, do tipo que você responderia em uma entrevista para faculdade. — Este é o preço da pizza? — eu disse, e ele acenou. — Tudo bem, eu gosto delas porque ciências e matemática são sempre razoáveis, lógicas e justas. As regras se aplicam não importa quem você é ou quem você conhece. Há beleza e balanço. Elas fazem sentido. — E as pessoas não — ele disse. — Nós somos irracionais, tendenciosos e inconstantes. — Alguns mais do que outros — eu disse e ele sorriu. — Mas as regras da ciência se aplicam quando nós morremos. Quando nossos corpos se decompõem, não importa se somos ricos, pobres, inteligentes, burros...
88 Nada disso importa, porque nossos componentes químicos são iguais mesmo que a vida não. — Eu não me lembro quando eu tive uma companhia mais alegre no jantar — Jack disse. Eu dei de ombros: — Você perguntou. Comemos em silêncio por alguns minutos antes dele dizer: — Me fale sobre você. — Eu vim de um orfanato e agora estou aqui. — Obrigado pelos detalhes fascinantes — ele disse. — Por que você estava em um orfanato? Eu não iria revelar nada do que ele já não soubesse: — Sua mãe não contou? — A única coisa que ela nos contou é que você estava aqui com uma bolsa de estudo. — Minha mãe morreu quando eu tinha sete anos, e eu fui jogada no sistema. — E o seu pai? — Ele deu o fora antes de eu nascer — mudei minha perna de lugar e ela, momentaneamente, raspou contra a perna de Jack embaixo da mesa;
89 senti um baque do contato e rapidamente enfiei minhas pernas debaixo da minha cadeira. — Então seu pai não vai vir te buscar tão cedo? Eu balancei a cabeça: — Até onde eu sei, ele não existe. — Você está totalmente sozinha então — Jack disse. Era exatamente o que sua mãe tinha dito o que todos tinham dito: — Você provavelmente não percebeu ainda, vivendo num lugar como esse, mas muitos jovens não vivem com seus pais de nascença. Muitas famílias são separadas. — Eu sei disso Jane — ele disse de uma maneira tão dolorosa que eu tive a sensação mais estranha de ele realmente entendia. — Você gosta de viver sozinha aqui? — Você sempre faz tantas perguntas? — Não, mas a maioria das pessoas ficam felizes em falar de si mesmas. Estou tentando descobrir coisas de você. — Por que você se importa? Ele sorriu: — Agora quem está fazendo as perguntas? Estou curioso. Eu suspirei:
90 — Amo ter o meu próprio espaço, mas é tão diferente. Estou mais acostumada com barulho; o barulho da cidade, carros e pessoas. E à noite, quando o vento sopra, as árvores fazem barulho. Eu me habituarei com isso. — Habituarei? Sério? — um sorriso brincou em seus lábios. — Bom, olhe quem está estudando para o vestibular. — Se eu não estudasse, não estaria aqui — eu disse rapidamente. Sim, e isso é meio estranho às vezes. — Há muitas lendas sobre as bétulas. Sabe o que dizem sobre elas? Dizem que elas levantam e andam com suas raízes à noite. Eu tive aquela sensação identificável novamente. Então eu vi o brilho nos olhos de Jack e fiquei irritada: — Jacob, na minha escola antiga, os estudantes levavam tiros e facadas. Havia overdoses e prisões. Havia crianças que não chegavam a tempo na emergência e morriam. Então não pense que você me assustará com essas histórias absurdas — eu disse. —Todos sabem que as árvores são inanimadas. Elas não podem falar ou andar ou ficarem vivas à noite! A sensação estranha veio de novo, a coisa que eu não conseguia me lembrar, e eu a empurrei longe. — Não, eu acho que não é fácil assustar você — Jack disse mais seriamente. — Há algo em seus olhos, Elfo, como se você tivesse visto coisas que não foram feitas para meros mortais.
91 — Você é tão cheio dessas coisas, Jack — eu disse e ele apenas riu e pegou um terceiro pedaço de pizza. Mesmo eu já estando cheia, esperei, desesperadamente, que ele não fosse jogar o resto fora, porque algumas pessoas são assim, jogam fora coisas que os outros poderiam usar. Afinal, era a pizza dele. Quando Jack terminou de comer ele se levantou: — Fique com o resto. Vejo você por aí, Elfo. Ele saiu sozinho e eu escutei o barulho das rodas da bicicleta nas folhas do lado de fora enquanto ele ia embora. Eu não tinha idéia do que pensar sobre ele, ou o porquê dele ter vindo. Ele devia estar entediado. Depois que fui para a cama, escutei os sons lá de fora. Imaginei as árvores saindo da terra e passeando pela noite, grandes, mas ainda assim graciosas sob a luz da lua. Imaginei os seus membros como dançarinos, da sua música delicada e sussurrada, e adormeci. No meio da manhã do dia seguinte, sábado, a Sra. Monroe deu uma passada para deixar meu uniforme e uma caixa redonda: — Estes são os chapéus da escola. Tem um de palha para os dias ensolarados, um de lã para o inverno e um boné para esportes. A esposa do nosso fundador acreditava que uma senhorita deveria sempre proteger sua cútis e a ciência tem mostrado que isso é uma excelente política. Eu, de repente, imaginei a Sra. Monroe tentando fazer Jack usar uma roupa de marinheiro, e sorri:
92 — Obrigada, senhora. Por tudo. — De nada, Jane. Eu vejo você no cadastramento na segunda-feira às 8h30. Estudantes devem usar seus blazeres e saias no primeiro dia de aula. — Eu sabia que deveria ter perguntado antes, mas não tenho um computador e não percebi nenhum computador no laboratório da escola. Eles estão em algum lugar na biblioteca? — Muitos alunos já sabem e eu deveria ter mencionado que nós não usamos computadores para trabalhos escolares aqui — ela disse. — Parece bem retrógrado nessa época, mas estudos mostram que o uso de livros para pesquisa e o processo de escrever a mão reforçam o aprendizado e encoraja a análise. — Nunca ouvi nada a respeito — eu disse. — Mas faculdades querem estudantes que sabem usar o computador. Ela sorriu: — Eles preferem estudantes que saibam pensar e pesquisar da fonte original. Você pode usar os computadores da biblioteca da cidade, contanto que não os use para os trabalhos escolares. — Tudo bem; farei isso. Quero dizer oi para os meus antigos amigos. — É bom para você manter contato, mas tenha o cuidado de não se prender a velhos conhecidos ao invés de fazer novos amigos aqui em Birch Grove — ela disse. — Bom, estou indo. Vejo você amanhã, Jane. Depois que almocei, peguei a sacola com as roupas novas e andei pela beirada do campus e saí pelo estacionamento em direção à cidade. A
93 neblina tinha diminuído enquanto eu descia a colina. Quando me virei para olhar Birch Grove, estava esbranquiçada num leve acinzentado. A biblioteca estava fora da rua principal, e apenas algumas pessoas sentavam nas cadeiras acolchoadas da área de leitura. Eu preenchi um cadastro para o cartão da biblioteca e ganhei um com uma etiqueta que dizia Academia Birch Grove. Então eu fui para as baias dos computadores e fiz o login com a minha antiga conta do Colégio City Central. Pensei que teria mensagens dos meus antigos colegas de quarto na Sra. Richards, mas ninguém havia escrito nada para mim. Mandei uma mensagem para uns dos meus colegas de quarto dizendo para ela que eu estava bem e estava feliz no meu novo lugar. Lily e os outros Alfas me escreveram desejando boa sorte. Eu escrevi de volta e disse a eles sobre a louca regra de não ter computador, os uniformes, e o manual cheio de regras. Eu queria contar para eles sobre a linda escola, o lindo Lucky, meu incrível chalé e o estranho Jack, mas eu não queria soar tão animada sobre Birch Grove, já que eles ainda estavam presos na City Central. Enquanto me desconectava, senti uma angústia; eu sabia que eles se esqueceriam de mim. Pesquisei toda a seção de não ficção da biblioteca e uma hora depois eu tinha uma pilha de livros para a escola, incluindo um guia de ensino de química. Imaginei estar sentada ao lado do Lucky, o livro aberto na nossa frente, e como ele aprenderia a me ver como algo mais do que somente uma garota tímida. Sim, certo. Pelo menos eu poderia olhar para ele.
94 Eu também fiz uma pesquisa na internet sobre a teoria da Sra. Monroe sobre escrever a mão e eu descobri que ela estava certa: a pesquisa tinha mostrado uma correlação entre aprender e o processo da escrita. Alguns professores da City Central faziam-nos escrever a mão, mas somente aqueles alunos que haviam se tornado tão óbvios sobre seu plágio, a ponto do recortar e colar deles ficar tão claro. Minha próxima parada foi a loja feminina de roupas. Tentei parecer confiante e casual enquanto eu andava para a caixa registradora com a minha sacola: — Oi, eu gostaria de devolver estas coisas — eu disse para a atendente vestida numa blusa azul claro e uma saia. Peguei as roupas da sacola e ela disse: — Certamente. Você tem o recibo? — Não, as roupas foram um presente. Eu gostaria de um reembolso. — Nós podemos te dar crédito na loja — ela disse — mas não podemos fazer reembolso sem um recibo. — Eu as ganhei dois dias atrás — eu disse, desejando ser igual àquelas garotas que conseguiam qualquer coisa na conversa, e tentei sorrir. — Olá, jovenzinha — alguém disse. A atendente e eu nos viramos para olhar a velha atendente que trabalhava na seção de lingerie. — Oi — eu disse.
95 Ela me olhou de cima a baixo: — Boas roupas fazem uma bela diferença. Como está você? — Estou tentando devolver algumas coisas que eu não preciso. A mulher no balcão disse a ela: — Vocês se conhecem? — Sim, a Sra. Monroe a trouxe para fazer compras no outro dia. Ela é uma estudante nova de Birch Grove. — Neste caso, acho que podemos fazer uma exceção sobre a política de reembolso — disse a atendente de azul. Agora que eu tinha dinheiro no bolso, parei num salão de beleza chique perto de uma butique. Espelhos refletiam as vitrines brilhantes de vidro, e um cheiro sutil de flores flutuava pelo ar. Fui para o balcão com fileiras de produtos para os olhos, sombras em um caleidoscópio de cores, prateleiras de lápis de pontas finas a grossas... Peguei um tubo de rímel e virei para ver o preço que estava numa pequena etiqueta. Custava mais do que minhas sacolas de comida. Uma bonita atendente veio: — Posso te ajudar a encontrar alguma coisa? — Não obrigada. Só estou olhando — eu disse, olhando para um lápis de olhos que custava ainda mais. — Obrigada. Andei em direção à parada de ônibus, sentindo o conforto das notas dobradas e as moedas no meu bolso. Quando eu vi o ônibus saindo da
96 parada, corri com minha sacola pesada de livros batendo atrás em mim, mas o ônibus foi embora. Eu li o guia de ensino de química enquanto esperava pelo próximo ônibus. Eu estava pensando no Lucky e no dinheiro, no dinheiro e no Lucky, quando percebi que um carro havia parado na minha frente e alguém chamou: — Hei! Hei! Era a garota do mercado. Ela estava se debruçando pelo banco da frente do seu velho Nissan preto para que pudesse gritar pelo vidro do lado do passageiro. — Oi — eu disse. — Onde você está indo? — De volta para a Birch Grove. Acabei de perder o ônibus. — Vai demorar outra hora porque ainda estamos no horário de verão. Eu te darei uma carona. Entre. — Obrigada — e entrei no carro, que tinha uma coberta felpuda para o banco rosa e cheirava como geléia de morango. — Eu sou a Jane. — Oi Jane. Meus amigos me chamam de Ornery, mas meu nome real é Orneta — Como você prefere ser chamada? — perguntei. Havia algo muito tranquilo sobre ela, então eu me senti mais relaxada do que eu tinha estado em semanas.
97 — Me chame de Orneta na loja e Ornery quando não estamos lá. Estou tendo aula de enfermagem no CC. — Isso é perto? — É uns vinte minutos de distância — ela disse que vivia em um apartamento com duas colegas de quarto e perguntou de onde eu era. Quando eu contei a ela e mencionei a City Central ela deixou sair um assobio. — Aquele lugar tem uma reputação terrível — ela disse. — Namorei com um cara que estudava lá e ele me contou histórias malucas. — Elas são verdadeiras — afirmei. — Claro, meu colegial em Aurora - eu sou de Illinois - era desse jeito também. — Você gosta de Greenwood? — Chica, esta cidade me dá arrepios, mas eu tenho um bom salário e acabei de ganhar um aumento. Mas as pessoas são tão — não somos tão especiais? Ela deu de ombros dramaticamente, e eu ri e ela disse: — É bonita de fato. Eu não sabia que existiam lugares assim. — Comparada com a periferia, claro. Mas todos aqui estão metidos nas coisas dos outros e tudo é tão frio. Greenwood é como estar em um túnel do tempo. — Há alguma loja que tem coisas mais em conta? — perguntei.
98 — Nem, toda a cidade é cara. Pessoas ricas não ligam para os preços — ela respondeu. — A escola não te deixa um pouco cabreira? — Você quer dizer por que vai ser bem difícil? Sim, estou um pouco preocupada sobre isso. — Não, se eles te trouxeram aqui é porque você é um crânio. Eu quis dizer os prédios antigos e as árvores. Você sabe do que eles chamam Birch Grove? Bitch Grave, ou Cova das Vadias. — Alguma razão para isso? — As pessoas dizem que o lugar é assombrado. O que é totalmente idiota, eu sei. É difícil não odiar os ricos. — Escolas ruins têm apelidos também. A minha última, City Central, era chamada de Preparatório Penitenciário, sem explicações necessárias. — Essa é boa! Em Bitch Grave, havia uma mulher que morreu há uns dois anos atrás. Tem problema se eu te deixar no portão? — Claro. Quem morreu? — Uma professora ou uma conselheira? — Orneta disse. — Ela pulou do prédio principal. Vejo você por aí. — Até mais. Obrigada pela carona. Apesar de eu saber que as pessoas ricas também cometem suicídio, eu simplesmente não podia compreender porque eles não podiam usar seu dinheiro para sair da tristeza ou eliminar a causa dela.
99 Logo que eu cheguei ao meu chalé, tranquei a porta e olhei em volta do lugar para esconder o dinheiro que tinha conseguido pelas roupas. Eu me senti idiota escondendo o dinheiro em minha própria casa, mas eu me sentiria ainda mais idiota se eu deixasse jogado por aí. O coloquei no envelope e deslizei por um pequeno espaço entre a lavadora/secadora, e então o cobri com uma gaze da secadora. Naquela tarde, li o manual do aluno inteiro, incluindo todas as estranhas regras sobre computadores e celulares, que não poderia ser usado durante dia de aula. Havia uma lista inteira sobre redes sociais e fotos online. Quando a noite veio, eu me encontrei esperando que Jack viesse me visitar novamente, talvez na companhia do seu irmão. Ele não veio claro. Esquentei as sobras de pizzas e comi na frente da televisão. Naquela noite, sonhei que eu estava fugindo de algum lugar próximo ao anfiteatro. Tentei gritar, mas nenhum som saiu da minha boca. De repente, os galhos de uma bétula se abaixaram e se firmaram fortemente em mim, puxando-me do chão para longe do perigo. O vento soprou e as árvores falaram em uma voz suave e sussurrada: Jane, Jane, você pertence a
nós! Eu acordei revirada nos lençóis, minha pele estava molhada com suor e eu não consegui dormir pelo resto da noite. A exaustão se juntou à minha ansiedade sobre começar a escola e o domingo não acabava nunca. De vez em quando eu ia lá fora e olhava para
100 cima da colina em direção a mansão dos Monroe. Tentei encher o meu dia com livros e televisão, mas eu não estava acostumada a ficar sozinha. Na segunda-feira de manhã, eu estava tão nervosa que eu não pude comer o café da manhã. Meu uniforme sentia desconfortavelmente confortável. — Uso discreto de maquiagem— era permitido em Birch Grove e eu iria ver o que as outras garotas usavam antes de gastar meu dinheiro com maquiagem. Às 8h15, andei devagar pelo bosque. O suave sussurro do bosque acalmava meus nervos. Fiz minha caminhada pela escola. Uma fila de carros caros deixava as meninas e o silêncio anterior da escola foi trocado pelas conversas animadas. Não vi nenhum piercing escandaloso, cortes de cabelo selvagens, brincos gigantes ou barrigas à mostra. — Maquiagem discreta— parecia ser rímel e gloss, apesar de que algumas garotas usam mais e outras não usavam nada. A maior parte dos cabelos estava solto, mas havia alguns rabos de cavalo, cabelos curtos e tranças. As alunas falavam entusiasmadamente, mas elas não se retorciam e gritavam. Os uniformes faziam todos se misturarem, uma horda de garotas de blusas azul movendo-se juntas para a entrada da escola. Eu as segui para o prédio e para o ginásio, que estava arrumado com mesas ao redor do perímetro. Eu fiquei na fila da mesa dos W-X-Y-Z. Cheguei na frente e estava prestes a dar meu nome quando uma mulher disse com um sorriso: — Você é a Jane Williams, certo? Bom dia, Jane!
101 Eu fiquei instantaneamente desconfiada: — Como você sabe meu nome? — Nós estudamos todos os arquivos das novas garotas e as fotos para que possamos fazê-las se sentir em casa. Eu não me senti em casa. Eu me senti exposta. A etiqueta com o nome da mulher dizia Sra. Danielson, Mãe
Voluntária. Ela mexeu por uma caixa de arquivos e puxou uma pasta lustrosa com o símbolo da escola na capa e um adesivo com meu nome. — Williams, Jane. Estas são as suas aulas para o primeiro período e aqui o horário de hoje e um mapa. Depois que você se matricular para uma atividade extracurricular, você poderá tirar a foto para o cartão do estudante — ela disse. — Temos um café da manhã na cafeteria e a diretora vai fazer o discurso de boas vindas no auditório. Bem, está tudo aqui se você esquecer. — Obrigada, senhora. — De nada, querida. Próxima! Encontrei um espaço vazio contra uma parede e me encostei lá para ler o conteúdo da minha pasta. No meu horário estava listada Química Avançada, Trigonometria, Literatura Clássica Ocidental, Latim IV e Cultura Ocidental e Civilização. Também havia algo chamado Bloco Z que eu poderia preencher com uma variedade de cursos. Chequei os cursos opcionais e eliminei aqueles que não funcionariam para mim. Eu não tinha uma câmera para fotografia, não poderia atuar em
102 drama, não tocava nenhum instrumento para a banda, e nunca aprendi a desenhar bem para arte. Decidi fazer Escrita Expositora para que eu pudesse praticar para o vestibular. Encaminhei-me pela multidão para a mesa de inscrições. Um quadro mostrava o jornal da escola, o Semanal de Birch Grove, e as fotos bregas dos estudantes ocupados na sala de aula. — Olá, Joan, certo? — disse uma professora na mesa. Ela era quase tão pequena quanto eu, vestida com um jaleco largo preto, uma saia azul de algodão e uma echarpe brilhante turquesa. Ela usava um tom forte de batom rubi. — Jane Williams senhora. Ela riu: — Sou a pior para tentar lembrar o nome das novas alunas. Sou a Sra. Chu, professora de jornalismo. Você está interessada no nosso jornal? — Eu pensei que isso era escrita exploratória. — Sim, isso é o que jornalismo é: escrita exploratória. Ficaríamos felizes de ter você na equipe. Você já trabalhou em algum jornal antes? Eu mal havia lido um: — Não senhora. — Então você vai se divertir — ela disse, mostrando um sorriso que não me convenceu. — Nossas garotas são um verdadeiro time aqui — a Sra. Chu me entregou uma caneta e uma prancheta.
103 Eu peguei sem assinar. — Talvez exista outra aula que me ajude com o vestibular. — Há as aulas de escrita criativa, mas você parece interessada em algo mais prático — ela disse. — Quais são seus planos de carreira? — Eu gostaria de fazer ciência forense. — Sério? — a Sra. Chu sorriu e pareceu interessada. — Que área de ciência forense? Você está interessada em ser uma perita médica? Isto pode ser nojento, não desencorajando você, mas eu não consigo lidar com coisas nojentas. — Não, eu estou pensando em ser um analista de laboratório. Seria somente pesquisas no laboratório, mas eu teria que escrever relatórios também. — Jornalismo e ciência forense possuem coisas em comum. Você tem que ser objetiva e precisa aos fatos apresentados — ela disse. — Reportagem tem prazos mais apertados, mas é excitante colocar o papel pra dormir! É assim que chamamos quando alcançamos nosso prazo e vamos para a impressão. Eu não via como teria algo para escrever sobre em Birch Grove. A Sra. Chu parecia simpática o bastante e nenhuma das outras opções me interessavam, então assinei a lista. — Vejo você logo, Jane! — Tchau, Sra. Chu.
104 Depois eu precisava tirar minha foto para o cartão do estudante. Pisquei quando a câmera disparou e o fotógrafo disse: — Vamos tirar outra. De fato, todos pareciam simpáticos demais. Eu não conseguia perceber se eram boas maneiras ou se as pessoas estavam felizes porque não tinham nada para se estressar. Eu tinha quase meia hora até o discurso de boas vindas. Fui ao banheiro para atrasar o meu encontro com as outras alunas. Depois de lavar minhas mãos por um longo tempo e alisar meu cabelo, forcei-me ir à cafeteria para o café da manhã.
105
Capítulo Cinco
―Espera-se que os estudantes se comportem de maneira que honre os padrões de Birch Grove: tratar seus colegas com bondade e compreensão e oferecer apoio.‖ Manual da Aluna Birch Grove
A cafeteria estava totalmente diferente do caos alastrado e degradado da cafeteria da City Central. Era bem menor e as mesas eram arranjadas em grupos. De um lado tinha um lounge com tapetes, plantas em vasos e sofás. Entre as fotos antigas em preto e branco, estavam os pôsteres feitos pelos alunos exaltando excelência, honra e dever. As garotas se misturavam em grupos e senti seus olhos em mim. Quase desejei que uns dos adultos tivessem designado um assento para mim. As mesas com comida e bebida estavam montadas ao longo do corredor. Na outra mesa estavam copos de verdade, pratos de verdade e jarras de suco. Peguei um prato de salada de fruta e um copo de suco. — Oi, Jane. Virei-me e vi uma menina morena rindo para mim. Ela era aquela garota que estava na farmácia usando uma saia longa. O seu cabelo castanho brilhoso estava preso num rabo de cavalo liso e
106 pequenas pérolas brilhavam nos lóbulos de suas orelhas. Seus lindos olhos cor de mel estavam enfeitados com cílios longos e escuros. — Olá — eu disse. — Nós nos conhecemos quando você estava na cidade com a Sra. Monroe. Eu sou a Hattie, Harriet Tyler — disse com um sorriso; ela era muito mais alta que eu, e mais magra, mas com curvas. — Eu estou no terceiro ano também e a Sra. Monroe pediu para eu te mostrar a escola. Venha conhecer a galera. Eu a segui relutantemente para a área do lounge, onde as garotas mais velhas estavam juntas. Hattie me apresentou para um círculo de meninas, que foram vagamente educadas. A única que parecia curiosa era uma linda e rechonchuda garota chamada Mary Violet, que perguntou: — Você está morando no chalé do jardineiro? — O cabelo dela era uma nuvem de cachos loiro platinado que pareciam impressionantes em contraste com sua pele bronzeada. — Eu me mudei semana passada. — Deve ser fabuloso morar sozinha — ela disse, virando seus olhos azuis na direção do teto. — Se eu morasse sozinha, teria muitos casos apaixonados com homens maduros! As outras meninas riram e alguém disse: — Você teria um caminho curto.
107 — Sim! Eu levantaria dos meus lençóis de seda luxuosos depois de uma noite de coito indomado, daria adeus ao meu amante e então correria sem fôlego para a aula enquanto o sinal do primeiro horário tocava. Meu cabelo estaria lindamente penteado — Mary Violet moveu seu braço, deixando seu suco bem na beirada do seu copo. — Você quer dizer que seria um desastre e não teria o senso de tomar um banho — disse uma garota magra com pele cor de café e óculos enormes que magnificavam seus olhos em formato de amêndoas. Sua voz tinha um sotaque bonitinho e eu imaginei de onde ela seria. — Meu cabelo seria sexy e por que eu precisaria de um banho? — Mary Violet perguntou inocentemente. — Bebe disse que acordava apenas dez minutos antes de vir para aula e dificilmente ela estava um desastre. Bem, tirando aquela vez... O grupo de repente ficou quieto e Hattie lançou um olhar às amigas. — Nós não precisamos fofocar sobre ela. Mary Violet fez birra: — Por que eu não posso falar da Bebe? Foi ela que nos abandonou depois de prometer que todas nós nos formaríamos juntas e iríamos para a faculdade juntas. — Nós não queremos que a Jane se sinta como uma substituta — Hattie disse com um calmo sorriso, e então virou para mim. — Bebe também era uma aluna com bolsa de estudos aqui. Ela mudou para o exterior no final do ano passado.
108 Então eu fui trazida aqui como substituta de uma outra menina do 2º ano. — E ela nunca escreveu para nenhuma de nós, nem mesmo eu! — Mary Violet disse. — Isso é totalmente rude. Todas as nossas festas do pijama e reuniões não significaram nada, nada, nada para ela. Ela se foi por completo e nunca mais quero falar com ela! — Pare de ser tão egoísta — Hattie disse. — Bebe está muito ocupada. A Sra. Monroe disse que ela mandou notícias duas vezes nesse verão e que realmente sente a nossa falta. Mary Violet fez uma careta: — De onde o tio misterioso dela veio afinal de contas? Ela disse que não tinha nenhum parente. Eu queria sair do tópico desconfortável sobre família, mas um grupo de garotas rindo no corredor bloqueou o meu caminho. A garota magra, cujo nome era Constance, disse: — Todo mundo tem parentes, Mary Violet. Nós não aparecemos do nada. Você poderia saber disso se prestasse atenção às aulas de biologia. Isso foi o bastante para divergir a atenção das meninas em direção aos hábitos escolares da Mary Violet. Hattie lembrou-se que eu estava: — Como está o seu horário de aulas? — Está bom, exceto que era para eu estar em Química Avançada, mas aqui diz Química Especializada.
109 — É tudo igual, mas Birch Grove não oferece aulas que são decoreba — Hattie respondeu. — Química Especializada tem mais profundidade e au... — Aulas excepcionais para meninas excepcionais! — as outras disseram juntas e riram. Mary Violet olhou para mim: — A piada é que nós rimos como se não acreditássemos, mas nós acreditamos totalmente. — Bem, você é excepcional — Constance disse. — Excepcionalmente absurda. — Você é excepcionalmente sem graça — Mary Violet retorquiu mostrou a língua. Tentei me afastar enquanto as meninas provocavam uma à outra, mas Hattie me manteve na conversa fazendo comentários comigo. Fiquei com o grupo dela enquanto saíamos da cafeteria e íamos para o auditório para o discurso de boas vindas. — Segundo-anista tem o privilégio de ficar no terraço — Hattie me contou e nós subimos as escadas e fomos para a primeira fila do terraço. — Você pode ver tudo daqui de cima — Mary Violet disse. — Estou tão feliz que não sou uma mera caloura. É trágico como não podemos fazer trotes com eles e fazê-los rastejar como vermes.
110 — Mary Violet, você é a garota mais apavorante que eu já conheci — Constance disse enquanto puxava os óculos para cima do seu estreito nariz e a beirada da sua boca subia enquanto ela tentava não rir. — Eu nunca posso falar nada? — Mary Violet respondeu malhumorada. — E a liberdade de expressão? Hattie balançou sua cabeça: — A Sra. Monroe sempre diz — Liberdade de expressão não é liberdade do bom senso. Mary Violet parecia estar decidindo ainda o que responder quando o sinal soou e o auditório ficou em silêncio. A Sra. Monroe caminhou em direção à frente das cortinas azuis de veludo em direção ao centro do palco: — Bom dia, senhoritas. Em uníssono as alunas responderam: — Bom dia, Sra. Monroe. — Levantem-se para o Compromisso de Obediência. Depois de recitarmos o compromisso, a Sra. Monroe falou: — A Sra. Cavenaugh conduzirá o hino da escola. A diretora ficou de lado e uma senhora mais velha num terninho xadrez cinza veio de uma das alas e ficou no centro do palco. Ela soprou um pequeno apito redondo e então começou a conduzir as alunas na canção:
111 — As árvores de Birch Grove Sempre nos protegerão Na tristeza e no julgamento Elas nos apoiarão e nos cobrirão Na vitória e esperança Os seus galhos dançam em regozijo
Nos deixe ser como a bétula Dobradas no vento, mas não quebradas Nossos corações verdadeiros à nossa feminilidade Por tudo que você nos ensinou Por viver na verdade Por agir para o bem Saudações, Birch Grove saudações!—
Enquanto as vozes se erguiam em uníssono, eu senti um arrepio na espinha. Assim era como eu queria ser: no vento dobrar, viver para a verdade, agir para o bem.
112 — Obrigada, Sra. Cavenaugh — disse a Sra. Monroe. — Quando olho para todas vocês, eu me sinto honrada de ser a diretora dessa excepcional escola e de todas vocês, meninas excepcionais. Ela pausou para deixar todos absorverem o elogio. — Eu sei que vocês voltaram a Birch Grove descansadas, revigoradas e prontas para conhecerem os desafios acadêmicos e sociais desse ano... se alguém conseguir deixar o verão para trás — houve uma onde de risadas. — Mas a educação não são férias, e nem deveria ser um sacrifício. Este ano será inspirador e esclarecedor. Também será intelectualmente exigente e algumas vezes emocionalmente árduo. Entretanto, seus professores, conselheiros e eu sempre estaremos de portas abertas a vocês. Nós estamos interessados no que vocês têm a dizer, e nós estamos aqui para ajudá-las sempre no que precisarem. Espero que vocês cheguem todos os dias ansiosas para aprender e compartilhar, para crescer, para se tornarem o melhor que vocês puderem. Nós somos dedicados a alimentar o seu crescimento moral e espiritual, também, para que vocês possam sair para o mundo como seres humanos responsáveis e completos. Ela esperou por vários segundos e então começou a falar em uma voz baixa que crescia com cada frase: — Porque eu acredito na inteligência, talento e bondade de vocês. Eu
acredito que vocês são excepcionais. Eu acredito em vocês. Em troca, eu peço para que vocês acreditem em si mesmo. Acreditem na bondade. Acreditem em Birch Grove.
113 Ela acenou com a cabeça e as estudantes começaram a bater palmas e eu estava batendo palmas também, e quando elas se levantaram e aplaudiram mais alto, eu aplaudi mais alto também. Era como se alguém tivesse descoberto minhas - há muito tempo enterradas - chamas da esperança, e, ao invés de serem cinza e frias, elas brilhavam vivas mais uma vez. Quando fomos dispensadas, todos pareciam energizados: — Ela é incrível — eu disse para a Hattie. — Eu sei. Ela sempre me faz sentir como se eu pudesse fazer qualquer coisa. — Ela tem jê ne sais quoi — Mary Violet observou e virou para mim — Isso é francês para ‗não tenho a mínima idéia.‘ Francês é a língua do amore, que é uma palavra italiana. Que é outra língua do amor. Que língua você está aprendendo agora? — Terceiro ano de latim. Ajuda com os termos científicos. —Você quer ser médica? — Hattie perguntou. —Estou interessada em ciência forense. Mary Violet acenou: — Bom. Eu posso te procurar quando eu precisar dos detalhes para os meus suspenses de assassinatos. Constance disse: — Mary Violet clama que será uma escritora.
114 — Por que você acha tão difícil de acreditar? — Mary Violet perguntou. — Porque você é a mulher mais fresca que existe e eu não posso imaginar como você possa planejar e escrever histórias de terror — Constance respondeu. — É por isso que é chamada de escrita criativa, porque você pode inventar tudo. Vamos almoçar. Elas começaram a andar para o estacionamento e eu retornei para o meu chalé. Hattie voltou, prendeu seu braço no meu: — Você tem que vir conosco. Por nossa conta, como uma — boa vinda a Birch Grove. — Você não tem que ser minha babá. — Não estou sendo. É só que... — ela deu de ombros — é difícil mudar de escola e descobrir as coisas sozinha. Eu gostaria que alguém me ajudasse. — Tudo bem — eu disse, pensando que gostaria de descobrir mais sobre as outras alunas. — Enquanto eu andava com Hattie para uma BMW vermelha brilhosa, uma garota alta, deslumbrante, com longos cabelos enrolados loiro-mel cruzou o estacionamento na nossa frente. Ela viu o nosso grupo: — Oi, pequeninas chatas do segundo ano.. — Oi, Catalina — o grupo de Hattie respondeu. — Os olhos âmbar de Catalina pararam em mim: — Você é nova. Quem é você?
115 — Jane Williams. Fui transferida para cá. — Ela está vivendo no chalé do jardineiro — Mary Violet disse. Catalina franziu as sobrancelhas: — O que aconteceu com o projeto especial da Sra. Monroe? — Se você quer dizer a Bebe, ela foi para a Europa — Hattie disse e abriu a porta do carro. Vejo você depois, Cat. — FCVD (Falo com Você Depois). A garota alta disse e foi embora balançando os quadris. — Quando todas entraram no carro, perguntei: — Quem é ela? — Catalina Sachs-Monts, a princesa Argentina. Não que ela seja uma princesa de verdade. Ela só age como uma. Ela fala cinco línguas, incluindo russo. A irmãzinha dela, Adriana, está começando neste ano. Ela é muito mais legal, e teve aula depois de mim na Escola de Croquete da Srta. Harlot — Mary Violet respondeu à minha pergunta. — Mary Violet quis dizer a Escola de Balé da Srta. Charlotte — Constance disse. —Foi onde nós nos conhecemos quando eu tinha seis anos e me mudei de Greenwood para Barbados. MV era uma coisa rechonchuda num tutu rosa enquanto todas usavam collants. — Eu sempre tive um senso de estilo fabuloso — Mary Violet disse. Hattie ligou o carro e manobrou por entre os estudantes em direção à rua:
116 — Por que nós sempre estamos falando de você, Mary Violet? — ela disse. — Jane, a Catalina é veterana e ela é muito... muito Catalina. Não deixe ela te atingir. — Ela é um daqueles estrangeiros que acham que os americanos são gauche, o que é francês para ‗ah-meu-deus-que-brega‘ — Mary Violet disse. Diferentemente da Constance, que acha que os americanos são bobos. — Não todos os americanos, só você — Constance disse. A hostilidade da Catalina parecia bem mais normal do que a simpatia das minhas companhias, que não estavam vendo se havia policiais enquanto Hattie dirigia para fora do campus. — Pensei que você deveria ter dezoito anos para dirigir com outros menores — eu disse. — Ah, ninguém presta atenção a isto aqui, — Hattie respondeu. — É uma cidade tão pequena que todo mundo conhece todo mundo. Mary Violet disse: — Meus avós deixaram minha mãe dirigir quando ela tinha quatorze anos. Ela era uma excelente motorista e raramente se envolvia em acidentes. Ela atropelou um guaxinim uma vez. Nós conseguimos fazê-la chorar sobre isso quando servirmos a ela uma segunda dose de Dubonnet e perguntamos sobre as patinhas peludas e o focinho com bigodinhos fofos. Tentei me lembrar de dubonnay para que eu pudesse procurar o que era depois. — Vocês não fazem isso — Constance disse.
117 — Claro que fazemos! Meu pai é o pior! Ele sempre fala sobre o guaxinim de coração partido pela morte de sua esposa guaxinim. Algumas vezes ele recita o poema, Réquiem por um Marsupial. Mary Violet esticou os braços o máximo que pôde dentro do carro e entoou: — Ó, uma vez você dava cambalhotas felizmente na floresta Vivendo, amando, juntando comida... — Constance disse: — Comida não rima com floresta — mas nós estávamos todas rindo. Mary Violet continuou: — Você cruza a estrada para explorar ao longe, Quando você é atropelado por um carro descuidado! Olha lá, pobre guaxinim, você deu o último suspiro, Uma garota de Birch Grove te esmagou até a morte! — Ela inclinou a cabeça. — Brilhante como sempre, MV — Hattie disse. Para mim ela falou: — Contanto que você esteja de uniforme ou deixe as pessoas saberem que você frequenta Birch Grove, eles não ligam. Se maiores problemas surgirem, a Sra. Monroe pode cuidar deles. É mais fácil para todos desse jeito.
118 Hattie nos levou para um pequeno Café chamado The Tea Stop (A Parada do Chá), mas as meninas o chamavam de The Free Pop (O Refri Grátis) e uma delas explicou que as meninas de Birch Grove sempre ganham um refrigerante junto com a alimentação. Quando peguei um dos menus laminados, Hattie disse: — Eles na verdade não servem nada desse menu. Você tem que pedir o que está no quadro. O favorito é o sanduíche de siri torrado no pão branco e salada verde. — Eu sempre pego a vasilha de sopa — Mary Violet disse. — A salada fica presa nos dentes. Constance disse: — Sopa cai nos seus peitos. — Pelo menos eu tenho peitos — Mary Violet retrucou. — Ou você é um. Eu preferia escutar a conversa delas, mas as meninas me perguntaram sobre a minha antiga escola e meu passado. Os olhos de Mary Violet se arregalaram quando eu contei que minha mãe tinha morrido e o paradeiro do meu pai era desconhecido: — Que trágico! Você poderia contratar um detetive para achá-lo. Pense em como ele ficaria animado em descobrir que você frequenta uma escola de elite. Você é o creme de la creme. Isso é francês para ‗o melhor dos melhores‘.
119 — Eu não sei nada sobre ele — eu disse desconfortavelmente. — Jane está indo muito bem sozinha e nós somos a família dela. Ela não será capaz de se livrar da gente! — falou Hattie. — Hattie — eu disse — Está tudo bem. Você não tem obrigação de me incluir nas coisas. — Sim, nós temos — Mary Violet se intrometeu. — A Sra. Monroe nos pediu e eu quero que ela me dê uma carta de recomendação para a faculdade. Ela somente escreve alguns por ano. — Mary Violet — Hattie disse com um olhar ameaçador. — O quê? — A garota loira respondeu com um olhar obstinado à Hattie, e, então, olhou para mim. — O que você não sabe é que nós estamos tão de saco cheio uma da outra em Greenwood que nós estamos emocionadas de conhecer alguém do mundo exterior. — Eu posso não ser tão excitante quanto você pensa. — Eu não estou fazendo isso pela carta de recomendação — Constance disse. — Bem, você gosta de todo o mundo — Mary Violet disse criticamente. — Vamos fazer uma festa do pijama no chalé do jardineiro! Nós podemos ver filmes e contar histórias de fantasmas! Hattie balançou a cabeça para a Mary Violet e olhou para mim: — Eu não estou fazendo pela carta também.
120 — Porque você já sabe que vai ganhar uma, favorita da diretora — Mary Violet se intrometeu. — E o que tem isso? — Hattie disse. — Então, Jane, nós estamos felizes de te mostrar o lugar e se nós nos dermos bem, maravilha. Se não, está tudo bem também. Combinado? Eu dei de ombros: — Combinado. Hattie sorriu: — Você conheceu a família da Sra. Monroe já? — Eu jantei na casa deles. Eles foram muito legais. — Especialmente um deles — Mary Violet disse e beliscou o braço da Hattie. — O seu amaaaante! Hattie rolou seus olhos: — Nós só saímos algumas vezes. Eu não tinha razão de me sentir desapontada. Claro, Lucky já teria uma namorada e a namorada seria alguém como a Hattie. — Lucky parece ser um cara legal — eu disse. — Não o Lucky — Hattie respondeu — O irmão dele, o Jacob. — Jack? Sério? — Ele é muito inteligente e esperto — Hattie disse — E maduro.
121 — Por que você acha que ele não foi para a faculdade? — Mary Violet perguntou. — Ele está psicoticamente em luxúria pela Hattie. Há algo terrivelmente intrigante sobre ele, como se ele fosse sexualmente depravado ou algo assim. Constance suspirou: — Mary Violet, se nós abrirmos o seu crânio, tenho um pressentimento que nós todas encontraríamos somente produtos para cabelos e filmes de menina. — E lingeries de seda e trufas de chocolate! — Mary Violet disse e riu. Constance me perguntou: — O que você acha sobre a nossa política de não tecnologia? — É interessante — eu disse. Ela sorriu: — Interessante como totalmente louco e antiquado, certo? — Ela alcançou a bolsa e tirou dela um celular azul prateado. — Vamos todas nos conectar. Qual é o seu número? — Eu só tenho o telefone do chalé. — Ah, esse nós já temos — Mary Violet disse. — É o telefone antigo da Bebe. Ela não tinha um telefone de verdade também. A Sra. Monroe é totalmente contra anti DSM e nós temos que participar todo ano de uma assembleia sobre como eles estão destruindo a civilização e como é mais importante viver a vida do que mandar SMS, blá, blá, blá.
122 — Você quer dizer DSTs?? — eu perguntei. — DSM são dispositivos de status da moda — Hattie disse. — ASM são acessórios de status da moda. — Eu gosto de rótulos, porque eles te contam se você é algo bom ou não — Mary Violet disse. — O que eu quero é um NSM. Constance e Hattie pareciam confusas por uns segundos e então disseram juntas, — Namorado de Status da Moda? — Sim! Eu estou fazendo a lista dos candidatos começando com os A‘s de Ashton. — Eu adoraria ouvi-los, mas eu tenho que ir para casa — Hattie disse. Quando olhei para o relógio em formato de chaleira na parede eu estava surpresa de ver que duas horas haviam se passado. Hattie nos levou de volta para o estacionamento de Birch Grove e as meninas gritaram seus tchaus. Enquanto eu caminhava de volta para o chalé, pensei em como os ricos esperavam e recebiam tratamento especial com a mesma atitude blasé com que os garotos da City Central esperavam e recebiam violência e miséria.
123
Capítulo Seis
―Nosso currículo é avaliado todo ano de acordo com a filosofia da escola, as necessidades das alunas, o estado atual de exigências da educação e as exigências das faculdades e universidades.‖ Manual da Aluna Birch Grove
No primeiro dia de aulas em Birch Grove, eu me juntei às outras alunas enchendo os corredores e encontrei o meu armário. Como eu era do segundo ano, consegui a fileira de cima. Girei a combinação, abri meu armário de metal muito limpo na cor verde e coloquei meus livros dentro dele. Coloquei um foto dos Alfas e o meu horário de aula do lado de dentro da porta do armário. O primeiro sinal tocou. Armários foram sendo fechados e eu me encaminhei para o meu primeiro dia de aula, que era aula de planejamento. Eu estava feliz em ver Hattie sentada na sala. Ela acenou para mim e sentei na cadeira ao lado dela. Um homem com cabelo curto e grisalho usando óculos estava bem na frente da sala e olhava os papéis na larga mesa de carvalho. No quadro negro ele havia escrito ―Sr. Albert Mason‖. Ele também era o meu professor de química. Quando o sinal tocou às 8h30, ele disse:
124 — Bom dia, classe. Eu sou o Sr. Mason, seu professor de planejamento. Ele tinha uma voz agradável e um sorriso largo. Vestia uma jaqueta azul marinho, com uma camiseta branca, uma gravata marinheiro e marrom e calças cáquis. Ele era todo magro, exceto por uma barriguinha. Mesmo não sendo nem um pouco bonito, havia algo muito agradável sobre sua expressão inteligente: — Vamos passar por todos e ver se está todo mundo aqui — ele leu os nomes em ordem crescente e quando chegou em ―Jane Williams‖ ele olhou para mim e sorriu. — Aqui — eu disse. — Você é a nossa nova aluna transferida. É bom ter você em Birch Grove, Jane, e eu estou feliz em ter você em química especializada. — Obrigada, senhor. Enquanto ele terminava a lista de chamada, olhei pela janela, para o infinito verde. Nada disso parecia real. O Sr. Mason pegou uma folha de papel: — Vamos para os anúncios — e leu a lista de avisos e prazos para vários formulários. Peguei as apostilas dos próximos eventos. Eu estava acostumada a me manter informada sobre eventos da escola e prazos, já que a Sra. Richards não ligava para isso. Quando saímos da sala de aula, Hattie disse:
125 — Qual é a sua próxima aula? — Literatura Clássica Ocidental. — Eu também. Imagino o que mais nós duas temos em comum — e comparamos os horários, vindo a descobrir que estávamos na mesma aula de história também. — Eu adoro aprender sobre o passado — ela disse. — Do qual o passado é o prólogo. — Isso é uma citação de algo? — É Shakespeare — ela respondeu. — Que dizer que o que aconteceu no passado determina o que acontecerá no futuro. É por isso que temos que saber história para entendermos o presente e predizer o que acontecerá no futuro. — Mas quem quer que escreva a história coloca sua versão nela, então, sempre é distorcida. — Você é muito cética — Hattie disse. — Eu sou realista. Chegamos à sala de aula. Havia somente dez alunas na sala e a professora teve que colocar nossas carteiras em círculo. Quando ela entregou o programa de estudos, era pior do que eu imaginava: Homero, Virgilio, Sófocles, leituras da Bíblia, Chaucer, Milton e Shakespeare. A professora, Sra. Baybee, falava em um zumbido monótono que me fez viajar. A aula de hoje era de 90 minutos, mas eu desisti de tentar entender o que ela estava falando após os primeiros 15 minutos. Fiz
126 anotações que não faziam sentido para mim. Eu nunca me senti tão burra em toda a minha vida. Arrastei-me para a minha próxima aula, química especializada, pensando que eu devolveria o resto das minhas roupas e me encheria de aulas de monitoria para ganhar mais dinheiro, caso eu fosse reprovada. Mary Violet estava sentada em uma das mesas pretas e altas do laboratório na sala de aula do terceiro andar, suspirando e encarando o lado de fora da janela para além das árvores. Sentei-me junto a ela: — Você não me disse que fazia química. Seu grande sorriso me fez sentir melhor: — Sim, eu sou de química também. Meus pais são uns ditadores e me obrigam a fazer toda essa ciência e matemática porque eles têm alguma ilusão que eu deva ser médica. Eu queria não ter nada além de aulas de português. — Meu problema é o oposto do seu. Acabei de ter Literatura Clássica Ocidental com a Sra. Baybee. E eu não conseguiria entender o que ela estava dizendo mesmo se eu me importasse com a matéria, coisa que não me importo nem um pouco. — Eu ficaria mortificada se você fosse uma pessoa inculta, Jane — ela disse. — Isso é exatamente o que minha mãe diz ao meu pai quando ele reclama sobre a sinfonia que ela ouve, apesar de ela não chamá-lo de Jane. A Sra. Baybee é reconhecida por ser monótona. A voz dela sempre me faz pensar em uma mosca zunindo em algum lugar da sala.
127 — Eu pensei que só eu achava isso. — Ah, não, ela sempre foi votada como a Professora Mais Provável de Inspirar um Coma na nossa votação secreta. Por que você não se transfere para algo mais interessante? — O que mais há de opção? — Eu estou em Civilidade e Propriedade da Mulher Vitoriana porque eu quero escrever histórias históricas e suculentas com muita carnificina e eu preciso aprender sobre os desmaios e espartilhos. Mas isso é no final do dia e você teria que mudar todo o seu horário. Constance está em Noites de Terror e esse é no mesmo bloco de Literatura Clássica Ocidental. — Do que se trata Noites de Terror? — É totalmente fabuloso. Fabuloso ao enésimo grau — ela disse. — É a única aula que a Sra. Monroe leciona. Eu vou fazer no próximo semestre. O Sr. Mason veio para a frente da sala, o sinal tocou, e a aula começou. Eu me senti mais confiante agora que eu tinha um grande texto na minha frente. Olhei em volta da sala para as prateleiras de espécimes dispostas em jarras e prateleiras de tubos de teste. Um banner antigo de pano da tabela periódica estava esticado em um apoio de madeira. Eu a memorizei uma vez e agora eu olhava para todos os grupos: os metais alcalinos, metais alcalino terrosos, os lantanídeos, os actinídeos, os metais de transição, metais pobres, metalóides, não metais, halogênios e gases nobres.
128 Essas são as coisas inventadas do mundo e até os elementos mais simples, como o potássio leve e cinza, poderiam ter um poder avassalador. Olhei para a janela do terceiro andar através das árvores em direção à cidade. Pensei sobre a história que Orneta me contou, da mulher morrendo nesta escola. Quem ela foi e por que ela havia morrido? O Sr. Mason começou a falar sobre o nosso currículo e eu abri o caderno de espiral. Eu já havia feito uma linha vertical em cada página e do lado esquerdo eu faria as anotações. Depois, quando eu revisasse minhas anotações, eu acrescentaria detalhes do lado direto da página. Apesar das reclamações de Mary Violet sobre química, ela estava escrevendo diligentemente com uma caneta tinteiro que possuía tinta violeta. Ela escreveu em uma linda caligrafia redonda e com grandes espirais. Enquanto o Sr. Mason estava entregando as tarefas da próxima semana, ela desenhou uma pequena flor na borda da página. — É uma violeta — ela sussurrou para mim — minha marca registrada. Eu não sei porque eu gosto tanto da Mary Violet. Apesar de ela ser boba, eu não conseguia não retornar seus brilhantes sorrisos. Eu gostava da sua beleza rosa e dourada e o jeito que ela falava tudo o que vinha à cabeça. O Sr. Mason explanou tudo claramente e fez pausa para perguntas, as quais ele respondeu facilmente. Quando a aula acabou e nós estávamos saindo ele disse: — Posso ter uma palavrinha com você, Jane? — Sim, Sr. Mason — e eu fui para o lado de sua mesa.
129 — Eu sei que vamos meio rápido nessa aula e eu quero que você saiba que eu estou aqui para ajudá-la, caso você se sinta meio sobrecarregada. — Obrigada. Eu acho que posso acompanhar química, mas eu gostaria de me transferir do curso de Literatura Clássica Ocidental. — Há algum problema com o curso? — Eu não consigo me conectar com a matéria. Mary Violet sugeriu o da Sra. Monroe. — Noites de Terror — ele disse com um sorriso. — Estou surpreso que a diretora não inscreveu você para ele. É um excelente curso. Eu vou falar com a secretária no meu intervalo e você pode confirmar no escritório dela depois da aula hoje. — Eu realmente agradeço por isso. Obrigada, senhor. Mary Violet estava esperando no corredor por mim: — Ele é valente e trágico — ela disse. — O que ele queria? Já que ela usou trágico da mesma forma que as pessoas usam gosto, eu não a levei a sério: — Só vendo se estava tudo bem. Ele vai falar com a secretária para que eu possa me transferir para Noites de Terror. Nós duas tínhamos uma parada para o almoço, e andamos pelas escadas juntas. As garotas subindo andavam pela direita da escada e as garotas descendo iam pela esquerda, e ninguém bloqueava o caminho para incomodar as outras ou fazer tráfico de drogas.
130 Mary Violet me contou que elas normalmente saíam do campus para almoçar: — Nós vamos ao Refri Grátis ou pegamos algo da lanchonete do mercado. Todo o resto na cidade é muito devagaaaaar. Toda a cidade é muito devagaaaaar e em dias com longos períodos de aula, nós comemos na cafeteria e fazemos pedidos da mesa de frios. — Não há nenhum fast food perto? — Ah, não, minha mãe teria um ataque com tal horror. O clube das ex-alunas de Birch Grove fazia a vida do prefeito miserável toda vez que havia um rumor de que uma rede de fast food poderia se instalar aqui. — Eu prefiro usar o ticket da cafeteria de todo modo. O que é bom? — A salada é sempre fresca e a massa é boa. Tudo é caseiro e orgânico desde que as ex-alunas ficam aterrorizadas que nós possamos ter bebês mutantes se comermos tudo com pesticida. — Você parece querer um bebê mutante — eu disse enquanto a Mary Violet e eu nos servíamos de pequenos pratos de salada. — Eu prefiro um bebê alien com um pelo fofo, como um gatinho — seus grandes olhos azuis se arregalaram: — Depressa! Me diga o que você está pensando. Eu sorri: — Na minha antiga escola eles diriam: você tá viajando, cadela! — o que a fez rir.
131 Nós fomos para o balcão de pratos quentes e eu peguei algo chamado Pasta Primavera, que era macarrão e vegetais, pão quente, e um biscoito de aveia e amora. Eu hesitei e Mary Violet se virou para mim: — Vamos, lerdinha — e me conduziu para uma mesa perto da área do lounge. — Aqui é reservado para as garotas do segundo ano, apesar de que algumas calouras podem comer aqui se nós decidirmos que elas valem à pena. Naturalmente, eu consegui sentar aqui mesmo com a Catalina dando um piti. Hattie tinha um horário mais tarde para o almoço, mas a Constance já estava sentada lá. Peguei o lugar no final da mesa. Era o bastante eu ter uma refeição quente e escutar os outros falarem. Devo ter parecido confusa com alguma das conversas delas porque Constance disse: — Tudo aqui tem um apelido. O prédio principal, o prédio Birch Grove, é o B-Gro, e o outro prédio, o prédio de Artes do Fundador, é o Desajeitado. As outras alunas ofereceram suas definições. O ginásio era o Gi Nasal, e o campo de esportes Memorial dos Fundadores era chamado de FuMem. Constance olhou o meu horário e falou para a Mary Violet: — Ela tem a Srta. Mc Grito-Agudo em Trigonometria.
132 — Ah, você a amará — Mary Violet me contou. — Especialmente quando ela diz ‗hipotenusa‘. Você tem que contar quantas vezes ela diz isso durante o semestre. — Nós temos uma aposta e só custa um dólar para participar — Constance disse. — Quem tiver pego a mesa da frente tem que mantê-la, e então o prêmio vai pra quem chegar mais perto. Mary Violet disse: — Minha mãe ganhou quando ela teve aula com a Sra. Mc GritoAgudo. Ela adivinhou 217 e estava certa. Ficamos tão orgulhosos dela! Descobri o que elas queriam dizer quando fui para a aula de trigonometria. Minha professora, a Sra. McSqueak, era uma mulher idosa e excêntrica que gesticulava descontroladamente e que estava coberta com pó de giz. Sua voz fina ficava mais alta nas últimas sílabas de cada palavra, especialmente na palavra ‗hipotenusa‘. Eu contei quatro vezes e escrevi no canto da capa do meu caderno. Então eu tive história. Como eu havia contado a Hattie, não era minha matéria favorita, mas pelo menos as provas não pediam interpretação pessoal. Quando o sinal tocou ao final do dia, eu me senti feliz por ter conseguido sobreviver a tudo. Eu posso fazer isso, pensei. Coloquei o meu livro na minha bolsa da Birch Grove e fui para o escritório da secretaria. A secretária atendeu as três meninas na minha frente. Quando chegou a minha vez, pedi para mudar de aulas.
133 — Hmm — ela disse severamente. — O Sr. Mason me falou sobre isso. As alunas reservam seu lugar naquela aula com um ou dois anos de antecedência. — Mas eu acabei de me transferir senhora — eu disse. — Se houver alguma vaga... — Não há vaga — ela disse, encerrando o assunto. Uma voz atrás de mim perguntou: — Jane como foi o seu dia? Eu virei e vi a Sra. Monroe: — Olá, senhora. Foi bom, obrigada. — Posso te ajudar com alguma coisa? A secretária, que não havia ajudado em nada, de repente disse: — A Srta. Williams quer se transferir para a sua aula e eu expliquei a ela que o curso está lotado. — Você está certa, a sala está cheia, mas eu acho que podemos abrir espaço para mais uma. Você pode entregar os documentos necessários a Jane, Sra. Dodson, por favor? — Claro diretora. Enquanto a secretária completava a transferência e imprimia um novo horário para mim, a Sra. Monroe disse:
134 — Vou pedir para o Lucien te ligar para combinar as aulas de monitoria. Algumas vezes poderemos marcá-las no começo da noite e eu gostaria que nessas ocasiões você jantasse conosco. — Isso seria bom — eu disse pensando dinheiro e Lucky e comida boa. Se isso fosse um conto de fadas a Sra. Monroe seria a minha fada madrinha, toda iluminada e bondosa, sempre me acompanhando, capaz de acenar sua mão e fazer qualquer problema desaparecer. Minhas tarefas de casa me mantiveram ocupada durante toda a noite. Espalhei os meus livros e os trabalhos no chão e estudei ali mesmo. Fiz um sanduíche de ovo mexido para o jantar e revisei o primeiro capítulo do meu texto de latim. Quando a noite caiu, fui para fora e olhei em direção da casa dos Monroe, imaginando se poderia ver as luzes deles pelo bosque. Os borrões pretos nas árvores de cascas brancas pareciam rostos pálidos e amorfos. Quanto mais eu as encarava, mais elas pareciam estar olhando de volta para mim. Peguei-me pensando o que elas me contariam se pudessem falar, e então percebi o quão louco isso era. Eram apenas árvores.
135
Capítulo Sete "A cada aluna é dado um armário no inicio do ano letivo. Nem o armário, nem a senha dele devem ser compartilhados com alguém. A aluna não pode trocar de armário sem a permissão do escritório responsável pelos assuntos pertinentes às alunas.‖ Manual da Aluna Birch Grove
Senti-me otimista com latim até que entrei na sala de aula e vi Catalina organizando seus livros sobre a mesa e, em seguida, pegando uma caneta de prata de um pequeno estojo de couro. Seus longos cabelos amarelados desciam em ondas brilhantes até suas costas e pequenos brincos de ouro resplandeciam nos lóbulos de suas orelhas. — Por favor, sente-se no lugar atribuído a você — disse a professora, que estava em pé na frente da sala e olhando diretamente para mim. Ela era uma mulher robusta com um corte curto de cabelo, que tinha a cor de grama morta, e olhos castanho-amarelados por trás dos óculos de aros de ouro. Olhei para as mesas e, para meu espanto, vi Jane Williams em um pedaço de papel em cima da mesa ao lado de Catalina. A bela garota olhou para mim sem sorrir. Eu disse um baixo ‗olá‘ para Catalina e sentei-me no meu lugar. No momento em que o sino soou a professora, a Sra. Ingerson, disse:
136 — Salvete, discipuli. Latine colloquamur (Olá, estudantes. Vamos falar em latim) — e nos passou uma série de exercícios para treinarmos. Eu mal podia acompanhar e continuei folheando meu dicionário, tentando traduzir as instruções da Sra. Ingerson. Quando soou a campainha uma hora depois, senti como se meu cérebro tivesse tentado correr uma maratona e entrou em colapso na metade do caminho. Catalina reuniu suas coisas e se levantou graciosamente, olhando para mim enquanto eu rapidamente rabiscava o que conseguia entender sobre a lição de casa. Quando terminei de escrever, ela disse: — Talvez este não seja o lugar certo para você. Há momentos em que você não pode evitar um confronto. Pegando meus livros, retruquei: — Se você tem algum problema comigo, adivinhe? Eu não me importo. Você não me conhece. — Eu sei que você é a nova bolsista trazida pela diretora, uma coisinha pobre, sem-teto — seu sotaque era difícil de discernir, mas, evidentemente, era reconhecido nas vogais perfeitas do mundo dos ricos. — Harriet adotou você, não? Encarei aquela garota, mais alta do que eu: — Ela é amável, mas ninguém me adotou. Sou uma menor emancipada.
137 — Hattie foi amável com a outra bolsista também — ela disse de forma crítica. — Outra ‗pobrecita‘ como você. Catalina não precisava saber que a Sra. Monroe pediu a Hattie e suas amigas para serem agradáveis, e então eu disse: — O mundo está tão cheio de meninas pobres, como de desagradáveis esnobes. Eu estava indo embora quando ouvi Catalina dizer: — Talvez o mundo esteja, mas não Birch Grove. Apenas porque uma garotinha pobre sumiu outra tem que preencher o seu lugar. O nível de grosseria de Catalina não se comparava ao das garotas da Central City, que apunhalariam alguém com uma agulha de crochê enquanto suas amigas usavam um telefone com câmera para registrar os melhores momentos. Cinco minutos depois, eu já havia me esquecido de seus comentários. Quando Constance me convidou para sair com ela e suas amigas para comer em algum lugar fora do campus, eu disse que preferia ficar lá mesmo. Fui para o refeitório, peguei o meu almoço e me aproximei da mesa que eu tinha sentado anteriormente. Reparei na reação das outras meninas para saber se eu deveria me mover para algum outro lugar. As meninas que já estavam lá olharam para mim e sorriram, dando continuidade a conversa normalmente. Uma garota da aula de química especializada disse:
138 — Sente-se — e assim o fiz. Conversamos sobre a carga de trabalhos e testes. Sua irmã mais velha havia feito o curso e ela se ofereceu para compartilhar as anotações. A última aula do dia era Redação. A sala de aula era no prédio Artes do Fundador, mais conhecido como ‗Desajeitado‘. Eu atravessei a porta principal, mas não conseguia encontrar a sala de aula. Corri para cima e para baixo outra vez antes de perguntar a uma outra aluna. — Vá lá fora e dê a volta por trás do prédio — ela disse. — A única maneira de chegar a essa sala é por uma porta que dá lá para baixo. — Obrigada. Eu nunca a encontraria. — É por isso que este prédio é chamado de ‗desajeitado‘ — ela completou. Cheguei à sala de aula, já sem fôlego, com alguns minutos de atraso. A Sra. Chu acenou com a cabeça para uma cadeira vazia. A primeira coisa que notei foi uma fileira de computadores nas mesas encostadas na parede. Então existiam exceções para a regra ‗não a computadores para trabalhos escolares‘. Armários de madeira estavam enfileirados em uma outra parede e cópias emolduradas do (jornal) Birch Grove Semanal estavam penduradas. A Sra. Chu revisava o jornal e era responsável pela produção. Os armários de madeira continham os arquivos de cada publicação do Birch Grove Semanal.
139 — Sempre faça uma cópia no disco rígido — disse ela. — Suas atribuições não são contabilizadas como completas até que estejam salvas nos arquivos. A Sra. Chu falou sobre os quatro pontos importantes da comunicação: quando, onde, o quê, porquê - o que parecia bastante simples. — Nossa primeira edição sai em duas semanas — anunciou ela. — Os veteranos escreverão os artigos da Ab-ed. A Sra. Chu me viu começando a levantar a mão: — Ab-ed é uma abreviação de ‗Abertura de Edição‘, que são artigos curtos de opiniões dos alunos. Você logo se acostumará com os jargões. O prazo para a sua primeira história é segunda-feira — ela disse. — De 500 a 750 palavras, em 3ª pessoa. Escolha um tema sobre o início do ano acadêmico. Faça citações de pelo menos duas pessoas e se qualquer de seus fatos no seu artigo estiver incorreto, você falhará no trabalho. Não tenho que dizer para conferir as fontes e as informações, tenho? Por que os professores não podiam apenas dizer o que queriam para que você não corresse o risco de estragar com o seu trabalho? Marquei um horário no escritório da Sra. Chu para que eu pudesse checar um tema com ela. Quando retornei para o chalé, o telefone estava tocando. Ter o meu próprio telefone era tão excitante quanto ter o meu próprio banheiro. Agarrei-o: — Alô.
140 — Jane? É o Lucky. Respirei fundo e tentei parecer calma, mesmo que os meus nervos fizessem com que minha voz ficasse mais alta, o que não era nada natural: — Oi Lucky! — Como você está? — sua voz parecia mais branda do que a voz de Jack e não tinha aquele tom sarcástico. — Como está a escola? Tudo bem? — Está tudo bem. Terei Noites de Terror com a sua mãe. — Todo mundo ama essa aula. Então, você se lembra daquele lance de monitoria? Química? Minha mãe acha que devemos começar logo para que eu não fique muito para trás — ele disse. — Posso ir até a sua casa no sábado, lá pelo meio-dia, se estiver tudo bem pra você. — Seria ótimo — eu respondi muito depressa. — Digo, eu estou disponível no sábado. — Então combinado. Vejo você no sábado. — Até sábado. Desliguei e fiquei parada pensando Lucky e eu. Haviam coisas que eu sabia. Quando um carro vira a esquina, cantando pneu, corra para trás de algo sólido. Quando policias perguntarem se viu algo, diga não. Quando subir em um ônibus, sente próximo a alguém mal encarado, porque ninguém irá aborrecê-lo. Se você tiver que ir para a casa sozinha à noite, fique longe de entradas pouco iluminadas.
141 Mas haviam tantas coisas que eu não sabia, como o comportamento normal das pessoas, como era uma família de verdade, como viver sem que a precaução seja a ditadora de minhas ações. Eu não sabia como ser animada e sociável, nem como agir quando estava a sós com um garoto maravilhoso. Minha imaginação acelerou com um simples pensamento do sorriso de Lucky, seu rosto, seu corpo, a piscadela que ele havia me dado, seu cheiro, a sua respiração contra a minha bochecha. Absolutamente eu sabia, sem dúvida alguma, que garotas como eu nunca conseguem garotos como o Lucky, mas eu ainda podia sonhar. Naquela noite, em minha cama, pensei em Lucky e deixei minhas mãos explorarem meu solitário e não amado corpo.
NO DIA SEGUINTE Constance e eu tivemos a aula Noites de Terror. A diretora ficou em nossa frente, vestida em uma simples camisa branca de mangas longas e uma saia azul-marinho. Ela segurava um livro grosso de capa de couro marrom: — Vamos começar com um poema escrito em 1.748 por Heinrich August Ossenfelder. O poema se chama ‗Querido Vampiro‘. Ela esperou até que a sala estivesse em completo silêncio e então o recitou:
―Suavemente adormecida de tua formosa face, hei de o púrpura sugar.
142 Então, hás de estremecer no instante em que te beijar – e qual um vampiro beijar: quando, ao fim, fremir teu corpo e em meus braços desmaiares assim como tomba um morto, então hei de perguntar: minhas lições não superam as de tua mãe bondosa?‖
Inexplicavelmente, eu não havia entendido o poema e um arrepio passou por meu corpo. Olhei ao redor para as outras alunas e vi suas expressões de encantamento. A Sra. Monroe abriu as mãos, deixando o livro cair, e quando ele atingiu o chão fez um som que lembrava uma palmada. Muitas garotas deram um pulo de seus lugares e muitas riram nervosamente. A Sra. Monroe sorriu: — Tudo o que se mexe à noite tem uma sórdida mordida? — e nós rimos mais confortáveis desta vez. — Por que toda sociedade e cultura têm histórias sobre monstros, como, por exemplo, aqueles que bebem sangue? A universalidade destes contos diz algo sobre a própria humanidade, mas o quê? Temos medo do que está do lado de fora seduzindo a noite, ou temos medo da escuridão das nossas próprias almas? Seus comentários me fizeram lembrar dos sons que ouço à noite. Era como se alguma coisa estivesse lá fora. Mas por que eu não tinha medo?
143 Percorremos o poema linha por linha e eu descobri que era sobre um homem ameaçando dar um beijo de vampiro em uma senhorita pura. No final, ele, cruelmente, a insulta com sua inocência perdida. Refleti no poema durante a discussão que se seguiu sobre o silogismo do sangue na literatura. Quando alguém mencionou sangue menstrual, eu esperei por risadinhas e comentários rudes, mas as alunas estavam sérias e fizeram associações com fertilidade e sangue, com a penetração que ocorre em uma simples mordida com a penetração durante o coito. Elas mesmas usaram essa palavra, coito, que eu nunca havia ouvido da boca de uma pessoa da minha idade. — Então, vida, morte, sangue, sexo, inocência e conhecimento estão todos juntos nesta estrofe — disse a Sra. Monroe. — Por favor, leiam Não
Acorde os Mortos, de Johann Ludwig para a nossa próxima aula. O sinal tocou e eu estava me retirando da sala. A Sra. Monroe sorriu para mim enquanto eu passava por sua mesa e me perguntou: — Você gostou da aula? — Definitivamente é mais interessante do que a aula de Literatura Clássica Ocidental — eu pausei e continuei — o poema é perturbador. — É perturbador de fato, mesmo depois de dois séculos — ela disse animadoramente. — Sempre fui fascinada pela percepção humana sobre essas coisas fora do comum. — Jack me contou que a senhora contava contos de fadas para eles todas as noites.
144 — Lucien não se interessava, mas Jacob sempre amou ouvir histórias de um outro mundo, com duendes, elfos, gnomos, reinados mágicos... — ela então estendeu a mão e me entregou algumas folhas — aqui está o planejamento de nossas aulas, e você pode pegar os livros para esta matéria no escritório da administração. — Obrigada, Sra. Monroe. Durante o intervalo do almoço, encontrei a Sra. Chu no seu pequeno escritório no prédio ‗desajeitado‘. — Olá Jane. Converti você ao jornalismo? — Eu gosto do fato de ser baseado em fatos — eu disse. — Bom subterfúgio — ela disse com um estranho sorriso e eu sorri também. — Posso ajudar você com alguma coisa? — Eu estava refletindo no que exatamente a senhora quer que escrevamos para os artigos. — A maioria dos alunos fica feliz em fugir do que não os interessa — ela disse. Dei de ombros e falei: — O ano acadêmico apenas começou para mim e ainda não estou muito familiarizada com as coisas aqui. — Bem, os treinadores ficarão felizes em contar sobre seus times. Todos estão excitados com o time de hóquei este ano, já que temos uma ótima goleira.
145 — Eu não sou muito interessada em esportes, senhora. Ela batia suas curtas e redondas unhas pintadas em um lustroso rosa pálido enquanto pensava: — O que você acha sobre um artigo referente ao programa de bolsas de estudos da Birch Grove? Eu devo ter franzido a testa, porque ela continuou: — Não tem que ser pessoal. Na verdade, é melhor que não seja pessoal. Você sabe que 28% dos nossos alunos recebem alguma espécie de ajuda financeira? — Tanto assim? — eu disse. — Ano passado uma de nossas alunas começou a escrever um artigo sobre isso, mas ela pegou uma gripe e o artigo acabou não saindo — a Sra. Chu disse. — Seu artigo poderia mencionar a tradição de nossas ex-alunas de fazerem doações para o fundo de bolsas de estudos. Você poderia entrevistar o Sr. Shaunessy, que é quem administra o Fundo Birch Grove. O escritório dela está na Administração. Ele pode te dar os nomes e contatos das ex-alunas que mantém suas doações. Pelo menos isso era melhor do que ficar perguntando coisas a um treinador estúpido de hóquei sobre um jogo que eu nunca assisti. — Parece interessante, Sra. Chu. Obrigada por sua ajuda. Depois da aula, encontrei o escritório do Sr. Shaunessy e bati na porta, que estava entreaberta.
146 — Entre! — alguém gritou de dentro do escritório. — Olá — eu disse. — Meu nome é Jane Willians e estou escrevendo um artigo para o Birch Grove Semanal sobre o programa de bolsas de estudos. A Sra. Chu disse que eu poderia procurá-lo para conversar. O homem alto e careca parecia aborrecido: — Dez minutos é tudo o que tenho para você. Sente-se e ouça. Afastei uma das cadeiras da mesa e ele começou a falar de fatos e números antes mesmo de eu abrir meu caderno. Como eu estava escrevendo o mais rápido que podia, minhas anotações eram um monte de rabiscos e palavras soltas: fiduciário, fundo, doações pontuais, legado irrestrito... O Sr. Shaunessy me deu nomes de três das mais generosas ex-alunas, ou, como ele colocou ‗nossas generosas benfeitoras‘. Enquanto ele me acompanhava até a porta, disse: — É uma pena que a Bebe não esteja aqui para ajudar no seu artigo. Ela era uma bolsista integral, assim como você. Vir para Birch Grove foi uma experiência transformadora para ela. — Ouvi que ela se mudou para a Europa. — Inesperadamente — ele respirou fundo e ergueu suas sobrancelhas. — Duvido que valha a pena abandonar a educação de Birch Grove por qualquer viagem à Europa. — Sim, senhor — eu disse.
147 — Está na hora de você ir, criança — ele disse como se eu o tivesse aborrecido. — Eu não sou uma criança. Sou uma menor emancipada e legalmente responsável por meus atos e por mim mesma — retruquei. Os olhos do Sr. Shaunessy se encontraram com os meus. Seus lábios finos se pressionaram um contra o outro, como se ele estivesse tentando não sorrir: — Oh, desculpe. Então, está na hora de você ir, Senhorita Willians. — Obrigada por seu tempo, Sr. Shaunessy. Depois de pegar meus livros para as aulas de Noites de Terror, caminhei para o corredor, onde Mary Violet estava olhando em um reflexo de vidraça para arrumar seus cachos dourados. — Por que você parece aborrecida? — ela disse. — Isso é o que minha mãe sempre fala. Ela diz ‗por que minha família é determinada a me aborrecer?‘ — Mary Violet acompanhou aquela declaração com a parte de trás de sua mão na testa. Eu não dava a mínima para o que Catalina acreditava, Mary Violet não era uma esnobe. Ela era engraçada. E então eu disse: — Tenho que escrever um artigo para o jornal sobre o programa de bolsas de estudos e depois de entrevistar o Sr. Shaunessy ele me chamou de criança. — Ele é um fofo. Minha mãe o adoooora. Ela o convida para tomar chá e eles se lamentam e se queixam sobre como as pessoas não ligam mais
148 para cultura e arte e, então, ela o dá um cheque com uma quantia exorbitante. Sua mãe doa dinheiro para a escola? — Ô! Um montão! Tão rápido quanto meu pai ganha dinheiro, ela o gasta. — Você acha que eu poderia conversar com ela sobre o meu artigo? — Claro! Você pode vir na minha casa se prometer não rir das pinturas dela. Elas são escandalosíssimas! — Claro, prometo.
149
Capítulo Oito
―O papel dos pais é promover a filosofia de Birch Grove, apoiar nossas diretrizes e garantir que as alunas tenham uma orientação moral e ética.‖ Manual da Aluna Birch Grove
MARY VIOLET morava perto da escola e caminhamos até a casa dela por ruas estreitas que não tinham calçadas. Frequentemente um carro que passasse diminuía a velocidade e o motorista a cumprimentava, ou uma criança andando de bicicleta acenava e gritava seu nome. — Cidadezinha minúscula essa! — Mary Violet disse. — Todo mundo conhece todo mundo, o que é trágico, porque não há nenhum mistério. É por isso que fiquei extasiada quando você chegou em Birch Grove. Claro, seria muito mais divertido se você fosse, secretamente, um garoto lindo vestido de menina porque está se escondendo da Máfia! — Espero que você não esteja muito desapontada. — Eu já superei. Não há nenhum talento interessante em Greenwood. — Talento? — É você sabe garotos. Você vai para a pré-escola e ensino médio com os mesmos meninos de sempre e você nem mesmo consegue pensar neles
150 daquela maneira. É como se fosse incesto, sem a parte aterrorizante do ‗errado‘. É erradamente chato. Errachato. — Eu costumava me sentir assim com os garotos que moravam na mesma casa que eu. Realmente, você não consegue pensar em um garoto
daquela maneira se tem que dividir um banheiro com ele. É muita informação! — Era um daqueles orfanatos horríveis? Você comia mingau de aveia bem ralo? — Comíamos coisas que vinham em latas gigantescas que vinham de um armazém e que podiam ser esquentadas no micro-ondas. Era um grupo familiar, não era bem um orfanato — e contei a ela sobre a casa caindo aos pedaços e sobre as regras que tínhamos que seguir. — Isso parece horrível! Eu não conseguiria acordar tão cedo assim todos os dias. Tenho certeza de que isso poderia ser caracterizado por abuso. Como você conseguiu ficar tão inteligente? — Um grupo de alunos inteligentes me ajudou e pegaram ‗meu caso‘ como experimento. Foi por isso que quase surtei quando tive que ler Flores
Para Algernon na sala de aula. Fiquei com medo daquela criança feroz que fui reaparecer. — Esse livro é de surtar de qualquer maneira. Juro que as pessoas que escolhem ler esse livro devem estar chapadas. O estranho, eca! — Sempre líamos livros sobre adolescentes que engravidavam ou iam para a prisão e isso era para, supostamente, nos fazer ‗conscientes‘.
151 Mary Violet sorriu um enorme sorriso, daquele que mostram os dentes. — Fico feliz por você ter deixado aquela criança feroz para trás. Você deve ser muito especial, do contrário, a Sra. Monroe não a teria trazido para cá para substituir a Bebe. Não que você seja igual a ela. Ela era forte e grande, como uma daquelas lutadoras romanas. Ela fingia ser inocente para a Sra. Monroe, mas ela era um pouco perversa — Mary Violet disse enquanto se virava para um portão de cercas vivas. — Lar doce lar. — Sua casa retangular era pintada de um cinza-amarronzado e as várias janelas quadrangulares tinham calhas brancas para neve sob elas. Heras (uma planta) subiam pelas paredes até a varanda do segundo andar, que continha o parapeito em ferro preto trabalhado. Um caminho de tijolos por entre a grama verde nos levava até a lustrosa porta de entrada cinza azulada. — Sua casa é linda — eu disse. — Ela é mesmo, não é? Você não adivinharia que dentro dela está a exposição de vulgaridade da minha mãe — Mary Violet falou, entrando pela lateral da casa. — Minha mãe diz que as crianças devem entrar pela porta dos fundos porque bagunçamos muito, mesmo depois de eu ter explicado a ela que sou uma jovem madura agora. Mary Violet abriu uma porta que dava em uma enorme lavanderia. Ela jogou sua bolsa e sua mochila no chão, ao lado dos cabides para casacos. Por uma porta que estava aberta pude ver a garagem. Do outro lado da lavanderia havia um pequeno banheiro. E entramos na casa por uma porta que dava na cozinha.
152 — Estou em casa, Teresa — gritou Mary Violet. Uma mulher baixa, negra, veio até a porta da cozinha. Ela usava jeans cintura alta, uma blusa de moletom pink e tênis branco. Ela deu uma olhada para o chão e disse com um acento hispânico: — Pendure sua bolsa, querida. — Sim, chefa — Mary Violet acenou para mim e voltou para pegar suas coisas. — Teresa, está é Jane. Jane é nova na escola. — Hola, Jane. — Hola, señora — eu disse enquanto seguia Mary Violet e, de repente, me lembrei de alguma coisa. Minha mãe havia trabalhado limpando casas. A imagem de luvas amarelas e baldes com sabão e água apareceram e rapidamente se foram, como uma propaganda atrás do ônibus. Quando olhei em volta daquele lugar, desejei que minha mãe tivesse trabalhado em um lugar tão legal quanto aquele. — Teresa acha que é minha chefa — Mary Violet disse. A mulher fez uma careta e apontou para a sua própria bochecha,
besito, ela disse e minha amiga então deu um beijo em sua bochecha e a abraçou. — Quem mais está em casa? — Mary Violet perguntou. — Sua mãe está no estúdio e Bobby está lá em cima. O bebê está no treino.
153 Haveria minha mãe sido tão afetuosa com as pessoas que a empregaram? Senti uma dor em meu peito. Eu não sabia nada sobre ela e nunca saberia. Mary Violet disse para Teresa: — Tá bom. Vamos subir e ficar um pouco no meu quarto. Do outro lado da cozinha havia uma estreita escadaria que dava no segundo andar. — Teresa é de El Salvador — ela disse. — Os filhos dela ainda estão lá porque ela quer que eles fiquem com a família. Tenho certeza que as razões eram mais complicadas e dolorosas do que aquela. Mary Violet e eu chegamos a um corredor decorado com fotos de família e desenhos de crianças emoldurados. Ela me viu olhando para as fotos: — Observando a galeria de fotos da família? Graças a Deus minha mãe não colocou as pinturas dela aqui... ainda. Vivemos no terror! — Um tapete oriental com sombreados azuis e verdes encarpetavam os degraus. Caminhamos em direção a um quarto que estava com a porta aberta e minha amiga gritou: — Oi Bobby! E virando-me para mim disse:
154 — Este é meu irmão mais novo e ele é uma peste sobre a Terra. Se algum dia você quiser um irmão, pode pegar o meu. — Obrigada pela oferta, mas só tenho um quarto no meu chalé — eu disse enquanto caminhava e, de relance, pude perceber uma extensa sala de estar em azul e branco. — Minha irmã, Agnes, é legal. Ela sempre está praticando algum de seus esportes. — Ela é aluna de Birch Grove? — Entrará no ano que vem. Ela está na oitava série, na Escola Town, que é onde todos estudam antes de garotos e garotas serem separados porque nossos pais acreditam que hormônios violentos interferem na educação. No final do corredor estava o quarto dela. Havia um acolchoado acetinado rosa cobrindo sua cama, que possuía quatro colunas fixas em suas laterais, pôsteres de dançarinos e espelhos de molduras douradas. Estantes sob medida estavam repletas de livros. Cremes, perfumes, maquiagens e acessórios cobriam a penteadeira. Havia uma pilha de roupas tiradas do guarda-roupa e uma fina cortina branca se movia por causa da brisa que vinha da janela aberta. O quarto dela me fez pensar naqueles sonhos que tive de encontrar um armário cheio de roupas novas, ou descobrir dinheiro enterrado por todo o chão. Eles tinham aquela qualidade irreal dos sonhos e eu tinha uma
155 ânsia em agarrar as roupas e sair correndo do quarto antes que eu acordasse. — O que você acha? — Mary Violet perguntou. — Ele tem a sua cara — respondi. — Uma bagunça — ela disse com uma risada. — Não, bonito e confortável. Feminino. — Sim, uma bagunça — e ela foi em direção à pilha de roupas no chão e as jogou para dentro do guarda-roupa. — Minha mãe diz que um dia eu serei enterrada debaixo de uma avalanche de roupas e ninguém nunca encontrará meu corpo. Seu comentário me fez lembrar do que Orneta havia me dito: — Posso te fazer uma pergunta? — Claro que pode — ela disse enquanto forçava a porta do guardaroupa, tentando fechá-lo, sem sucesso. — Ouvi dizer que alguém cometeu suicídio em Birch Grove no ano passado. — A esposa do Sr. Mason pulou do telhado. Ele está arrasado até hoje. A Sra. Monroe ficou devastada também, já que ela e a Sra. Mason eram grandes amigas desde da época em que estudavam juntas. — A Sra. Mason era amiga da Sra. Monroe? — Sim, a Sra. Mason era muito próxima dos Monroe. A Sra. Mason era interessante, nervosa e bonita. Bem, bonitinha mesmo. Quando ela
156 falava com você, era como se ela sempre estivesse pensando em alguma outra coisa. — É por causa dela que a escola tem o apelido do Bitch Cova? — Ah, não, esse apelido é muito antigo. Não tem a ver com esse caso específico. Notei uma bolsa de laptop cor lavanda em uma penteadeira antiga com espelho: — Eu não acredito que não podemos ter acesso a computadores na escola. Você se importaria se eu desse uma olhada nos meus e-mails, só pra ver se tem alguma coisa dos meus amigos? — Vá em frente, mas não baixe nada porque minha mãe olha todos os meus downloads desde que... deixa pra lá. — Obrigada — disse sentando e tentando fazer o login da minha conta do City Central, mas apareceu uma mensagem de alerta de conta fechada: — Droga! A escola deve ter cancelado a minha conta. — Você não usa outros sites? — Não, eu apenas tinha essa. Todos os meus contatos estavam lá. — Que pena. A Associação de Pais e Mestres de Birch Grove contratou um consultor técnico, o que quer que isso signifique, para espionar nossas atividades online. Se você posta fotos escandalosas ou dizeres desonrosos a Birch Grove será suspensa. Venha, vou te apresentar a minha mãe. Tente não encará-la.
157 — Eu não encaro as pessoas. — Ummmm, talvez não encare, mas você tem um olhar singular, um olhar penetrante, como se um monólogo cínico estivesse correndo aí dentro na sua cabeça. Rápido! Me diga em que está pensando! — Estou pensando que você deixa sua imaginação correr muito livre — eu disse enquanto a seguia para fora do quarto e descia pela escada principal. — Essa é a graça de ter imaginação, você não acha? — Não, eu acho que a realidade já é complicada o suficiente para lidar. — Jane, minha missão de vida será te deixar mais engraçada. — Agora eu sou a pessoa vivendo no terror — respondi. A sala de estar era decorada de branco com sofás em verde-água e poltronas cinza-azuladas. Um lustroso piano preto estava colocado próximo à janela. Acima da linda lareira de pedras brancas havia uma enorme pintura em tons de rosa e bege. Depois de um momento, percebi uma pessoa e o movimento das cores mostrava uma mulher nua, mostrando tudo o que tinha em detalhes muito minuciosos. Aquilo fez com que os grafites da Central City parecessem comportados. Mary Violet riu:
158 — Você está encarando! Espere até ver o estúdio. É um pesadelo. Minha mãe usa palavras como ‗vulva‘ e ‗lábios‘ como se fosse perfeitamente normal, então, seja lá o que for não pergunte a ela sobre sua Arte. Ela me levou para baixo, para um outro corredor do outro lado da casa. Caminhamos por um corredor com objetos de vidros e inundado pelos raios solares de fim de tarde. Deixei o calor do quarto dominar o meu corpo enquanto entrava. Tudo a nossa volta eram frames de madeira que seguravam pinturas similares a da sala de estar. Nudez, nudez e nudez. A nudez de várias mulheres com suas partes íntimas pintadas em pink, marrom, roxo e vermelho. Havia até uma em verde. Eu estava tão envergonhada que eu não sabia para onde olhar, ou para onde não olhar. — Olá, querida! — uma mulher saiu de trás de um dos frames. Ela vestia uma capa feita de sarja toda suja de tinta. Seu cabelo marrom encaracolado era bem curto, fazendo-a parecer jovem e um pouco moleque. Ela segurava um pincel e o depositou em uma jarra que continha um líquido escuro. Ela era parecida com sua filha, mas diferentemente dos traços agradáveis de Mary Violet, sua mãe tinha traços precisos em sua face. — Oi mãe! Esta é Jane Willians. Lembra-se que eu disse que ela foi transferida? Ela gostaria de te entrevistar para um artigo que ela está escrevendo para o Semanal.
159 — Prazer em conhecê-la, Jane. Você está aqui para conversar comigo sobre a Minha Arte? — ela disse daquela mesma maneira que Mary Violet tinha imitado. — Olá Sra. Heyer. Na verdade, estou escrevendo sobre o programa de bolsa de estudos da Birch Grove. Mary Violet disse que a senhora não se importaria em ser entrevistada. A Sra. Heyer me olhou um tanto desapontada: — Hmmm, creio que o assunto sobre a minha arte não seja apropriado para Birch Grove. Mas ficarei feliz em falar com você sobre o fundo escolar. Venha, sente-se aqui comigo. Mary Violet, você poderia nos trazer um chá, por favor? — Todo mundo acha que é meu chefe — minha amiga resmungou alegremente quando nos deixou a sós. Caminhei pelo labirinto de pinturas para chegar até a Sra. Heyer, que estava por entre cadeiras verdes e uma prancha de pintura de madeira, que estava no canto do cômodo. Ela se sentou com as pernas cruzadas, como uma criança: — Agora, o que posso te contar? Sentada próximo a ela, pude ver pequenas rugas irradiando do canto de seus olhos verde-acinzentados, assim como pude ver que ela sorria muito. Depois de pegar meu caderno e caneta, perguntei: — Por que é tão importante para senhora doar dinheiro para bolsas de estudos?
160 Ela disse o que eu já esperava que Birch Grove deu a ela uma educação refinada e ela gostaria de retribuir e, então, ela falou um pouco sobre a sua época de estudante. Fiquei na expectativa de ela mencionar o atropelo do guaxinim, mas não comentou nada. De repente, a Sra. Heyer chamou minha atenção dizendo: — Cá entre nós, não importa o quanto eu doe eu nunca estarei no centro das atenções de Birch Grove, já que eu sou apenas a segunda geração de garotas Grove. Hyacinth Monroe e sua família serão sempre lembrados pela fundação da escola. Eles até seguem o padrão do fundador da escola, tom pastel-pálido, sem sol algum. Eles sempre fazem e falam a coisa certa. — Mas isso ainda tem importância para a senhora? — eu perguntei surpresa. — Quero dizer, estar no centro das atenções de uma escola de alto padrão? — Birch Grove não é apenas uma escola de Greenwood. É o centro de nossas vidas de uma maneira ou de outra. Algumas vezes eu me sinto, não sei explicar, deixada de lado. Penso que se fizer essas doações serei aceita — a Sra. Heyer acenou e continuou. — Sendo tão anciã quanto você pensa, ainda não sei todas as razões do porquê eu faço as coisas. — Por que é tão importante saber o porquê fazemos as coisas, contanto que façamos as coisas corretamente? — questionei. — O resultado é o mesmo: a bolsa de estudos que beneficia as alunas. Ela pareceu surpresa:
161 — O Papa Alexander disse que o propósito da vida é o homem. No meu caso, a mulher. Se não olharmos para dentro de nós mesmos, como conseguiremos compreender o outro? O interno e o externo são partes de uma só. — Sou mais interessada no que as pessoas fazem do que a razão pela qual fazem — eu disse. — Você soa como uma jovem mulher muito prática, mas onde está a alegria na praticidade? Hesitei, e então respondi: —Mary Violet tem um plano de me tornar mais engraçada. Ela gargalhou: — Vamos lá! Deixe-me mostrar para você a Minha Arte enquanto esperamos pelo chá. Ela tentou me explicar as suas pinturas e falou sobre ‗maturidade e fecundidade do corpo feminino‘ enquanto eu tentava me afastar, intimamente, ao sinal de pelos pubianos. Mas enquanto ela falava, de relance, vi uma pintura no chão, no canto. Ela era preta e branca, com ricas pinceladas de verde profundo, verde-amarelado, e galhos, e árvores. Perguntei: — O que é aquilo? — Ah, é minha série A Senhora da Floresta — e a Sra. Heyer moveu a pintura, deixando-a bem nítida para mim. — Eu sempre amei o bosque e a mitologia que envolve as bétulas.
162 As sombras verticais lembravam de fato as árvores à noite, com galhos e raízes que sugeriam braços e pés. — Elas são lindas — eu disse. A Sra. Heyer pareceu feliz: — É bom ouvir que mais alguém as acham bonitas. — Alguém me contou sobre a lenda de que as árvores caminham à noite. — Existem lendas em todo o mundo sobre as bétulas. Elas são um símbolo da fertilidade, do nascimento e da cura, e também têm uma conexão com o mundo dos mortos — ela me disse. — Essas pinturas são em homenagem a Senhora da Floresta, o mito do espírito feminino benevolente que habita as árvores. Abri minha boca para falar, mas qualquer coisa que eu estava por dizer se foi. A mãe da minha amiga olhou para mim e eu dei ombros: — Esqueci o que eu ia te dizer. Era algo sobre as árvores. Tenho essa sensação quando estou no bosque, como se as palavras estivessem na ponta da minha língua e tento lembrar com todas as minhas forças, mas não consigo. — Pare de tentar — a Sra. Heyer disse. — As palavras virão a você quando você não estiver mais esperando. Mary Violet retornou com uma jarra de chá e cookies de amêndoas e nos sentamos para comer. Ela perguntou inocentemente:
163 — Gostou das pinturas de vulvas? — Elas são muito interessantes — respondi enquanto chutava seu pé por debaixo da mesa. — Jane gostou do meu quadro A Senhora da Floresta — a Sra. Heyer disse com um sorrido. Mary Violet então se levantou e começou a bater na mesa de modo que as xícaras de chá batessem nas outras louças que estavam na mesma mesa:
―Se o meu coração estremece de esperança ou tristeza, Tu ainda me apoia, naturalmente e perturbadoramente, E me lanço a ti, na correnteza, como um rio, Depois de águas violentas enocontro a calma, e já neste momento, Meu coração é inundado pela terra do silêncio.‖
Ficamos todas em silêncio por um momento. E Mary Violet disse: — Este é de James Russel Lowell, A Bétula. Fiz um trabalho no ano passado sobre poemas dedicados às bétulas a eu deveria ter tirado um A+, mas recebi um A-. — Você sabia que não deveria usar tinta pink — sua mãe disse. — Tenho certeza de que a parte da prosa do seu trabalho foi escrita com caneta roxa.
164 — Era violeta, não roxa, e essa é a minha marca registrada. Sua mãe revirou os olhos exatamente da mesma maneira que Mary Violet costuma fazer. Mary Violet falou sobre suas aulas e professores e fiz alguns comentários durante a conversa. Apenas quando a Sra. Heyer se levantou para acender as luzes que percebi o quanto era tarde. — Obrigada por ter falado comigo — eu disse a ela. — Tenho muito trabalho a fazer. É melhor eu ir para a casa. — Você está morando no chalé que era dos treinadores, não está, querida? — a Sra. Heyer me perguntou. — É o mesmo lugar onde Bebe vivia. Foi uma pena ela ter nos deixado. Você quer uma carona até lá? — São apenas algumas quadras, vou caminhando. Mary Violet me acompanhou até fora da casa: — Minha mãe é uma intelectual. Isso significa que ela que para ela está tudo bem discutir obscenidades usando termos médicos. Eu ri: — Ela é muito legal. Vejo você amanhã. — Au revoir — ela respondeu. Andei apenas alguns metros quando Mary Violet veio pulando atrás de mim: — Jane!
165 — Sim! — Estou feliz que a Sra. Monroe tenha nos escalado para te mostrar a escola. — Eu também estou feliz por isso — eu disse, sentindo-me estranhamente tímida. — Vejo você amanhã. As luzes da rua se acenderam no exato momento em que o céu estava num azul profundo e denso. Algumas vezes era possível ouvir rápidas conversas ou a batida da porta de um carro ou um cachorro latindo. A Sra. Heyer não era como ninguém que eu havia conversado antes e eu gostaria que ela tivesse conversado mais sobre o interno e o externo de sua Arte. Entrei na rua que levava a Birch Grove. À frente, a escola estava escura, uma sólida massa indistinta contra o céu noturno. As luzes da entrada da escola eram assustadoras porque formavam sombras exageradas dos anjos de pedra. Assim que me aproximei, vi as luzes da sala de aula do terceiro andar e vi a silhueta de um homem na janela. Era o Sr. Mason trabalhando até tarde. Senti uma pontinha de tristeza por ele, por sua solidão e sofrimento. A brisa crescia forte, como de costume de fim de tarde, e agora a noite não estava mais silenciosa, mas cheia dos sons das árvores, sussurrando, murmurando, se movendo, dançando, tão vivas e tão adoráveis. Agora eu entendia o motivo de algumas pessoas amarem o som do mar, e outras
166 falarem do som dos rios. O som das árvores acordava algo dentro de mim, um senso de paz. Estava frio, então, corri pela trilha, sentindo uma alegria quando entrei no escuro bosque. Meus passos esmagavam folhas, que exalavam um cheiro puro. Meu chalé estava escuro porque eu não havia deixado nenhuma lâmpada acesa. Destranquei a porta e entrei. Logo, entrei em pânico pensando que talvez eu não estivesse sozinha, que mais alguém poderia estar no mesmo cômodo que eu. Freneticamente minha mãe percorreu a parede em busca do interruptor e a luz se acendeu. O lugar estava exatamente como eu o havia deixado. Não havia ninguém lá. Mas meu coração ainda estava acelerado, e fui, movendo-me lentamente, para o quarto. Acendi as luzes e chequei o banheiro, a cozinha e a lavanderia. Olhei também os armários e, com os nervos ainda a flor da pele, agachei no chão e olhei embaixo da cama. Finalmente, chequei todas as janelas e portas. Não havia mais ninguém lá. Por que tive aquela estranha sensação de que alguém estava me observando e me esperando? Acho que deixei minha imaginação correr. Pensei e me concentrei na minha lição de casa. Depois de quase duas horas de latim, fiz um sanduíche de manteiga de amendoim e geleia e comi enquanto lia minhas tarefas para a aula da Sra. Monroe, Não Acorde os
Mortos
167 Constantemente eu tinha que recorrer às notas de rodapé para entender as primeiras páginas. Mas logo me envolvi na história que eu corria pelo texto. Um poderoso e rico lorde está perdidamente apaixonado por sua jovem e linda noiva, que morre. Ele se casa com uma mulher bondosa, tem filhos com ela, mas ainda se recorda obsessivamente de sua noiva morta. Ele força um bruxo a trazê-la de volta, embora o bruxo o advirta: Não
Acorde os Mortos. A noiva retorna da tumba e o lorde está encantado por ela, mas a morte e a destruição chegam a seu castelo. Ele percebe tarde demais que ela é uma vampira sedenta por sangue. Eu achei que o lorde era um idiota que merecia o seu destino por deixar a paixão sobressair à razão. Ele merecia sua horrível morte. Ainda, a história me relembrava as assombrosas sensações que eu havia sentido mais cedo naquele dia. Eu estava me odiando por ter sido tão besta e supersticiosa enquanto me arrumava para a escola na manhã seguinte. Caminhei até a porta de entrada do chalé em direção as luzes solares da manhã que banhavam a varanda e vi duas palavras cravadas no chão, bem na frente do meu chalé. Apesar de parte das letras terem sidas apagadas pelo vento, a mensagem era clara: Vá embora!
168
Capítulo Nove
―Birch Grove não permite abusos de alunas, ou causados por alunas. A administração atuará prontamente na investigação de qualquer queixa de abuso. Todas as reclamações serão tratadas com delicadeza e confidenciabilidade.‖ Manual da Aluna Birch Grove
VÁ EMBORA! Furiosamente chutei a mensagem até não haver mais nenhum traço das letras. Então, olhei em volta para ver se havia alguém por ali, observando. Galhos balançavam na brisa matinal e pássaros e esquilos faziam barulho. Não havia ninguém ali naquela hora, mas alguém tinha que ter estado ali enquanto eu permanecia lá dentro. Um calafrio percorreu minha espinha, e então pensei o que eram umas poucas palavras cravadas na terra comparado ao que vivi todos os dias em City Central? Nada. Que espécie de pessoa deixa uma mensagem anônima? Um covarde. Tirei a poeira dos meus sapatos e fui para a aula com raiva ao invés de assustada. Catalina era a única que, abertamente, tinha sido hostil comigo, mas não havia nada de covarde ou anônimo nela. Então, quem era?
169 Durante a aula de química, percebi que o senhor Mason me observava. Ele estava sorrindo de uma maneira tão amigável e encorajadora, que pensei que minha raiva era nítida. Relaxei os músculos do rosto para que não revelassem nada e pudesse me concentrar na lição. Cheguei à aula de latim antes de Catalina. Ela entrou acenando para suas amigas. Seus olhos castanhos passaram indiferentes por mim, como se ela já tivesse se acostumado com a minha presença. Passei o restante do dia olhando à minha volta, tentando discernir qualquer risada ou olhar na minha direção. Já estava tensa quando alguém tocou atrás do meu braço na cafeteria. Vire-me num solavanco e vi Constance. — Você me assustou! — Não acorde os mortos!— ela disse com uma voz fantasmagórica e gargalhou. — Que história estranha! Hattie e Mary Violet se juntaram a nós. — Decidimos passar a noite na sua casa amanhã — Hattie disse. — Se estiver tudo bem pra você. Nunca tive pessoas passando a noite na minha casa e, de repente, aquela mensagem estúpida parecia sem sentido. — Seria maravilhoso — respondi. Mary Violet disse: — Posso fazer sua sobrancelha e aparar seu cabelo. Constance balançou a cabeça:
170 — Em nenhuma circunstância deixe MV usar tesouras perto de você. Cometi esse erro e tive que usar o chapéu ridículo do uniforme por quatro meses. Fiz minha mãe chorar! — Você parecia uma modelo com o cabelo bem curtinho — disse Mary Violet. — Uma daquelas modelos que usam aqueles óculos antigos e fazer as pessoas perceberem que ela também é um gênio. — Não consigo usar cabelo curto — falou Constance. — Minhas orelhas se sobressaem muito! — e colocou o cabelo para trás, demonstrando. — Admita seus defeitos. Eu admitira, se tivesse algum — Mary Violet brincou. — Certo senhorita perfeitinha — e Constance apertou as bochechas gorduchas e rosadas da amiga. — Então, Jane. Podemos levar algumas coisas — disse Hattie. — Posso levar espaguete. — Vou fazer brownies— falou Mary Violet. — Meus brownies são de matar! — Levo salada Caesar— emendou Constance. — E pão de alho! — Isso é tudo — disse Hattie. — E o que tenho que fazer? — Indaguei. — Você pode cuidar das bebidas — sugeriu Hattie. — Champagne — disse Mary Violet. — Uma banheira cheia! Hattie balançou a cabeça:
171 — Refrigerante está ótimo. — Sem problemas— eu disse — A que horas? — Às cinco — falou Constance. — Eu levo os filmes. Hattie me deu uma carona até o supermercado depois da aula. Sob as luzes florescentes, sua pele tinha um tom suave de azul, coloração do leite sem gordura. Ela foi comigo até a sessão de bebidas. Olhei os preços e vi uma marca mais barata do próprio supermercado. Queria poupar dinheiro, mas esta era a primeira vez que minhas amigas iam à minha casa, então, peguei dois pacotes de seis refrigerantes italianos que havia na casa dos Monroe. — Todas nós gostamos desse — disse Hattie. — A senhora Monroe sempre tem esse refrigerante em casa. — Foi onde experimentei — disse, tentando ser casual. — Lucky vem amanhã à noite para a monitoria de química. — Mesmo? — Ela disse e inclinou sua cabeça. — Sim, e é legal porque posso adicionar isso ao meu currículo e ganhar algum dinheiro também — falei como se não estivesse empolgada por estar com Lucky. — Não sei se deveria oferece a ele um lanche. — Garotos adoram comida. Jack gosta de pizza e burrito, e Lucky, de hambúrguer e sanduíche de rosbife. — Talvez eu possa fazer uns sanduíches — eu disse. Fomos à sessão de comidas finas e Hattie comentou:
172 — Ele gosta do rosbife extra raro porque não é muito cozido. — Obrigada. Nunca aprendi a fazer muitas coisas além de abrir latas e fazer comidas no micro-ondas na casa em que eu morava, mas sei fazer sanduíches e macarrão com queijo. Quando fui pagar, vi que Orneta estava trabalhando no caixa mais distante. A fila estava muito grande e fui com meu carrinho para o caixa de até dez itens e acenei para ela. Ela sorriu e retribuiu o aceno. — Quem é ela? — perguntou Hattie. — É a Orneta, a conheci quando vim aqui com a senhora Monroe. — Isso é legal em Greenwood. Todos acabam se conhecendo rapidamente. Quando Hattie estava me levando de volta à escola, eu disse: — Todos aqui parecem ser muito amigáveis. Mas, de fato, eles gostam de ‗intrusos‘? Ela me olhou de relance: — Você sabe ninguém gosta de um mau elemento. Por quê? — Só estava pensando — de modo algum isso não seria um desabafo sobre a mensagem estúpida. — Algumas pessoas levam mais tempo para ser amigáveis. Apenas as deixe conhecer você. Eu ri:
173 — Hattie, nunca ganharei um concurso de popularidade e lido bem com isso. Eu apenas nunca vivi em um lugar onde todos se conhecem e isso é um pouco estranho. Ela sorriu: — Tá bom — e parou o carro perto do bosque: — Nos vemos amanhã à noite. Quando entrei em casa e desempacotei minhas compras, vi que o sangue do rosbife tinha molhado o papel branco do embrulho do açougue. Coloquei a carne em um saco plástico e a guardei na geladeira. Limpei a casa para que ela parecesse legal para o Lucky e minhas amigas. Passei o aspirador de pó, tirei o pó, limpei o banheiro e coloquei o lixo para fora. Joguei as margaridas cor-de-rosa que estavam mortas, peguei uma tesoura e fui até lá fora, mas não tinha a intenção de cortar nada vivo. Depois de juntar galhos quebrados, arbustos e folhas, fiz o meu melhor para acomodá-los em um vaso, o que não ficou muito bom. Preparei-me para a minha aula com Lucky revisando o livro. Durante um bom tempo, ouvi alguns barulhos que vinham do lado de fora. Teria alguém já assediado Bebe enquanto ela vivia aqui? Mary Violet comentou que ela era valentona – talvez todos ficassem tremendamente intimidados em assediá-la. Gostaria de poder conversar com Bebe e perguntar como ela se sentiu quando veio para Birch Grove. Penso em como ela era. Quando filhos adotivos mudam, sempre deixam algo pra trás – um brinco, iniciais cravadas
174 na mesa, roupas usadas –, mas eu não tinha encontrado um traço de Bebe naquele lugar. Conforme a noite crescia, fechei as cortinas para que ninguém pudesse me espionar. Puxei o sofá menor de maneira que ele bloqueasse a porta da frente. Depois de checar as fechaduras, desliguei as luzes da sala, deixei acesas a lâmpada do quarto e a da porta de entrada. Agora, ninguém poderia me ver na sala de estar, mas eu veria qualquer um que estivesse rondando a varanda. Depois de colocar o telefone e a lanterna ao lado do sofá, peguei a manta e o travesseiro da cama e me ajeitei no sofá para dormir.
NINGUÉM veio durante a noite e não havia nenhuma mensagem do lado de fora do meu chalé pela manhã. De repente, lembrei que Lucky viria. Movi rapidamente a mobília para o seu lugar. Minha cabeça estava a mil. Estava pensando em Lucky, prestando atenção para ouvir se havia alguém perto do chalé, pensando na aula de química e nas minhas amigas vindo dormir à noite. Verifiquei as fechaduras das portas antes de tomar um rápido banho. Então, vesti meu jeans novo, uma camiseta branca limpa e meu novo tênis preto. Arrumei meu cabelo repartido-o de lado, como Hattie e suas amigas. Preparei dois sanduíches de rosbife, cortando-os em diagonal e os coloquei em pratos acompanhados de batatas fritas de pacote. Organizei a mesa com copos e guardanapos. Olhei para o relógio. Eram dez horas.
175 Tentei escrever meu artigo sobre programa referente à ajuda financeira, mas depois de algumas poucas palavras, me peguei olhando para o relógio novamente, o que era deplorável, já que se tratava apenas de uma aula. Meio-dia. Eu andava em círculos pela pequena sala, roendo minhas unhas e, finalmente, houve uma batida na porta. Contei até três antes de abri-la com um sorriso. Lucky estava parado, vestindo um agasalho de manga longa e camiseta do Evergreen, segurando o livro de química e um saquinho de papel. — Oi, Jane — ele disse com um rápido sorriso que me acertou em cheio. — Aposto que você odeia perder seu sábado ensinando um idiota. — Estou feliz por poder te ajudar. — As palavras soaram cerimoniosas e tolas para mim, como num serviço de recepção. — Claro, certo. Você não precisa ser legal a respeito disso. Eu odiaria ter que ensinar um burro Ele me entregou o saquinho de papel: — Minha mãe mandou cookies porque ela acha que temos dez anos de idade. Lucky Monroe entrou em meu chalé e eu lutava para parecer mais calma. Tentei não encará-lo enquanto ele olhava em volta. Parecia que ele tinha acabado de se levantar, seu cabelo dourado estava emaranhado e tinha uma barba curta em seu queixo. Ele usava um bracelete prateado, um fino e resplandecente aro em seu pálido e forte pulso.
176 — Você mudou as coisas de lugar — ele disse. — Você esteve aqui antes?— perguntei. — Quando Bebe morava aqui? — Sim, e quando estava vazio— falou. — Ajudei a consertá-lo. Eu pintei o quarto. — Você fez um ótimo trabalho. Parece que ninguém viveu aqui antes. Ele caminhou até a lareira, tocando sua parte superior: — Minha mãe queria que parecesse novo para você. Ele não disse mais nada e percebi que eu deveria estar no comando de nosso tempo juntos: — Fiz sanduíches! Podemos comer enquanto estudamos. Ele deu de ombros: — Comi muitos cookies no caminho. Quero alguma coisa pra beber. Acenei que sim com a cabeça, desapontada, e fui à cozinha. Coloquei os sanduíches na geladeira e levei duas latas de refrigerante para a sala. Já era tarde para voltar e colocar o refrigerante nos copos, como ele costuma beber em sua casa. Sentei no sofá: — Certo, vamos passando pelo básico, aí você consegue se achar na matéria. — Minha cabeça já dói!— Ele disse alcançando o saquinho de papel, tirando um cookie de dentro. — Aveia com amora. Até mesmo os doces da
177 minha mãe são saudáveis. — Ele me entregou um cookie e pegou outro para ele. Folhei seu livro até o primeiro capítulo: — Trouxe sua calculadora? — Acho que deveria ter trazido né? — Tudo bem, pode usar a minha. Enquanto nos debruçávamos sobre a mesa pra ler o livro, nossos ombros ocasionalmente se tocavam. Apesar de eu estar dolorosamente atenta a cada contato, tentei agir como se não fosse nada. — Jane, Jane — Lucky disse — como você consegue gostar dessa coisa? Minha cabeça vai explodir!— Ele se lançou para trás, jogando seus braços no sofá, atrás de mim. Cuidadosamente, fiquei onde eu estava, na beirada do sofá: — Você está indo bem. Você consegue entender. Deveria passar mais tempo revisando os números exponenciais e poderia começar a memorizar símbolos químicos. — Não me admira minha mãe gostar de você, você é séria. Como vai a escola? Tem feito muitos amigos? Hesitei: — Sua mãe parece ter escolhido algumas para mim, mas gosto delas: Hattie Tyler, Mary Violet Heyer e Constance Applewhaite.
178 — É isso que quero dizer sobre o jeito que minha mãe nos trata — ele falou. — Mas Hattie não faz nada que ela não queira. Constance é amigável a todos e Mary Violet é impulsiva; ou te ama, ou te odeia, e você sabe de cara. — Elas virão dormir aqui hoje à noite. — Parece divertido. Posso vir também? Não sabia se ele estava brincando, então, mantive meus olhos no livro. — Não se preocupe — ele disse — se a Mary Violet vem, então será muito ‗mulherzinha‘ pra mim. Filmes e fofocas de garotas. Mary Violet vai querer me fantasiar e me fazer brincar de casinha. Não diga a elas como sou burro em química. — Eu nunca diria isso! Ele riu: — Eu estava brincando, Jane. Pode dizer o que quiser. Elas são meninas legais, especialmente a Hattie. Ela sai com o Jack de vez em quando. — Ela me disse. Eu fiquei um pouco... surpresa. — Por que ele é tão molambento e ela é tão perfeita? Sim, mas ela não está interessada em garotos bonitos. Ela vai pelo talento, pelo músico sensível. Todas as meninas caem de amores pelo Jack. Eu me poupei de dizer que ele deveria estar brincado: — Não eu.
179 — Você ainda não ouviu Jack tocar. Não consigo nem tirar uma nota! Nossa, estou tomando todo o seu tempo — ele pegou o livro e se levantou. — Que tal no próximo domingo lá pelas 16h30? Minha mãe disse que você deveria ir em casa e ficar para o jantar. Balancei a cabeça positivamente enquanto o acompanhava até a porta: — Podemos repassar toda a lição que você tem, então. — Odeio química, mas sou bom em biologia — Lucky, de repente, pegou minha mão e virando-a para cima, percorreu seus dedos pelo meu pulso, traçando as veias azuis. Congelei. — Jane, você sabe que o corpo humano tem cerca de cinco litros de sangue? Você é pequena, então tem menos sangue. Ele viaja 12 mil milhas por seu sistema circulatório todos os dias. — Seus dedos pressionavam meu pulso. — Consigo sentir seu pulso. Ele é forte. Olhei longamente seus olhos azuis, sendo capaz de ver cada cílio e a gradação de azuis claros e escuros. Ele não estava sorrindo mais e pensei que ele pudesse se reclinar e... Então ele soltou minha mão: — Vejo você na próxima semana. Lucky andou até a porta caminhando tranquilamente em direção à trilha, assobiando desarmonicamente.
180 Havia algo a mais por trás daquele sorriso. Por que ele tocou meu braço daquela maneira confusa, que foi muito mais do que amigável, mesmo não sendo exatamente sexual.
HATTIE E SUAS AMIGAS chegaram no final da tarde com comida, sacos de dormir, filmes, música e maquiagem. — Este lugar é gracioso — disse Mary Violet, jogando um saco de dormir no sofá e colocando a travessa de brownies sobre a mesa de café. — Parece com algo de conto de fadas. Constance falou: — Tenho certeza de que você ficaria mais feliz se a casa fosse feita de bolo de gengibre e doces. — Quão fabuloso isso seria! Ser cozida em um caldeirão por uma bruxa não é minha idéia de diversão. Honestamente os antigos contos de fada eram horríveis — comentou Mary Violet. — Os Elfos eram terríveis? — perguntei? — Não, eles eram bem charmosos. Digo as histórias escritas por Jakob e Wilhelm Karl Grimm baseada nos contos populares. — Não pergunte como ela sabe essas coisas — disse Constance. — Ela nunca consegue se lembrar do meu aniversário! — Eu sei por que, ao contrário de outras pessoas, eu me importo com literatura, e seu aniversário é em março, ou maio... um desses meses que
181 começam com ‗m‘— Mary Violet disse, em um tom um tanto arrogante. Virando-se para mim, falou: — Algum dia escreverei histórias que te deixarão desconcertada, com terríveis monstros e lobisomens. — Achei que você escreveria sobre mistérios e coisas históricas — Hattie disse — Além disso, ninguém precisa ouvir histórias de terror sobre monstros sobrenaturais. Sua amiga loira refletiu por um momento: — Acho que escrevemos sobre isso porque o medo faz você se sentir viva. Além do mais, o sobrenatural é muito mais sobre o id. — Não sei o que é ‗id‘, mas acho que soa com alguma coisa ridícula — disse Constance. — Não é ridículo — falou Mary Violet, sorrindo abertamente. — O id diz respeito aos seus desejos e medos do inconsciente. É seu instinto por prazer e sobrevivência. É isso que minha mãe diz e ela estudou um pouco de psicologia. Quando Constance balançou a cabeça, seus óculos escorregaram em seu estreito e elegante nariz: — Isso parece algo que a senhora Monroe falaria sobre Noites de
Terror. Acho que psicologia deveria estar na moda quando elas estavam na faculdade. — E mais uma vez, MV nos arrasta completamente para fora do assunto — Hattie disse. — Não há comparação entre a casa de uma bruxa em
182 um conto de fadas e esta doce e pequena casa. Aposto que Jane ama este lugar. — Amo ter meu próprio espaço, mas o que mais gosto é o som das árvores. É como se elas me fizessem companhia. — Oh, você está ficando muito poética — disse Mary Violet. — Foi assim que minha mãe começou: com poesia. E então ela foi decaindo rapidamente. Prometa que você não vai começar a pintar! — Metade das meninas daqui são tão estúpidas que ficariam aterrorizadas em viver em um bosque — falou Constance. — Ouvi algumas histórias bobas, mas não sou supersticiosa — eu disse. — Você ouviu essas histórias de quem? Daquela menina da cidade? — perguntou Hattie. — Qual era o nome dela? Alana? — Orneta — eu disse, sentindo um instinto de protegê-la. — Jack Monroe foi quem me disse que as bétulas andam à noite. Hattie sorriu inquieta: — Você não pode levar a sério o que ele fala. — Não levo — retruquei. Mais tarde, após termos comido espaguete e eu ter deixado Mary Violet cortar um dedo do meu cabelo (o que se tornou três dedos porque ela ficava tentando igualar), estávamos conversando sobre as aulas e nossos professores.
183 — O senhor Mason parece tão solitário — comentou Mary Violet. — Gostaria que ele tivesse um tórrido caso com a senhora Chu e então se casassem; eu seria a madrinha! Constance olhou para mim: — A senhora Chu vive com o namorado, o que, supostamente, deveria ser um grande segredo por causa das regras morais de Birch Grove, blá, blá, blá. A MV já contou a vocês sobre a esposa do senhor Mason? Quando balancei a cabeça negativamente, ela disse para a sua amiga: — Não que ele estivesse pronto para outro relacionamento tão cedo... Ouvi-as debatendo outras possíveis namoradas para o senhor Mason, e então Mary Violet me perguntou: — Jane, você já teve algum namorado? — Não. Sempre estive na posição de amiga. Fiquei com alguns colegas de quarto, mas apenas por estarmos todos juntos mesmo, mas era só isso. Nunca estive realmente interessada em algum deles— pensei em falar sobre o estranho gesto íntimo do Lucky hoje, mas estava com medo de falar sobre algo que talvez não significasse nada para ele. — O que exatamente você quer dizer por ‗ficar‘? — perguntou Mary Violet. — Mary Violet — disse Hattie — deixe a pessoa ter privacidade. — Apenas porque você não fala sobre seus namoros, não quer dizer que Jane não queira falar sobre as excitantes experiências sexuais dela —
184 Mary Violet disse. — Se valesse alguma coisa, eu contaria sobre as minhas, em explícitos detalhes. — Eu não pediria para que você contasse! — disse Hattie — Não é esse o ponto. Confidenciei a você como Teagan Bartholomew enfiou a língua na minha garganta e depois abaixou as calças sem nenhum aviso! Depois das pinturas da minha mãe, presumi que todos tinham vulva e fiquei tão chocada que gritei! — Você está inventando isso — Constance disse enquanto ria. — Fiquei profundamente traumatizada depois disso — Mary Violet continuou. — E ninguém me conta nada! Não tenho ideia de como fazer quando eu encontrar alguém que me dê arrepios, de uma maneira boa, claro. Vou morrer virgem! Um telefone tocou e Hattie pegou o celular na sua bolsa. Ela olhou para a tela e atendeu: — Alô — e economizando palavras disse: — Como sabe que eu estaria aqui? — Ela então saiu para a varanda para conversar, fechando a porta atrás de si. — Você é daquelas que não deixa os meninos tocarem na sua parte mais íntima porque a considera muito preciosa — disse Constance para Mary Violet. — Eu sempre te contei de quando saia com Gerard. Contei a você cada detalhe sórdido — ela gesticulou com a mão. — Não acredito que fui tão estúpida sobre ele.
185 — Okay, você já nos contou — emendou Mary Violet. — Não é sua culpa ele ter se tornado tão repugnante. É muito difícil pensar isso baseado na maneira como ele parece e age. Eles deveriam ser obrigados a usarem rótulos. Constance deu de ombros e me disse: — Gerald já tinha uma namorada na faculdade. Fui só um lance de verão. Alguns minutos depois Hattie retornou, bem quando Mary Violet estava me dizendo: — Jane, pode nos contar se quiser, mas você não é obrigada. — Estava apenas falando de emoções, totalmente superficial. Nunca houve alguém especial — eu falei, pensando em quão patética tenho sido com o contato físico. — Além disso, sou sempre o ‗tipo amiga‘. — Não me fale de amigos — disse Mary Violet. — Hoje em dia, tudo o que um cara quer é uma transa, sem compromisso, nada. E é por isso que estou esperando por romance. — Ou um cara excitante — disse Constance. — Se ele é realmente excitante, então, é automaticamente romântico — falou Mary Violet. — Vamos ver um filme ou não? — interrompeu Hattie.
186 Dormimos lá pelas 2 da madrugada. Mary Violet dormiu no sofá e Constance tinha ido para o quarto a fim de escapar do gentil ronco de sua amiga. Acordei debaixo da minha manta, no chão. Era em torno das 3 da manhã e a televisão estava silenciosamente exibindo o filme que havíamos deixado rodando. O saco de dormir de Hattie, ao meu lado, estava vazio. Ouvi seus passos na cozinha, ou no banheiro, e então, chequei o chalé. Ela não estava lá. Então, coloquei meu tênis e vesti a blusa de moletom. A porta da frente estava destrancada e Hattie não estava na varanda. Peguei minha lanterna e caminhei para fora: — Hattie, Hattie— falei em um sussurro mais alto. Dei mais alguns passos e olhei cuidadosamente em volta. Os galhos das bétulas moviam-se na brisa e comecei a caminhar pela trilha que vai em direção à casa dos Monroe. Em poucos segundos, eu chamava por minha amiga novamente. — Estou aqui! — A voz de Hattie veio da direção do anfiteatro. A escuridão não era tão densa na clareira. Meus olhos se ajustaram à pálida iluminação da lua sob os bancos de mármore. Sentada lá, envolta em um cobertor estava Hattie, calma e pálida como uma estátua. A bainha de renda da sua longa e branca camisola tocava seu nu e fino pé. Ela se virou ao som do meu passo e sorriu: — O que você está fazendo aqui?
187 — Procurando por você. Você está bem?— Sentei ao seu lado e a frieza do mármore me gelou através da fina calça de cotton. — Acordei e senti vontade de caminhar. Este lugar não é mágico? À luz da lua, parece uma fotografia em preto e branco. — Como você achou esse caminho na escuridão? — Conheço o caminho e, além disso, minha visão noturna é maravilhosa. Ficamos sentadas quietamente, ouvindo os barulhos das árvores e sentindo o ar fresco da noite em nossa pele. E então Hattie disse: — Qualquer coisa que você quiser, pode falar comigo, você sabe. — Obrigada. Ela riu: — Você não tem obrigação de dividir seus detalhes sexuais, como MV se ofereceu a dividir, mas você pode se quiser. Eu não diria a ninguém, a menos que você dissesse que eu poderia contar. Sei que as coisas são diferentes para você aqui... — sua voz sumiu. — Faz muito tempo desde que tive alguém com quem pudesse conversar que esqueci como isso é normal para a maioria das pessoas — eu disse. — Eu tinha um amigo, Hosea, quando eu tinha quatorze anos e podia conversar com ele. — Ele foi adotado?
188 — Não. Pegou meningite e morreu. Ele era a melhor pessoa que já tinha conhecido. Todos dizem que paciência é uma virtude, mas isso realmente não tem significado algum até você conhecer alguém capaz de ser tão calmo... a dádiva da graça — senti tanta saudade dele naquele momento que tive que parar de falar. Quando consegui controlar minhas emoções novamente disse: — Ontem quando sai de casa, alguém tinha escrito ‗vá embora‘ na terra. — Não! — Hattie disse se virando com enormes olhos. — Pode ter sido um trote? — perguntei. — Não, alunos veteranos fazem trotes nos calouros roubando as roupas dos armários de ginástica e jogando-as do terceiro andar entre as árvores. Seríamos suspensos por qualquer outra coisa. — Catalina é a única garota que tem sido hostil comigo, mas ela é direta. — Catalina escreveria o nome dela se tivesse feito isso. Não que ela tocaria na terra — disse Hattie. — Você não ouviu ninguém falar de alguém que está zangado comigo porque estou aqui? — Ninguém disse nada pra mim. Deveríamos contar isso para a senhora Monroe.
189 — De modo algum — eu disse. — Não vou correr pra ela toda vez que meus sentimentos forem feridos. Por favor, não comente nada com ela. — A decisão é sua — Hattie olhava o movimento das sombras dos galhos das bétulas. — Mudando de assunto, você não nos contou como foi sua aula com Lucky hoje. — Não tem nada pra contar — disse, cuidadosamente. — Lucky resolveu os problemas bem facilmente, mas ele reclama que não consegue entender. — Lucky finge ser incompetente e as pessoas fazem as coisas por ele porque ele é deslumbrante — ela disse um tanto amarga. Vendo minha expressão, ela acrescentou: — Conheço-o há muito tempo. Ele dizia às pessoas que iríamos nos casar quando ainda estávamos no jardim da infância. — Acho que há mais nele do que só a aparência. — Sim, mas é muito mais fácil para ele deixar que as pessoas o adorem; e como ele vai crescer desse jeito? Ele é muito mimado. — Pessoas atraentes sempre ganham tratamento especial, assim como pessoas ricas. Todos em Birch Grove têm tratamento especial. Hattie sorriu: — Todas nós devemos parecer bem mimadas para você, não é? — Vocês me parecem... afortunadas.
190 — Sim, nós somos. Vou tentar me lembrar disso mais vezes — ela disse. — Acho que apenas espero que Lucky encontre amigos que despertem o melhor dele ao invés de encorajá-lo ao egoísmo. Porque ele é bom e esperto e... Por que estamos falando do Lucky mesmo? Preferiria falar sobre o Jack. Ele cuida de mim e consegue me fazer rir quando fico brava. Isso soou como um irmão mais velho e não como um namorado: — Não consigo imaginar você brava com alguma coisa. O que te tira do sério? — As coisas do dia a dia. Ser tratada como se minha opinião não importasse. Ser tratada como se eu fosse apenas uma garota. Apenas uma
garota. Toda vez que alguém diz isso, sinto vontade de estapear! Ela disse aquilo como se tivesse com alguém específico em mente, e eu falei: — Odeio isso também. Parece que suas opiniões não significam nada só porque você é jovem, e sempre penso que se dissesse a mesma coisa, mas fosse adulta e homem, as pessoas ouviriam — uma brisa bateu forte e eu tremi. — Você está com frio — disse Hattie. — Vamos voltar. Usei a lanterna para encontrar o caminho, mas Hattie não precisava da luz. Ela caminhava tão graciosamente como um gato na enorme escuridão do caminho. Ela parou uma vez e disse:
191 — Você vai me contar se mais alguma coisa acontecer, como aquela mensagem, não vai? — Conto para você se alguma coisa pior acontecer — respondi. Antes de entrarmos no chalé, Hattie colocou sua mãe fria no meu pulso: — Eu tenho um sentimento de que poderia contar a você qualquer coisa e você entenderia. — Eu tentaria — respondi.
192
Capítulo Dez
―Veteranos dos terceiros e quartos anos do Grupo de Conselheiros são treinados para auxiliar os calouros em seus interesses pessoais, acadêmicos, sociais e de saúde. Todas as conversas são confidenciais, exceto em situações em que o aluno está em perigo ou um crime foi cometido.‖ Manual da Aluna Birch Grove
Depois de eu ter contado a Hattie sobre a mensagem, depois das garotas terem dormido em casa, depois da visita do Lucky, comecei a sentir que estava habituada a Birch Grove. Eu não empurrei o sofá contra a parede na noite seguinte e eu estava familiarizada com minha grade de aulas. Minha vida naquele grupo, na casa onde eu vivia, parecia irreal agora, e percebi o quanto era bizarro ter que se preocupar com cada movimento e cada palavra. Eu ainda estava maravilhada com as coisas, embora os outros estudantes não parecessem gratos por elas. Eles esperavam professores competentes, agradáveis salas de aula e banheiros limpos. As mochilas eram deixadas em qualquer lugar, como se estivessem na casa de um amigo, e
193 não na escola. Pensavam que era normal dirigir um carro novo e luxuoso até Birch Grove. Demorei um tempo para identificar os grupos da escola. As fashionistas desfilavam suas bolsas e tomavam bebidas energéticas quando os professores não estavam por perto. As esportistas arrastavam seus equipamentos pelas salas de aula. As baladeiras entravam sorrateiramente pelo campus. As emos usavam finas linhas de delineador e cabelos pintados de maneira sutil. Hattie e suas amigas faziam parte do grupo das populares. Hattie era a líder, embora reservada; Constance, a cínica, era quem tinha mais amigos porque saia com todos. Mary Violet era uma mistura de fashionista com aquelas garotas ligadas à arte que escreveram na revista literária. Eu estava na periferia do grupo e as amigas delas eram legais, ainda que um pouco impessoais. Catalina me ignorou na aula de latim e eu parei de prestar atenção nela também, porque para acompanhar latim preciso de toda a minha concentração. Civilização Western era uma tarefa chata e Descrição da Escrita se tornou fácil porque gosto de declamação direta e de fatos. Minha aula mais difícil era o seminário da senhora Monroe. Tínhamos que escrever um ensaio sobre Não Acorde os Mortos e me debati com isso. No dia seguinte, entreguei o ensaio e a senhora Monroe me parou quando eu estava saindo da sala.
194 — Jane, li seu ensaio ontem à noite — ela saiu detrás da mesa, alisandoa, vestia uma camisa azul marinho, era pálida e com mãos elegantes. — A linguagem arcaica da história foi um desafio para você? — Consegui entendê-la com as notas de rodapé e glossário. — Perguntei por que seu ensaio parece forçado. Sei que literatura não é sua matéria favorita, mas dê uma chance a ela. Suspirei: — Vou tentar, mas não entendi seu ponto. Ela sorriu de uma maneira encorajadora: — O ponto é que a ficção se conecta com nossas emoções. Gostaria que você trouxesse no ensaio sua perspectiva pessoal. Não me diga apenas o que aconteceu na história, mas sim como você se sente sobre o que aconteceu e com os personagens. Ela me entregou meu ensaio, sem nota: — Por favor, tente novamente. — Sim, senhora — disse aborrecida por ter que refazer todo o trabalho. — Seu trabalho não está ruim, Jane, mas tenho expectativas sobre você – sobre todas as minhas garotas – e sei que você não irá me desapontar. Naquela noite, comecei o ensaio três vezes, ficando cada vez mais nervosa com cada tentativa frustrada. Finalmente, com a minha desajeitada letra, escrevi: ‗Não Acorde os Mortos não é uma história sobre amor. É
195 sobre o estúpido e cruel egoísmo de um homem que arruína todos a sua volta‘, e o restante do ensaio foi saindo. Quando o entreguei, a senhora Monroe sorriu: — Podemos conversar sobre ele quando você vier jantar no domingo. Deixei a sala já me arrependendo do que tinha escrito. Pelo menos, eu veria Lucky em alguns dias. Pensei nas diferentes tonalidades de dourado em seus cabelos, a saliência de seus ombros pela camiseta e suas longas pernas. Reproduzi várias vezes a maneira como ele segurou meu braço e tocou meu pulso. Faria ele mais alguma coisa, ou apenas fingiria que nada tinha acontecido? Sexta à noite. Mary Violet convidou Hattie, Constance, eu e algumas outras garotas da escola para a sua casa. Vim a conhecer Agnes, a irmã mais nova de MV. Ela era uma menina levada, do meu tamanho e tinha os mesmos grandes olhos azuis de Mary Violet, mas com sobrancelhas marrons. — Você está tentando entrar para algum dos times? — indagou Agnes. — Não pratico esportes. — Até a MV consegue acertar uma bola de softball — ela disse. — Apesar de ela sempre rir depois. — É porque finjo que estou acertando você — Mary Violet falou. As outras garotas foram para suas casas bem tarde, mas a senhora Heyer pediu para que eu passasse a noite lá. Era uma noite suave e estávamos dormindo em sacos de dormir na sacada, no segundo piso da
196 casa. Pensei que aquilo deveria ser como acampar e olhei para o negro céu, as estrelas escondidas atrás de camadas de nuvens. Mary Violet disse: — Você verá o Lucky logo? — Vou ajudá-lo nos estudos no domingo — estava grata por ela ter tocado no assunto. — Se eu nunca encontrar alguém de fora desta estúpida cidade, penso em me casar com o Lucky. Tente descobrir se ele gosta de mim. Teríamos filhos loiros. Ou veja se ele fala de alguma outra pessoa. Hattie diz que ele não está saindo com ninguém, mas talvez ele esteja vendo alguém em Birch Grove e ela não saiba. — Mas porque ele manteria esse segredo dela? — Não manteria dela, mas de Jack. Lucky sempre está competindo com ele. Rivalidade de irmão, embora eu não ache que terei que me preocupar com a Agnes roubando meus namorados. — Mary Violet, é sempre um esforço acompanhar sua linha de raciocínio. Por que você está interessada em descobrir sobre garotas de Birch Grove? E se Lucky estiver saindo com alguém de outra escola? — Não seria nada sério. Os homens da família Monroe só se casam com garotas de Birch Grove, enquanto as garotas da família apenas se casam com os garotos de Evergreen. — Isso deve ser muito conveniente pra eles.
197 — Certamente. Em certo ponto, a procriação consanguínea se transformará em raros distúrbios sanguineos ou defeitos nos dedos dos pés. — Avisarei você caso veja qualquer mutação genética. Boa noite, MV. — Boa noite, JW.
No dia seguinte tomei café da manhã com a família Heyer, enquanto Mary Violet discutia com suas irmãs sobre quem comia mais bacon. O senhor Heyer, cujos cabelos eram mais claros que os de suas filhas, perguntou-me as perguntas que todos os adultos fazem: onde você estudou? Quais são suas matérias prediletas? Qual a faculdade que você pretende entrar? Quais são seus planos de carreira? Em determinado ponto, o senhor Heyer encarou suas filhas e gritou: — Vocês vão parar de brigar por causa da porcaria do bacon? Não é à toa que estou perdendo meus cabelos. Sempre que ouço gritos, fico tensa, esperando pelo tapa que vem a seguir. Mas suas filhas começaram a fazer caretas umas para as outras, e Agnes sentou no colo de seu pai e roubou sua fatia de bacon. O resto da família começou a rir inclusive o senhor Heyer. A senhora Heyer me disse que pensou que eu tinha alma de artista, o que levou Mary Violet a rir: — Ela quer te sugar para o mundo maluco de pintura dela — sussurrou pra mim. — Fuja enquanto é tempo!
198 A senhora Heyer me levou ao seu estúdio e me entregou um grande pacote, embrulhado em papel marrom: — Esta é uma das minhas pinturas A Dama do Bosque, Jane. Olhei para ela atônita: — A senhora realmente vai me dar isso? — A arte não está viva, a não ser que ela seja vista e amada. Aprecie-a! Ela ajeitou seu curto cabelo e olhou para mim por um momento: — A vida não é meramente sobrevivência, Jane. Tenha certeza de ter um tempo para olhar para dentro de si e entender quem você é. — O propósito da humanidade é o homem — recitei a ela. — Não sei se concordo. — Você não tem que concordar com um conceito imediatamente. Coloque-o em um lugar na estante da sua mente, onde você possa repensálo de vez em quando. Quando precisar dele, ele estará lá, esperando por você. Ela me olhou com seus esculpidos olhos acinzentados e pensei que ela talvez soubesse de coisas que eu não compreendia: — Tentarei. Obrigada pela pintura. Fiquei na cada dos Heyer até a tarde de sábado. Após termos acabado nossa lição de química, MV disse: — Jane, por que você nunca usa batom, ou rímel para realçar seus olhos?
199 Contei a ela parte da verdade: — Isso custa dinheiro, o que eu não tenho. — Tenho vários desses produtos que ganhei de brinde, e nunca uso aqueles que não combinam comigo. Você quer alguns? Quando hesitei, sem muita certeza de como aceitar esse presente, ela falou: — Claro que não os darei a você gratuitamente. Você tem que me deixar te maquiar para tê-los. — Tudo bem. Quarenta minutos depois ela tinha espalhado generosamente sombra roxa nas minhas pálpebras, coberto meus cílios com rímel e pintado meus lábios de vermelho-cereja. Agnes não se aguentava de tanto rir. Olhei no espelho: — Isso é muito especial para usar durante o dia. Vou lavá-lo. — Muito diplomático Jane — Mary Violet disse entregando-me uma pequena e brilhosa bolsa preta repleta de batom, gloss, rímel, blush e amostras de perfume. Depois de limpar meu rosto e pegar minhas coisas, incluindo a pintura, Mary Violet perguntou: — O que você via fazer hoje à noite? — Nada. Estudar.
200 — Tenho que ir à casa da minha tia-avó. Festa de família. Minha tiaavó adora apertar bochechas e sempre me chama de Marie-Violette, porque ela finge que estamos na França. Se você se entediar, liga pra mim. Digo que não estou me sentido bem, saio mais cedo e podemos fazer alguma coisa. Talvez eu consiga te convencer a fazer a sobrancelha. — Se eu te dissesse sim, acabaria sem nenhuma sobrancelha. — Ninguém confia em mim — Mary Violet disse. Ela olhou para o pacote que eu estava carregando: — Minha mãe deve mesmo acreditar que você está no caminho espiritual dela para ter de dado essa pintura. Eu não sei se isso é algo bom ou se você deveria se preocupar com sua saúde mental. Eu ri: — Obrigada por tudo, MV. Vejo você na segunda Embora a pintura fosse grande, era leve, e eu pude carregá-la para o meu chalé antes de descer a colina até a cidade. Passei pelo mercado para comprar algumas coisas, mas não vi Orneta lá. Quando paguei as compras, perguntei ao homem que estava no caixa: — Poderia me informar quando é o turno da Orneta? — Ela não trabalha mais aqui. Pediu demissão. Obrigado por comprar conosco! Enquanto caminhava com minhas compras até o banco, pensei que era estranho que Orneta tivesse se demitido, já que ela disse que aquele era
201 um bom emprego. Fui ao caixa eletrônico, verifiquei meu saldo e saquei um pouco de dinheiro das minhas aulas particulares a Lucky. Depois de chegar de volta ao campus, guardei as compras e escondi meu dinheiro no esconderijo. Camuflá-lo em uma embalagem de batatinha me deixava mais segura; eu continuaria economizando até que conseguisse o suficiente para cuidar de mim mesma em uma emergência. Então, desembrulhei a tela da senhora Heyer. Passei meus dedos sobre as texturas ásperas e suaves da pintura, o que parecia com uma casca branca e preta de uma bétula. Era como seu eu tivesse um pedaço do bosque dentro de casa agora. Nunca tinha tido algo tão maravilhoso, e eu a posicionei na parte de cima da lareira, onde eu pudesse vê-la a toda hora. Experimentei minha nova maquiagem, mas bem mais leve do que Mary Violet tinha feito, e fiquei contente ao ver que eu parecia mais com a minha idade do que com uma criança. Aquilo não me transformou em uma beldade, mas fez me distanciar do passado, quando eu sempre me escondia. Espalhei meus livros comecei a fazer minha lição de casa. No final do dia, sai um pouco para esticar as pernas. As longas sombras das árvores faziam parecer mais tarde do que era. Então, ouvi alguém chamando meu nome. — Jane! Você está em casa?— Lucky estava descendo pela trilha. — Oi — meu coração disparou e eu soltei meu cabelo, balançando-o. — Você quer mudar o dia da nossa aula? Ou cancelá-la? Você poderia ter
202 ligado — sentimentos de esperança e desapontamento se entrelaçaram dentro de mim. Lucky parou na entrada e sua altura me fez sentir muito menor: — Está tentando se livrar de mim? — Não! Eu pensei que... — Precisava sair um pouco de casa. Posso entrar? — Claro! Ele se sentou no sofá e fez um sinal com a cabeça para que eu me sentasse ao seu lado. Quando sentei, ele se virou para mim: — Você quer saber alguma coisa sobre mim, Jane? Eu não tenho amigos — ele disso isso de uma maneira dramática, como se esperasse que eu o consolasse e olhou nos meus olhos. — Lucky, você conversou sobre todos os amigos, que supostamente você não tem, quando fui ao jantar na sua casa. Ele riu: — Está certo. Tenho muitos amigos, mas nenhum íntimo, alguém que eu realmente possa confiar. — Você tem seu irmão. — Irmãos não contam. Você tem que falar com eles. Comecei a entender o que Hattie quis dizer sobre Lucky ser mimado e disse:
203 — Preciso dizer como indulgente isso soa? — O que quero dizer é que gostaria de conversar com alguém que gosta de mim pelo que sou e não porque estou no time de basquete, ou sou um Monroe, ou porque minha mãe é a diretora. O dinheiro não soluciona a solidão, Jane. É mais difícil pra eu descobrir quem são meus verdadeiros amigos. Todos aqui já acham que sabem como eu sou. Quero um amigo que não tenha nenhuma ideia de como, supostamente, eu devo agir ou ser. Então ele estava aqui em busca de um amigo, a amiga Jane. Suspirei: — Gosto de você pelo que você é Lucky. — Talvez quando você me conhecer de verdade não irá gostar de mim. Você gostaria de mim, independente de qualquer coisa? Nas brandas luzes das lâmpadas, não pude ver as sombras de mel de seu cabelo, nem a curva de suas têmporas: — É claro que não! Não gostaria de você se você fosse estúpido ou rude, mas você não é estúpido e tem sido legal comigo. Ele se moveu vagarosamente para mais perto de mim, até nossos joelhos se tocarem: — Jack diz que sou egoísta. É... talvez ele tenha razão. Talvez eu, de verdade, use as pessoas algumas vezes. Talvez elas não se importem. Você se importa? Garotas bonitas são usadas por sexo, as ricas por dinheiro; eu não era nem bonita nem rica:
204 — Você não está me usando, Lucky. Estou sendo muito bem paga pelas aulas de monitoria. — O que eu quero dizer é... — ele começou, então, nós dois ouvimos um barulho que vinha e fora. Eu tinha deixado a porta da frente aberta e agora Jack entrava calmamente, vestindo seu surrado short e uma camiseta velha: — Oi Jane! Lucky procurei por você por todos os lugares. — Me achou — disse Lucky, se distanciando de mim no sofá. — Venha! Nosso pai quer falar com você. — Ele me verá mais tarde — disse Lucky. — Ele disse agora. Lucky se levantou com um olhar irritado e foi em direção à porta: — Você não vem? — Disse ao seu irmão. — Ele quer você, não a mim. — Que seja — Lucky retrucou. — Vejo você amanhã, Jane. Acompanhei Lucky até o lado de fora e o fitei até que ele virasse em um ponto do caminho que o perdesse de vista. Ao voltar para o chalé, vi Jack sentado no braço do sofá com os pés na mesa de café. — Tire seus pés da mobília — eu disse.
205 — Ooh, bravinha — falou abaixando suas bronzeadas pernas. — Eu não pedi que você ficasse. — Você tem outros planos? — Não — disse antes mesmo de pensar em uma mentira. — Como você tem estado? Sentei no sofá. Tinha certeza de que Lucky estava por dividir algo importante comigo quando Jack nos interrompeu: — Se você pensou que o Lucky poderia estar aqui, poderia ter ligado. — Vir aqui é mais cortês — ele disse. — Você não respondeu a minha pergunta. — Tudo o que você tem são perguntas. Estou bem. Olhando para a lareira, ele disse: — Esta é uma daquelas pinturas da senhora Heyer? — Ela me deu. São as bétulas. — É lindo, e amo essas árvores — ele falou. — Ela é meio famosa e isso provavelmente deve valer alguma coisa, então, tome conta dela. — Cuidarei porque a adoro. — Esta é uma razão ainda melhor — ele pegou meu livro de latim da mesa e o folheou:
206 — Nihil bonī mihi hīc invenīrī potest — ele pronunciou vagarosamente. — Como me sai? — Horrível. Você deve pronunciar o ‗v‘ como ‗w‘. — Por quê? — Perguntou com um sorriso malicioso. — Porque é assim que é. — O que isso significa? — ele repetiu a frase novamente. Traduzi as palavras na minha mente: ‗Nada de bom pode ser encontrado aqui, na minha opinião.‘ Ele riu num tom sarcástico: — Isso parece certo. Deveria ser o lema da Birch Grove — e repetiu a sentença como se a estivesse memorizando e largou o livro sobre a mesa. — Por que latim ao invés de uma língua viva? — Ela ajuda com meus estudos de ciências, e eu gosto— falei. — Ela é específica – declina as coisas por gênero, número, tempo e modo. A língua inglesa é muito ambígua e você está sempre adivinhando o que as pessoas realmente querem dizer. — Você acha que as pessoas deveriam dizer exatamente o que querem dizer? Eu o encarei: — Gostaria que você o fizesse. Deveria considerar ter aulas de latim. Jack sorriu largamente:
207 — Talvez eu considere. Todos estão te tratando bem na escola? — Sim. — Porque essas escolas podem ser um pouco, você sabe... etilistas e controladoras. Foi por isso que decidi estudar em outro lugar. — Sua mãe comentou que você foi para a escola pública por causa das aulas de música. — Também... e garotas – claro! Enquanto ele estava sentado, eu o estudei, assim como seus indomáveis cachos. — Aprova o que vê?— Ele disse. — Seu cabelo parece que foi posto em um liquidificador. Ele deu de ombros: — Esta é a outra razão pela qual não posso ir para Evergreen – meu cabelo é muito bagunçado. Você acha que sou mais bonito do que meu irmão? — Se está esperando por elogios, veio à pessoa errada. Não, Lucky é mais bonito. — Você podia pelo menos fingir. Poderia ter dito que eu sou mais bonito à minha própria e especial maneira, como um floco de neve. — Você não é um floco de neve e obviamente Lucky é mais bonito do que você.
208 — É... é isso que o espelho me diz também. Até mesmo minha namorada me diz isso, bem francamente, de fato. Aparência é tão importante. E Lucky é mais legal do que eu, certo, Elfo? — Ele tem modos melhores e ele não me chama de nomes ridículos. Quando Jack falava comigo, me sentia bem alerta, como se eu tivesse que estar atenta para seguir as mudanças em sua conversa e a verdade era que eu não me importava em me sentir dessa forma. — Bom, mas você trouxe a pizza. — Coisas que vizinhos fazem; como isso agora, uma visita para conversar. Você poderia conversar mais. — Acho que compartilhamos uma cota limitada de palavras em nossa vida e você está reduzindo a minha cota. — Apenas estou pegando emprestado, já que você as empilha — ele disse com um largo sorriso. — Você parece com uma criatura dos contos de fada, mas ao mesmo tempo é tão calada e misteriosa como uma Esfinge. Fale alguma coisa na língua nativa da sua floresta, já que estamos trocando os ‗Vs‘ pelos ‗Ws‘ aqui. — Jack, você está tentando ser engraçado ou irritante? Porque eu não consigo distinguir. Ele gesticulou com as mãos: — Um dia, vou aprender as palavras mágicas para ganhar sua confiança. Elas podem até ser em latim, apesar de eu achar que sua língua nativa precede a história da humanidade — e então ele levantou. — Acho
209 que já vou; preciso me arrumar para o meu encontro. Vou sair com a Hattie hoje à noite. Ela é maravilhosa, você não acha? Ela é tão maravilhosa quanto o Lucky é bonito. — O que importa pra mim é que ela é amável e não é egoísta. — A família dela está há gerações em Birch Grove. Ela é realmente excepcional. Nem todas as garotas são lindas e inteligentes e talentosas e com uma família abastada de grana. Você já a ouviu tocar piano? Parece um anjo. E ela fala francês como Marcel Marceau. Ela desenha extremamente bem também. Parecia que sua intenção é mais de me irritar do que de admirar Hattie, então eu disse: — Você não vai querer se atrasar, então — levantei e o levei até a porta. — Não ganho um abraço de despedida?— Ele perguntou quando parou na varanda. Ele ainda estava com aquele sorriso imenso e, de repente, vi o porquê de Hattie o achar tão atraente, com seus olhos verdes e boca larga, que sempre se curvava em um sorriso, braços musculosos e bronzeados, e seu perfume verde e fresco do bosque. — Abraçar é coisa que os vizinhos fazem — ele disse. — Venho de uma vizinhança diferente — eu disse e fechei a porta na cara dele.
210 Então, encostei contra a parede e pensei no que tinha acontecido. Por que tudo que os irmãos Monroe dizem parece ter outro sentido? Por que eles não falavam diretamente? Sentei e abri um livro de composição musical. Tracei uma linha vertical na página. De um lado, escrevi as coisas que Lucky disse pra mim, do outro lado, escrevi possíveis interpretações. Por que Lucky me perguntou se eu me importaria que ele me usasse? Pessoas que usam outras não pedem por suas permissões. Eu não tinha muitas informações, então acrescentei todas as coisas que Jack disse também. Sua falta de senso apenas me fez ficar mais desnorteada. Não me senti à vontade deixando tantas informações pessoais onde minhas amigas pudessem ver. Escondi o caderno atrás da máquina de lavar e secar, junto com meu dinheiro. No domingo à tarde, fiz minhas curtas unhas até que todos os cantinhos ficassem iguais. Cuidadosamente passei o esmalte rosa claro, mas um pouco dele se espalhou e acabou pintando minhas cutículas, e tive que pintá-las novamente. Quando o esmalte secou, coloquei meu melhor jeans e uma camiseta branca por baixo do suéter roxo. Dei umas pancadinhas com o dedo para esconder um ponto vermelho no meu queixo que tinha aparecido durante a noite. Coloquei uma fina camada de rímel, pouco blush e gloss. Meu cabelo parecia mais cheio e com um aspecto mais saudável desde Mary Violet aparou as pontas.
211 Cheirei as amostras de colônias que ela havia me dado e achei uma de citrus que gostei. Dei uma última olhada no espelho e tentei dizer a mim mesma que eu estava bonita, mas parecia que eu não estava fazendo muito esforço. Acendi a luz da varanda e tranquei a porta quando sai. Os dias se tornaram mais rápidos e frios. Enquanto caminhava na trilha que dava para a casa dos Monroe, passei pelo anfiteatro. A luz do sol iluminou rapidamente algo ao lado do banco. Primeiramente, achei que fosse uma tampinha de garrafa ou uma embalagem de chiclete de alumínio. Com a ponta do meu tênis, tirei as folhas marrons de cima do objeto e vi um pequeno canivete prateado. Assim que me inclinei para pegá-lo, percebi duas manchas amarronzadas nas nervuras cinzas do banco de mármore. No impulso, encostei a ponta do meu dedo e o esfreguei em uma das manchas. Meu dedo ficou vermelho. Era sangue. Olhei em volta, mas não havia nenhuma mancha de sangue ou respingos no chão, do tipo que se vê quando alguém está fugindo. Tínhamos isso na minha escola antiga: gotas, respingos, poças, borrifos. Não. Eram apenas duas manchinhas. A faca tinha em torno de três dedos com aquele brilho que vem do tempo. Havia um bonito ornamento cravado no cabo. Parecia que tinha custado muito dinheiro.
212 Hattie esteve aqui semana passada e esta faca tinha um design feminino, mas as pessoas que sentiam prazer em se cortar que eu conhecia usavam cacos de vidro, capazes de se quebrarem a qualquer momento, e Hattie não parecia com aquilo. Coloquei a faca no meu bolso e caminhei pela colina rumo à casa da diretora. A senhora Monroe me atendeu à porta: — Olá Jane! Como você está bonita! — Olá senhora Monroe — mais uma vez eu estava perplexa pela escuridão da casa. Imaginava o motivo pelo qual acendiam as lâmpadas ao invés de abrir as espessas cortinas. — Lucky está no quarto de estudos. Suba, vire à direita e vá direto até o final do corredor. Enquanto eu subia, o canivete no meu bolso atingiu minha coxa. No topo na escada havia um espelho. Olhei rapidamente e vi que a brisa tinha bagunçado meu cabelo. Eu o ajeitei e respirei fundo antes de caminhar em direção a sala de estudos. Meus passos eram abafados pelo espesso e trançado tapete, com sombreados de vermelhos escuros e marrons, as cores de sangue seco e folhas mortas. A porta do final do corredor estava aberta e entrei em um amplo cômodo de esquina. As janelas davam para os altos e sombrios pinheiros que cercavam a casa e havia longas mesas sob cada janela e a parede mais perto da porta tinha estantes de livros do chão até o teto. A parte traseira de um longo e
213 azul sofá chamou minha atenção. Oposto ao sofá havia uma cadeira de couro azul e um sofá baixo e grande onde caberiam várias pessoas sentadas ao mesmo tempo. — Lucky? Sua cabeça loira apareceu no sofá: — Oi Jane! Entre!— E sua cabeça saiu da minha visão. Caminhei em volta do sofá e vi Lucky deitado de costas jogando uma bola de baseball de mão em mão. Sentando no sofá mais baixo, disse: — Você tem sua própria sala de estudos? — Preferiria ter um home theater — ele falou. — Minha mãe pensa que quanto maior a tela, menor o cérebro. Sorri e esperei ansiosa que ele pudesse continuar a conversa do dia anterior. Ele jogou suas longas pernas para baixo e sentou-se: — Acho melhor irmos para a química. Tentei não demonstrar meu desapontamento enquanto eu o seguia até uma das longas mesas. Revimos seu trabalho na semana anterior de unidades métricas de massa e volume e fomos para o próximo capítulo de propriedades físicas da matéria. Ele facilmente lidou com os exercícios.
214 — Você não precisa da minha ajuda — falei sem pensar. — Preciso sim, Jane — falou colocando seu lápis na mesa e se virando para mim. — Quero dizer que você não precisa de mim para explicar. Você consegue fazer os exercícios sozinho. Seus olhos azuis me olharam tortuosamente por alguns segundos antes de falar: — Seu perfume tem um cheiro bom. Fiquei vermelha e permaneci com meus olhos nos dele. Ele pegou minha mão: — Posso lidar com química sozinho, mas farei melhor se você me guiar. Preciso de alguém ao meu lado para me apoiar, alguém em quem eu possa confiar em que não me julgue. Você não quer ser essa pessoa? Minha respiração ficou mais rápida: — É isso que você quer dizer sobre me usar? — Quero dizer que quero você aqui por mim. Para ser minha amiga e minha... Quero você para ser leal a mim e ficar comigo aconteça o que acontecer. — Não entendo o que você quer dizer, Lucky — disse frustrada. — Por que você não pode ser simplesmente direto e dizer que você me quer como amiga ou como mais alguma coisa, o quê exatamente?
215 — Mais. Meu coração disparou, mas eu ainda estava confusa e cautelosa: — Uma namorada? — Disse desesperadamente esperançosa de que ele não risse na minha cara. — Namoradas são temporárias — disse seriamente e apertou mais minha mão. — Você será leal a mim, Jane? — Ainda não entendo o que você quer Lucky, mas serei leal a você enquanto você merecer lealdade. Ele sorriu, levantou minha mão e a virou. Ele se curvou e beijou meu pulso. Seus lábios eram macios e úmidos: — Sabia que poderia contar com você. Você não vai fugir e me deixar, não é? Que pergunta estranha: — Para onde eu iria?— Nós dois pulamos aos sons que vinham do corredor. Afastei-me de Lucky quando Jack entrou. Ele olhou para Lucky e depois para mim. Lucky levantou seu queixo: — O que é agora, Jack? Jack lançou um olhar sobre mim que me fez sentir como se estivéssemos fazendo alguma coisa muito errada: — O jantar está servido — virou-se e saiu.
216 Lucky parou, pegou minha mão levantando-me: — Você precisa comer mais carne vermelha. Quero que você se mantenha saudável. Não pude evitar de sorrir porque ele era tão lindo e agora eu sabia que ele me queria. Como exatamente ele me queria não importava contando que ele precisasse de mim.
217
Capítulo Onze
―É esperado que os alunos mantenham os padrões éticos, legais e morais de Birch Grove — dentro e fora do campus. Ações disciplinares serão tomadas contra qualquer aluno que ameaçar o bem-estar mental e físico de outro indivíduo‖ Manual da Aluna Birch Grove
A senhora Monroe fez carne assada, mas estava tão crua que pedi o final da carne, que estava mais marrom e com o aspecto melhor. Foi uma refeição desconfortavelmente silenciosa. Jack apenas mexeu na comida em seu prato. O senhor Monroe fixou seu olhar em algum ponto, distraído, terminou sua refeição e encheu seu copo com vinho. Fiquei imaginando se ele bebia tanto assim todas as noites. Enquanto ajudava a retirar a mesa, a senhora Monroe disse: — Jane, seu ensaio foi um progresso e tanto. Fiquei feliz em ler sua análise espirituosa sobre a história. — Obrigada, senhora. — Você o receberá amanhã com meus comentários, embora sua estrutura tenha um bom julgamento. Depois do jantar, Lucky se ofereceu para me levar até meu chalé. Uma vez que estávamos no bosque, ele lançou um braço sobre meus
218 ombros. Poderia ter sido apenas um gesto de amizade, mas eu queria que aquela caminhada durasse eternamente. Ele parou em frente ao anfiteatro: — Gosto desse lugar. Às vezes venho aqui à noite para relaxar. — Hattie gosta daqui também — eu disse assim que me inclinei para tocar o gelado banco de mármore. — Todas as garotas gostam. Elas acham que é romântico. Aposto que Mary Violet iria dizer que gosta daqui também. — Nunca sei qual será a próxima maluquice que ela irá dizer. — Ela se prostituiria por atenção. Virei para trás: — Isso é muito cruel e injusto. MV gosta de fazer as pessoas felizes, o que não é não egoísmo, é generosidade. Ela é uma das pessoas mais legais que já conheci. — Não falei isso em um sentido ruim. Quis dizer... ela é extrovertida. Encarei-o para ver se ele estava mudando de opinião apenas porque reagi ou porque estava sendo sincero. Ele sorriu para mim, pareceu sério, e chutou as folhas secas enquanto começava a caminhar novamente. Quando chegamos ao chalé, esperei que ele pudesse entrar. Ele me encarou e não pude mais respirar. Então, ele colocou meu cabelo para trás e sua boca veio de encontro ao meu pescoço. Ele colocou um braço em volta da minha cintura, fazendo-me ficar mais perto dele.
219 Joguei meu pescoço para trás, atônita por sua boca na minha pele, excitada por sentir seu corpo contra o meu. Fechei os olhos. Quando ele pressionou rapidamente minha garganta com seus dentes, meu primeiro reflexo foi me distanciar. — Machuquei você? — Ele perguntou preocupadamente. — Você me surpreendeu — e me fez sentir nervosa e excitada e confusa e insegura. Ele permaneceu com seu braço em volta da minha cintura: — Jane, não conte a ninguém o que te disse antes, sobre nós. — Por que não? — Todos fazem fofoca aqui. Algumas garotas ficaram com ciúmes porque elas estão afim de mim e serão totalmente cretinas com você. Uma vez que as pessoas te conhecerem melhor, poderemos ser mais abertos sobre o nosso... — Nosso o quê? Ele parou, considerou e acrescentou: — Sobre nós. Até mais! Fiquei parada, atordoada. Ele havia dito que namoradas eram temporárias, mas não tinha seu beijo - mesmo que no meu pescoço significando alguma coisa? Tinha significado para mim. Deveria ter significado para ele.
220 Reproduzi suas palavras e o beijo – e a mordidela – repetidamente em minha mente. Antes que eu pudesse esquecer, peguei o caderno de composição e anotei tudo o que Lucky tinha falado e dito. Estava prestes a esconder o livro a lavanderia, junto com o meu dinheiro, quando percebi que poderia também escrever sobre o comportamento estranho de Jack. Durante o final da noite, imaginei coisas que poderia ter dito, coisa que Lucky poderia ter dito, as maneiras que poderíamos ter tocado um no outro. Então, pensei na hostilidade dele com Jack e a maneira cruel como ele havia falado de Mary Violet. Ele não poderia estar ciente de quão imprudente com seus pensamentos ele parecia. Minha grande pergunta era ―Por que eu?‖. Dentre as milhares de garotas que haviam em Birch Grove – talentosas, bonitas, ricas – por que Lucien Monroe me escolheu como amiga especial? Pensei que talvez Lucky tenha um segredo que não possa se compartilhado com ninguém que ele conhece. Mas uma pessoa carente poderia entender, já que passamos por tudo nessa vida. Quando estava me despindo para dormir, alguma coisa caiu do meu jeans pesadamente no chão. Tinha me esquecido completamente do canivete prateado. Na segunda-feira, perguntei a Hattie se poderia falar comigo por um minuto. Fomos a um corredor vazio, perto da capela. Tirei o canivete do bolso da minha jaqueta e mostrei a ela.
221 — Hattie, achei isso no anfiteatro. Ela o pegou da minha mão com um sorriso: — Devo tê-lo deixado cair quando eu estava lá. Era da minha bisavó. — Não tenho que ficar preocupada, tenho, Hattie? Por que haviam manchas de sangue no banco? — Você acha que sou dessas pessoas que gostam de se cortar, não é? — Se você faz isso, gostaria de te ajudar de alguma maneira. — Não sou — ela levantou suas mangas, revelando uma pele sem mancha alguma, tão pálida que as veias azuis eram mostradas claramente em seus pulsos: — Veja — então, ela levantou sua saia mostrando suas elegantes e perfeitas pernas. — Nenhuma marca. Nem mesmo tenho cicatrizes. — Por que haviam as gotas de sangue? — Carrego a faca por proteção. Muito bobo desde que estamos no lugar mais seguro do mundo. Eu estava brincado com ele quando cortei de leve meu dedo — e levantou seu dedo indicador. — Melhor agora? Sorri: — Desculpe-me, mas eu tinha que perguntar. — Tudo bem. Perguntei quando pensei que talvez alguma coisa pudesse estar te aborrecendo. Temos que proteger uma a outra — ela disse. — Queria te falar que haverá uma festa na sexta-feira no clube country. A banda de Jack vai tocar. Você quer ir?
222 — Claro que quero! — Ótimo! Constance e MV vão também. — ela começou a caminhar de volta ao corredor principal e adicionou casualmente: — Lucky estará lá também. Sentir-me feliz era estranho e maravilhoso. Minha mente estava repleta de pensamentos sobre Lucky, a maneira que ele olhava e sentia as coisas que ele dizia e fazia. Apesar de minha promessa de não dizer nada, eu estava morrendo de vontade de contar a alguém, ter uma segunda opinião sobre o que ele realmente queria dizer. Estava prestes a contar a Hattie quando fomos almoçar no Refri Grátis. Constance e Mary Violet tinham ido a drogaria comprar pastilhas de hortelã porque Constance tinha comido salada de alho. — Você está sorrindo muito. Você gosta daqui, não gosta? — Hattie perguntou. — Sair do meu ‗lar adotivo‘ já seria o suficiente para me fazer feliz, mas ter o chalé, uma escola tão boa e tudo o mais... é mais do que eu poderia pedir. — Você não teve mais nenhum incidente, nenhuma mensagem estranha? — Não, tudo está bem. Melhor do que bom. Fantástico! Na quinta-feira, o senhor Mason me parou no caminho e disse:
223 — Jane, você poderia vir falar comigo depois da aula hoje? — É sobre meu trabalho, senhor? — Não, você está indo muito bem. Pensei que poderíamos conversar, já que sou seu professor e você é nova aqui — ele retirou seus óculos e os poliu com um pedaço quadrado de pano. — Temos que colocar o Semanal para rodar esta tarde. A senhora Chu disse que estaríamos ocupadas até depois das cinco. — Pode ir tarde mesmo. Tenho trabalhos para corrigir e estarei aqui por horas. — Devo vir ao seu escritório? — Estarei aqui no laboratório. Quando retornei do laboratório de química, um pouco depois da seis da tarde, o senhor Mason estava em pé ao lado da janela olhando o espesso verde das árvores. Ele se virou ao som dos meus passos. Conforme
as
semanas
passavam,
percebi
que
ele
parecia
negligenciado. Sua camisa estava mal passada e seu cabelo acinzentado estava crescendo desordenadamente. Sua jaqueta predileta estava com um botão faltando. As luzes da sua sala de aula ficavam ligadas até tarde todas as noites. Ele colocou uma pilha de papéis na beirada da mesa, logo abaixado da janela: — Você escreveu alguma coisa para esta edição do jornal?
224 — Escrevi um artigo sobre o programa de bolsas de estudos. — Um artigo? — ele sorriu. — Minha esposa era um bolsista aqui também. Ela era órfã e Birch Grove pagou por seus estudos e lhe ofereceu um lugar para morar. Você, provavelmente, deve ter ouvido que ela faleceu no ano passado. — Sim. Sinto muito, Sr. Mason. — Ela havia voltado para lecionar aqui porque era muito grata por tudo o que Birch Grove tinha feito por ela — ele falou. — Birch Grove pode te dar muito, Jane. Não subestime o poder e as ligações desta escola. — Não, senhor — recordando do alívio da minha emancipação conseguida pelo advogado da senhora Monroe. — A senhora Mason viveu aqui ou no chalé? — Os treinadores de esportes viviam no chalé naquela época. Não, a senhora Mason ficou com a família da senhora Monroe. Ela e minha esposa eram tão próximas como irmãs. Bem, este é o milagre de Birch Grove. É como se fosse uma família e é difícil deixá-la — ele disse. — Mas o que realmente quero saber é como as coisas estão indo. O curso da Sra. Monroe está funcionando? — Obrigada por me ajudar na minha transferência. É muito melhor do que o outro curso e ela realmente é uma boa professora. — Mas... — ele disse — Mas ainda não entendo o motivo de analisar uma longa fantasia de um autor morto. Não é química.
225 — Sinto da mesma maneira — ele falou. — Mas não vamos falar a ninguém sobre isso porque as pessoas sempre acham que tem alguma coisa errada com você se você prefere estar em um laboratório do que lendo um romance. Sorri junto com ele: — Fechado. — Bom. Se você precisar de qualquer auxílio, acadêmico ou emocional posso marcar sessões com tutores ou conselheiros. — Está puxando, mas estou acompanhando. — Maravilhoso. Você é minha melhor aluna em química, você sabe. Então, estou realmente feliz que você esteja aqui. — Eu também — disse, sentindo realmente orgulho pelo elogio. Ele tirou um lápis vermelho do bolso — Suponho que seja melhor que nós dois façamos nossa lição de casa. — Sim, senhor. Boa noite Sr. Mason. — Boa noite, Jane. Ainda estava saboreando o elogio do senhor Mason enquanto eu descia a escada sombria. O prédio parecia um mundo diferente quando estava vazio, com apenas poucas lâmpadas acesas, formando um turvo círculo de luz. Meus sapatos de couro soavam muito alto no assoalho e me vi caminhando maciamente.
226 Quando virei à esquina dos armários, vi alguém lá em baixo no corredor e os cabelos de trás do meu pescoço ficaram em pé, em um aviso de que algo estava errado. Uma garota desajeitada vestindo jeans e um casaco preto com um capuz na cabeça estava tentando abrir um armário. Dei dois passos para frente e vi que era o meu armário. — Hey! — grite. Ela virou a cabeça para que eu não pudesse ver seu rosto e correu para a outra direção. Corri atrás dela. Ela virou e desceu para as salas de prática musical. Sem pensar, corri atrás dela gritando: — Hey, você! — Eu não estava muito atrás dela quando passei pela esquina. O corredor estava sombrio e vazio. O final do saguão dava para uma porta de saída de incêndio com uma forte luz vermelha. Se a garota tivesse aberto a porta, o alarme teria disparado. Meu coração dava pulos e cada nervo estava alerta quando desci no saguão, olhando nas salas de práticas musicais. Cada uma delas estava vazia. Ela não poderia ter desaparecido, então chequei cada sala novamente. Os corredores escuros e o seu desaparecimento me fizeram pensar que eu tinha visto um fantasma, mas freei esse pensamento assim que o tive porque sempre havia uma razão para tudo. Ela deve ter conseguido, de
227 alguma forma, chegar ao final do saguão e sair pela saída de emergência sem disparar o alarme. Voltei novamente para o outro corredor. Meu armário estava fechado, mas não trancado. Quando o abri, vi o envelope pardo sobre a minha pilha de livros. A adrenalina ainda corria pelo meu corpo fazendo minhas mãos tremerem enquanto eu pegava três pedaços de papel, cada um recortado de títulos de revistas, para fora do envelope. Um dizia ‗Viver‘, o segundo ‗Coisas que você deve fazer‘, e o terceiro dizia ‗Vá embora‘. Amassei os papeis em forma de bola e os joguei na minha bolsa. Deixei o prédio e olhei para trás. A única luz acesa era a do laboratório de química. A silhueta do senhor Mason ainda estava lá, contra a janela da frente, que não tinha a vista para a saída de emergência. Quando cheguei em meu chalé, tranquei a porta e telefonei para Hattie. Contei a ela o que tinha acontecido: — Jane, isso é horrível! — Seja lá quem for ela, conseguiu minha senha do armário e o código para desligar e ligar o alarme de emergência — eu disse. — Poderia ser alguém que trabalha/estuda nos prédios da administração? Eles têm todas as senhas dos armários e talvez eles saibam como conseguir o código da saída de emergência. Você tem certeza de que não sabe como ela é?
228 — Ela manteve a cabeça abaixada, e ela era alta e forte. Estava muito escuro e não tenho sua visão noturna. — Não sei o que dizer Jane. Você chateou alguém ou alguma pessoa disse algo pra você? — Não que eu saiba. Catalina é a única que tem sido hostil, mas tenho certeza de que não era ela. Ela não liga nem um pouco pra mim. — Não acredito que você a perseguiu. — Nem eu — percebendo que era completamente fora da minha personalidade perseguir alguém. — Eu estava tão brava, tão brava porque... porque amo estar aqui. — Nós temos que contar a Sra. Monroe. — Seja quem for ela fugiu, então, ela tem mais medo de mim do que eu dela. Se eu reclamar, vai parecer que sou eu a causa do problema. — Não, Jane, não vai parecer isso. Nós temos que reportar os problemas. Pensei nos prós e contras de contar à senhora Monroe: — Não, em qualquer coisa que adultos se envolvem, fazem a coisa parecer maior do que de fato é. — Acho que devemos parar as coisas que estão erradas. — Isso só será importante se eu o fizer importante. Provavelmente não deveria ter contato a você. Deixe isso pra lá. O que devo vestir para a festa? — Nós usaremos vestidos. Você tem algum vestido?
229 — Tenho uma saia. — Se você for mais ou menos o meu número, posso te emprestar um. Vou falar com a Mary Violet. Ela tem talento pra essas coisas. — Não conte a ela sobre o que aconteceu. Não diga a ninguém. Prometa. Ela suspirou pesadamente: — Tudo bem. Prometo, mas não concordo. Prometa-me que você vai pensar na possibilidade de contar o que aconteceu para a Sra. Monroe. — Tudo bem — eu disse, mas sabia que não iria mudar de ideia. Despedimo-nos e Mary Violet telefonou cinco minutos depois: — Você sabia que minha mãe tem um quarto, como se fosse um museu, onde ela guarda todos os nossos vestidos? — Suas roupas não cabem em mim, MV. — Não diga o óbvio, por favor! Você é quase do mesmo número que Agnes e ela tem uma pilha de vestidos que não vai usar. — Sério? — disse esperançosa. — Sério. Minha mãe e tias vivem comprando vestidos na esperança de ela ser mais feminina, o que é como... por que elas precisam dela se têm a mim? — Ótimo ponto.
230 — Venha aqui depois da escola. Podemos nos arrumar juntas para a festa. A Constance vem, mas Hattie vai jantar primeiro com o Jacob. Ele provavelmente irá levá-la àquele restaurante de gente velha na cidade. — Se você acha... — Não acho. Eu sei. Os vestidos são muito bonitos, por isso é que Agnes não tem nada a ver com eles. — Você fica me dando coisas, MV. — Eu sei. E isso não é fabuloso? Pelo menos, posso exercer minha influência sobre alguém. Até amanhã, querida! Um problema resolvido, mas eu tinha várias outras coisas para resolver. Anotei e datei o incidente no meu livro de composição. Desamassei os papeis com os dizeres de revista e os coloquei no envelope. Guardei o envelope no caderno. Verifiquei as portas e janelas duas vezes antes de ir para cama. Dormi um sono conturbado. Meus pensamentos pulavam da vaca que tinha quebrado meu armário à festa onde veria Lucky. Tinha quase certeza de que ele não havia mencionado a festa pra mim, mas não sei se ele previu que eu iria, ou não ligou pra isso, ou não me queria lá. Na manhã seguinte, coletei na lavandeira moedas britânicas e canadenses, pregos, parafusos, clipes de papel e outros pequenos objetos de metal. Coloquei todos em um vidro. O som que vinha do pote quando sacudido era alto. Coloquei o pote na minha bolsa de livros, junto com as coisas que precisava para hoje à noite.
231 Quando me juntei as outras garotas no corredor principal em seus uniformes, procurei por garotas altas e fortes. Lembrei de Mary Violet descrevendo Bebe: uma garota forte, como uma lutadora. Entretanto, Bebe era européia. Fui ao meu armário e ordenei meus livros em uma pilha alta. Quando ninguém estava olhando, tirei o pote de vidro da bolsa, balançando-o o mínimo possível, e o posicionei no topo dos livros. Segurando o pote, fechei a porta do armário. Se alguém o abrisse normalmente, o pote de vidro cairia e estilhaçaria. Eu estava apreensiva e ansiosa quando me sentei no laboratório de química. Mary Violet entrou no laboratório sorrindo alegremente: — JW, você não vai acreditar nas combinações que fiz para você experimentar. Transformarei você em uma minidiva! — — MV, repita depois de mim: ‗Jane não é uma boneca Barbie‘. — Jane não é blá-blá-blá — ela disse. — Tragicamente, minha mãe disse que não posso me vestir como uma cortesã. Na França, cortesãs são da classe alta. Elas podem discutir política e arte e também têm técnicas secretas que fazem os homens ficarem insanos de desejo e luxúria. — Mary Violet arregalou seus olhos azuis e deu batidinhas em suas bochechas rosadas: — Imagine! Suas palavras despertaram uma ruim e vaga memória. Meu padrasto aparecendo por detrás de minha mãe. Seus braços estão cobrindo seu rosto e ela está chorando de soluçar.
232 Eu nunca tinha me lembrado disso antes e não sei se é real ou algo que eu tenha imaginado. Estava prestes a falar para MV não desejar um homem loucamente insano desejoso de luxúria quando o senhor Mason começou a aula. Meu armário não foi mexido naquele dia. Deixei o pote de vidro equilibrado contra a porta do armário enquanto fui me encontrar com Mary Violet e Constance nas escadas da frente da escola.
233
Capítulo Doze
―Os trajes devem ser modestos e as alunas devem ser bem educadas. Roupas íntimas nunca devem estar visíveis e, nos dias em que o uniforme não for obrigatório, as alunas estão proibidas de usarem miniblusa, frente-única e esporem o colo. Todas as saias devem ter, no máximo, a bainha na altura de dois dedos acima do joelho.‖ Manual da Aluna Birch Grove
Constance, segurando uma bolsa, estava conversando com Mary Violet na escadaria da frente da escola. — Hey, JW — Mary Violet disse enquanto eu me aproximava delas. — Constance está destruindo meus sonhos. — Não estou não — disse Constance enquanto ajeitava a bolsa na sua mão. — Estou dizendo para ela ser realista. — Oh, não tente provar sua teoria para Jane— falou Mary Violet. — Ela já é muito, mas muito realista. Começamos a caminhar juntas em direção à casa de Mary Violet. — Estou tentando ser mais divertida — eu disse. — Vou à festa e usarei um vestido. Constance disse para MV:
234 — Você deveria limitar suas fantasias ao seu diário da Hello Kitty e aos seus contos. — Isso é tão despretensioso. Se você estivesse no controle do programa espacial, nós nunca levaríamos um homem até o sol. — Nós não... — Constance começou a falar. — O que você faria sem mim pra te fazer rir? — Não faço idéia do que você está falando — disse Mary Violet batendo seu quadril em Constance. Rodeamos o estacionamento enquanto minhas amigas acenavam e gritavam o nome das outras garotas que também estavam indo para casa. Quando chegamos à rua onde a família Heyers morava, Mary Violet falou: — Constance acredita que Lucky nunca vai se apaixonar por mim. Ela acha que sou muito feia e burra. — Eu não disse isso — Constance falou estreitando os olhos de amêndoa. — Eu disse que você é uma menininha bobinha. — É a mesma coisa — retrucou Mary Violet. — Não é não — Constance respondeu. — Jane, diga a ela que não é a mesma coisa. — Não é a mesma coisa — eu disse. — Mesmo que de repente Lucky perceba que você é... — pausou Constance.
235 — Maravilhosa, brilhante e sexy — continuou Mary Violet.
— Claro! Por que não? — disse sua amiga. — Por que você gostaria de namorar o filho da diretora? Isso complicaria as coisas pra você na escola. — A Hattie namora o filho da diretora, mas você não fala isso pra ela. — É diferente. Hattie é uma Tyler, e eles são tão antigos aqui quanto os Monroe. A senhora Monroe não poderia impedir o namoro, mesmo se não gostasse da Hattie. Por que você liga pro Lucien Monroe? Ele é uma espécie de... — Ele é lindo! — Mary Violet disse virando-se pra mim. — Ele não é lindo, Jane? — Sim — respondi e perguntei para Constance: — Ele é uma espécie do quê? — Perfeitinho demais. Parece uma superfície lustrosa, como um reflexo de espelho que você quer ver e me pergunto se não há algo por trás disso. E ele é chato. — Você é louca. As maneiras dele são divinas — retrucou Mary Violet. — Você não se lembra na sexta série que os meninos da Escola de Croqué da Senhora Harlot vieram aqui? Jack vestiu seu blazer pelo avesso porque achou que era engraçado. — Mas foi engraçado — disse Constance pra mim.
236 — Okay, foi engraçado. Mas Lucky foi o único que fez uma reverência depois da valsa — disse Mary Violet. — Ele dança o ‗pra lá e pra cá‘ como um anjo! Armazenei todas aquelas informações para mais tarde e perguntei: — Lucky já saiu com alguma garota de Birch Grove? — No primeiro ano ele era um mulherengo — disse Constance. — Ele saia com todas as calouras, mas ouvimos dizer que a mãe dele colocou um ponto final nisso. — Na época, achamos que estava rolando alguma coisa entre ele e a Hattie, mas quando perguntamos a ela, ela negou. Não sei se acreditei completamente nela. Constance balançou seus magros dedos como se estivesse espantando uma mosca: — Você os imagina juntos porque eles se combinam juntos. Eles são mais como irmã e irmão. — Seguindo esse pensamento, Jack e Hattie também são assim — disse Mary Violet. — Você diz isso, não eu! — falou Constance. — Se Hattie gostasse do Lucky, ela o namoraria, não é? — eu disse. — O que a impediria? — Nadinha de nada — disse Constance. — MV acha impossível acreditar que Hattie escolheria uma personalidade interessante à beleza, embora eu ache que Jack é muito mais atraente do que o Lucky.
237 — Lucky é maravilhoso e tem modos fantásticos — disse Mary Violet. Constance sorriu e olhou pra mim: — Somos umas perdedoras, não somos? Temos tão poucos garotos aqui que temos que falar sobre os filhos da diretora. Espero que alguns garotos do Evergreen tenham se tornado mais interessante neste verão. Chegamos à casa dos Heyer e fomos diretamente para a entrada dos fundos. A senhora Heyer estava na cozinha fazendo espirais na cobertura de chocolate em cupcakes. Todas nós a cumprimentamos. — Minha mãe mais querida — disse Mary Violet — estaremos no Museu do Guarda-Roupa. A senhora Heyer olhou para sua filha e disse: — Você não está autorizada a emprestar nenhuma de minhas camisolas. Nada de decotes baixos! — Já sei, já sei... nada de fendas generosas. Assim que saímos da cozinha, Constance me disse: — Mary Violet ainda está com problemas por ter enviado fotos que quase mostravam seu seio a um cara que ela havia conhecido no verão passado. — Era só um peitinho — disse MV. — Então é por isso que sua mãe verifica toda a sua atividade online? — perguntei. Mary Violet respondeu que sim com a cabeça:
238 — Mas a reação dela foi exagerada. Não tinha nada aparecendo na verdade. Ela é muito pior do que eu. Uma vez, minha mãe fez cupcakes cor-de-rosa e colocou os kisses de morango da Hershey‘s em cima deles. Aquilo era apavorante. — O gosto era bom — comentou Constance. — Tive que fechar meus olhos para comê-los. Fizemos uma intervenção e pedimos para ela nunca mais fazer cupcakes de vulva. — Vocês não fizeram isso... — disse Constance. — Fizemos sim! E ainda li meu poema ‗Ode a uma Mãe Artista‘ — Mary Violet soltou sua bolsa no chão, levantou seus braços e recitou:
―Seus cupcakes são macios e muito deliciosos, Mas você não acata o desejo de suas filhas? O amor materno é o que mais nos estima, Então, por favor, não mais cocos como pelos pubianos, Nem mais gelatinas de minhoca como lábios vaginais, E nenhuma substância que remete ao clitóris. Nós apoiamos suas expressões criativas, Mas cupcakes de vulva causarão revolta.‖
Constance e eu não nos aguentávamos de tanto rir, e Mary Violet disse:
239 — E ela tem coragem de me dizer para não me vestir de maneira repugnante. — Por favor, não mude nunca, MV — eu disse. — Apenas minhas roupas — ela respondeu. MV abriu a porta de um quarto que ficava próximo ao quarto de artes de sua mãe. Três lados tinham araras de ferro como nas lojas de departamento e as quatro paredes tinham prateleiras com bolsas e sapatos. Haviam espelhos de corpo inteiro e um banco com almofadas azul-claras de veludo. Haviam diversos vestidos. — Voila! — ela disse, segurando um dos vestidos. — Escolhi este para você ontem à noite. Os vestidos pareciam ter o meu tamanho e davam a impressão de que nunca tinham sido usados. Era claro que eles haviam sido escolhidos para Agnes: não havia vestidos rosa ou com babados. — Você gosta dos vestidos? — perguntou Mary Violet. — Claro que sim! — e toquei em um vestido marrom-chocolate que parecia de veludo. — Agnes nem ao menos os prova. Ela acha que isso vai afetar seu status de potencial lésbica, mesmo eu tentando convencê-la de que lésbicas afeminadas usam vestidos. — Ela levantou a saia de um vestido sem mangas de cotton — E este? Gosta? Constance pegou um colar de conchas com cores suaves de pêssego que se misturavam a redemoinhos brancos:
240 — Este é bonito! — Ela o colocou na minha frente e me fez olhar no espelho. Minha mão foi em um vestido verde-esmeralda. Peguei-o e o coloquei na minha frente. — Cintura alta, o que faz sua silhueta ficar mais alongada, e a cor ficou fabulosa em você. Elas me fizeram experimentar todas as roupas. Quando fiquei apenas de lingerie, fiz questão de colocar o cabelo na frente do meu ombro esquerdo para esconder minha cicatriz, mas ouvi Constance falar ofegante: — Uma tatuagem! Jane Williams, você é uma coisinha selvagem! — O que o ‗H‘ significa? — MV perguntou. — É a marca de uma gangue? — É em homenagem ao meu amigo Hosea. Ele teve meningite e morreu. — Oh — elas falaram juntas. O verde-escuro foi o melhor. O corte mais estreito me fez parecer mais alta. Eu estava prestes a enfiar meus pés nas minhas enormes sandálias plásticas quando Mary Violet disse: — Espere! Temos um presente para você. Constance apareceu com sua bolsa e abriu o zíper. Ela tirou da bolsa uma bolsinha de pano amarrada no topo com uma fita: — Este é um presente nosso para você.
241 Olhei a bolsinha e senti o peso. Então, desfiz o laço. Dentro da bolsinha havia um par de sapatos de salto alto que mostravam os dedos dos pés: — Como vocês... — eu comecei, tocando o couro macio. — São do meu tamanho! — Bem... — Mary Violet disse — dei uma olhadinha no seu guardaroupa quando passamos a noite na sua casa e vi que você precisa de saltos. Nós todas precisamos! — Obrigada — e meus olhos se encheram de lágrimas.
Minhas amigas colocaram seus braços em volta de mim: — Abraço coletivo! Elas me ajudaram a escolher uma bolsa pequena de veludo e um xale preto de caxemira. A cabeça de Agnes despontou na porta do museu de guarda-roupas, deu uma olhada em mim: — Coube perfeitamente. Pode ficar com ele. Odeio vestidos! Demorei apenas dez minutos para me vestir e alguns minutos apenas para me maquiar e pentear meu cabelo. Constance escolheu um vestido preto e turquesa de figuras geométricas e fez uma trança embutida, moldando-a com presilhas decoradas com borboletas prateadas, que combinavam com os brincos prata de pendurar.
242 Constance e eu nos sentamos na cama para assistir a elaboração da preparação de Mary Violet. Ela experimentou diferentes combinações de roupas antes de escolher uma das muitas de suas roupas pink. E então, MV passou anos mexendo em seus cachos dourados, até deixá-los caídos, exatamente como estavam quando deixamos o campus. Quando ela tinha terminado, olhou para mim: — Jóias. Ela queria que eu usasse brincos enormes de argola: — Até mesmo Constance está usando brincos e bracelete, e ela é praticamente uma puritana. — Não sou uma puritana — disse Constance. — Não preciso me enfeitar como se fosse uma árvore de natal todas as vezes que saio. — Não tenho orelhas furadas — eu disse — e aqueles braceletes que você está olhando são muito... espalhafatosos para mim. Não preciso de mais nada. Mary Violet suspirou alto: — Tudo bem, uma coisa de cada vez... Enquanto ela nos levava para a festa no carro preto de sua mãe, eu ficava alisando meu vestido e o xale. A ideia de ver Lucky me deixava tão apreensiva que eu não conseguia prestar atenção na conversa. Continuamos em um caminho espiralado, estradas escuras nas colinas até que paramos em frente a um portão com uma guarida onde estava um
243 guarda de idade avançada. Uma placa estreita dizia Greenwood Country Club em pequenas letras brancas. — Olá, senhor Haggerty — Mary Violet disse ao abrir sua janela. — Olá, querida! — ele disse e apertou um portão que fez o portão balançar e se abrir. — Divirta-se. — Vejo-o mais tarde. Uma vez que atravessamos o portão, dirigimos pelo campo de golf e Mary Violet falou: — O senhor Haggerty está aqui desde a criação do homem. Uma vez, ele pegou minha mãe e suas amigas nadando peladas, e ela ainda fica vermelha igual a um tomate quando o vê. É por isso que nunca se deve nadar nua perto de casa. — Obrigada por seu sábio conselho — disse Constance. — Se continuar sendo tão ingrata, vou parar de compartilhar com você importantes lições de vida. MV estacionou em uma área próxima a um prédio baixo, perto das piscinas de águas cristalinas. Outro mais velho e impressionante prédio estava mais adiante. — Este armazém nos mantém longe das pessoas civilizadas — Mary Violet adicionou. Garotos e garotas saiam dos carros e iam em direção ao prédio. Os garotos usavam terno, a maioria deles sem gravata e usando tênis, e as
244 garotas desfilavam rapidamente, uma mais linda do que a outra, como libélulas em seus vívidos vestidos de seda. Reconheci várias alunas de Birch Grove. Elas pareciam muito mais velhas vestidas naquela maneira. — Nunca ninguém invadiu essas festas? — perguntei. Na minha escola antiga, haviam guardas e cercas em todos os eventos. — Não — disse Constance. — Conhecemos todos aqui e se um forasteiro apenas dirige pela cidade, o xerife o para e averigua. Andamos até um amplo e escuro saguão. Um DJ posicionado em uma plataforma na esquina estava tocando uma música que me era familiar. Raios de luz irradiavam em todo o lugar, desde pontos centrais até o teto, como uma explosão de estrelas. Cadeiras, bancos e largos vasos de árvores criavam recantos em volta do saguão. Mesas com bebidas diversas estavam no final do salão. Do outro lado, havia um palco com equipamentos de alguma banda. Pessoas se abraçavam em grupos, sorrindo e conversando, com a tranquilidade de conhecerem de onde cada um vem. Segui minhas amigas. Constance se virou para mim: — Sempre procuramos um bom lugar para ter uma visão geral do território para então irmos em missão de reconhecimento. — Você tem assistido ao canal militar com seu pai? — Mary Violet perguntou. — Ele quer ficar perto de mim... — respondeu Constance.
245 Elas se decidiram por um banco próximo ao DJ e colocamos nossos casacos e xales lá. Mary Violet e Constance deixaram seus pertences no banco, confiando de que estariam seguros ali. Eu continuei segurando minha bolsa, que continha as chaves do chalé. Fomos à mesa de bebidas, onde pessoas estavam pegando um ponche vermelho da tigela prateada e colocando em seus copos. — Este é o famoso ponche do Greenwood Country Club — disse Mary Violet. — A receita secreta é uma bebida gasosa à base de gengibre, açúcar, framboesa amassada, suco de limão, suco de laranja e gelo. Antigamente, alguém sempre colocava rum nele. Agora o clube é tão rígido, que temos que beber do lado de fora, como animais. — Você não pode beber de qualquer maneira — disse Constance. — Hoje você é a nossa motorista. — Eles te deixam beber? — perguntei. — Apenas se todos fingirem que isso não está acontecendo — disse Constance. — Faz parte do código moral ‗não vejo nada e não ouço nada‘ de Greenwood. — Olá meninas! Viramos e vimos Hattie vindo ao nosso encontro, de mãos dadas com Jack. O negro cabelo rebelde de Hattie estava jogado para trás e ela vestia um vestido vermelho sem alças, que mostrava sua linda e suave pele. Brincos de ouro brilhante com gemas vermelhas estavam pendurados em seus lóbulos.
246 Senti uma complicada angústia de admiração pela beleza de minhas amigas e por eu jamais poder ser tão bonita assim. Lembrei do comentário de Jack sobre a importância da aparência e pensei se ele havia sido irônico ou sincero. Parado ao lado de Hattie, Jack parecia menos bagunçado e mais sofisticado. Ele usava uma jaqueta de veludo um tanto surrada sobre uma camiseta, jeans antigos e botas pretas. Ele não tinha se barbeado e seus cabelos cacheados pareciam como se ele estivesse saído de uma pedalada dentro de um furacão. Todos disseram olá para todos. Eu me inclinei para trás quando MV grudou no braço de Jack: — Não acredito que sua mãe te deixou sair desse jeito. — Sou um adulto — disse a MV dando-lhe um barulhento beijo na bochecha. — Você parece muito loira, Mary Violet. — Ouvi dizer que sarcasmo é sua voz, Jacob Monroe. — Você sempre foi muito esperta pra mim, Mary Violet. — É por isso que os homens se sentem tão intimidados por mim. Seu irmão está aqui? — Ele estará mais tarde — Jack viu que eu estava me afastando. — Jane, já ouviu falar no Dog Waffle?— Ele viu minha expressão. — Dog Waffle. É minha banda. Acho que a sua reposta é não… A Hattie não está linda? — Sim — eu disse. — Muito mais bonita do que o habitual.
247 Hattie pegou minha mão: — Você está linda nesse vestido! A cor é uma das minhas favoritas. — Pensei que vermelho fosse sua cor favorita — Jack disse. — Namorados, rosas, morango, sangue... Hattie o interrompeu: — Batom vermelho-sangue, rubis, beterraba. — Ninguém gosta de beterraba — Mary Violet disse. — MV, você sempre faz esses grandiosos pronunciamentos — Constance disse. — Com você é sempre todos ou ninguém. Você só tem duas faces para a vida. — Minha mente é como um super computador — MV disse. — Vamos dar uma volta pelo salão. Hattie, você vem ou vai ficar se prestando ao papel de tiete e de companhia sexual aos membros da banda? — Este era o meu plano — disse Hattie. Jack se fingiu de chocado: — Como faço pra participar da ação das tietes? — e Hattie estapeou seu braço: — Encontro com vocês depois, meninas. Segui Mary Violet e Constance enquanto elas faziam a volta pelo salão, que rapidamente ficou lotado. A maioria das pessoas parecia como calouros e veteranos da escola e vários pareciam em idade de estar na faculdade. Minhas amigas estavam tão ocupadas conversando com as
248 pessoas que era fácil para mim escapar para o lado, mantendo-me na área de conforto periférica. A música parou e as luzes do palco se acenderam. Jack e três outros garotos subiram no palco. Um garoto foi para a bateria, outro carregava um baixo, Jack estava com uma guitarra e um garoto magro foi para o centro, onde estava o microfone. O DJ anunciou: — Com vocês, Dog Waffle. A platéia bateu palmas e gritou quando o cantor disse: — Uno, dos, três, quatro... Fui para o lugar onde minhas amigas tinham deixado suas coisas. Sentei e fui escondida por um vaso e assisti à banda o melhor que eu podia, com todas aquelas pessoas em pé. Na City Central, quase todas as pessoas ouviam hip-hop e eu não sabia muito sobre rock. A música estava muito alta para aquele saguão e o som se propagava, era mais barulho do que música. Pude entender apenas um pouco da letra. Era uma música sobre decepção. A banda tocou mais quatro músicas e quanto mais eu ouvia, mais gostava deles. As letras eram inteligentes, não apenas as convencionais rimas monossilábicas, e cada vez mais a energia do salão aumentava. Era óbvio, até para mim, que Jack era um músico bem melhor do que o resto da banda. Ele tocava com sua cabeça baixa e com seu cabelo caído sobre seu rosto. Algumas vezes ele olhava para os outros garotos e sorria. As
249 luzes batiam em seu robusto nariz e queixo e resplandecia o brilho dos seus olhos. Seu sorriso era tão contagiante, que me peguei sorrindo também. Então, vi de relance a cabeça dourada de Lucky próxima ao palco e havia uma cabeleira loiro-mel ao seu lado. Era Catalina, e Lucky estava se inclinando bem perto dela para conversar. A linda garota levantou seu rosto em direção ao de Lucky e sorriu. E ele ajeitou os cabelos dela. Enfiou a faca no meu coração e torceu. Como pude ter sido estúpida para acreditar no discurso namoradas são temporárias, enquanto ele só queria uma plateia para adorá-lo ao invés de uma namorada de verdade? Como pude ser burra de pensar que eu poderia ter significado alguma coisa para ele? Precisava sair de lá, e eu esperava que conseguisse encontrar o caminho de volta ao meu chalé porque eu precisava chorar. Então, eu poderia esmagar as emoções traidoras que me fizeram ter falsas esperanças.
250
Capítulo Treze
―A posse dos seguintes itens resultará em ações sérias e imediatas, incluindo a possibilidade de expulsão: álcool, drogas e armas, inclusive armas de fogo e facas.‖ Manual da Aluna Birch Grove
— Jane! Ai está você! Qual o problema? — Hattie pegou meu braço enquanto eu ia em direção a porta. — Nenhum problema. Eu tenho que ir embora. Eu não... não estou me sentindo bem. Ela colocou seu braço em torno dos meus ombros: — Vamos lá fora para tomar um ar fresco. Lá fora, inalei o ar frio, sentindo como se pudesse respirar novamente. Depois do estacionamento, as piscinas pareciam puras e brilhantes. Vozes surgiam das sombras escuras das árvores. Uma garrafa caiu no cimento em algum lugar, ação que foi seguida por uma gargalhada. Hattie me envolveu em um abraço: — Lá dentro está sufocante. Você está se sentindo melhor? Balancei minha cabeça positivamente: — Estou bem, de verdade.
251 — Jane, posso ver que você não está legal. O que aconteceu? Olhei dentro de seus olhos cor de avelã e desejei que eu não tivesse prometido a Lucky não dizer nada a ninguém: — Não sou muito boa para eventos sociais. Seria melhor ter ficado em casa. — Se você ficar em casa, nunca vai aprender a lidar com eventos sociais. Todos aqui estão acostumados, se conhecem, mas você vai ter que se esforçar mais para conhecer as pessoas. Não é instantâneo. Balancei novamente a cabeça, admitindo: — Vi Lucky lá dentro, com a Catalina. — Ela não está nem um pouco interessada nele. Ele é tão cidade
pequena para ela — Hattie disse, casualmente. — Lucky provoca. Flerta com Catalina porque pensa que isso faz com que as outras garotas fiquem enciumadas.
Ele tem me provocado? – pensei. — Pensei que talvez... — eu disse. — Lucky gosta de fingir que Catalina é a garota mais sexy e mais bonita de toda Greenwood. Como se todas nós nos importássemos com uma garota que sumirá daqui logo que se graduar. — Ela vai para a faculdade, não é? — Sim, a família dela está e ficará aqui apenas alguns anos. O pai dela trabalha para uma multinacional e eles se mudam o tempo todo.
252 — Ah — eu disse, sentindo-me uma idiota pela reação exagerada que tive. — Hattie, e se a pessoa que está me mandando aquelas mensagens estiver lá dentro? — É isso que realmente está te incomodando? Ninguém machucará você perto de mim, Jane. Sorri apenas com o pensamento de Hattie se envolvendo em uma briga: — Você realmente me defenderia? — Claro que sim! Vamos voltar para a festa, a não ser que você queira beber alguma coisa antes. Alguns dos meus amigos montaram um barzinho logo depois da piscina. Percebi então que o seu tom relaxado daquela noite vinha da bebida: — Não, obrigada. — Por que você sempre mantém esse controle tão rígido sobre si mesma? Tentei explicar: — Se você é pequenina e está em um ambiente que não é seu, melhor ficar alerta e ser cuidadosa o tempo todo. — Sei que você não deve achar isso, mas tenho que tomar conta de você, Jane — ela disse isso de uma maneira tão séria, que achei que fosse a vodka falando, porque com o quê uma garota como Hattie teria que se preocupar?
253 Voltei para a festa junto com a Hattie bem no momento em que a banda estava finalizando a apresentação. A plateia aplaudia e gritava e Jack pulou para fora do palco, cumprimentando os amigos, enquanto ele ia em direção a Lucky. Hattie laçou seu braço no meu e me puxou; fomos de encontro aos garotos. Catalina estava encostada no palco. Seu vestido caramelo combinava com sua pele dourada, com as curvas de seus seios e com suas pernas, longas. De salto alto, ela parecia ser tão alta quanto Lucky. — Olá Catalina e Lucky — Hattie disse alegremente, soltando meu braço para entrelaçar seu braço com o de Jack. — Oi, Hattie — Catalina disse friamente, alongando o ―h‖ com som de ―r‖ do nome de Hattie. Ela me olhou de cima a baixo. — Você está vestida como uma mulher, hoje. — Olá para você também, Catalina. Lucky olhou casualmente para mim e Hattie e nos cumprimentou. — A banda do Jack não é maravilhosa? — Hattie disse olhando para mim. Jack tirou uns fios de cabelos que estavam grudados em sua testa suada: — Não a pressione a me elogiar. Ela não é muito de elogios. — Não o elogiaria se eu realmente não achasse bom — eu disse —, mas foi muito bom.
254 Jack levantou suas sobrancelhas: — Bom como pizza? — Pizza é ótima, não boa, então há uma diferença qualitativa aqui. Jack gesticulou dramaticamente, imitando um punhal entrando em seu coração e Hattie riu. A essa altura, Lucky já estava conversando com outras pessoas, outros garotos que haviam aparecido. Então, mas gente se juntou ao nosso grupo e, de alguma maneira, eu estava inserida naquele grupo de pessoas que falavam sem parar, mesmo que ninguém estivesse conversando comigo. Todos conversavam uns com os outros, até por cima da minha cabeça, como se eu estivesse sendo inconveniente em estar parada ali, naquele lugar, como um hidrante. Algum garoto puxou o assunto e outro disse que todo mundo deveria sair de férias com grupos de pessoas. Lucky queria visitar a Polônia porque ele nunca havia ido para lá, Catalina disse que nestas férias iria para Barcelona visitar os parentes. Hattie votou por Portland e alguns nomes de hotéis foram mencionados. Constance, do nada, disse: — Em Oregon sempre chove. Podemos ir para as ilhas e ficar na casa de praia da minha família — e ela puxou a Hattie para uma outra direção, me deixando sozinha ali no meio de todos. Uma garota mais velha chamada Sage olhou na minha direção e perguntou:
255 — Quem é você? — Jane Willians. — Ela é a nova Bebe — disse Catalina. — O que aconteceu com a Bebe antiga? — perguntou Sage. — Ela foi viver com um tio na Europa — eu respondi. — Ah ta. Como se ela tivesse sido dispensada por algum namoradinho do gueto e enviada de volta para o lugar da onde veio — Sage disse, sorrindo e flertando com Lucky. — Lucien, você acha que algum dia sua mãe se cansará de resgatar essas tristes órfãs? Lucky olhou para seu irmão: — Isso é com você, meu mano — e saiu, fazendo-me sentir como se ele não se importasse nem um pouco em como as pessoas me tratam. Queria que um buraco se abrisse no chão para que eu pudesse me enfiar nele, indo para longe daquele lugar e daquelas pessoas. — Eu também não tenho pai e mãe, Sage — Jack disse de repente —, nenhum parente, na verdade. Eu sou adotado. Você sente pena de mim, também? Posso chorar no seu ombro? Meu nariz fica todo ranhoso quando eu choro, mas você não liga, não é, Sage? Me consolar vai fazer você se sentir tão especial, não vai? — Eu... uhum... eu não... — Sage tentou falar, muito nervosa com a situação, e alguns riam em suas costas — Eu não sabia disso.
256 — Não é sua culpa — Jack disse. — Apenas nossos amigos íntimos sabem como a Jane. Jack colocou seu braço em torno dos meus ombros, puxando-me mais para perto dele. Senti aquele choque que acordou todos os meus nervos. Senti o calor de seu corpo e a intrigante essência do seu perfume, como orvalho matinal evaporando na floresta, como a terra no sol. — Me desculpe... eu... uh.... — Sage foi se afastando do grupo. — Não me peça para chorar no meu ombro, Jack — disse Catalina. — Hattie já tem tanto ciúmes de mim! — Isso é porque você é uma deusa, Catalina — Jack disse isso com um imenso sorrido sem-vergonha que a fez rir. Eu me senti um trapo e estava prestes a chorar. Quando tentei me afastar, Jack manteve seu braço firme em torno de mim: — Jane, parece que você já teve uma dose suficiente desses idiotas e minha música horrível deve ter te deixado com dor de cabeça provavelmente. Posso te dar uma carona pra sua casa se você quiser. — Você não tem que tocar de novo? — Não pela próxima hora. Mesmo que eu não quisesse ir com o Jack, eu também não queria ficar ali: — Vou passar a noite da casa da Mary Violet hoje.
257 — Ela sempre fica até duas ou três da madrugada — disse Jack. — Você decide. — Vou falar com ela que vou para a minha casa. Não consegui encontrar a MV em lugar algum, mas Constance estava próxima à mesa de bebidas: — Eu estou indo para a minha casa e Jack vai me dar uma carona. Pego minhas coisas na casa da MV amanhã. — Tem certeza? — Constance disse enquanto olhava um cara magricelo que estava ao seu lado. — Tenho. Vejo você amanhã. Enquanto voltava, indo ao encontro de Jack olhei ao redor procurando por Lucky. Eu o vi conversando com Hattie nas escadas que davam para o palco. Ela gesticulava com os braços, quase como se ela estivesse repreendendo-o. Jack estava esperando por mim próximo à porta e fomos ao estacionamento: — Achei que fosse contra carros. — É a van do nosso baterista — ele disse apontando para um carro velho parado em um canto do estacionamento. — Se eu não consigo equilibrar
uma
amplificadores?
pizza
na
bicicleta,
como
conseguiria
equilibrar
258 Ele abriu a porta do passageiro para mim. Tentei subir com cuidado para não rasgá-lo. A van cheirava a batata de saquinho, a óleo de motor e a erva. Haviam cortinas com estampas de flores que cobriam as janelas de trás. Um boneco do Batman faltando um braço estava no painel. Jack conseguiu fazer a van funcionar depois de algumas tentativas. Ele lutava com o câmbio: — Eu estou dirigindo, então aconselho você a falar pouco. — Ah... — Mas não precisa ser tão pouco assim — ele acenou para os guardas enquanto saíamos do clube. — Pode falar médio, vai. Olhei para baixo - a colina era alta – e para os sinais de trânsito da cidade, bem distantes: — Eu não sabia que você era adotado. Não é um grande segredo, mas não é a primeira coisa que falo para as pessoas. Algumas pessoas olham para a minha família e disse ―qual é o menino judeu?‖ — O que aconteceu com os seus pais? — Eles se divorciaram logo depois do meu nascimento. Meu pai ganhou a minha custódia e, alguns meses depois, morreu em um acidente de helicóptero. Ele era um velho amigo da família Monroe e eles me adotaram. Eles são a única família de que me lembro. — É por isso que você me perguntou sobre a minha família e meu pai.
259 — Eu estava pensando se você alguma vez o conheceu. Eu entrei em contato com a minha mãe biológica quando eu tinha quinze anos. Ela estava casada, sem filhos, e seriamente não interessada em um filho já crescido. Ela não tem comparação com a minha mãe de verdade. — Eu gosto da sua mãe. Ele dirigia pela estrada e ventava muito, ocasionalmente, ele errava a marcha: — Você pode não pensar que eu seja um prêmio, mas os Monroe sempre agem como se eles tivessem ganhado na loteria comigo. Eu não poderia pedir por uma família melhor. — Fico feliz por você, Jack. — E eu também, embora toda família tenha seus problemas, Elfo — ele disse isso me olhando. — Minha mãe trabalha duro, tentando sempre manter tudo em perfeita ordem. Meu pai fica estressado e depressivo. Lucky tem os seus próprios lances. Ele não é apenas uma garoto-sorriso, um galã de cinema, então, não espere que ele haja como um herói. — Jack, se há alguma coisa que você queira me falar, me diga. Não fale de forma indireta. — Indireta — ele disse com um sorriso. — Você é sempre tão direta, não tem nada a esconder, sem diários secretos, sem manipulação. — O que o impede de ser direto também? — perguntei. — Você e Lucky são iguais, a conversa de vocês parece sempre que está em códigos,
260 como se estivessem testando minhas reações. Fico parecendo uma idiota tentando resolver uma questão sem solução. — Não a vejo dessa forma, Jane — ele disse. — Gostaria mesmo de poder te explicar, mas isso é muito complicado e muito... particular. Ele entrou na rua que dava para Birch Grove e apenas algumas luzes estavam acesas na entrada da escola. — Então, qual é o seu papel na família? — Eu sou o que vive dizendo a eles que nem tudo gira em torno do sucesso e do status. — Em outras palavras, o preguiçoso. — Ou o bobo da corte. — O que você quer dizer com isso? — Leia Shakespeare — ele disse. — Por que você simplesmente não me diz? — Não cole na prova! Olhinhos na sua prova, Jane Willians! — ele estacionou. — Vou com você pela trilha até a sua cabana. Ele se inclinou sobre mim para abrir o porta-luvas. O seu braço roçou no meu, enviando aquela mensagem pelo meu corpo, tão forte desta vez que me lancei para trás. — Não se preocupe — ele disse. Imbecilidade não é contagiosa — ele pegou uma lanterna e saímos da van.
261 Ele direcionou a luz da lanterna para o chão e eu o segui cuidadosamente. O vento batia e levantava as pontas do xale de caxemira e os galhos das árvores balançavam. A não ser pela luz da varanda, a cabana estava em completo breu. — Obrigada pela carona — eu disse. Abri a bolsinha de veludo e peguei as minhas chaves. Jack me seguiu até a varanda: — Você nunca tem medo de ficar aqui, sozinha, neste bosque? — Aqui, nas árvores? — e olhei as silhuetas das graciosas árvores. — Eu amo as árvores, embora outras coisas me assustem. — Você pediria ajuda se precisasse? O vento bateu forte jogando meu cabelo no meu rosto e eu o retirei com as mãos: — Eu tenho que me virar sozinha, Jack. Mesmo quando algo me assusta. — Jane, eu sei que você conseguiria sair de um labirinto — seus olhos claros, verdes, olharam para mim sem aquela travessura habitual do seu olhar. — Obrigada pela carona. Boa noite, Jacob. — Boa noite, Elfo. Quando abri a porta, alcancei rapidamente o interruptor. Depois de ligar a luz, entrei na sala de estar. Lá fora eu me sentia segura e era isso o
262 que me assustava: cair em uma armadilha dentro de casa e então ser ferida. Olhei em volta e tudo estava exatamente como eu havia deixado. Fechei a porta com a chave, chequei o banheiro, a cozinha, o quarto e os armários. Nada estava fora de lugar. Quando dei uma olhada pela janela, pela cortina, vi Jack parado em frente a varanda, como se ele estivesse ali se certificando de que tudo estava bem. Ele deve ter me visto também. Acenou, virou-se e subiu pela trilha. Eu não conseguia entendê-lo. Ele me olhava de uma maneira tão estranha, como se ele estivesse vendo algo a mais do que a simples Jane Willians, que todo mundo vê. Tirei o vestido verde-esmeralda e o pendurei no guarda-roupa e coloquei meus novos sapatos - de salto alto – ao lado dos outros sapatos. Coloquei uma blusinha de cotton e a calça do pijama. Enquanto enxaguava meu rosto, olhei no espelho. O rímel estava todo borrado. Quando fui ao armário para pegar o creme de limpeza facial, vi o protetor solar ao lado da aspirina. Pensando na pele pálida de Lucky, eu peguei o frasco e coloquei um pouco do produto na mão. Ele cheirava a Lucky. Lucky queria que eu fosse leal a ele e então ele vai embora, permitindo que Sage me insulte. Ou talvez ele tenha saído porque Sage, inadvertidamente, insultou Jack.
263 Aconcheguei-me no sofá com uma manta. Eu me sentia mais segura ali, onde podia vigiar a porta. Meus pensamentos viajavam. Devo ter pegado no sono porque as batidas na porta me fizeram pular de susto, aterrorizada. Meu coração estava acelerado, e então ouvi: — Jane! Me deixe entrar! Era o Lucky. Corri para a porta e a abri. Lucky caiu em meus braços, bêbado e rindo: — Por que você foi embora? Sentei na cadeira, encarando-o e cruzando os braços: — Eu estava cansada. — Não foi por causa da Sage? Que merda de Maria-Vai-Com-AsOutras aquela menina. Esquece ela! Fui para a cozinha, enchi um copo com água da torneira e dei a ele. Ele tomou alguns goles: — Vem aqui, senta aqui comigo. Sentei no canto mais distante possível do sofá. Mesmo com o olhar turvo, Lucky era estonteante. Pensei que nunca ficaria cansada em olhá-lo. — Jane, você está brava comigo? — ele buscou por minha mão, mas eu o rejeitei.
264 — Por que você me desprezou daquele jeito? — a dor tomou conta da minha voz, fazendo-a ficar mais alta. Ele deu de ombros: — Eu já te disse. Aquelas cadelas ficarão enciumadas se souberem sobre nós. — O que é nós? Eu não sei o que você quer de mim. — Vou te mostrar o que eu quero — ele apalpou a jaqueta e retirou algo dela. Era um canivete de ouro, muito parecido com o da Hattie. Levantei-me do sofá e dei dois passos para trás, para fora do seu alcance. — O que você acha que está fazendo? Ele me olhou com aqueles olhos, da cor do céu: — Quero fazer um pacto de sangue com você. Será apenas uma ou duas gotas. Você não confia em mim? Eu queria confiar em alguém. — Para nos selar, Lucky e Jane — ele disse. — Você mesma pode fazer em você, se isso a fizer se sentir mais segura. Venha aqui, Jane. Por que eu fui até ele? Porque eu queria algo, queria alguém tão lindo, e eu queria acreditar que ele me achava especial. Sentei-me ao seu lado e ele me deu o canivete e eu o abri: — O que você quer eu faça?
265 — Corte o seu dedo, só isso. Ele pegou minha mão com sua mão esquerda e segurou o meu dedo indicador. Hesitei e, silenciosamente, contei até três e passei a ponta da faca na ponta do meu dedo. Ele então pegou meu dedo e o apertou até que um filete de sangue lustroso e vermelho aparecesse. Lucky levantou meu dedo e o colocou em sua boca pressionando-o contra a sua língua. Ele sugava com força e deixou o canivete cair na mesa, usando seu braço livre para me abraçar, deixando-me colocada a ele. Meu corpo tremia de desejo e Lucky soltou um gemido. Quando ele finalmente escorregou meu dedo para fora de sua boca úmida e quente, ele disse: — Jane, você é deliciosa. Ele pegou o canivete novamente e então me empurrou com força. Ele se virou para a mesa, cambaleando. Eu o agarrei para impedir que ele, de fato, caísse: — Lucky, você está bem? — Nunca estive melhor. Ele me levou para o quarto e ligou o abajur próximo à cama, jogou o canivete na mesinha ao lado e tirou seu casaco, jogando-o no chão. Ele pegou minha mão e se sentou na cama. Ele parecia enorme naquele quarto pequeno. De repente, ele me jogou no colchão e subiu em cima de mim. Eu queria olhar em seus olhos para ver o que ele estava
266 sentindo. Eu não sabia que ele queria transar comigo, e também não sabia se eu queria transar com ele daquela maneira. Mas Lucky se focou em meu pescoço. Seus lábios estavam em meu pescoço, primeiro beijando, depois mordiscando, como ele havia feito antes. E então, ele mordeu com força, e eu o afastei, colocando minhas mãos em seu peito: — Pare! Você está me machucando. — Desculpe — ele murmurou. Ele se levantou um pouco, ficando com os cotovelos apoiados na cama e colocou a palma de sua grande e suada mão entre meus seios: — Você é tão pequena quanto um pássaro. Posso sentir seu coração dando pulos. Eu queria tanto ser tocada, e sua beleza e necessidade me excitavam. Ele pegou meu braço e o virou, fazendo meu corpo todo estremecer. — Feche seus olhos — ele disse. — Não. — Sugarei apenas por um segundo, um corte bem pequeno. Eu
preciso tanto de você. Você não consegue sentir isso, que eu preciso de você? E então ele pressionou seu corpo contra o meu e senti sua solidez. — Você não vai me deixar ter apenas algumas gotas?
267 — Por quê? — sussurrei. — Por favor, me diga o porquê. — Eu gosto do gosto. Eu preciso desse gosto. É uma singularidade minha, e eu não posso compartilhá-la com mais ninguém, além de você. Ele parecia tão vulnerável, aqueles olhos azuis penetravam em mim, sua respiração ofegante: — Por favor, Jane, por favor. Ninguém havia precisado de mim antes e, de alguma maneira, eu entendia sobre singularidades que não podiam ser compartilhadas: — Tudo bem — e fechei meus olhos. Hesitei quando a faca penetrou na minha pele, na parte inferior do meu cotovelo. Lucky lambeu todo o corte com sua língua. Lá fora, o vento crescia alto, correndo por entre as árvores, e seus galhos batiam contra o chalé enquanto Lucky chupava e sugava o ferimento, um corte aberto. Segurei firme seu grosso cabelo dourado e quando ele me pressionava contra seu corpo, eu tentava ignorar a dor que emanava do meu braço, o urro do vento. Pensei que eu deveria querer mais dele, mas aquilo era o suficiente para mim. Movi minhas pernas e quando ele me apertou novamente contra seu corpo o prazer aumentou, quase me fazendo esquecer a dor aguda de seus dentes. E as árvores batiam na janela fazendo-as tremer.
268 E então Lucky gemeu e seu corpo estremeceu. Quando ele levantou sua cabeça, havia sangue espalhado por toda sua boca. Ele lambeu os lábios, fazendo com que sua língua ficasse completamente vermelha de sangue e soltou uma gargalhada alta, muito alta. — Isso foi incrivelmente foda! — ele disse, com os olhos já meio fechados, como um gato quando dorme profundamente. Seu corpo então cambaleou e ele engatinhou sobre mim, indo em direção ao canto da cama, e desmaiou.
269
Capítulo Quatorze
―Birch Grove compreende a complexidade do abuso de drogas e álcool entre os menores de idade. Evidência de alunas fazendo uso de álcool ou drogas deve ser denunciada com discrição, tendo em mente que o aluno deseja e está trabalhando para superar este problema.‖ Manual da Aluna Birch Grove
LUCKY estava em um sono profundo e embriagado e mesmo assim eu nunca havia visto alguém tão perfeitamente lindo. Tirei seus sapatos e cinto para deixá-lo mais confortável e o cobri com um lençol. O vento forte havia cessado e agora as árvores faziam monótono e lento shush- shushshush. Um celular começou a tocar por volta das quatro da madrugada. Achei o telefone de Lucky no bolso da sua jaqueta. O nome ‗Jack‘ piscava no visor. A princípio eu não ia atender, mas Jack deveria estar preocupado com o seu irmão. — Alô, é a Jane. — Ele está ai? Deixe-me falar com ele! — Ele apareceu aqui e desmaiou na cama.
270 — Eu não acredito que você o deixou entrar. Achei que você fosse mais esperta. — Ele é meu amigo. — Que tipo de amigo? O tipo que ignora você em público e depois aparece para uma, uma... deixa pra lá. Por que você está deixando Lucky te usar, Jane? — Jack, não é da sua conta como eu escolho os meus amigos e o que faço com eles — e senti meu rosto ficar quente de raiva e algo mais. Jack permaneceu em silêncio por um momento: — Deixe-o passar a noite aí e arranjo uma desculpa para dar aos meus pais. Ele não se despediu ao telefone, desligou sem falar nada mais. Estiquei o braço para deixar o celular sobre a mesa e vi o horroroso ferimento vermelho-arroxeado. Era mais um hematoma do que um ferimento, mas o vermelho vivo do corte ainda era visível. Fui ao banheiro e lavei o corte com água quente e sabão. Havia um kit de primeiros socorros embaixo da pia, e de lá peguei de um antibactericida, espalhando-o sobre o corte. Enquanto colocava um largo band-aid sobre o ferimento, pensei no dia em que, acidentalmente, me cortei enquanto fazia a salada. Então pensei que Lucky me pareceu naquele momento compenetrado, mas agora uma palavra vem à minha mente para descrever sua emoção: ávido. Ele estava excitado.
271 Retornei ao quarto e escorreguei por entre os lençóis, ficando ao lado de Lucky. Eu estava muito tímida para colocar meus braços em volta dele, então deixei minha perna tocar a dele. Desliguei as luzes e ouvi sua respiração firme. Quando acordei, Lucky estava sentado na cama, ao meu lado e o lençol havia escorregado até minha cintura. — Bom dia, Jane — ele disse com uma aparência renovada e olhando fixamente para o meu ombro esquerdo. — Bom dia. Ele puxou a alça da minha blusinha para baixo: — O que é isso? — ele disse tocando na minha cicatriz e eu me afastei. — Uma cicatriz de um acidente que sofri na infância — respondi puxando o lençol até meu pescoço. — Ela não é tão ruim assim. Você deveria ver a perna do meu amigo Brad. Ele a arrebentou enquanto fazia snowboarding e precisou de quarenta pontos. Aquilo sim é feio. Lucky pegou sua jaqueta e seu celular e então eu disse: — Jack ligou no seu celular ontem à noite. Ele tem problemas com a nossa... nossa... amizade. — Quem liga para o que o Jack fala? — Lucky deu um rápido, mas ofuscante sorriso, pegando minha mão e virando-a de modo que o interior
272 do meu braço ficasse à mostra e olhou para o band-aid. — Espero não ter sido muito grosseiro. Eu me excedi. — Você já havia feito isso antes? — Não, mas venho pensando muito sobre isso — ele disse. — Eu tenho que ir. Mal posso esperar pela próxima vez. — Lucky — pausei e continuei. — Você acha que é um vampiro? — Se eu acho que sou um vampiro? Aquele tipo morto-vivo que dorme em caixões e tem centenas e centenas de anos? — ele disse com uma risada. — Não, sou um ser humano e posso te mostrar minha certidão de nascimento. Você acha que eu sou um vampiro? — Claro que não, mas pensei que talvez você pudesse acreditar nisso. Você sempre usa protetor solar e... — É um creme especial, não protetor solar. O fundador da cidade se mudou para cá por causa deste tempo horrível que faz aqui. Eu me queimo muito fácil com o sol, sou pior que os albinos. — Será que você tirou essa ideia do sangue das histórias que a sua mãe te contava quando você era pequeno? — Jane, será brochante se você trouxer a minha mãe para a conversa. Isso é apenas entre nós. Achei que você gostasse também. — Gosto de estar com você, mas não gosto da parte dos machucados. — Vamos arranjar uma maneira de fazer isso sem machucar você — ele deixou o quarto e eu levantei para segui-lo até a sala. Queria que, pelo
273 menos, ele me desse um beijo de despedida, mas recebi apenas uma carícia na cabeça, como seu eu fosse um animal de estimação, ou uma criança. — Até mais Jane — ele disse e saiu. No banho, me peguei pensando na maneira como Lucky me puxou contra ele. Minhas mãos ensaboadas acariciavam meu corpo enquanto eu imaginava Lucky me tocando de outras formas, em outros lugares. Assim que sai do banho o telefone tocou. Enrolei uma toalha em volta do corpo e corri para atender, pensando que poderia ser o Lucky: — Alô! — Olá, JW — disse Mary Violet do outro lado da linha. — Pensamos que você viria para o café da manhã. Estamos preparando panquecas e Constance quer uma sessão retrospecto pós-festa. Ao fundo, Constance gritou: — É você quem quer fofocar, MV! — CA se encontrou com o seu amante, Gerald — Mary Violet continuou. — O geriatra número um do colégio. — Comecem o café sem mim — eu falei. — Estarei logo ai. — Bom! Porque a Constance disse que precisa de opiniões imparciais e, pra fazer isso, só você Jane, que sempre assiste, mas nunca se envolve. — É, essa sou eu — eu disse, pensando em qual seria a reação delas se soubessem o que aconteceu entre o Lucky e eu.
274 Coloquei uma calça cargo e uma blusinha de manga longa, peguei os livros da biblioteca e as roupas que foram emprestadas pela MV e fui à casa dos Heyers naquela manhã gelada e cinzenta e enevoada. Faz sentido que pessoas com problemas com o sol morem aqui porque o céu sempre está repleto de nuvens. Hattie já estava lá, ouvindo enquanto Mary Violet discutia quem vestiu o quê na festa e que cada um fez. Tentei devolver o vestido verde, mas MV disse: — É seu! Agnes falou sério sobre dá-lo a você. Fiz minha amiga pegar de volta o xale e a bolsa de mão. Constante estava mais alegre do que nunca, falando sobre encontrar com seu ex: — Você deveria ter ficado. Embora eu tenha ouvido falar que Sage foi extremamente má com você. — Você deveria ter estapeado aquela garota — Mary Violet disse. — Todo mundo ama briga de mulher. Você teria marcados uns pontinhos com os garotos. Hattie se virou para mim: — Eu teria estapeado a Sage também, assim a MV teria a briga de mulher que ela tanto queria. — Ouvi dizer que Jack deu um ‗chega pra lá‘ na Sage. — Ele deu mesmo — admiti.
275 — Jack é sempre o nobre — disse Hattie, que imediatamente sorriu. — É por isso que gosto dele. — Na verdade ele é meio sexy quando toca. — Mary Violet disse. — Não tão deslumbrante como o Lucky, mas muito sexy de qualquer maneira. Você não acha Jane? — Ele parece talentoso — respondi. — Embora eu não entenda sobre música. — Você não precisa saber nada sobre música ou esportes para virar uma fã, assim, como a Hattie — disse Mary Violet. — Algum dia ela nos contará sobre as depravações do Jack. — Ah, mas aí perderia todo o mistério. Um homem com segredos obscuros é sempre mais sexy — ela disse e eu desejei poder contar a elas sobre o segredo obscuro de Lucky e suas depravações. Enquanto as garotas falavam quem fez o quê na festa, esfreguei meu dedão no lado de dentro de meu braço, sentindo o band-aid por baixo do tecido e a palpitação do ferimento. Disse a minhas amigas que eu tinha que voltar para casa e fazer minha lição. Quando Mary Violet me acompanhou até a porta, disse: — Você deveria ficar e fazer sua lição aqui. Posso responder todas as suas perguntas. Lembrei-me do que Jack disse. — MV, o que fazia o bobo da corte em Shakespeare?
276 — O bobo é o meu favorito, logo após os heróis românticos e os trágicos, e as heroínas, e os vilões — ela disse. — O bobo é o único que tem permissão de falar a verdade sobre as coisas para o rei, mas ele só pode fazer isso por meio de piadas, fazendo insultos. Ele é protegido pelo rei, a menos que o bobo vá longe demais, e, então, é mandado ao exílio. Você está perguntando isso por causa das Noites de Terror? Balancei minha cabeça positivamente. — Bem, definitivamente, deveríamos ter O Trabalho Crítico de Shakespeare juntas no ano que vem. Muito trabalho de campo para assistir às peças. E a escola acaba trazendo os garotos do último ano de Evergreen para fazer as cenas com a gente. Eu posso ser Ofélia e você pode ser uma das garotas que se vestem de menino e então ilude o herói. — Mal posso esperar. Enquanto descia a colina, senti a primeira presença do outono no ar. Jack deveria pensar que ele era um contador de verdades, mas não era isso que ele fazia de fato. Depois de devolver meus livros na biblioteca, fui para a sala de computadores para tentar achar algum dos meus amigos Alfas na web. Quando tentei logar, uma mensagem de usuário inválido apareceu, piscando na tela. Tentei outro computador e o problema persistiu. Um homem na mesa de informações viu que eu estava tendo problemas e se aproximou: — Posso ajudar?
277 — Por favor! Estou tentando acessar a conta da biblioteca, mas o sistema não me deixa logar. Chequei por duas vezes o número da conta e a senha. — Posso ver o seu cartão? Quando entreguei meu cartão, ele logo disse: — Você é aluna da Birch Grove? Você sabe que há uma política de não utilizar computadores para trabalhos escolares. — Mas isso não é para trabalhos escolares. Estou tentando contatar alguns amigos e fazer uma nova conta de e-mail. — Entendo. Ele tentou logar com a minha conta e a mesma mensagem de erro apareceu. — Um momento — ele falou. Ele foi até o setor de informações e digitou alguma coisa no teclado, retornando logo em seguida: — Desculpe. Ainda estamos lidando com pequenos problemas de uma atualização recente em nosso sistema interno. — Entendi... Há outro lugar nas proximidades que tenha computadores públicos? Ele balançou a cabeça negativamente: — Aqui a comunidade gosta de proteger suas crianças de material inapropriado e predadores online. Volte em algumas semanas.
278 — Obrigada por checar. — Posso te ajudar com mais alguma coisa? — Não, obrigada. Consigo achar tudo por conta própria. Achei uma estante com livros sobre psicologia. Folhei os índices procurando por Fetiches e Perversões para a palavra sangue e, de repente, o bibliotecário apareceu: — Com licença — ele disse em um sussurro um tanto alto. — Esses livros são para maiores de 18 anos. — Sou uma menor emancipada. — Pode ser, mas você não tem mais de 18 anos — e tirou o livro da minha mão, fechando-o. — Há algo mais que você precisa? — Eu não tinha percebido que vocês têm livros censurados aqui — eu disse rispidamente, pegando minha bolsa. — Não é censura. É uma restrição para idades apropriadas — ele respondeu secamente. —Acho melhor você ir agora, senhorita Willians, ou terei que comunicar a diretora sobre este incidente. — Tudo bem — eu disse e sai. Eu estava furiosa enquanto caminhava ao mercado. Que tipo de cidade restringe livros de psicologia, pensei enquanto comprava leite, pão e frutas.
279 Enquanto esperava o ônibus para Birch Grove, vi a Mercedes da Sra. Monroe parando devagar. Ela acenou para mim e fui até a janela de seu carro: — Olá Sra. Monroe. — Olá Jane! Achei que tinha te visto saindo do mercado. Você quer uma carona para o campus? Troquei o peso do saco de papelão com as compras de lado: — Se não for incômodo para a senhora. — É claro que não. Entrei no carro e coloquei as compras no colo. Eu estava bem alerta em relação à bandagem em meu cotovelo, que coçava por baixo da minha blusa. No caminho, na colina, a Sra. Monroe disse: — Você gostou da festa ontem à noite? — Foi legal. De maneira alguma ela saberia que seu filho passou a noite comigo, a menos que Jack tivesse contado, mas não achei que ele poderia ter feito isso. Depois de um momento, eu disse: — Eu nunca tinha ido a um clube country antes. — Ele é o centro da nossa vida social aqui. Jack já está um pouco saturado daquele lugar, mas ele não pode tocar em muitos outros antes de completar 21 anos. — Gostei da banda dele. O nome significa alguma coisa?
280 — Dog Waffle? — ela sorriu. — Sempre quando faço waffles o velho cachorro do vizinho aparece, implorando por waffles. O nome da banda é uma piada que, acho que Jack quis fazer comigo. — Eu não consigo diferenciar quando ele está falando sério ou quando está brincando. — Ele sempre está fazendo as duas coisas — ela disse. — Ele não consegue ser sério sem humor e não consegue ser bem-humorado sem ser sério ao mesmo tempo. — Como o bobo da corte? — Jack não é nenhum bobo, muito menos da corte — ela respondeu. Estou tão feliz que você tenha se enturmado. As meninas parecem que gostam bastante de você. Espero que você não ache que dar aulas de monitoria para o Lucky seja uma tarefa muito árdua. — Ele é um bom aluno. Chegamos à escola e Sra. Monroe estacionou próximo ao portão de entrada: — Você se importa em caminhar o restante do caminho? Sacudi minha cabeça negativamente: — Obrigada pela carona. — Vejo você amanhã, no jantar. Quando entrei no chalé, corri para o telefone a fim de checar se o Lucky havia deixado algum recado. Não deixou. Fiquei no chalé a maior
281 parte do tempo, fazendo os meus trabalhos escolares e esperando que ele ligasse. Eu não havia dormido muito, então fechei meus olhos para descansálos e adormeci. Sonhei com as bétulas caminhando em minha direção, surpreendentemente graciosas em seus enormes tamanhos. A Sra. Monroe estava sentada nos galhos, bem alto, como se as tivesse guiando. — Todas as minhas meninas de Birch Grove são excepcionais — ela dizia. — Jane, você é a mais especial de todas porque você já está morta! — Eu estou viva — tentei gritar. — Estou viva! Acordei em um solavanco e me vi sozinha, no escuro. Tateando as paredes, liguei a luz e olhei para o relógio. Era quase meia-noite. Abri a porta e fui até a varanda, esperando que o ar frio pudesse clarear meus pensamentos. Alguém estava lá fora. Fiquei imóvel para tentar ouvir alguma coisa. Parecia como várias vozes falando ao mesmo tempo e o som vinha junto com o vento e o soprar das árvores. Na direção das árvores, vi um relance de luz, mas ela se foi no instante seguinte. Então, algo se moveu. Dois veados que estavam atrás das árvores. Eles me encararam com aqueles olhos escuros e suas orelhas, de repente, se ergueram em alerta. Aquela era a primeira vez que via um veado e a beleza deles era de encher os olhos.
282 Então eles se viraram e lentamente foram embora. Voltei para o chalé e assisti televisão até que adormeci no sofá. No dia seguinte, tentei ser paciente, mas não conseguia esperar para ver Lucky novamente, então fui mais cedo para a aula de monitoria. A Sra. Monroe me encontrou na porta: — Lucky ainda não voltou do cinema. Ele foi ver um filme com alguns amigos. — Oh — eu disse, pensando os amigos que ele diz não ter. — Posso voltar mais tarde. — Oh, não — ela disse. Você não gostaria de esperar na sala da família? — Se não for incomodar. A Sra. Monroe me deu um copo de suco e respondi às suas perguntas sobre as minhas aulas enquanto olhava para o relógio discretamente. — Vi um veado perto do chalé ontem à noite. — Viu? Um bando deles vive pelas redondezas. Há outras espécies de animais também, como esquilos, guaxinins, jaritatacas. Haviam raposas também, mas ninguém vê uma raposa por aqui há anos. — Alguns barulhos que ouço à noite são provavelmente animais? — Certamente, Jane. Um dos vizinhos tem pavões e o grito deles é assustador. É parecido com o som de uma mulher chorando. Mas, por
283 favor, fique longe do bosque à noite. Os guaxinins não são personagens de desenho animado e podem atacar. Eles matam gatos de vez em quando. — Mas eles não atacariam um ser humano, atacariam? — Normalmente não, mas um animal amedrontado pode não ter um comportamento anormal. Você pode ficar em uma situação de perigo se chegar perto demais deles, principalmente se estiverem com filhotes — ela disse. Gostamos de manter o habitat do animal, e isso significa termos aqui animais com atividades noturnas. Quando ouvi a porta da frente se abrir, meu coração quase saiu pela boca. Lucky veio até a sala familiar. Ele vestia um boné com listras estreitas, óculos de sol, uma camiseta de manga longa e jeans. Ele parecia incrivelmente sexy. — Olá mamãe. Olá Jane. — Jane está esperando por você, Lucien. — Não estou atrasado — ele disse com um tom de aborrecimento. — O jantar será servido em uma hora e meia — sua mãe disse. — E sem chapéu dentro de casa, meu jovem rapaz. Lucky tirou o boné, girando-o com os dedos e disse: — Vamos, Jane.
284 Eu o segui, pensando naquele tom de voz. Quando subimos as escadas e chegamos à sala de estudos, ele se jogou no sofá, todo espalhado. Seus olhos eram impossíveis de serem lidos por trás daqueles óculos de sol. — Você não poderia ser menos óbvio? — Eu não disse nada! — Você não precisa dizer nada. Qualquer um consegue ler isso na sua testa. Ele se sentou, me julgando, sendo superior e fui ríspida: — É isso que você queria dizer sobre me usar. Você me quer quando é conveniente para você, mas você sente vergonha de mim. Você não acha que te mereço. Meu tom chamou sua atenção. Ele tirou os óculos: — Desculpe-me. Não sei como fazer isso sem que nós dois nos metamos em problemas, Jane — ele disse. — Se quisermos manter nossa relação, não podemos deixar ninguém saber. Você mesma me disse como Jack reagiu. Você viu a Sage. Você não pode ter paciência? — Por quanto tempo? — Não muito. Alguns meses — ele disse, me alcançando e me colando em seu colo. — Eu não quero perder o que temos ok? Olhei para o seu lindo rosto: — Tudo bem, mas você tem que ser mais legal comigo, Lucky. Ele sorriu:
285 — Como está o seu braço? Deixe-me ver. Levantei a manga da blusa e ele lentamente retirou a bandagem. A área estava roxa e amarelada ao redor do corte. Ele virou meu braço e inclinou sua cabeça para lamber o corte, me fazendo tremer por antecipação. De repente, ele me levantou e me jogou contra o sofá, respirando pesadamente: — Aqui não, alguém pode nos ver — ele disse. Você é tão boa comigo, Jane, e eu sou um idiota. — Por que você sempre se coloca para baixo? Para que eu possa sentir pena de você? Ele deu um sorriso aberto, mostrando os dentes: — Não. É porque sei que deveria ser uma pessoa melhor. — Então tente ser uma pessoa melhor — retruquei. Lucky, por que a Hattie tem uma faca igual a sua? — Muitas pessoas têm esse tipo de faca. Seus amigos não tinham facas? — ele perguntou, tirando o canivete do bolso. Ele o abriu e começou a acariciar meu corte com ele. Tentei manter a firmeza em minha voz: — Alguns, mas para proteção.
286 — Talvez isso seja uma coisa de Greenwood. Se quiser um posso arranjar pra você. Como um presente. Talvez você preferisse um canivete suíço, que vem com adereços, como tesoura. Ele passou levemente a ponta da faca na parte interna do meu braço, desde o cotovelo até o pulso: — O sangue vicia, como uma droga — ele disse. — Mas ele é melhor do que uma droga porque me faz mais forte e saudável. — Não pode ser. A quantidade que você suga é insignificante em termos de proteína. E se eu estiver doente? — Você não está doente. — Eu não deveria deixar você fazer isso comigo — falei saindo do sofá e cruzando a sala. — Não, Jane. Isso é um ato de caridade — seu olhar azul penetrou em meus olhos. —Você confia em mim porque sabe que preciso de você tanto quanto... Isso não é unilateral. Sempre cuidarei de você também. Prometo. Ouvimos passos que vinham do corredor. Lucky guardou a faca rapidamente em seu bolso, e em instantes a Sra. Monroe despontou na sala, carregando uma bandeja de uvas roxas. — Você nem mesmo pegou seus livros! — Desculpe, mãe — ele disse com uma voz inocente, como um garotinho. — Eu estava contando a Jane o que vi na escola, na semana passada.
287 A Sra. Monroe entregou a bandeja nas mãos de seu filho: — Jane, não o deixe te distrair com historinhas. — Não senhora. Quando ela saiu, eu disse: — Ela está me pagando por hora. Você fez alguma coisa da sua lição de casa? Ele pegou sua lição e tentei me concentrar nos números e símbolos. O jantar foi bem silencioso porque Jack não estava lá. Era lasanha feita em casa com um espesso molho de tomate. Dei uma olhada em Lucky enquanto ele mastigava o pão de alho, pensando no que ele havia feito comigo, e, então, me peguei pensando se a Sra. Monroe fazia ideia daquela
singularidade de seu filho. Lucky me levou para a casa depois do jantar. Ele falou sobre o colégio e seus amigos de escola. Tentei me lembrar dos nomes dos seus amigos, a maioria deles esteve na festa. — Como o Julian! Ele pegou o carro novo do pai ―emprestado‖ e, quando saímos do clube, o carro não estava lá, tinha sido roubado! Hilário! — Lucky disse deixando uma risada alta escapar. — Então, como eu devia um ‗favor de irmão‘ a ele, o levei embora. Ele entrou bem devagar em casa e foi direto pra cama. No dia seguinte, quando o pai dele percebeu que o carro não estava na garagem, pensou que alguém havia roubado o carro dali, e Julian agiu como se estivesse ficado chocado. — Isso é totalmente irresponsável e desonesto.
288 — Quem quer que seja quem roubou, é um ladrão. Não foi culpa do Julian. Além disso, o seguro cobrirá o prejuízo. Quando chegamos ao chalé, ele disse: — Talvez eu apareça por aqui esta semana. Até mais! Tão simples quanto aquilo, Lucky estabeleceu as regras para o nosso relacionamento. Ele me visitaria quando sentisse vontade e eu não reclamaria. Eu o recompensaria em sua estranha particularidade e eu seria recompensada em estar com ele, em tocar e ser tocada por um homem um tanto excepcional. Eu estava tão fixada no Lucky que não me importava com meu inimigo secreto. Nada mais importava, exceto tê-lo comigo enquanto eu alimentava sua compulsão pelo meu sangue. Tirei o meu caderno do esconderijo e escrevi tudo o que aconteceu recentemente com o Lucky, com o Jack e na festa. Já passava das 11 da noite quando fui para a cama.
NA SEGUNDA, corri para a casa depois da aula, assim, estaria no chalé caso o Lucky ligasse ou resolvesse passar por lá. Acabei minha lição de casa primeiro e tentei ler o ensaio sobre Noites de Terror, uma história chamada O Vampiro, de John Willina Polidari. A história era sobre um jovem homem chamado Aubrey, seu melhor amigo, o misterioso Lord Ruthven, e uma linda jovem. Aubrey se aventura
289 em uma perigosa floresta, mesmo sendo ―o resort das orgias noturnas dos vampiros‖. Quando vampiros matam a bela garota, Aubrey é tomado pela depressão e Lord Ruthven toma as dores do amigo. Então Lord Ruthven morre e retorna à vida, causando a insanidade de Aubrey, que promete nunca contar a ninguém o segredo de seu amigo. Então, a irmã de Aubrey é morta – ela satisfez a sede de um VAMPIRO! Fim. Aquela foi a história mais estúpida que li na vida. Pesquisei as palavras que eu não sabia li a história novamente e fiz uma sinopse de 350 palavras. Lucky não ligou naquela noite, e adormeci pensando amanhã ele virá,
amanhã ele telefonará, amanhã ele me abraçará fortemente, talvez amanhã ele me beijará... A esperança me fez parecer tão patética quanto Aubrey indo para a floresta perigosa.
290
Capítulo Quinze
―Acreditamos que atividades extracurriculares enriquecem nossa experiência educacional. Alunas são encorajadas a participar de clubes e atividades diversas. Todo clube deve ser aprovado pela administração e será concedido como um bônus para a faculdade.‖ Manual da Aluna Birch Grove
— Jane? Jane? A Sra. Monroe estava à frente da turma, na sala de aula, e eu estava com a cabeça nas nuvens. Seu terninho azul tinha listras brancas. Ela sempre parecia tão elegante. — Desculpe-me. A senhora poderia repetir, por favor? Ela disse calmamente: — Perguntei o que achou de Aubrey e sua situação desagradável com o Lord Ruthven. — A história não tem nenhum sentido — eu disse. — Por que Aubrey mantém sua promessa ao Lord Ruthven quando ele acredita que o amigo é um vampiro? — Você acha que ele deveria ter quebrado a promessa?
291 — Claro! Especialmente porque ele, secretamente, colocava os outros em perigo. Por que Aubrey é tão delicado a ponto de ficar maluco tão facilmente? — É uma metáfora — um dos veteranos disse. — Uma metáfora representa alguma coisa, e eu não acho que isso represente — respondi. — O autor crê que Aubrey é estúpido, também porque ele o descreve como confiante da poesia sobreposta à realidade. Constance falou: — Concordo com a Jane. Não acho que o autor pensou muito na história. A estrutura é bagunçada, a escrita é estranha e os personagens são clichê. A menina mais nova é descrita como... — ela olhou para baixo, em suas anotações e leu — ‗quase tendo uma forma de fada‘, e sendo tão inocente que é ‗inconsciente de seu amor‘. Arg! Os outros alunos riram com Constance, que acrescentou: — O autor tinha muitas ilusões sobre uma jovem como seu personagem sobre a vida. Os outros começaram a falar sobre Os Vampiros. Uma garota disse: — O vampiro é apenas utilizado como um mecanismo. O autor poderia ter utilizado um lobisomem ou um fantasma; isso não importa, já que ele não tem um sentido maior para esta história. Nunca tinha visto alunos fazendo críticas a um ensaio tão livremente! A Sra. Monroe nos olhou:
292 — Vocês vêem qualquer tema similar, ou um simbolismo correndo por essas palavras? Todos começaram a discutir como a perseguição pelo prazer do personagem o levou a ignorar avisos de perigo e a Sra. Monroe mudou o tema da discussão para o papel da natureza e símbolos de vida e de morte. Ela estava entrelaçando a história toda de uma maneira que fizesse sentido. Lembrei das palavras de um dos meus amigos do Alpha: ―O inteiro é maior do que a soma de suas partes.‖ Enquanto isso não funcionava em matemática, vi que poderia fazer sentido com literatura, e até mesmo na vida. Eu estava pensando na discussão de Noites de Terror quando entrei na sala para a aula de latim e trombei com Catalina na porta: — Desculpe — disse, e dei um passo para trás, a fim de deixá-la entrar primeiro. Ela franziu os lábios: — Menina desajeitada. — Eu já pedi desculpa! A seguir, entramos na sala de aula e sentamos em nossas respectivas carteiras. Enquanto arrumava seus livros ela falou: — Sage tem ciúmes de qualquer um que se aproxime dos Monroe porque ela procura um trampolim para sua vida social; você, pelo menos,
293 não tem nenhuma pretensão — ela disse com uma lenta e entediante piscada de cílios. — Muita bobagem a respeito de Lucien, que é extraordinário, mas, oras bolas, isto é um vilarejo! Mundus vult decipi, ergo decipiatu. Eu tinha estudado aquela citação antes: ―se o mundo quer ser destruído, então deixe-o ser.‖ Seu comentário poderia ser interpretado de várias maneiras, mas eu não tentaria decifrá-lo. A aula começou. Na hora do almoço, decidi gastar alguns dólares do dinheiro da minha monitoria indo ao Free Pop com Hattie, Constance e Mary Violet. — Você deveria ter visto Jane em Noites de Terror — Constance disse. — Ela disse a Sra. Monroe que ensaio era estúpido. — Não quis que saísse daquela forma. — Fiquei feliz por você ter falado aquilo — Constance falou. — Sempre odeio quando o interesse amoroso é tão impossível e inocente. — Eu adoro essas heroínas! — MV disse. — Se ninguém nunca escreveu sobre mim, eu gostaria contar o quanto impossivelmente linda e inocente sou. — Eu diria que você é impossível e ignorante... — Constance cutucou. — A Sra. Monroe gosta quando os alunos ficam bravos — Hattie disse. — Ela fala que eles estão comprometidos.
294 Seu castanho e brilhoso cabelo tinha sido colocado para trás em um rabo de cavalo, mostrando seus delicados brincos de ouro com pérolas corde-rosa. Ela tomou um golinho de suco de framboesa com um canudo. Enquanto minhas amigas desfrutavam o almoço, dei um pulo na farmácia para comprar velas, caso o Lucky resolvesse aparecer. Fui até a prateleira de produtos femininos e olhei de relance a gôndola de preservativos. Peguei uma caixinha, só para garantir. Saí da farmácia e vi um carro vermelho familiar prestes a sair do estacionamento do mercado Evergreen. Acenei para Orneta, que abaixou o vidro. — Oi, Orney!— eu disse. — Oi amiga. Como você tem passado? — Bem. Fiquei surpresa quando soube que você deixou seu emprego. — Fui transferida e recebi um aumento — ela falou em um tom feliz. — Um cara me disse que você havia se demitido. — Não! Eu estava tentando uma vaga em um mercado mais próximo de casa, mas nunca tinha vaga lá. Veio do nada! Vim pegar o restante das minhas coisas no meu armário. — Que bom pra você! Um carro que tentava sair do estacionamento buzinou: — Tenho que ir. Cuide-se!
295 Enquanto acenava em despedida, sabia que nunca mais a veria novamente. Os dias seguintes foram agonizantes. Mantive meus braços coberto durante o período em que estive na escola e todos os dias eu praticamente corria de volta para o meu chalé. Trocava minha roupa, colocava um jeans e uma camiseta de manga curta, porque sabia que Lucky ficava excitado com a marca no meu braço, penteava os cabelos, passava maquiagem e colônia. E então, eu esperava. Lucky não ligou, nem veio. Muitas vezes, peguei o telefone para ter certeza de que estava funcionando. Pensei em ligar para ele, ou ir até sua casa, mas eu não queria que pensasse que eu estava sendo obvia demais novamente. Eu também ficava em alerta para ver se via a garota que deixou as mensagens. Meu armário continuava intacto e não havia mensagens lá. Até que ouvi um som estranho, como um ‗crec‘. — Quem está ai?— eu disse. O som, como alguém pisando em um velho assoalho, apareceu novamente. Eu me virei na direção do som e uma sombra muito negra apareceu ao lado de uma das árvores: — O que você quer? — perguntei. Fui em direção à sombra, esperando que a pessoa desse um passo para trás. ―Crec!‖
296 O som fez um calafrio percorrer minha espinha e então ouvi outro som, dessa vez mais familiar, como o barulho de rodas de bicicleta esmagando folhas. Virei minha cabeça e vi Jack descendo pela trilha. Virei rapidamente para a sombra e a vi sumir na escuridão das árvores. Não havia nada lá, mas eu tinha visto alguma coisa. Ou talvez não. Jack deu uma leve derrapada para parar e desceu da sua bicicleta, deixando-a descansar no corrimão da varanda. — Oi, Elfo! O que você está fazendo aqui fora?— ele estava com a respiração pesada e sua camiseta estava úmida e grudada na vastidão de seu peito. Ele agiu como se nada tivesse acontecido na última vez que conversamos: — Você vai me dizer que não devo ficar aqui fora porque você sempre sabe o que as pessoas devem ou não fazer? — Fique onde você quiser, e, sim, eu sei o que você não deveria fazer que é deixar um cara bêbado entrar na sua casa no meio da noite. Especialmente quando a mãe do cara pode te expulsar da escola. — Por que ela me expulsaria se foi ele mesmo... — Depravação da moral. D-e-p-r-a-v-a-ç-ã-o. Está no manual e é provavelmente uma das palavras do seu guia do vestibular. Sua diretora não apenas desaprova indecências, como também desaprova aparentes indecências. Ficar aborrecida com Jack fez meu medo desaparecer:
297 — Você fica me dizendo o quão importante as aparências são, no entanto, você não liga para o seu aspecto ou para o que você fala. — Irritada, não?— ele disse. — Quando vi você parada aqui, tão sem reação, fiquei preocupado, pensando que uma bruxa demoníaca tivesse te transformado em pedra. O que traria um elfo de volta à vida? Uma jarra de lágrimas angelicais, ou talvez eu tivesse que responder a três pegadinhas? — Tenho certeza de que você não conseguiria responder a nenhuma pegadinha. Você gosta de jogar com as pessoas. — Eu não — ele disse com um sorriso moderado. — Eu não jogo com as pessoas. — Você joga com as suas palavras, o que é a mesma coisa. — Não, não é. Poderíamos conversar sobre isso, embora tenha a sensação que você não quer a minha companhia. Eu não conseguia dizer o quanto fiquei aliviada por ele ter chegado: — E por que eu gostaria? Num minuto você é tão legal comigo e no outro está me dando um sermão. Você fica fazendo perguntas maliciosas e conversar com você é um exercício de futilidade. — A Hattie não acha isso. Eu a entendo e ela me entende. Não é isso que é o amor, conhecer a outra pessoa tão perfeitamente que não há surpresas? — Por que você sempre fala sobre a Hattie quando estamos conversando? Eu sei que ela é linda e talentosa e eu sou comum — disse.
298 Tão comum que Lucky não veio nem ligou e não queria que eu fosse vista com ele. Senti meus olhos se inundarem de lágrimas: — Se você quer saber sobre amor pergunte a Hattie, porque eu não sei o que é amor. Jack ficou parado, me olhando com seus olhos verde-musgo e, de repente, desviou seu olhar para baixo, vendo o hematoma amareladoarroxeado em meu braço. Chegando mais próximo a mim, ele gentilmente colocou sua mão calejada e quente em meus pulsos. — Oh, Elfo, o que você fez? Ele sabe, pensei, ele sabe que foi Lucky quem fez isso comigo. Toda a minha solidão e dor afloraram em mim e senti como se não pudesse suportar mais. Sua cabeça se abaixou ao ponto de seu queixo tocar levemente minha cabeça e tive um inexplicável desejo de abraçá-lo e deixar que ele me abraçasse, de respirar seu perfume de folhas e terra... E então meu telefone tocou, salvando-me de mim mesma. Desvencilhei meus pulsos de Jack e corri para dentro, batendo a porta atrás de mim. Agarrei o telefone no segundo toque pensado ele está ligando. — Alô? — Oi Jane! É a Penélope da aula de latim. Queria saber se você quer se juntar a nós no grupo de estudos. — Oh, claro, seria ótimo.
299 O telefonema foi breve, olhei para fora e Jack já tinha ido embora, assim como o último raio de luz, deixando aparecer à escuridão. No dia seguinte, sexta-feira, observei Hattie cuidadosamente, pensando se Jack havia falado alguma coisa sobre mim para ela, mas ela era a mesma, como sempre. Constance e Mary Violet nos contaram sobre a festa na casa de um dos calouros da Evergreen. — O home theater dele tem o maior sofá que já vi na vida — disse Mary Violet. — É do tamanho de uma orgia! Vinte pessoas cabem nele! E ele tem uma daquelas máquinas de pipoca bem antiga. Você deveria ir. Haverá conversa sexy e um ataque ao bar dos pais dele! — Alguém que eu conheço estará lá?— perguntei, pensando se Lucky estaria na festa. — Eu não estarei. Tenho que fazer meu relatório de teoria musical e história. Ouvirei músicas toscas a noite toda — disse Hattie. Constance e Mary Violet disseram os nomes de algumas pessoas que estariam lá e não mencionaram o de Lucky. — Acho que essa eu passo — disse. Em casa, troquei de roupa, colocando meu melhor jeans e uma blusinha para que meu desbotado hematoma ficasse visível. Fiz um rabo de cavalo bem alto, de maneira que meu pescoço ficasse completamente exposto e me maquiei. Passei o restante da amostra do perfume de citrus atrás das minhas orelhas e imaginei Lucky me pressionando gentilmente.
300 Comi cereal no jantar e assisti televisão com o som baixo para que eu pudesse ouvir qualquer coisa que viesse de fora. As horas passaram. Lucky nunca havia prometido que viria, mas não conseguia não ficar magoada pelo fato de ele não aparecer. Comecei a pensar em todas as coisas que ele disse e fez, elas eram egocêntricas e maldosas. Não importava. Eu ainda tinha esperanças de que ele viria e quando ouvi barulhos lá fora, depois das onze, espreitei pelas cortinas, pensando que ele estava chegando. Um veado estava cuidadosamente entrando na varanda e remexendo nas flores do vaso. O mais rápido que pude, peguei a lanterna e olhei novamente para o animal. Outro veado estava andando sobre os galhos mais baixos de uma árvore. Depois que acabou de comer as flores, o veado e seu companheiro foram embora para dentro do bosque. Esperei alguns segundos antes de sair do chalé. Olhei em direção às árvores, onde pensei ter visto algo. Superstição não iria me controlar. Coloquei a lanterna na direção do veado, ficando o mais longe possível, mas sem perder sua pista. De repente, os animais ficaram em posição de alerta, orelhas rígidas para cima, caudas levantadas e saíram em disparada. Levei um momento para perceber o que os espantou: vozes com tons altos e baixos. Pessoas estavam cantando em algum lugar distante. Mantendo a lanterna apontada para o chão, subi pela trilha em direção aos sons. Logo, visualizei uma luz amarelada em meio aos troncos
301 das árvores. Pensei se alguém teria entrado às escondidas no anfiteatro e estava dando uma festa. Imaginei se Lucky estaria lá. Permaneci escondida entre as árvores enquanto me aproximava do anfiteatro. Desliguei minha lanterna e dava um passo atrás do outro de maneira cautelosa, aguardando por ouvir o costumeiro barulho de cerveja sendo aberta. Ao invés, vi pessoas trajando longos mantos escarlates, posicionadas em círculo e falando em uma língua estranha. As palavras eram duras, repletas de consoantes. Suas faces estavam cobertas pelas sombras dos capuzes e cada um segurava uma tocha, as chamas inclinavam-se por causa da brisa que batia. No centro do círculo havia um homem vestindo um manto decorado com ouro. Ele parou próximo a outro homem que vestia um manto negro e cujo perfil era familiar. Jarros e cálices prateados estavam cercados por uvas roxas, romãs, maças vermelhas e nozes. Tudo organizado em uma mesa de madeira rústica. Movi-me um pouco mais para me aproximar e ter uma visão melhor. Gravetos estavam colocados em um buraco que continha fogo rodeado por pedras. Ao cessar a conversa, o homem do manto ornamentado falou em uma língua estranha. Ele levou sua tocha ao buraco. Chamas cor de laranja se levantaram. Ele retirou algo do meio das frutas. Era reluzente. Uma faca de ouro com uma longa e fina lâmina.
302 Fiquei absolutamente imóvel. O homem pegou a romã e a cortou, deixando jorrar um suco vermelho em suas mãos e na manga de seu manto. Ele falou novamente e deixou o suco cair no fogo. Relaxei. O homem no manto escarlate levantou a sua mão de modo que sua palma ficasse à mostra e a cortou rapidamente, em um lance, com a faca de ouro. Sangue caiu nas chamas. Neste momento, algo fez um barulho atrás de mim e virei minha cabeça. O Sr. Mason estava lá, assistindo à fantasmagórica cena, e senti um alívio imenso em ver alguém quer era sensato e racional. Caminhei em sua direção e ele levou um susto, estarrecido. — Sou eu, Sr. Mason — sussurrei — Jane Willians. Ele levou sua mão ao peito e respirou. Então, ele fez sinal com seu dedo, sinalizando para que eu o seguisse e ligou uma lanterna. O canto parou abruptamente e o bosque foi tomado por um silêncio, exceto pelo som dos galhos das árvores. O Sr. Mason levantou sua lanterna, iluminando seu rosto e voltamos pela trilha. Eu estava tremendo de frio, ou medo, ou os dois. O Sr. Mason abriu a porta do meu chalé e me fez entrar. — Acho que nós dois precisamos de uma xícara de chá quente — ele disse. — Você me deu um grande susto. Não tinha visto você lá.
303 — O que era aquilo? Era um ritual? Ele sorriu: — Oh, não! As famílias mais antigas estavam fazendo uma das suas celebrações folclóricas. Sente-se e me deixe preparar o chá primeiro, explicarei tudo a você. Acomodei-me no sofá e ele foi até a cozinha. Forcei a mim mesma ao relaxamento e ouvi os barulhos que vinham da cozinha, como o Sr. Mason abrindo e fechando as portas dos armários. Poucos minutos depois ele voltou: — Este lugar é muito aconchegante. Não estive aqui desde quando foi reformado. — Sr. Mason... — disse e olhei para o alto, para o seu rosto amigável. — Bom, vamos então aos esclarecimentos— ele se sentou na poltrona. — Os fundadores de Greenwood, incluindo aqueles que fundaram a escola, emigraram da Europa Oriental. Eles foram perseguidos devido a práticas tradicionais pré-cristãs, portanto, desenvolveram o hábito do sigilo. Engraçado como alguns ideais pré-cristãos, como o coelhinho da páscoa e a árvore de natal, tornaram-se parte da cultura popular, mas outros ideais são desprezados. — Aquilo era uma cerimônia religiosa? — É simbólica, como o Dia dos Namorados, que não é religioso. Os fundadores vêm de famílias rurais e as cerimônias são realizadas de acordo com o ciclo da colheita.
304 — A mão daquele homem foi cortada. — É um corte superficial e pequeno, menos do que se você ralasse o joelho — ele disse. E eu estava atenta aos seus olhos em meu braço. Pressionei meu cotovelo contra o meu corpo para tentar esconder o hematoma. — Você sabe que hoje à noite é o equinócio de outono? É por isso que eu estava fora, por isso assisti à cerimônia. É em homenagem ao Deus Sol, que era conectado ao fogo e a colheita de outono. — É por isso que eles tinham frutas e tochas? — Sim. Não são todos que conseguem presenciar um ritual tão antigo. Considere-se sortuda. — Qual era língua que eles estavam falando? — Minha esposa me contou que era um dialeto de Dacien, uma língua eslava muito antiga, como o latim que você estuda, morta há muito tempo. Não era fácil para eu juntar as coisas: — Os fundadores se mudaram para cá porque é enevoado e eles são sensíveis à luz — disse. O Sr. Mason tirou seus óculos e massageou a parte superior de seu nariz: — Vá em frente Jane — ele falou em um tom encorajador. — Eles usavam sangue em suas cerimônias e as pessoas pensavam que eles eram vampiros.
305 — Você ganhou um ‗A‘ — ele disse. — Agora, para um crédito extra,
você acredita que eles são vampiros? — Não acredito no sobrenatural. Acredito apenas no que pode ser provado pela ciência e pela razão. Assim que acabei de falar, uma imagem de um lugar misterioso, verde e repleto de sombras surgiu em minha mente. — Você é uma garota esperta, Jane — ele disse orgulhosamente. — A anomalia genética os faz altamente sensíveis à luz do sol e essa mesma anomalia os faz ter um desejo grande por alimentos da cor vermelha. — Alimentos vermelhos, como carne mal passada, molhos de tomate, morangos, sangue... A chaleira de chá apitou e o Sr. Mason disse: — Volto em um minuto. Ele voltou rapidamente com duas canecas: — Doce e com um pouco de leite para você. — Obrigada. Sentou-se novamente: — Sim, eles almejam por sangue, mas eles não precisam dele. Há um componente
psicológico
em
seus
metabolismos
que
requerem
consideravelmente proteína em suas dietas. Carne vermelha e bebidas podem satisfazer esse desejo. — Mas eles de fato bebem sangue?
306 — Geralmente sangue animal, como muitas pessoas no mundo. Os Massais, um grupo étnico africano, baseiam sua dieta em sangue e leite. Os ingleses têm o pudim de sangue e os italianos têm o molho pardo. — Usar sangue animal pode ser comum, mas beber sangue humano não. — Mas isso só é feito se há um consentimento. Nenhum deles irá tirar sangue de um ser humano sem sua permissão; isso seria tratado com seriedade e rapidez. Então, agora, você já sabe de tudo. Olhei em seus olhos: — Sei mesmo? Ou há mais alguma coisa que o senhor gostaria de me contar? A anomalia genética tem mais algum efeito? — Nada significante. Eles vivem um pouco mais do que as outras pessoas e são imunes a maioria das doenças. Eles têm uma visão excelente e um pouco mais de massa muscular. — Isso me parece muito significante — disse, pensando o quão rápido a meningite matou Hosea. — Todos os que vivem aqui sabem? Ele balançou a cabeça: — Alguns poucos, aqueles que são mais confiáveis – alguns na cidade e um punhado de pessoas da escola. Aprendi sobre eles por meio da relação da minha esposa com a família da diretora. Eles a acolheram e deram a ela oportunidades incríveis. — A Sra. Mason era uma bolsista também, não era?
307 — Sim. Mas ela não era uma deles. A condição só pode ser passada geneticamente. Temos poucos alunos com esta condição. Pensei em Hattie, tão pálida, tão próxima à família Monroe, tão prestativa à nova bolsista: — Hattie Tyler é uma deles também. Quando ele confirmou com um gesto de cabeça, perguntei: — Como vocês os chamam? — A maioria evita usar o termo vampiro, que é muito perigoso em uma sociedade que prefere a superstição à ciência — ele disse encolhendo seus ombros. — Superstição é mais fácil porque não requer nenhum pensamento analítico. Os Monroe e a maior parte dessas pessoas nesta área se denominam Família.
Família. A palavra tinha muito poder para quem não tinha uma. Houve uma batida na porta e o Sr. Mason foi atendê-la. Era a Sra. Monroe vestida com calças pretas e casaco claro: — Olá, Albert e Jane — ela falou, entrando no chalé. — Olá, Hyacinth — ele deu um beijo em sua bochecha. — Jane estava assistindo à cerimônia e eu estava contando a ela um pouco sobre a Família. Ela tirou seu casaco: — Posso me sentar?
308 Fiz um sinal positivo com a cabeça e ela se juntou a mim no sofá. Eu estava tentando digerir o que tinha visto com aquela mulher ali, ao meu lado. — Você quer que eu fique?— perguntou o Sr. Mason. — Não costumo estar acordado a esta hora. — Não, por favor, vá dormir Albert — a Sra. Monroe disse. — Obrigada pela ajuda. — Sou sempre grato por servir. Contei os fatos básicos sobre a Família a Jane, mas tenho certeza de que ela ainda tem muitas perguntas. Boa noite, Jane. — Boa noite, Sr. Monroe — eu disse e o vi ir embora, fechando a porta atrás de si. A Sra. Monroe lançou um olhar de preocupação: — Bem, Jane, tinha pensado em lhe contar sobre isso depois que você estivesse assentada em Birch Grove. Nem tudo na vida pode ser planejado. Não consigo pensar o que você possa ter imaginado! — Pensei que era um culto — disse. — Oh, por Deus, não somos tão ousados — ela disse. — Tentamos seguir com as celebrações dos nossos antepassados. Um dos nossos membros é uma antropologista cultural e ela diz ser importante não perder todas as maneiras antigas, mesmo que elas sejam meramente cerimoniosas. — Sra. Monroe, por que eu estou aqui?
309 Ela se inclinou para frente com a mesma expressão gentil e inteligente que ela tinha quando nos vimos pela primeira vez: — Você sabe o quanto procurei uma garota brilhante, decente e de mente avançada que poderia apreciar as oportunidades que Birch Grove oferece completamente? — Existem milhares de garotas espertas e decentes que gostariam de vir para Birch Grove com uma bolsa de estudos, senhora. Fui selecionada porque não tenho nenhuma família. — Não posso negar que sua isolação foi um fator relevante, já que o sigilo é de extrema importância para nós. No entanto, você, de fato, estará se prejudicando se supuser que todos os elogios são meramente bajulação. — Prefiro informações a elogios. — Tentarei explicar — a Sra. Monroe disse com um sorriso. — Nosso homem mais jovem tem um poderoso desejo por sangue, o que é natural aos homens da idade dele - uma falha em controlar seus impulsos. Um único erro e ele coloca todos nós em perigo. Nossos homens precisam de uma companheira, uma amiga leal que seja inteligente e se preocupe em ajudá-los. Essas companheiras tornam-se uma extensão da família. Ela tomou as minhas mãos: — Ficaríamos honrados se você concordasse em ser a companheira de Lucien, Jane.
310
Capítulo Dezesseis
―Birch Grove se esforça para auxiliar suas alunas para que aprendam a superar desafios e tomem decisões morais sobre suas vidas pessoais.‖ Manual da Aluna Birch Grove
As mãos da Sra. Monroe eram macias e pálidas: — Se você disser sim, cuidaremos de você pelo resto de sua vida, Jane. Você e Lucky irão para a mesma faculdade. Pagaremos por seus estudos, por um apartamento confortável, ou uma casa, um carro, alimentação, roupas e qualquer incidente que possa acontecer.
Lucky é segurança pensei. — Você ficará próxima a Lucky — ela continuou. — Você terá que fazer promessas, é claro, mas, em troca, ofereceremos a você todos os nossos recursos e apoio para que sua vida seja a mais enriquecida e satisfatória possível. Vislumbrei tudo isso em minha frente. Estaria livre da solidão e da pobreza. Estaria segura. Lucky estaria ao meu lado e não teríamos que esconder nosso relacionamento. — E quais seriam minhas responsabilidades?
311 — Lucky quererá provar sangue humano de vez em quando - ela falou com um sorriso culposo. — Apenas alguns mililitros, o que não prejudicará sua saúde de forma alguma. Ele pode pedir para que, ocasionalmente, você aja como sua assistente, no entanto, não quero que ele a faça de empregada, ou que peça para fazer seu dever de casa. — Você será a conexão entre Lucky e a Família. Se qualquer pessoa suspeitar dele, ou se você sentir que ele precisa de ajuda, você o protegerá. — Ninguém acredita em vampiros. — Ninguém que tenha bom senso, mas isso não é a maioria da população. Nosso povo foi tratado de forma brutal no passado, embora essas atrocidades nunca foram citadas nos livros de histórias, e somos muito cautelosos hoje. — Ninguém os acusaria por causa de uma anomalia genética nos dias de hoje. — Novos tempos, novos perigos — ela virou minha mão de modo que a palma ficasse para cima e meu cotovelo ficou visível: — Lucien fez isso com você? — Sim. — Ele tinha que ter esperado e ele não deve... — ela balançou sua cabeça, parecendo chateada. — Ele não deve deixar este tipo de marca. Você contou a alguém? — Não... Jack também...
312 — Jacob é normal, mas ele sabe o motivo de termos trazido você aqui — ela soltou minha mão e permaneceu imóvel. — Temos coisas em comum, Jane. Somos cuidadosas, espertas, decentes. Dê sua resposta amanhã. — O que acontece se minha resposta for negativa? — Ninguém nunca nos rejeitou — a Sra. Monroe respondeu. — No entanto, se você decidir que não quer ser a companheira de Lucky, certamente honraremos nosso compromisso, ofereceremos a você a educação de Birch Grove e procuraremos outra pessoa que esteja preocupada com o bem-estar do meu filho. — Da mesma maneira que fui trazida aqui para substituir Bebe. — Ela não nos recusou Jane. Ela partiu sem termos feito a oferta e gosto muito mais de você do que de Bebe. Todos nós gostamos. Boa noite. — Boa noite, Sra. Monroe. — Nem tentei dormir naquela noite. Anotei tudo o que tinha acontecido, tudo o que me foi dito. Desenhei um diagrama, pensando que se organizasse as informações, seria capaz de entender melhor. Meu diagrama não ajudou porque não havia nada que substituísse o prazer que sentia em estar com Lucky, mesmo que seus sentimentos por mim fossem desconhecidos. Finalmente desliguei as luzes e fitei a janela quando a escuridão dava lugar à luz. Logo após o nascer do sol, vi Lucky descendo pela trilha. Abri a porta e o aguardei na varanda.
313 — Oi! — ele disse. — Venha dar uma caminhada comigo. Ele começou a caminhar pela trilha e então mudou a direção para um atalho estreito que estava sendo escondido pelas árvores. Folhas faziam barulho sob nossos pés e pássaros gorjeavam nas árvores. Estudei Lucky enquanto ele caminhava à minha frente. Seus ombros pareciam mais largos em sua fina blusa preta e suas pernas pareciam longas em seu jeans escuro. De vez em quando, um raio de luz atravessava a névoa e as árvores, iluminando seus cabelos dourados. Logo chegamos a um riacho que brotava de uma enorme rocha. Lucky escalou a rocha e estendeu sua mão. Dei minha mão a ele e subi, sentando-me ao seu lado. — Jack e eu costumávamos brincar aqui. Construíamos escudos e tínhamos lutas de espada. Ele era Jacob, o Defensor de Grove e eu era o Príncipe Lucien, herdeiro do trono. Ainda seríamos felizes brincando aqui, mas cresci e tudo isso se acabou há muito tempo. A água que jorrava da rocha tinha a mesma cor que os olhos de Jack e o mesmo cheiro dele, verde e fresca. — Minha mãe ficou furiosa comigo porque não consegui esperar — Lucky falou. — Ela estava calma ontem à noite. Ela me disse que o que você sente é totalmente normal. — Ela te contou tudo então — ele falou. — Você viu o show de horrores deles na noite passada e as cartas foram colocadas na mesa.
314 — Você disse que não achava que era um vampiro. — Não acho que eu seja um, sou um, mas não aquele morto imaginário, aquela coisa sobrenatural. Planejei explicar tudo para você mais tarde. — Então era para Bebe estar aqui com você. — Sim, passei dois anos tentando conhecê-la e, então, um dia, ela simplesmente foi embora — ele disse em um tom de mágoa e raiva. — Seu tio, alguém que ela nunca havia falando antes, convidou-a para viver com ele e sua família. Nem mesmo recebi um tchau. — Você estava apaixonado por ela? — Bebe? De forma alguma — ele disse. — Conversava com ela, e ela era legal. Éramos amigos. Ele hesitou: — O pessoal da Família estava prestes a contar a ela sobre ser minha companhia, mas eu me apressei e contei antes deles, então, ela ficou perturbada e foi embora... — Você ficou magoado? Ele balançou a cabeça e sorriu tristemente: — Hattie diz que eu deveria me acostumar com garotas me dando o fora.
315 — Talvez você não deva tomar isso como uma verdade absoluta. Hattie sabia o tempo todo o motivo pelo qual fui trazida aqui - por sua causa. Ele balançou sua cabeça novamente: — Ela sabia que seria difícil sua adaptação aqui e quis ajudar. Hattie é assim, uma amiga tão boa que ninguém chega a seus pés. E ela gosta de você, de verdade. Hattie me disse para ser cuidadosa e agora entendi: — Gosto dela também. — Eu também gosto de você, Jane. Você é esperta e madura. Ontem à noite, minha mãe disse que você a ouviu e pensou em tudo o que disseram a você. Você não teve uma reação escandalosa sobre aquela reunião esquisita e aquela parte em que usam uma faca. — Lucky, o que você me disse sobre namoradas serem temporárias... — Casamos apenas entre nós — ele disse. — Temos que fazer isso porque não podemos ter filhos com pessoas ‗normais‘. Mas isso sempre funcionou. A companheira do meu pai, Claire Mason, estava com ele desde jovem, com a nossa idade mais ou menos. Foi por isso que ele estava tão fora de si quando te viu. Ele sente falta dela. — Ela era a melhor amiga da sua mãe, não era? — Elas eram mais do que isso, eram irmãs, como eu e Jack. A tia Claire e papai eram melhores amigos — ele disse. — Minha mãe vive dizendo a meu pai para ter uma nova parceira, mas ele ainda está de luto.
316 Enquanto pensava sobre o que tudo aquilo significava, Lucky jogou o peso de seu quadril para um lado e pegou algo em seu bolso. Era um canivete. Ele o abriu com apenas uma das mãos. — Jane, sei que talvez você queira outro tipo de relacionamento comigo, mas ser minha companheira é realmente muito importante. É para o resto da vida e é físico também, um tipo diferente de contato físico, mas isso ainda pode ser bom. Lucky levantou sua mão e acariciou minhas bochechas: — Sei que você não se importa e acho até que irá gostar. — Gosto de estar com você, Lucky. — Fique comigo, então. Mais dois anos e sairemos desta cidade estúpida e iremos para a faculdade em algum lugar legal. Viajaremos e teremos aventuras. Minha família pagará por tudo. — Você fala muito sobre dinheiro, mas ainda posso conseguir uma bolsa de estudos para a faculdade. — Eles têm muito dinheiro — disse. — Você não terá que se preocupar com nada, exceto pelo fato de estar lá por mim, Jane. Queria que Lucky continuasse a me tocar. Queria que ele precisasse de mim. Queria um futuro em que eu não fosse pobre, ou tivesse que conviver com a miséria, e, o pior de tudo, completamente sozinha e anônima. Queria apenas uma coisa bonita nessa minha vida repleta de areia cinza: — Sim.
317 — Que bom! — ele falou, continuando a esfregar minha orelha. — A orelha não tem muitos nervos, Jane, mas tem vários vasos capilares. — Enquanto dizia isso, virou meu lóbulo para expor sua parte de trás. Então, aproximou sua faca e senti a dor, como fogo, e no momento em que ele cortava, eu gritei. O vento estourou pelas árvores, balançando galhos e folhas, enquanto meu sangue surgia, escorrendo, quente e com gosto metálico. Lucky via aquilo com imensa emoção e um fio de sangue correu em direção ao meu queixo, caindo pela lateral do meu pescoço. Ele me empurrou contra a rocha gelada e começou a lamber minha pele. Os galhos acima de mim balançavam cada vez mais e o vento ficava mais forte. Lucky movia seu corpo em movimentos rítmicos enquanto sua língua deslizava em meu pescoço. Quando ele alcançou o lóbulo da minha orelha, o pressionou por entre seus dentes e sugou aflito o corte, fazendo-o sangrar mais. Fechei meus olhos e coloquei meus braços em volta de Lucky. Prestaria atenção apenas naquilo: a pressão de seu corpo. Enrolei minhas pernas em volta dele, aumentado a fricção de seus movimentos contra mim. Minha respiração rapidamente se intensificou. Então abri meus olhos e lá em acima, nos galhos brancos das árvores contra o céu coberto de nuvens, vi uma sombria forma negra. Pisquei e olhei novamente e aquela forma pareceu ainda mais densa, crescendo gradualmente sobre nós e se movimentando, mesmo entre os
318 galhos que se moviam com violência, fazendo com que estreitas folhas caíssem sobre nós. A sombra foi ficando mais larga e chamei por Lucky, mas ele continuou a sugar meu lóbulo, pressionando-me contra ele, e então ele grunhiu e estremeceu. Enquanto Lucky se ajeitava em cima de mim, respirando pesadamente, a sombra se dissolveu como um nevoeiro, como um nada. O rosto de Lucky começou a acariciar o meu, e não me mexi, embora o impacto do meu corpo contra a rocha machucava meu ombro. Depois de alguns minutos, ele se levantou, lambeu os traços de sangue de seus lábios e fez um som de hummmm. Continuei a olhar para os galhos, que pararam de se bater, e agora havia uma brisa. — Que inferno de árvores — disse Lucky, tirando as folhas de seus ombros. — Acho que vi algo lá me cima, uma sombra negra. Ele me fitou e levantou suas sobrancelhas: — As árvores não são nada além de sombras, folhas e bagunça. Quando tiver minha parte da escola, mandarei cortá-las. — Você não pode fazer isso! — Não, não posso. Jack não permitiria e será ele quem dirigirá a escola.
319 Senti-me aliviada: — Elas são tão lindas e amo o barulho delas – é como se falassem e cantassem. — Gostaria que calassem essas malditas bocas. Vamos voltar e cuidarei da sua orelha. Caminhamos em silêncio para o chalé. Ele foi ao banheiro e voltou com antibióticos. Fiquei imóvel enquanto ele passava o medicamento atrás do meu lóbulo. — Isso fica somente entre nós — ele disse. — Eu teria que esperar até que o acordo fosse oficializado e tivéssemos assistido a uma palestra para fazermos isso de forma segura. E ainda há a cerimônia de iniciação. — Poderíamos ter esperado então. — Eu não conseguiria. Esperei a Bebe por dois. Meu pai entende meu instinto, mas minha mãe não entende como eu me sinto e o que preciso. O que acontece entre nós dois não diz respeito a ela. — Eu sei — eu disse. — É estranho saber que ela está ciente do que fazemos. — É por isso que você precisa se lembrar de que é minha Companheira — ele falou. — Você quer subir para tomar um café? Lavei-me e troquei de roupa. Subimos a trilha que vai até a casa dos Monroe. Lucky pediu para que eu aguardasse na sala de estar. Puxei meu cabelo para frente para cobrir minha orelha - que doía muito – e olhei para as fotos de família.
320 Lucky foi uma criança linda, com luminosos olhos azuis e cabelos loiros. Jack, quando criança, era exatamente como ele é hoje, mas em uma versão menor, um menino robusto, com um sorriso travesso enorme que mostrava seus dentes. — Venha, Jane — Lucky estava na porta e entrei com ele na sala familiar. — Seus pais estavam bebendo café e a Sra. Monroe ainda vestia as mesmas roupas da noite anterior; seu olhar parecia cansado. O senhor Monroe deu início à conversa: — Lucky nos contou a boa notícia, Jane. Seja bem-vinda à família. Ou talvez ele tenha dito A Família. — Obrigada, senhor. — Minha companheira — disse o Sr. Monroe — foi uma parte muito importante da minha vida — sua voz parecia carregada de tristeza. A Sra. Monroe lançou um olhar para seu marido: — Bem, todos nós amávamos Claire. Jane venha tomar café. Sentei-me à mesa, onde havia uma cesta com tortas, salada de frutas que continha morango, amoras e framboesas, além de uma jarra repleta de um suco vermelho escuro. Lucky pegou a jarra e encheu um copo para mim: — É suco de laranja feito com laranjas vermelhas. O gosto é o mesmo.
321 Jack apareceu assim que começamos a comer. Ele pegou um muffin e disse oi, sem se direcionar a ninguém em particular. — Jacob, sente-se e tome o café da manhã de maneira adequada — a Sra. Monroe disse. — Não posso, tenho que treinar. Até mais. Ele saiu sem ao menos olhar para mim, o que me machucou mais do que suas críticas. A Sra. Monroe olhou para seu filho saindo: — Jacob não é muito falante pela manhã. Ela então começou a falar das melhorias do Clube Country, uma mudança repentina de assunto. Tentei não olhar para Lucky e continuei a colocar meu cabelo para frente no intuito de cobrir minha orelha. — Vamos pagar todas as suas despesas do clube, Jane — disse a Sra. Monroe. — Você não pode se associar sozinha até que tenha vinte e um anos, então, faremos sua inscrição e pagaremos todas as taxas. — Obrigada, mas não estou interessada em me associar. — O clube é parte da vida de Lucky, da vida aqui em Greenwood, então, deve fazer parte da sua vida também, Jane. Associar-se aos clubes corretos e organizações é sempre uma boa ideia. Conhecer as pessoas certas pode fazer sua vida muito mais fácil. — Prefiro ser julgada pelo o que faço, não pelas pessoas que conheço.
322 — Eu não — falou Lucky. — Por que não deixar as coisas serem mais fáceis? — Em um mundo ideal, o homem seria julgado por suas realizações — disse a Sra. Monroe. — E em um mundo ideal, amigos ajudam amigos. A campainha tocou: — Deve ser a Hattie — falou a Sra. Monroe virando-se para mim — espero que não se importe por eu ter contado a Hattie sobre a boa noticia. Sei que vocês são amigas e pensei que você pudesse querer a ajuda dela para a cerimônia de iniciação. — Tudo bem. Mary Violet e Constance sabem? — Oh, por Deus, não! — ela disse. — Elas são garotas excepcionais, claro, como todas as minhas meninas, mas não confiamos em pessoas de fora, a não ser que tenhamos uma relação especial com elas. Até você aprender quem faz parte da Família e quem não faz, não conte nada a ninguém. O Sr. Monroe, que estava lendo o jornal, levantou seus olhos: — Mais para frente, você conseguirá reconhecer um membro da Família com um simples olhar. Temos amigos que moram fora da cidade também. Dez minutos depois, Hattie encontrou sozinha: — Seja bem-vinda à Família, Jane. Estou feliz por ter uma outra garota da minha idade para poder conversar sobre as coisas. Onde está Jack?
323 — Ele foi treinar — respondeu a Sra. Monroe. — Mas ele não tem treino... Ah, não, está certo! Esqueci que ele me avisou que começaria mais cedo. Ninguém havia se perguntando para onde Lucky havia ido, então, não seria eu quem perguntaria. Depois do café da manhã, a Sra. Monroe se direcionou a mim: — Jane, você precisará de mais roupas de agora em diante, já que acompanhará Lucien pelos lugares. Hattie irá levá-la ao shopping e lhe ajudará a escolher trajes apropriados. — Posso usar meu casaco de inverno. — Você precisa de vestidos, Jane — disse Hattie. — Saias, roupas mais casuais, acessórios. Se estiver tudo ok, claro. A Sra. Monroe sorriu para seu marido: — Tobias, você pode depositar a quantia suficiente para cobrir as despesas de Jane? — Cuidarei disso agora mesmo, querida — e saiu da sala. — Obrigada, Sra. — disse pensando mais no dinheiro na minha conta do que nas roupas novas. — De nada, Jane. E ouça os conselhos de Hattie. Ela sabe da importância de escolher qualidade e não quantidade. Hattie se despediu enquanto caminhávamos para fora. Em direção ao seu carro, ela pegou um chapéu feito de um material grosso e óculos de sol:
324 — Podemos ir ao Milletton. Não é tão longe e eles têm um bom shopping lá. — Ótimo, porque as lojas daqui são caríssimas! Hattie se inclinou sobre o carro: — Isso é um acordo de negócios. Lucky e sua família definitivamente terão o que querem de você. E você tenha certeza que terá deles o que quer também. Ele já está tirando seu sangue? Eu não respondi, mas Hattie percebeu: — Como eu imaginava.
325
Capítulo Dezessete
―O programa de Serviços comunitários é incorporado durante todo nosso currículo a fim de alertar a consciência das estudantes da ação em favor dos pobres e desafortunados da nossa sociedade. O crescimento moral é integrado em todos os aspectos de nossa educação.‖ Manual da Aluna Birch Grove
Hattie dirigiu a um subúrbio de médio porte até o shopping mais luxuoso que eu já tinha visto. Com chafarizes grandes, a água espirrava, e um clássico violonista tocava em um pátio. Entramos em lojas de departamento que eu só tinha ouvido falar. Hattie olhou de relance para os preços, sem muito interesse, mas eu sabia que tudo aquilo ia sair do dinheiro da minha conta. Isso significava que eu teria um recibo e poderia depois devolver as compras e pegar o dinheiro do reembolso. Enquanto Hattie puxava uns vestidos casuais de um mostrador, ela disse: — A maioria dessas calças e saias são muito longas, mas podemos diminuí-las com a Eunice. Você precisa de um pouco de DVA. — Do quê? — Delicados Vestidos Azuis, o equivalente jovem ao tubinho preto das senhoras. A família gosta de nos ver bem arrumadas em suas festas.
326 Paramos para almoçar em um pequenino restaurante um pouco escuro com toalhas brancas e garçons vestindo camisetas pretas e jeans preto. — Você não teve mais nenhum incidente, teve? — Nenhum — e fiquei olhando ao redor, tentando descobrir quem a garota poderia ser. — Lucky me disse que a Bebe seria sua companheira e MV me falou que ela era grande e forte. Não poderia ser a Bebe me assediando? — Eu não tinha pensado nisso — disse Hattie. — Mas por qual motivo Bebe iria embora e depois voltaria para atormentar você? — E se ela não foi embora por vontade própria? — eu disse. — Talvez ela tenha sido convidada a se retirar. Lucky disse que ela era um pouco ríspida. Talvez ela esteja com raiva por ter sido substituída e está tentando me assustar. Hattie balançou a cabeça: — Isso é impossível. A Família sabe quem entra e quem sai de Greenwood, e eles são muito cuidadosos para que essas coisas não aconteçam. Tenho certeza de que eles sabem exatamente onde Bebe está agora, e eles devem ter feito de tudo para que ela ficasse quieta. — Bem, era apenas uma teoria — eu disse. — Provavelmente é alguém como a Sage — falou Hattie — assediando você secretamente porque tem medo de ser pega e expulsa.
327 — Hattie, eu estive me perguntando... S ser uma companheira é tão maravilhoso, então por que a Sra. Mason cometeu suicídio? — Pobre Claire — os olhos de Hattie brilharam e ela piscou. — Nenhum dos adultos vai falar sobre isso, mas tudo o que posso falar é o que deduzi. Os Mason nunca tiveram filhos e quando ela finalmente engravidou todos ficamos muito animados. Então, ela sofreu um aborto e sua personalidade se transformou. Ela tinha grandes oscilações de humor, ria em um minuto e chorava por nada depois. Hattie tomou um gole de suco de acerola: — O Sr. Mason iria levá-la para tirar umas férias, para que ela pudesse descansar e se recuperar. Na noite em que eles sairiam de férias, ela pulou do telhado. — Pobre mulher, pobre Sr. Mason! — Acho que ela tinha algum tipo de depressão pós-parto. Todos nós nos sentimos péssimos porque ninguém conseguia ajudá-la. — Não é estranho o Sr. Mason permanecer em Birch Grove? — Essa é casa dele. A Família sempre vai cuidar dele. Quem sabe ele pode conhecer uma outra pessoa. — Eu gostava dele desde o começo — eu disse. — São apenas os homens que têm companheiras? — Sim, só os homens. As mulheres têm que aprender a se controlar e agir como damas, mesmo quando queremos rasgar a garganta de alguém e beber todo o sangue de seu corpo.
328 Vendo minha expressão, acrescentou: — Estou brincando. Supostamente, os rapazes podem ser perigosos porque são impulsivos e fortes. — Por que você diz 'supostamente'? — Como posso ter certeza? Nós, mulheres, temos que acreditar nas palavras deles, mas como acreditar quando dizem que precisam apenas de companhia e não precisam de mulheres? — Hattie, como é sentir o gosto de sangue pra você? É sexual? Ela hesitou: — O sangue dos animais é realmente muito prazeroso, como o bom vinho, eu acho. Mas o sangue humano é mais como uma droga, e pode ser muito erótico. Mas pode depender de quem você está bebendo o sangue. Essa é uma das razões pelas quais eu acho essa relação de companhia tão confusa. Mas todo mundo parece feliz com as coisas como elas são. — Hattie, você tem a sua família e tem A Família. Eu não tenho ninguém. Esta oferta... como eu poderia recusá-la quando se trata de ajudar o Lucky no final das contas? Ela chegou a tocar a minha mão: — Eu não queria te julgar. Eu faria a mesma coisa se eu estivesse na sua situação.
329 Quando acabamos de fazer as compras, eu já tinha várias blusinhas novas, calças, saias, vestidos e sapatos. Hattie me levou para uma secção de acessórios de uma loja onde as bolsas eram fantásticas exibições de luzes. — A Sra. Monroe não gosta de acessórios da última moda, mas se você quiser algo, nós podemos conseguir. — As pessoas não vão perguntar por que uma bolsista como eu tem uma bolsa da TSA? — eu perguntei. — Sem mencionar todas essas roupas novas. — Bem, vamos dizer que um doador deu as roupas pra você. O truque é encontrar um TSA que não seja obviamente uma TSA. Juntos, escolhemos uma bolsa de lona, de mão, com fivelas que não aparecessem, de cara, ‗de marca‘. O preço total das compras me trouxe à realidade de como minha vida seria diferente a partir de agora. No caminho de volta Hattie parou em Greenwood e, enquanto estacionava o carro em frente a uma pequena loja, disse: — Preciso ir ao joalheiro para arrumar uma coisa. Enquanto ela mostrava ao joalheiro o fecho quebrado de um colar, fiquei perto da porta, olhando para os armários de vidro impecáveis, repletos de jóias, relógios e canetas de ouro. Hattie me chamou para o balcão: — Jane, venha experimentar estes. O joalheiro trazia uma bandeja de veludo azul que com lindos anéis.
330 — Hattie... — eu estava acostumada com os bairros onde as lojas colocavam cartazes dizendo um aluno de cada vez! — Não tem problema em olhar — Hattie me disse, estendendo um anel de esmeraldas em minha direção. — Experimente. Coloquei o anel no dedo e ele escorregou para os lados: — É muito grande. — Você tem mãos delicadas — disse o joalheiro. — Esse pode se encaixar melhor — e pegou minha mão, deslizando em meu dedo um anel de safiras e diamantes. — Como ficou este? Levantei minha mão e estudei a maneira como as gemas refletiam na luz: — Perfeito, obrigada — disse tirando-o e devolvendo para ele. Hattie estava brincando com um anel ornamentado de topázio e diamante: — Este é o tipo de coisa brilhante e grande que Mary Violet amaria. Ela virou as mãos: — Tão trágico que o mundo não seja tão glamoroso como eu! E eu ri com sua imitação. Hattie se moveu ao longo do balcão, onde havia uma vasta exposição de canivetes:
331 — Talvez Lucky te dê um desses. — Ele já ofereceu — agora eu sabia o porquê ela tinha um. Quando voltamos ao campus, Hattie me ajudou a levar as sacolas de compras para casa. — Você parece muito calma sobre tudo isso — ela disse. — Eu estaria aterrorizada se alguém me dissesse que lobisomens existem e que eles gostariam que eu fizesse parte do bando deles. — Posso te perguntar uma coisa, Hattie? — Claro. — Você sabe por que Jack não quer que eu fique perto do Lucky? Ela fez uma pausa antes de falar. — Bebe teve um bom tempo para nos conhecer, e pensei que nós a conhecíamos de verdade. Ela estava tão motivada pelo dinheiro e pelo poder da Família que não tive dúvidas de que ela aceitaria a proposta — Hattie deu de ombros. — Mas você é diferente e acho que isso preocupa o Jack. — A forma como ele fala comigo é tão confusa. Achei que ele não gostasse de mim. — A única coisa que você tem que se preocupar é se Lucky gosta de você — disse ela. — Bem, agora preciso ir e mergulhar nos livros!
332 — Obrigada, Hattie, por tudo. Por ser tão boa comigo desde o começo. Ela sorriu: — Jane, é fácil ser boa para você. Vejo você amanhã. — Tchau. Depois que ela foi embora, tirei minhas roupas novas das sacolas de compras e comecei a selecionar as menos inúteis. Eu as organizei em um lado do guarda-roupa e coloquei o recibo das compras na carteira. Eu tinha um lugar para morar, roupas e dinheiro, uma posição, segurança para a vida, e um relacionamento com um cara lindo. Então, por que, de repente, eu me sinto tão vazia e desgastada? Lembrei-me então de que não tinha dormido na noite passada. Tomei banho e fui para a cama.
Na manhã de domingo fiquei deitada, fantasiando sobre ir para a faculdade com Lucky. Teríamos pesados livros didáticos, mesa de trabalho com laptops novos, aulas maravilhosas... Seria divertido viver em um dormitório, mas poderíamos viver fora do campus para ter privacidade. O telefone me arrancou dos meus devaneios. Era a Sra. Monroe perguntando se eu tinha acordado cedo:
333 — Gostaríamos que você e Lucky se reunissem com um conselheiro para falar sobre suas responsabilidades e sobre a cerimônia de iniciação. Almoçaremos todos juntos depois. Ela fez tudo aquilo parecer tão normal. Passei muito tempo experimentando as roupas novas, querendo parecer bem e, finalmente, decidi por uma saia azul-marinho e uma blusa branca porque pensei que a Sra. Monroe iria aprovar. Quando cheguei à casa dos Monroe, ela sorriu: — Você se parece com uma jovem lady agora. Vocês se encontrarão na sala de estudos do meu marido para que fiquem livres para conversar. Ela me mostrou um cômodo sombrio com uma grande mesa de madeira escura colocada ao centro. Haviam estantes do chão ao teto em todas as quatro paredes. Lucky estava praticamente jogado na poltrona com as pernas deitado para fora. Uma mulher mais velha sentou-se à mesa. Ela tinha um corte de cabelo chique e curto. Exibia um rosto pequeno e anguloso. Óculos sem aros estavam apoiados em seu nariz. E ala vestia um suéter amarelo, uma saia floral rosa e um dramático colar de pedras turquesa e âmbar. — Nina, esta é Jane Williams — a Sra. Monroe nos apresentou. — Jane, esta é Nina Rector. — Olá, Jane. Eu estava ansiosa para conhecê-la! — Olá, senhora.
334 — Nina, estarei na sala familiar, caso precise de alguma coisa — disse a Sra. Monroe fechando a porta atrás de si. — Sente-se, Jane — disse a Sra. Rector e eu me sentei ao lado de Lucky. — Oie — ele disse para mim. — Oi — respondi. — Parabéns, Jane! Eu sei como isso é muito emocionante para você. Meus pais morreram quando eu era jovem, drogas. Eu vivia nas ruas antes da Família me salvar — disse a Sra. Rector. — Eu me tornei uma Companheira quando tinha a sua idade. Foi a melhor coisa que já fiz! Ela era tão polida e bem arrumada que era difícil imaginá-la nas ruas, sozinha. — Vamos começar com uma visão geral — ela disse e então vieram as coisas que a Sra. Monroe havia comentado. — Vou lhe contar essas coisas porque fui assegurada de que você compreende a nossa necessidade de confidencialidade. — Sim, entendo. — Excelente! Agora vamos falar sobre as precauções de segurança. Tenho que reforçar a importância de serem cuidadoso em suas interações. Jane, o sangue de Lucien pode ser fatal se contaminar o seu sistema sanguíneo.
335 — Eu não tinha ideia disso — eu disse atordoada, virando-me para Lucky, que bocejava e olhava para seus sapatos. — Por que você não me disse isso antes? — Eu estava sendo cuidadoso — ele respondeu. — A última coisa que quero é infectar você. Eu já te disse, quero você saudável. A Sra. Rector balançou a cabeça: — Esta é uma situação imprópria. Se você tem um corte aberto em sua pele ou em sua boca, tocando o sangue de Lucien, ou mesmo o ingerindo – acredite, já vi de tudo - pode ser mortal. Não deixe isso acontecer. — O que acontece se ele estiver ferido ou acontecer algum acidente?— indaguei — Não devo ajudá-lo? — Lucien, você poderia, por favor, demonstrar a Jane? — Claro — ele disse. Então, Lucky pegou o canivete e, antes que eu pudesse pará-lo, ele cortou as costas da sua própria mão com a lâmina. O corte ficou vermelho por causa do sangue e, então, a pele começou a se recompor. Lucky lambeu o sangue para revelar a pele sem marcas. — Obrigado, Lucien — disse a Sra. Rector. — Jane, membros da Família se curam facilmente de pequenas lesões, por isso não se preocupe com eles. Se Lucien estiver gravemente ferido, você tem que nos contatar imediatamente para que as nossas equipes médicas cheguem a ele antes de mais ninguém. Nunca, nunca confie em qualquer outra forma de assistência médica.
336 Ela se abaixou e levantou uma pasta de couro marrom escuro, colocando-a sobre a mesa. — Vamos seguir em frente — disse ela, tirando de dentro da mala luvas cirúrgicas, spray antiséptico, álcool, ataduras, bisturi, agulha hipodérmica, toalhas desinfetantes, um comprido tubo de borracha e cilindros de vidro. — Aqui estão algumas ferramentas populares de segurança para um saudável derramamento de sangue. Venha dar uma olhada. Lucky foi imediatamente, alerta, até a mesa. Seus lábios se separaram com a mesma expressão que ele teve quando viu o meu dedo cortado. Fui até lá e peguei um cilindro que continha uma agulha em sua extremidade. A Sra. Rector explicou: — Este é um sistema a vácuo, uma maneira muito boa de recolher uma amostra. Claro, alguns parceiros preferem uma transferência mais
íntima, que é aceitável desde que a condição não seja contagiosa por meio da saliva. Havia algo inapropriado na maneira de como ela mencionou aquilo:
transferência mais íntima. — Você precisa falar sobre cicatrizes. Alguns parceiros sentem prazer em ver as marcas de seu relacionamento enquanto outros preferem minimizar as cicatrizes. Vocês já falaram sobre isso? — Discutimos sobre isso mais tarde — disse Lucky, mas eu sabia que as marcas na minha pele o deixavam excitado. — Eu não quero cicatrizes.
337 Lucky olhou para mim, e a Sra. Rector disse: — Esta é uma sábia decisão. Ao longo de muitos anos, o tecido cicatricial se acumula e interfere na circulação sanguínea. Ela nos mostrou as diferentes maneiras de retirar o sangue: — Jane, embora não toleramos o consumo de álcool por menores, fazemos uma exceção para o uso para o manejo da dor durante transferências mais íntimas. Um copo de vinho pode ajudar você relaxar e desfrutar da experiência. Há também os anestésicos tópicos. Obviamente, eles interferem no prazer do seu parceiro. Ou você pode apreciar a
intensidade de transferência, sem qualquer substância entorpecedora — e ela sorriu sugestivamente. — Não dói tanto assim — eu disse. — A dor não precisa ser ruim, minha querida. Tudo está relacionado com o modo que você interpreta as sensações. Mas podemos discutir isso em outra ocasião — ela disse. — Há uma área de preocupação. Lucien, você pode estar ciente de que alguns membros da Família têm utilizado aparelhos dentais sob medida - presas – para a retirada de sangue. — Eu sei — disse ele. — São uma espécie de prótese. — Seus pais são da opinião de que os animais têm presas, não os humanos. O Conselho está discutindo isso agora e até novo aviso eu realmente recomendo que você não as utilize. — Minha mãe já meu deu um sermão sobre elas — ele disse.
338 — Fico feliz por você ter entendido. — A Sra. Rector sorriu para Lucky, que estava rolando um dos cilindros em seus dedos longos e elegantes. — O Conselho? — perguntei. — O Conselho atua como nosso organismo governamental, uma vez que a Família não pode recorrer a autoridades padrões para muitas questões — ela respondeu. — Agora temos um novo vídeo instrutivo para ilustrar as técnicas discutidas. Eu me senti enjoada assistindo ao casal na tela utilizando o cilindro com a ajuda de uma agulha para retirar o sangue e utilizando um bisturi para cortar a pele. Lucky, com aqueles olhos azuis, tinha o olhar vidrado que eu agora reconhecida como sede de sangue. Aquilo era sua pornografia. Ele mal conseguia prestar atenção ao resto da sessão, que tratou da cerimônia de iniciação. Eu seria apresentada e teria que recitar alguns versos em uma linguagem antiga. Hattie me ajudaria com a fonética. — É uma cerimônia muito simples, velha e comovente — disse a Sra. Rector. — Ela será realizada em algumas semanas e então você vai ser oficialmente a Companheira de Lucien. Ela deu a cada um de nós uma bolsa com os suprimentos para a ―sangria‖ e nos disse que poderíamos chamá-la, caso tivéssemos qualquer dúvida. — Ótimo! Muito obrigado! — Lucky disse. — Posso ficar com o vídeo, também?
339 — É claro — disse ela com um sorriso agradável. — Você e sua parceira incluirão – se é que já não incluem - atividade sexual na transferência? Eu posso aconselhá-lo sobre precauções especiais, se este for o caso. — Não, isso não é necessário — Lucky disse rapidamente. — Nos velhos tempos, você sabe, era costume e ainda não é incomum — A Sra. Rector me lançou um olhar de simpatia. — Todas as nossas discussões e negociações serão totalmente confidenciais. Os pais de Lucien não saberão - independentemente da decisão de vocês. Lucky olhou para mim: — Trabalhar nisso. Quando é que podemos começar? — O Conselho deu a sua aprovação — disse ela. — Você pode começar agora, embora seus pais preferissem provavelmente que você esperasse até a cerimônia de iniciação. Deixe-me guardar estas coisas e nós podemos falar durante o almoço. — Obrigado pelas informações — disse Lucky e, pegando a minha mão, disse: — Vamos. Pensei que ele ia me levar para a sala familiar, mas ele me puxou em direção a porta da frente. Jack estava descendo do andar de cima e Lucky disse a ele: — Diga à mamãe que não podemos ficar para o almoço. — Diga você mesmo — respondeu Jack.
340 — Eu tenho coisas familiares para fazer. — O quê? Você vai sugar a Elfo até secar os fluidos vitais dela? Grande homem! — Cale a boca. Você não sabe de nada. — Eu sei mais do que você pensa — Jack olhou para mim: — Então você vai beber antibactericida agora? Por que eu ainda estou preocupado com isso? — O que importa a você o que ela faz? — Lucky disse e empurrou Jack, que ergueu os punhos e quando ele estava prestes a golpear Lucky, o Sr. Monroe chegou ao corredor: — Meninos! Lucky sorriu e disse: — Oi, pai, Jane e eu vamos almoçar na casa dela. Vejo vocês mais tarde. Fui correndo com o Lucky até varanda da frente e puxei minha mão, me desvencilhando dele. — Não. — O que foi? — Lucky, você não pode me arrastar como um cão na coleira. Eu já disse que ficaria para o almoço e eu quero falar com a Sra. Rector. Quando digo que farei algo, eu faço.
341 — Você está me dando um sermão? — Eu estou te mostrando os fatos. Por um momento, pensei que ele estava zangado comigo. Então ele sorriu e seu rosto se transformou. Seus olhos, naquela sombra, de um azul escuro deslumbrante. Ele era assim bonito que era fácil querer agradá-lo. — Ok, você está certa. Isso foi totalmente rude. Jane mantenha-me no chão, tá? Diga-me quando eu for um cretino. — Tudo bem. Você está sendo um idiota agora. — Sinto muito. Agora podemos ir brincar com os nossos novos brinquedos? — Não vamos brincar e aquilo não são brinquedos. Faço isso porque você precisa. Virei-me e fui em direção à casa dos Monroe. Depois de um momento, Lucky me seguiu. Jack e seu pai estavam na sala da família com a Sra. Rector e Sra. Monroe, que pareceu aliviada quando nos viu retornando. — Posso ajudar em alguma coisa?— perguntei a diretora. — Por que você não ajuda Jack a pôr a mesa? — disse. Jack não olhou para mim enquanto eu arrumava as facas, os garfos e os copos. Quando passamos um pelo outro, ele se inclinou tão perto que sua respiração fez cócegas na minha orelha; foi quando ele sussurrou: — O Elfo se rebela contra seu Mestre.
342 Pisei em seu pé: — Oh, desculpe. Lucky já havia se esquecido do seu quase confronto com Jack agia como se nada tinha acontecido. Qual dos dois era o verdadeiro Lucky? O risonho, brincalhão, e despojado garoto ou o vulnerável e agressivo bebedor de sangue? Eu só tive alguns minutos a sós com a Sra. Rector depois do almoço. — Seria ótimo falar com você em algum momento sobre isso — ela estendeu a mão e apertou minha a minha. Uma pedra preciosa vermelha no seu anel de ouro brilhou. — Eu vou voltar para a sua inicialização e ficarei alguns dias, ok? — Isso seria ótimo. Lucky esperou pelo longo almoço e então perguntou: — Jane, posso acompanhar você ate o chalé? — Gostaria muito. Ele tentou andar em um ritmo tranquilo, mas no meio da pista disse: — Vamos — e começou a correr. Mal chegamos ao chalé e ele falou: — Por favor, deixe-me fazer agora? — Tudo bem. — Você quer experimentar o anestésico tópico? — disse.
343 — Não, não precisa. Mas tenha cuidado. Ele abriu a minha bolsa de material e escolheu a lanceta. Era como um bisturi com uma lâmina de dois lados. Ele a desinfetou e depois me orientou: — Fique com o rosto para baixo, na cama. Fiz como ele pediu. Lucky se sentou ao meu lado e começou a acariciar as minhas costas, por baixo da minha blusa, o que fez estremecer. Ele levantou a minha blusa e desabotoou meu sutiã. Começou então a acarinhar a minha pele, todo o caminho dos meus ombros até a cintura. Sues dedos me pressionavam e iam de encontro aos lugares mais tensos do meu corpo. Fechei os olhos, apreciando a pressão de seus dedos na minha pele. Ele trabalhou com o polegar em um ponto alto no meu ombro e, então, fez um corte rápido. Mordi o travesseiro e Lucky gemeu antes mesmo de colocar a boca no corte e se alimentar de mim. Ele se jogou em cima do meu corpo e se movia ritmicamente enquanto alternava em chupar o corte e lamber o sangue com a língua. Tentei relaxar, para desfrutar o contato de seu corpo e seu prazer, mas continuei pensando na luxúria, em seus olhos quando ele viu o vídeo, a luxúria que nada tinha a ver comigo. Quando Lucky terminou, ele rolou para o meu lado e adormeceu. Eu me levantei e fui ao banheiro. Esforcei-me para colocar pomada e um
344 curativo no corte antes de me trocar, vestindo um jeans e uma camiseta. Olhei para o quarto e vi Lucky dormindo, esparramado na cama. Uma hora depois eu o sacudi, acordando-o: — Lucky, temos que repassar a sua lição de química e tenho alguns estudos para fazer das minhas aulas. — Hmm? Ah, eu estou bem em química. Fizemos isso só para você me conhecer melhor. — Sério? — Bem, meus pais fizeram, na esperança de que você me ajudasse a ficar melhor, mas não é como se eu fosse virar um mestre em ciências. Você quer que eu cuide do seu corte? — Eu já fiz isso. — Tudo bem, eu tenho que ir. A gente se vê. — Quando? — Vou querer provar mais um pouco em alguns dias — disse ele. — Podemos tentar algo novo para o nosso, quero dizer, equipamentos médicos.
345
Capítulo Dezoito
―O ano acadêmico é composto de seis períodos que são cerca de seis semanas cada um. Cada um dos nossos três períodos é de cerca de dezoito semanas. Os exames finais são dados no final de cada período.‖ Manual da Aluna Birch Grove
NAS SEMANAS SEGUINTES tentei equilibrar o meu novo papel com as exigências dos trabalhos escolares e com o período de provas que estava próximo. Lucky aparecia por duas vezes por semana para conseguir o que ele chamava de ‗prova‘. Como um viciado, eu o deixava sugar meu sangue em lugares que não mostratiam marcas. Depois de conseguir o que queria, ele me ajudava a limpar as feridas e ficava papeando, falando sobre seus amigos. Ele insistia em perguntar se poderia usar um kit de punção venosa e finalmente eu disse sim. Suas pupilas se dilataram enquanto ele amarrou a borracha ao redor do meu braço e viu minhas veias crescerem com o sangue que era impedido de circular. Ele estava paralisado quando encheu o tubo com o sangue vermelho escuro.
346 — Eu vou guardar isso para mais tarde — ele disse colocando o cilindro no bolso da sua jaqueta de Evergreen. — Você não precisa ir tão cedo — eu disse, mas já pensando nas duas páginas de latim que eu tinha que traduzir. — Você tem provas chegando. Eu não quero que você vá parar no gabiente da minha mãe por causa das suas notas. — Obrigado por pensar nisso. — Além disso, eu estou indo comer hambúrgueres com o Mack. — Quem é esse? — Meu amigo, Christopher MacElroy. Eu lhe disse sobre ele. Nós estamos em uma equipe de paintball. — Ah, tá. — Você nunca se lembra dos meus amigos. — Talvez, se eu os conhecesse me lembraria melhor. — Você quer conhecê-los? — ele perguntou, um tanto aborrecido. Seus amigos pareciam ter muito dinheiro e nenhuma autodisciplina, assim como Lucky. — Não, eu já tenho muito com o que lidar. Meu grupo de estudos de latim se reunia semanalmente, e eu estava mesmo ansiosa para o anual da apresentação Noite Clássica de Latim.
347 Mary Violet tinha feito uma toga para mim a partir de um lençol e eu ensaiava a minha parte da peça, de apenas duas cenas, que se passavam em Roma, com Terrence. Embora eu também lesse a tradução em inglês das peças, eu me perdia nos enredos complicados, no qual todos estão manipulando todo o mundo. Catalina era a anfitriã, ela faria o evento em sua casa. Meu grupo de estudo me pegou no chalé e fomos para uma imponente mansão de pedras cinzas. Seu interior era completamente moderno com esculturas abstratas colocadas no chão, também de pedra, e haviam enormes pinturas nas vastas paredes. A irmã mais nova de Catalina nos levou às escadas, que davam para o salão de baile. Eu nem sequer sabia que casas poderiam ter salões de baile. A empregada levou nossos casacos e um homem em um uniforme serviu coquetéis sem álcool. A toga de Catalina era tão graciosa, que deve ter sido encomenda sob medida para ela. Minha professora, a Sra. Ingerson, vestia uma toga azul brilhante e parecia mais feliz do que nunca. Ela entrou no pequeno palco e nos saudou em latim. Em seguida, os alunos mais velhos fizeram suas apresentações, com as meninas descontroladamente exagerando em suas partes, tanto no papel feminino quanto no masculino. A apresentação do meu grupo foi boa, pelo menos não fomos motivo de chacotas. Ultimamente, tudo me fazia pensar em minha situação com A Família, incluindo uma de minhas falas: ―Homo sum, humani nil a me
348 alienum puto‖, ou ―eu sou um homem, eu não considero nada que é humano estranho a mim.‖ Depois das apresentações e do jantar, Catalina veio até mim e disse: — Pensei que você fosse humilhar a você mesma, no entanto, sua performance foi boa. — Eu não sou estúpida, Catalina. — Não, mas ainda ingênua, e estranha. Uma rã fora da água. — Você quer dizer um peixe fora d'água. Ela piscou seus olhos cor de âmbar: — Não, uma rã, porque a rã é uma coisinha sem graça, mas pode respirar dentro e fora da água. Um peixe morre fora da água, mas um sapo pode sobreviver. Aquilo quase me pareceu um elogio. Antes mesmo que eu pudesse responder a Sra. Ingerson chamou por Catalina, a fim de lhe agradecer pela hospitalidade. Noites de Terror se tornou ainda mais interessante para mim; era como se eu achasse pistas sobre a minha situação. Estudamos a poesia vampiresca de Keats, Byron e Southey. Lemos A Mestra Vampira de Elizabeth Grey e O Abraço Frio de Mary Elizabeth Braddon. Certa vez, enquanto visitava os Monroe, a diretora e eu estávamos sozinhas na sala familiar e então eu disse: — Sra. Monroe, o que a fez decidir lecionar Noites de Terror?
349 — Comecei a ler a mitologia vampiresca quando eu tinha uns treze anos. Eu estava tentando entender o porquê às pessoas nos odiavam. Quanto mais eu lia, mais percebia que os vampiros da ficção eram, de fato, reflexos das tendências morais e intelectuais, o que significa o clima cultural de uma época. Fiquei fascinada com a progressão da literatura de vampiros em conjugação com os movimentos sociais, e é assim que o meu curso se desenvolveu. — O que a ficção vampiresca de hoje diz sobre a nossa visão de mundo? Ela sorriu: — Direi a você quando preparar minhas aulas para o ano que vem.
FUI CONVIDADA à casa dos Monroe para conhecer um convidado especial, um membro do Conselho, o misterioso grupo que governa os vampiros. Era fim de dia e havia uma reluzente Mercedes preta na entrada. Eu estava usando um vestido que Hattie me ajudou a escolher, bordado com costura preta no decote e bolsos. A Sra. Monroe abriu a porta e falou baixinho: — Seja você mesma, Jane, e você vai ficar bem. Ela me levou para a sala. Vasos de flores frescas estavam nas mesas lustrosas, fogo queimava na lareira e havia um carrinho de bebidas arrumado.
350 Eu esperava que Lucky estivesse lá, mas havia apenas a Sra. Monroe e outro homem, um homem que fazia Tobias Monroe parecer gasto e surrado. O visitante tinha cabelo encaracolado, olhos misteriosos e um peito largo. Ele usava um terno impecável preto e camisa branca, tão branca quanto à neve. Um cheiro de poder emanava dele, mesmo sentado casualmente com um copo de vinho tinto na mão. — Esta é Jane — disse a Sra. Monroe, sem o apresentou para mim. — Olá, Jane — disse o homem. Seu apaziguador sorriso me fez sentir como se acabássemos de compartilhar uma piada. — Hyacinth e Tobias, se importariam se eu falasse a sós com Jane? — De maneira alguma — disse a Sra. Monroe, corando. Eu nunca a tinha visto nervosa antes. Quando saíram, o homem disse: — Você gostaria de uma bebida, Jane? — Não, obrigada, senhor — respondi. — O senhor sabe o meu nome, mas eu não sei o seu. — Sou Ian Ducharme. Represento esta região no Conselho. Não que Hyacinth me dê muito trabalho; ela controla todos os detalhes de sua escola. Embora o seu Inglês fosse perfeito, ele parecia estrangeiro: — Vamos nos sentar?
351 Ele esperou até que eu me sentasse no sofá e depois se sentou perto de mim, fazendo os pelos da minha nuca se arrepiarem. Apesar de toda a sua elegância exterior, senti que Ian Ducharme era um homem extremamente perigoso. — Jane, você é jovem demais para compreender plenamente o compromisso para uma vida inteira — ele sorriu cinicamente. — Compramos a lealdade, Jane. E a maioria das pessoas são ávidas por vendêla. Eu o estudava enquanto ele estudava a mim. — O que você está pensando? — ele me perguntou. — Você me faz lembrar de Jack Monroe — respondi. — Ele gosta de dizer coisas que me deixam nervosa. E há uma semelhança física, também. Sr. Ducharme riu. — Então sou do tipo do Jack? Agora eu vou ter que conhecer Jack melhor para descobrir se você me elogiou ou não. — Não é, e nem deixa de ser um elogio. — Por que não? Você não deseja me agradar? Sou muito poderoso, você sabe, e muito rico. Mulheres me acham extremamente atraente. — Riqueza e poder são geralmente considerados sinônimos de atratividade.
352 — Na verdade, eles são Jane. As mesmas pessoas que me acham tão bonito poderiam se ver enganadas, caso eu perdesse minha fortuna e posição. Gostava dele porque ele me tratou de igual para igual, e me peguei sorrindo. — Acho que você sobreviveria. Ele tinha uma risada rica e baixa: — Agora é minha vez de lhe dizer o que penso sobre você. Eu acho que talvez Hyacinth possa ter errado na sua escolha. Eu não acho que você está ansiosa para agradar. Você é alguém que vai ser fiel por um preço? — Lealdade que pode ser comprada não é a lealdade. Eu já prometi a Lucky que serei sua companheira. Vou manter minha promessa. — Isso é o que Hyacinth diz, e ela tem uma carreira infalível neste aspecto — disse enquanto seus profundos olhos castanhos olharam bem dentro dos meus. — Eu li todos os arquivos ao seu respeito, mesmo aqueles fechados à sua diretora. Diga-me. Como conseguiu subir tão alto naquela árvore quando você foi baleada? — Eu não gostaria de lembrar, mesmo se pudesse — respondi. — Pessoas me disseram que eu devo ter subido na árvore. — Como uma menina de anos de idade escala quase trinta metros após levar um tiro letal? Você estava morta quando a encontraram. Os paramédicos desistiram de tentar ressuscitar você Balancei minha cabeça:
353 — Eles devem ter cometido erros no relatório. — Acho que não, Jane. Basta olhar em seus olhos para ver que você não é apenas a jovem e simples menina que parece ser — disse ele, dandome uma sensação estranha de que sabia mais sobre mim do que eu mesma. — Ter sobrevivido a uma tentativa de assassinato não me torna especial. Faz de mim uma pessoa infeliz. E eu não quero que ninguém saiba. Não quero que as pessoas tenham pena de mim. — Como quiser — ele disse, terminando seu copo de vinho. — Raramente sou chamado quando se trata desse tipo de assuntos domésticos, mas os Monroe me pediram para entrevista você em nome de seu filho. O que você quer que eu diga? — O que eu quero que você diga não importa, não é? — respondi. — Não, eu apenas queria ver se você tentaria se defender — disse ele com um sorriso malicioso. — Você me faz lembrar alguém também, um jovem amigo meu, que é muito mais do que aquilo que aparenta ser. Ele se levantou e então eu estava de pé também. — Jane, uma palavra de aviso: este ramo da família leva a traição muito a sério. Você pode ir agora. — Adeus, Sr. Ducharme. — Até nos encontrarmos novamente, Jane. A Sra. Monroe me pediu para esperar na sala da família e, um pouco mais tarde, ela veio me dizer que o Sr. Ducharme estava satisfeito comigo.
354 Por que ele disse isso a ela quando, na verdade, ele próprio não acreditava em mim? Hattie passou por lá logo depois e caminhamos juntas para o anfiteatro. — Então o que você acha de Ian Ducharme? — perguntou ela. — Eu gostei dele, embora ele me assuste muito. — Ele faz isso com todos. Não que eu tenha falado com ele pessoalmente, mas Mary Violet diria que ele parece deliciosamente depravado - e ela estaria correta. A Sra. Monroe não disse uma palavra sobre o que ele realmente faz para o Conselho. Hattie me mostrou onde eu iria esperar no começo da cerimônia de iniciação, como me comportar e onde ficar. Ela me ensinou as palavras estranhas que eu tinha que dizer e as ensaiou comigo. A língua era cheia de ângulos agudos, como vidro quebrado na minha boca, e eu lutava para dizer aquelas poucas frases. — Não se preocupe. Ninguém pode pronunciá-las — Hattie me disse. — Eu tenho certeza que é por isso que essa língua morreu. Mas, contanto que tente você não tem que se preocupar em fazê-la exatamente. Uma vez que você disser suas falas e Lucky às dele, há um pequeno corte na ponta do dedo. — Eu pensei que essa parte era privada. — É, com exceção desse evento oficial. É um corte pequeno, o suficiente para obter umas gotas para o simbolismo. A pior parte é esse
355 terrível licor verde feito com ervas. Você e Lucky, cada um, têm que tomar uma bebida. Os Monroe se certificarão de que o licor estará bem líquido e adocicado, assim vocês não o cuspirão automaticamente. — O que eu tenho que usar? — Você terá um roupão. Eunice fará o comprimento certo para que você não tropece. — Isso é bom porque vestir uma toga na apresentação Noite Clássica de Latim foi mais difícil do que eu pensava — eu disse. — MV diria que é o meu destino trágico vestir vestidos de louco e falar em línguas mortas! Hattie e eu rimos e ela disse: — Enfim, tudo leva quinze minutos e então Lucky poderá sugar seu sangue feliz para sempre. Embora estivesse sorrindo, ela tinha um tom amargo. — Hattie, você está absolutamente certa de que está tudo bem com você? — pensei em tudo o que estava sendo oferecido para mim e pensei também sobre o quanto eu gostava daquela adorável e gentil garota. — Se você não quer que eu faça isso, não farei. Ela apertou os lábios e os olhos castanhos viraram-se para o chão. Depois de um momento ela disse: — Eu estou fazendo isso de novo - deixando meus próprios problemas com a Família interferir com as decisões dos outros. Não perca algo importante, por eu ter problemas com isso.
356 — Se há algo que eu possa fazer Hattie... Seu sorriso era triste. — Obrigada, mas eu tenho que aceitar que as coisas estão como são. Fiquei quieta para que ela pudesse falar mais, mas ela mudou de assunto, falando de uma nova loja do shopping Millerton. Os Monroes deram para mim um celular e disseram que a conta seria por conta deles. O telefone prateado continha números pré-programados, como os números Monroe, e eu poderia usá-lo para ligar para qualquer um dos meus amigos também. Eu queria chamar os Alfas, mas mesmo se eu pudesse descobrir o número deles, havia tanto que eu não poderia dizer a eles. Havia tanta coisa que eu não podia contar a ninguém que não fosse a Hattie. Constance tinha-nos chamado para estudar e sua mãe parecia tão sensível e inteligente como a filha. No alto de seus dez anos de idade, os irmãos gêmeos de Constance eram barulhentos e não paravam de correr dentro do quarto. Enquanto, isso interrogávamos umas as outras sobre Noite de Terror. Quando os meninos pularam na cama de Constance e começaram a brincar de luta ele me disse: — Esse é o motivo pelo qual eu gosto de ficar na MV. Mary Violet era uma que sempre me ficava fazendo perguntas. Mas certa tarde, quando estávamos estudando no gramado, fui eu quem perguntou:
357 — Você já foi à casa da Hattie? — Apenas algumas vezes e olha que a conheço desde pequena. Mas eu não gosto de ir lá porque a Sra. Tyler é uma mulher muito esnobe e ela disse coisas sobre as pinturas da minha mãe — Mary Violet desabafou. — Ninguém está autorizado a dizer o quão terríveis as pinturas delas são, exceto nós, você sabe, e isso é porque sabemos que as pinturas dela são realmente muito boas. Além disso, acho que a Hattie discute com os pais dela o tempo todo. — Ela já me disse que eles não se dão muito bem. — A família dela é tão fechada que eu não ficaria surpreso se Hattie fugisse e se juntasse ao circo. Um daqueles circos europeus surrealistas, mas não aqueles de performances esquisitas. — Mas está aí uma coisa que a Hattie não é: esnobe — eu disse. — Não! Ela é como diz a Sra. Monroe, uma garota excepcional. — Mary Violet pareceu séria, como eu nunca havia visto antes. — A Hattie é amigável, mas é difícil ver o que tem debaixo daquela casca. Sempre acho que ela guardar um segredo muito obscuro, assim como você e seu passado misterioso. — MV, meu passado não é misterioso... — pausei. — Minha vida era realmente deprimente. Era como se eu estivesse olhando o mundo através de uma janela suja e tudo era sombrio e feio. Quando vim para cá, tudo mudou. As cores eram tão brilhantes, os sons tão claros. Não me sinto mais entorpecida. Eu não me sinto tão sozinha...
358 Mary Violet se encostou a mim e seus cachos dourados roçaram em meu rosto: — Você pode compartilhar a minha família se você compartilhar a vergonha das pinturas, também. — Adoro as pinturas da sua mãe. — Calças pegando fogo! — ela disse e começou a me fazer cócegas. — Eu amo as pinturas de bétula! — eu disse antes que o riso me dominasse.
Seis dias antes a iniciação. Hattie me encontrou no corredor, próximo aos armários e disse: — Tenho algo para você. Fomos para uma sala vazia de prática musical e ela pegou uma pequena caixa de veludo preto da sua mochila de livros: — É um presente da Família. Abri e vi um anel de ouro com três pedras vermelhas pequenas e escuras, semelhante as do anel da Sra. Rector. Hattie disse: — É um anel de companhia. O ouro foi extraído das Montanhas Apuseni e as pedras vêm das montanhas de Banat, na Romênia.
359 Na parte interior do anel, havia um ―L‖ sobrescrito um ―J‖, esculpidos com uma letra curvilínea: Lucien e Jane. — Experimente-o — Hattie pediu. — Deve ser usado no dedo anelar da mão direita. Ele se encaixou perfeitamente. — É por isso que você me fez experimentar anéis? Ela sorriu. — Jane Esperta. Você vai precisar dele para a iniciação, e você pode usá-lo normalmente. Mas cuide bem dele. — Cuidarei. Obrigada, Hattie. Coloquei-o no meu armário escondido atrás de uma pilha de livros. Minha última aula daquele dia foi Redação no piso inferior do Desajeitado. Estávamos compilando uma edição especial de esportes do jornal e a mim havia sido atribuída a tarefa de escrever sobre o balé moderno e as aulas de jazz. A editora, um veterana, chegou à minha mesa: — Preciso que você corte mais 250 palavras. — Eu já cortei esse texto, ele já está só o esqueleto — disse repetindo uma frase que eu ouvi de uma outra veterana. A Sra. Chu se aproximou: — Como estamos indo?
360 — O artigo de Jane é muito longo e precisamos de espaço. — O texto perderá conteúdo importante se eu cortar mais — retruquei. — E a dança merece espaço. Uma porcentagem maior de alunas faz aula de dança, se comparado às que praticam esporte. — Desculpe, não temos espaço — disse a editora. Nós duas olhamos para a Sra. Chu. Eu esperava que ela fosse tomar um lado ou outro: — Eu sei que vocês podem trabalhar juntas para resolver isso— ela disse e nos deixou. A editora então soltou uma exasperada respiração: — É muito longo e eu não quero retirar o artigo de ninguém do jornal, mas você está certa sobre a dança ser um grande negócio aqui. Tem alguma sugestão? Eu pensei por um segundo e disse: — E se fizéssemos o meu artigo em duas partes? Parte um nesta edição, que pode ser sobre jazz, e a parte dois, na seção de artes, pode ser sobre a história da dança e o balé moderno. Isso dará a você mais espaço do que precisa. — Não é uma má ideia — disse ela com um sorriso. — Farei isso. Depois que terminei de escrever a seção um, entreguei o texto para o editor e arquivei uma cópia no arquivo geral. Então ajudei a corrigir os
361 outros artigos que estavam pendentes. O sol quase já tinha se posto quando voltei ao prédio principal para pegar meus livros. O prédio estava tão escuro e vazio como das outras vezes em que estive lá até tarde. Por causa daquela experiência, eu sempre olhava ao redor, pelos cantos dos corredores. Alunos de moletom usando capuz se moviam nas sombras. Vislumbrando meu armário, vi que sua porta estava aberta e a pessoa, uma garota na certa, estava remexendo dentro dele. Sua cabeça estava coberta e escondida e pude ver o fio de luz que vinha de sua lanterna. Encostei as costas na parede e fui em direção ao armário, bem devagar. Meu cotovelo bateu em um outro armário e fez um barulho. Gelei, na esperança de que ela não tivesse ouvido, mas ela ouviu e virou o fio de luz diretamente em meus olhos. Embora eu não pudesse ver, larguei minha mochila e corri em sua direção. Ela estava a uma distância considerável. Ela correu. As solas de couro dos meus sapatos me faziam escorregar no assoalho polido, mas eu sabia onde ela estava indo. Ela virou a esquina para a sala de prática de musical e eu estava bem atrás dela no momento em que ela virou a esquina. Mas, entrando na sala, não a avistei mais. Ela sumiu de novo! Havia uma explicação, eu disse a mim mesma, olhando atentamente ao redor. Foi quando vi isso: uma parte dos painéis de madeira que não se alinhavam uniformemente ao longo da parede.
362 Quando examinei atentamente, descobri uma trava disfarçada. Eu a levantei gentilmente e ela se abriu. Abri a porta e vi um túnel escuro, com cerca de dois metros de altura e um de largura. Apenas um pouco à frente, vi o brilho da lanterna contra a parede. Minha pequenez me deu uma enorme vantagem de movimento e rapidamente consegui me mover para baixo, enquanto a garota se movia com dificuldade. Eu estava bem atrás dela, quando, de repente, ela bateu a cabeça no teto e tropeçou. Saltei para a frente, caindo sobre ela e rolamos: — Merda! Era uma voz de homem. Senti a lanterna. Peguei-a e iluminei o rosto daquela pessoa: Jack Monroe piscou: — Como vai, Jane? — Você! — Aconchegante aqui, não acha? Sou praticamente um gigante sendo abatido por um elfo em um labirinto de túneis. Percebi que os nossos corpos estavam entrelaçados. Olhei seus olhos verdes e seus longos cílios escuros. Seu braço surgiu em torno de mim enquanto eu tentava me equilibrar sobre seu corpo, sentindo o movimento de subir e descer do seu peito. Um dos cantos de sua boca se curvou em um sorriso e o desejo cresceu em mim, chocando-me mais do que qualquer outra coisa.
363 — Eu não posso acreditar que você está rindo disso!— eu disse com raiva e confusa, afastando-me dele. — Vamos lá, isso é engraçado — disse ele, ficando do jeito que estava, deitado no chão do túnel. — Você que fechou a porta atrás de você? — Eu estava tentando pegar você — com feixe de luz da lanterna iluminei a parede e percebi que ela continha o mesmo padrão de madeira de bétula trabalhada que foi utilizada no auditório. Mas aquele pequeno feixe de luz era pouco para tanta escuridão. Jack disse: — Ok, volte e feche a porta quando sair. Vejo você por aí. Eu agarrei o seu tornozelo quando ele começou subir as escadas. — Não, você não vai a lugar nenhum. Você vai sair daqui comigo. — Quando você ficou tão mandona? Eu gosto de mandonas, Me bate, me chicoteia, me maltrata! — Cale a boca. Viramos juntos em direção à porta naquele espaço minúsculo e estreito e fez o caminho de volta para o salão. Quando saímos, ele fechou a passagem secreta. — Para que serve esse túnel?— meu coração estava disparado e eu não conseguiria olhar para ele diretamente até que eu tivesse recuperado o meu próprio controle.
364 — É uma rota de fuga caso apareçam caçadores de vampiro por aí — ele disse se dirigindo ao meu armário. — Embora isso possa parecer incrivelmente paranoico para você. — Não, não é. Equipes da SWAT sempre invadiam as casas dos meus vizinhos. Entendo a questão de ser cuidadoso — falei tentando mandar embora aquele sentimento que insistia em permanecer em mim. — Ouvimos helicópteros e víamos as luzes, que era um sinal de barulho de explosão. A qualquer minuto eles poderiam descer em nossos quintais, deixando os pit bulls enlouquecidos. E os policiais vestindo aquele uniforme todo preto, com armas enormes em punho... — me calei. Chegamos ao meu armário. Usei a lanterna para examinar o interior dele. A caixa de veludo tinha sumido. — Devolva-o — eu disse a Jack. Ele então enfiou a mão no bolso do moletom e tirou a caixa que continha o anel. Entregando-me a caixa, eu disse: — Por que você me odeia tanto? Ele se aproximou e disse em voz baixa: — Eu não odeio você, Jane. Estou tentando salvar você. O sentimento voltou. Eu queria pressionar meu corpo contra o dele, sentir a aspereza de sua barba no meu rosto e o gosto de seus lábios. Dei um passo para trás.
365 — Lucky não me machucaria. — Vamos sair daqui, e eu vou lhe dizer o que eu sei. Quando estávamos indo embora da escola olhei para trás. No laboratório de química as luzes estavam acesas. Aquilo cortava meu coração, saber que o Sr. Mason passava a noite quase toda ali, sozinho. — Hattie sabe que era você quem estava deixando aquelas mensagens para mim?
Hattie podia beijar muito o Jack, e a qualquer hora que tivesse vontade, pensei. — Não. Eu não queria que ela ficasse em apuros caso eu fosse pego — Jack pegou a minha bolsa. — Deixe que eu leve pra você — ele disse colocando-a em seus ombros. — Que diabos você carrega aqui dentro? — Livros. — Você poderia ter dito algo engraçado, como ―o peso do mundo‖. — Você é bobo da corte, não eu — e olhei para o seu perfil, querendo tocar seus cachos escuros. — Quantas passagens secretas a escola tem? — Há uma no terceiro andar, em frente as salas de ciência e uma na biblioteca. Tem também uma no Desajeitado. Todas levam para escadarias que dão no subsolo, onde há túneis de saída. Mas você não deveria saber disso. — Onde estamos indo? — Comer pizza.
366 — Porque você não pode me dizer o que sabe agora? — Eu acho melhor falar quando estou consumindo queijo derretido sobre uma crosta bem grossa de molho de tomate — ele disse e olhou para o céu escuro daquela noite. Jack sorriu para mim: — Meu sonho de infância era descobrir um elfo a meia-noite. — Não é meia-noite. — É meia-noite em algum lugar do mundo. Talvez nós nos encontraremos com seus parentes, duendes e elfos, e você pode cantar uma de suas canções de fada para mim. Virei a cabeça para que ele não visse o meu sorriso. Depois de descer a colina, Jack me levou à uma rua principal onde ficava um pequeno restaurante. As toalhas de mesa eram vermelhas e brancas e havia velas nas garrafas de vinho e cachos de uvas artificiais pendurados em uma treliça no teto. As paredes eram pintadas com paisagens de gôndolas em canais. Os clientes eram velhos. Um garçom veio até nós: — Oi, Jack. Pedido pra comer aqui ou para viagem? — Aui. Queremos uma mesa, por favor. — Sente-se onde quiser.
367 Jack escolheu uma mesa em um canto vazio. Ele se recostou na cadeira e a luz da vela revelou os ossos de seu maxiliar, seu robusto nariz, sua firme mandíbula e sua sensual e expressiva boca. De repente percebi que eu estava atraída por Jack desde o primeiro momento que o vi. — Só os velhos simplórios vem a este lugar, e eu, é claro. A comida é boa. O que você gosta em uma pizza? — Pepperoni e cogumelos. Jack fez o pedido e o garçom nos trouxe refrigerante e uma cesta de palitinhos temperados feitos de pão, os breadsticks. Ele então me falou: — Você tem poeira aqui em você — ele estava prestes a tocar meu ombro e eu me afastei, muito receosa de como reagiria a seu toque. — Como você sabia o momento que eu estava longe do armário? — indaguei. — Vendo pela janela do porão do Desajeitado. Vi que você estava lá, ficou até tarde com a Sra. Chu. Ou quando fica até tarde lá em cima, no laboratório. química. — Agora que eu sei como, quero saber o por quê. — Essa parte é a mais complicada. O que você já ouviu falar sobre Bebe?
368 — Só que ela era uma bolsista que viveu no chalé. Supostamente ela seria a companheira do seu irmão, mas foi para a Europa morar com um tio. — Isso soa perfeitamente incrível pra você? — Qual parte, especificamente? — A parte onde ela vai morar com o tio. — Eu tinha um companheiro de quarto que foi levado pelo avô. Dois meses depois, o avô o abandounou em uma estação de ônibus com dez dólares e um sanduíche de mortadela. — É engraçado como você diz essas coisas de maneira tão natural. Isso é o que você espera do mundo - ataques da SWAT e crianças abandonadas — ele disse. — Eu conhecia Bebe muito bem e ela nunca mencionou qualquer tio. Um dia ela estava aqui, feliz por estar em companhia do Lucky, e no dia seguinte ela se foi. — Talvez ela mudou de ideia. — Eu não penso assim. Ela sabia que Lucky era a passagem dela para uma vida boa. Embora ninguém estivesse por perto, ele se inclinou para a frente e abaixou a voz: — Eu acho que algo aconteceu com a Bebe. — Você não acha que seu irmão fez alguma coisa com ela? — perguntei, pensando em como Lucky ficava excitado quando bebia sangue.
369 — Lucky é egocêntrico, não perigoso — disse Jack. — Não foi ele. Estávamos em São Francisco no fim de semana em que ela desapareceu. Quando voltamos, os meus pais estavam ao telefone, atrás de portas trancadas.
O
Conselho
enviou
um
consultor
de
segurança
e
eles nunca mandam alguém, a menos que seja importante. Então meus pais anunciaram que Bebe tinha ido viver com o seu tio desconhecido. — Mary Violet disse que Bebe nunca ligou ou escreveu. O que você acha que aconteceu? — Meus pais afirmam que ela ligou para eles durante a nossa viagem, mas eu não acredito nisso, e Lucky não se importa já que agora você está aqui para ser sua companheira. — Jack, por que você não me falou sobre isso em vez de tentar me assustar? — Eu não poderia te dizer de cara porque você não sabia sobre a Família. Depois achei que você não me ouviria — ele disse. — Se você deixasse Birch Grove ou se queixasse de assédio, a Família seria colocada em alerta. Enquanto isso, eu teria mais tempo para convencer Lucky de que encobriram algo sobre a Bebe e eu poderia tentar convencer a todos para adiar o ritual de inicialização até que as coisas fossem esclarecidas. — Se você acha que alguma coisa realmente aconteceu com a Bebe, você deveria ter denunciado à polícia. — A polícia de Evergreen não investigará se a diretora de Birch Grove afirmar que uma menor emancipada foi para a Europa viver com um parente. Além disso, eu jamais exporia a Família, nem colocaria a minha
370 família em uma situação perigosa. Eles são boas pessoas, mesmo que troquem os pés pelas mãos algumas vezes. — Talvez seus pais estejam encobrindo o fato de terem pago a Bebe para que ela partisse, ou talvez ela foi embora por si mesma — eu disse. Crianças fojem o tempo todo. Isso não é grande coisa. A pizza chegou e, enquanto comíamos, Jack e eu fomos repassando as informações que sabíamos, que não eram suficientes para montar o quebracabeças. — O que Hattie disse quando descobriu que Bebe tinha ido embora? — perguntei. — Ela ficou empolgada. Ela odeia essa história de companheira e jura que nuca se casará com um homem que tenha uma. — É por isso que ela namora você. Ele sorriu, a brancura de seus dentes ficou mais visível na penumbra do restaurante: — Sim, por que mais alguém namoraria comigo? Eu poderia ter dito a ele que era porque ele era engraçado e atencioso, porque você é estranho e ao mesmo tempo maravilhoso, porque você faz cada nervo do meu corpo estremecer, porque eu amo seu toque, o som da sua voz, seus olhos da cor das folhas... Mas eu disse:
371 — Eu sei que viver com segredos é difícil para Hattie. E sei que ela odeias relações entre companheiros. — Você não tem ideia, Jane. Ela é uma garota incrível, e farei tudo o que puder para garantir que ela receba todo o amor que ela quer. Lucky, Hattie tinha sorte. Afortunada, afortundada Hattie. Jack pediu ao garçom para chamar um táxi. Então, ele pagou a conta e saímos, andando pela calçada e o táxi apareceu. — Jack, eu não acho que você pode ter tanta certeza que Bebe não foi embora voluntariamente.Talvez o dinheiro não fosse razão suficiente para ela ficar. Ele abriu a porta do passageiro e disse baixinho para que somente eu pudesse ouvir: — Mesmo se não fosse, Elfo, embora tenha sido, ela tinha uma coisa em comum com você. Ela era uma garota solitária loucamente apaixonada pela fantasia do menino rico e bonito. Eu queria dizer alguma coisa, mas eu não conseguia encontrar as palavras, então eu fiquei ali, paralisada. Jack não entrou no carro. Entregou o dinheiro ao motorista, dizendo: — Ela vai para Birch Grove. Entei no carro e ele fechou a porta. Eu olhava para a frente com um pensamento, ele pensa que eu sou previsível e boba. Fiquei olhando para
372 frente e pensei ele me acha previsível e tola. Repassei toda a conversa em minha mente e pareceu muito claro que ele sempre me tratou como um caso de pura piedade.
Em casa peguei o caderno do esconderijo e documentei tudo. Então, desenhei um novo esquema sendo que eu estava no centro dele. Em outro esquema anotei todas as pessoas que conheci em Birch Grove e sua possível e seus possíveis interesses em mim. Quando acabei, as linhas se conectavam e se cruzavam em torno de mim, como fios de uma teia de aranha em torno de uma mariposa. Coloquei o caderno de lado e contei meu dinheiro para ter certeza de que estava tudo certo. Então, escondi o anel de companhia também. Acordei no meio da noite e lembrei de algo que eu não havia colocado em minhas anotações: a Sra. Chu tinha dito que outra aluna havia começado a escrever um artigo sobre o programa de bolsas. Essa garota teria entrevistado Bebe? No dia seguinte, fui até o piso inferior do Desajeitado na hora do meu almoço. A porta estava trancada. Corri para cima, para o escritório da Sra. Chu. Ela estava lendo uma revista e uma salada estava em sua mesa. Ela fez uma pausa com uma garfada de alface na metade do cominho entre o prato e sua boca: — Se não for urgente, Jane, tenho horário disponível mais tarde.
373 — Eu estava me perguntando se eu poderia ver algo nos arquivos, Sra. Chu — Agora?— ela olhou ansiosa para a verduras em sua mesa. — A senhora havia dito que alguém começou a escrever um artigo sobre a bolsa de estudos e gostaria de comparar com o que estou escrevendo. — Competitividade nem sempre é saudável. Vá em frente e olhe, asism posso fazer minha refeição em paz. Ela abriu uma gaveta e tirou um molho de chaves: — Leia, devolva-o aos arquivos e traga minhas chaves de volta antes do final do almoço. Procure no arquivo por Roseanne Henley-Grunberg. — Obrigada, senhora. — E Jane? — Sim, Sra. Chu? — Fiquei feliz de ver você e sua editora chegarem a um consenso sobre o seu artigo. — Obrigada. Corri de volta para o andar inferior. Chequei a gaveta com artigos antigos. Não havia nada com ―H‖. Tentei ―G‖. Lá estava ele, erroneamente. Quando dei uma olhada por cima, não vi o nome de Bebe. Sentei em uma mesa para ler com mais cuidado, movendo o dedo conforme lia as palavras para ter certeza de que nada escaparia.
374 — Bebe, Bebe — eu dizia para mim mesma. Então vi o nome Breneeta Brown. BB, como MV. Breneeta foi citada dizendo: ―Sou filha única, assim como meus pais eram, e quando eles morreram em um acidente de carro, não havia ninguém para cuidar de mim porque meus avós paternos e maternos estavam mortos também.‖ Não houve tio.
375
Capítulo Dezenove
―A aluna deve ter um atestado médico para ausências de três ou mais dias. Caso uma aluna fique ausente por um total de dez dias durante um período, ela pode não conseguir nota suficiente para seguir adiante. Ausências podem ser discutidas em casos extraordinários.‖ Manual da Aluna Birch Grove
Hattie estava na lanchonete conversando com um pálido calouro. Um calouro muito pálido. Estive notando mais nas garotas pálidas ultimamente. Haviam apenas algumas em cada sala e elas sempre pareciam conhecer umas as outras. — Com lincença — eu disse. Hattie, podemos conversar? — Claro! Olhando para o meu rosto, ela disse: — Vamos para o jardim. Lá é mais tranquilo. Cruzamos o estacionamento e sentamos em um banco de pedra embaixo de uma árvore que sofria as consequências do outono, com folhas de cores laranja e amarelo. A pele de Hattie era lisa e seus olhos amendoados era tão claros como os de uma criança. É claro que Jack a adorava.
376 Olhei para o lado oposto do estacionamento, a entrada, onde haviam esculturas androgenas feitas de pedra em formato de anjos protetores. Então falei: — Ut incepit fidelis sic permanent. — Tão leal como ela começou, permanecerá — Hattie traduziu. — O slogan perfeito para uma escola estabelecida nos conceitos da Família e das Companhias. — Hattie, BB vem de Breneeta Brown, não é? — Ela odiava Breneeta, então nunca a chamávamos assim. — Dei uma olhada em uma entrevista que ela deu para o jornal. Ela era filha única, assim como seus pais eram e não tinha parentes. — Como assim? — E tem mais! Jack era quem estava me mandando àquelas mensagens. Eu o peguei no flagra ontem à noite. — Ai meu Deus, me desculpe, Jane. — Tudo bem. Ele me disse o que você já deve saber que os pais dele estão escondendo algo dele e de Lucky sobre o desaparecimento de Bebe. Hattie pressionou seus lábios: — Eu nunca disse isso a Sra. Monroe, mas eu acho que o ‗tio‘ era algum carinha que a Bebe conheceu. — Jack disse que ela não deixaria Lucky.
377 — Isso é porque Jack tem a ilusão de que toda garota morre de amores pelo Lucky — ela disse desdenhosamente. A princípio, achei que ela estava me incluindo também, mas ela estava com o olhar perdido. — Então Jack está errado e Bebe não estava apaixonada por Lucky? — Não, definitivamente, ela estava apaixonada por ele, mas ela conseguia enxergar que ele nunca a trataria de igual para igual, ela seria sempre a pessoa que servia às suas necessidades. — Então é perfeitamente possível que Bebe possa ter partido por conta própria? — Acho que isso tem mais a ver com o que pode ter acontecido. Ela era como você, acostumada a cuidar de si mesma, e sem dizer que ela estava flertando online com uns caras, na biblioteca. — A última vez que fui até lá, não consegui me logar. E vi o bibliotecário na cerimônia da colheita. Alguém teria bloqueado a minha senha da biblioteca para evitar que eu tivesse uma vida social online? — Claro! O carinha da biblioteca é um servo. Servos sãos aqueles que servem a Família. Isolar você faz com que, teoricamente, se apegue mais à Família — ela olhou para mim. — Fiz parte disso também. Disse a Sra. Monroe sobre a sua amiga do mercado, mas a fiz prometer que daria um jeito de ela não ser demitida. — Orneta conseguiu a transferência que ela queria — eu disse. — O que mais você constou a Sra. Monroe?
378 — Vamos dizer que fui uma informante seletiva. Ela pode ser a diretora, mas você é minha amiga. Ao menos, eu espero que você ainda seja. — Ainda sou sim, Hattie. Ela sorriu: — Vamos cuidar uma da outra, não vamos, Jane? — Nós vivemos fazendo acordos, mas, sim, cuidaremos uma da outra. Depois da escola, liguei para Lucky para pedir para ele vir até o chalé: — Estou ocupado — ele disse. — É importante. — Tá bom, posso passar aí depois. Ele não disse quanto tempo era ―depois‖ e, lá pelas onze, achei que ele não viria. Coloquei o pijama de verão que eu havia comprado junto com a Hattie, cor-de-rosa. Estava terminando de escovar os dentes quando ouvi alguém bater na porta. — Não conseguia achar meu robe, então fui até a porta de entrada do jeito que eu estava mesmo. Dei uma olhada pela janela e vi Lucky parado, impaciente. Ele usava uma jaqueta de couro cinza por cima de uma camiseta preta e usava jeans. Coloquei meu cabelo para a frente com a intenção de esconder minha cicatriz do meu ombro. Quando abri a porta, Lucky disse: — Pela demora, achei que já tivesse ido para a cama.
379 — Achei que não viria mais. Você deveria ter ligado. Já é tarde. Ele me lançou um gélido olhar: — Eu já tenho uma mãe. — Então você é afortunado, não é? Ele sorriu: — Me desculpe Jane. — Você sempre faz isso, Lucky. Você age de maneira apologética depois de dizer algo rude. Se fosse mais cauteloso antes de falar, não precisaria ficar se desculpando. — Correção anotada — ele disse. — O que aconteceu? Seus olhos me olharam de cima a baixo. Eu sabia que ele estava procurando as marcas que ele havia deixado em mim e procurando por novos lugares para sugar meu sangue. Eu sabia por que seus lábios estavam entreabertos. Cruzei os braços: — Quero falar sobre Bebe. Descobri que ela não tinha parente algum. Ele caminhou até o quarto e eu o segui. — Eu não acho que ela não tivesse parente algum — ele disse. — Hattie acha que ela fugiu com algum cara e Jack acha que algo aconteceu com ela. O que você acha?
380 — Acho que você tem falado com muitas pessoas ultimamente. Você está bonita, Jane. Gosto de ver sua pele assim, exposta. Ele levou sua mão até meu ombro, de modo a tocar minha cicatriz. Perguntei: — O que você acha que aconteceu? — Ele tirou seus sapatos e jaqueta. Seu cabelo brilhava no contraste com a camiseta preta: — Se Hattie disse que Bebe ficou de saco cheio de mim e se foi, ela provavelmente deve estar certa. Ela sempre está certa. Talvez eu devesse ter prestado mais atenção na Bebe. Não cometerei esse erro novamente. Venha aqui. Eu estava em pé diante dele e ele me puxou para o seu colo: — Quero que você sinta prazer nisso, Jane. Ele então me virou, colocando-me na cama. Ele próprio tirou sua camiseta, revelando a pele lisa de seu peito. Ele era tão lindo, mas fiquei tensa quando ele se deitou ao meu lado e começou a percorrer com a mão a minha perna, alisando minha coxa. — Lucky... — Sssh. Ele pressionou, e beijou, e mordeu o meu pescoço. Seus dedos escorregaram para dentro do meu short e foram descendo, o que me fez ofegar.
381 A sensação era maravilhosa, mas percebi que eu não gostava do Lucky, não daquela maneira: — Pare — eu disse, afastando sua mão. Lucky me olhou com um olhar confuso: — Achei que você queria isso. Sai de perto dele: — Não, não quero. Quero apenas que sejamos amigos. Sem mais aberrações comigo. Tudo está começando a ficar confuso. — Como quiser — ele disse. — Vou pegar uma ‗prova‘, ta? Já que estou aqui. Ele se levantou e foi ao banheiro. Quando voltou, estava com o tubo para a punção venosa: — Posso fazer atrás do seu joelho? Há uma veia boa lá e você usa calça a maioria das vezes. — Tudo bem. Deitei na cama de barriga para baixo e me lembrei que eu estava fazendo aquilo pela minha educação, por uma casa e por segurança. Pessoas venderiam seu sangue por menos. Senti a picada da agulha e, em seguida, ouvi a respiração mais forte de Lucky. Alguns segundos depois senti que a agulha foi retirada. — Não se pode desperdiçar nada — ele disse se inclinando e lambendo o furinho feito pela agulha.
382 — Já chega — eu disse. — Vou limpar pra você. Ele pegou o kit de primeiro socorros e aplicou antiséptico onde a agulha havia penetrado. Limpou com uma bola de algodão e colocou um band-aid. — Você está ficando cada vez mais eficiente nisso — eu disse enquanto levantava. — Obrigado. É melhor dessa maneira, não é? Menos complicações, porque eu gosto de você, mas... — ele olhou longamente para o tubo de sangue. — Gosto de você também, mas — eu disse — talvez possamos marcar visitas regulares para que não interfira com as minhas aulas e outras coisas. — Claro! Podemos fazer isso. Bem, agora tenho que ir. Enquanto via Lucky vestir sua camiseta e jaqueta, percebi que queria como algumas garotas querem um anel de diamantes, ou um carro muito caro. Eu o queria como uma coisa bonita, não como pessoa. Lucky acariciou minha cabeça: — Apenas mais alguns dias para a iniciação, Jane. Durma bem. Depois que ele saiu, verifiquei as fechaduras e apaguei a luz da sala. Fui ao banheiro e olhei no espelho. No lugar onde Lucky chupou meu pescoço havia uma mancha avermelhada, mas nada que não pudesse ser coberto com maquiagem.
383 Quando fui para a cama naquela noite, sonhei que estava presa em uma passagem secreta na escola. Gritei por ajuda e então vi o túnel aberto em uma das salas e a Sra. Monroe sossegada, sentada em uma cadeira lendo um livro. Eu gritava ajude-me, mas ela continuava a olhar as páginas do livro e dizia: ―eu estou ajudando você, Jane. Conhecimento é poder.‖ Ouvi algo assustador vindo das trevas daquela escuridão. Havia uma parede a minha frente e nenhuma saída. Quando acordei, eu estava toda enrolada nos lençóis e suando. Abri a janela para que pudesse sentir a brisa fria e o som reconfortante das árvores. No dia seguinte, Mary Violet me puxou em um canto depois da aula da Sra. Chu: — O que está acontecendo com você, Jane? Parece que a sua cabeça está em outro lugar. Algo aconteceu entre você e meu futuro marido? Você ainda está dando aulas de monitoria a ele? — Sim, continuamos com as aulas — queria tanto poder confidenciar os assuntos com ela. — O que poderia ter acontecido entre nós? — Ah, por favor, JW, tenho dois esplendorosos olhos azuis na minha linda cabeçinha loira. Vejo garotas caírem de paixão por Lucien Monroe desde que ele comia macarrão na pré-escola e posso diagnosticar os sintomas. A única razão de eu não estar completamente apaixonada por ele é porque ele está muitíssimo ocupado admirando a si mesmo. Eu ri: — Você ainda planeja se casar com ele?
384 — Ele é um dos nomeados. Mas posso esperar por um ente da família real. Sério, JW está tudo bem? — Sério, MV, admito que antes tive uma quedinha pelo Lucky, mas isso já passou. Agora estou mais preocupada com as minhas aulas.
Neste exato momento, na semana que vem, serei a Companheira de Lucky, pensei. — Bem, esta é uma excepcional escola para garotas excepcionais. Insisto que você tem que ir até minha casa para tomar um chá e revisar Química Especializada comigo. Caminhamos até a casa dos Heyers depois da aula e abotoei meu casaco porque estava bem frio. O irmão e a irmã de MV estavam provocando um ao outro, correndo em volta da casa e gritaram ―Olá Jane‖ enquanto entravam. A Sra. Heyer saiu de seu estúdio para dar um oi e me convidou para ir ao museu mais tarde. Mary Violet e eu nos sentamos no carpete floral da sala e repassamos a matéria de química. Quando fechamos os livros, eu disse: — MV, Hattie disse que a Bebe costumava flertar com alguns caras online. — Ui! Fofoca picante! Sim, Bebe costumava nos contar sobre caras mais velhos que falavam obscenidades com ela. Ela dizia que estava procurando por um papai endinheirado. — Ela não tinha dinheiro suficiente com o ordenado de bolsista?
385 — Velhos hábitos não morrem cedo. Não sei se o que ela falava era verdadeiro ou apenas para nos chocar. — Ela poderia ter mentido e fingido que um deles era seu tio e ter fugido com um desses caras? — Esta foi a primeira coisa que perguntei a Sra. Monroe, porque, embora Bebe fosse uma menor emancipada, caras mais velhos podem ser traiçoeiros. A Sra. Mason disse que não, que ela tinha checado a veracidade do tio — disse Mary Violet. — Ainda estou brava com ela! — Com a Sra. Monroe? — Não, com a Bebe. Pensei que fossemos amigas, mas acho que eu era apenas mais uma riquinha fútil para ela — Mary Violet enxugou uma lágrima. Jane prometa que você nunca partirá dessa maneira, sem se despedir de mim. — Prometo. — Você acha que sou uma riquinha fútil? — Não, acho que você é uma linda e brilhante poeta e estudiosa. Seu sorriso me contagiou: — Apenas por causa disso, escreverei um poema em sua homenagem. Fiquei para o jantar e Mary Violet me ofereceu uma carona para casa, já que era quase noite, mas eu queria caminhar e pensar. Queria não ter aceitado tão rapidamente ser a Companhia de Lucky. Queria saber o que aconteceu com Bebe. Queria poder começar tudo de novo, a partir do
386 momento em que conheci Jack na trilha, no bosque. Mas Jack amava Hattie. Quando passei pela escola, vi a sala do Sr. Mason com as luzes ainda acesas. Se um dia eu me casasse, seria o meu marido como ele, dando suporte e observando a Família, mesmo sem fazer parte dela?
Eu fui para a minha cabana e tirei o anel de Companhia do esconderijo. Sentia-me boba escondendo minhas coisas na minha própria casa, mas, como Mary Violet disse velhos hábitos são difíceis de serem mudados. Isso significava que Bebe escondia suas coisas também. Revistei a lavanderia. Bati com o punho fechando nas paredes e o chão para ver se ouvia algum ‗som oco‘. Verifiquei embaixo e em cima de cada item que eu fosse capaz de alcançar. Fiz o mesmo na cozinha, antes de ir para a sala. Testei as pedras da lareira de cima a baixo. Olhei também todos os livros da estante. Levei quase duas horas para chegar ao banheiro. Chequei os lugares óbvios, como a pia do banheiro, os canos em volta da banheira eram vedados e não havia nada atrás do armarinho do banheiro. Olhei para cima. A pintura estava ligeiramente arranhada próximo aos parafusos que seguravam a parte plástica do lustre em forma de guirlanda.
387 Na lavanderia, peguei uma chave de fenda da gaveta que continha ferramentas e levei uma cadeira para o banheiro. A cadeira não era alta o suficiente para que eu pudesse alcançar o teto, e então empilhei alguns livros para poder alcançar meu alvo. O papel liso da capa do livro fazia meu pé escorregar. Mesmo assim, consegui retirar os parafusos, levantando cuidadosamente a parte plástica do lustre, o que revelou um pequeno buraco no teto, bem próximo à lâmpada. Usei uma das mãos para segurar a parte plástica, colocando-a contra o meu peito e, com a outra mão me apoiei na parede enquanto eu descia. Coloquei aquela parte plástica e os parafusos no balcão da pia. Subi novamente e alcancei o buraco, mas não conseguia sentir nada. Bebe era mais alta do que eu e conseguiria alcançar mais fundo. Estiquei meu braço o máximo que pude, mas não fui longe demais, porque os livros continuavam a me fazer escorregar. De repente, cai. Meu braço bateu violentamente contra a banheira e senti meu tornozelo torcer quando atingi o chão. Urrei de dor, virando meu corpo para o lado. Quando tentei ficar em pé, a dor se tornou mais forte e gritei. Alguém bateu com força na porta da frente, gritando: — Jane! Você está bem? É o Jack! Tentei me apoiar na cadeira caída e fiz o percurso até a porta de maneira bem lenta enquanto Jack continuava a gritar: — Sei que você está ai, Jane! Abra a porta!
388 Enxuguei as lágrimas e joguei o peso do meu corpo para o pé direito antes de abrir a porta. Jack estava com uma das mãos na maçaneta da porta e a outra levantada, com o punho cerrado, pronta para bater novamente. Este vestia jeans e uma camiseta de manga longa que dizia Laboratório de Pesquisa Dog Waffle. — O que foi aquele barulho? Ouvi você gritar. — O que você está fazendo aqui? Minha garganta se contraiu, mas eu não sabia dizer se era por causa do meu tornozelo ou por ver Jack novamente. — Perguntei primeiro, Jane. O que aconteceu? — Eu cai — falei, me apoiando na porta. Jack olhou para baixo, para o meu tornozelo, e me pegou em seus braços: — Capturei um ser da floresta. Posso fazer um desejo? — ele brincou enquanto me carregava para o sofá. — Coloque-me no chão. Fiquei totalmente sem graça de deixá-lo me ver daquela maneira. Tentei abaixar mais a minha saia, o que apenas me fez ficar mais próxima ao seu peito.
389 — Ganho um pote de ouro? — ele me colocou de lado no sofá, de modo que meu pé ficasse um pouco mais alto que meu corpo. — Se não se importa, tenho bastante experiência com tornozelos torcidos. A dor era tanta que não pude negar a ajuda: — Tudo bem. Fiquei apoiada em meus cotovelos enquanto assistia Jack tirar meus sapatos e meias. Seus dedos quentes exploraram gentilmente o meu tornozelo esquerdo. Quando ele atingiu o tendão eu me encolhi, gemendo baixo. — Desculpe — ele disse. — Está começando a inchar porque você colocou peso nele, mas acho que está tudo bem, digo, nenhum dano maior. Vamos colocar gelo nisso. Ele foi até a cozinha e ouvi o barulho do gelo caindo no balcão da pia. Ele voltou com um saquinho de plástico repleto de gelo: — Sempre tenho saquinhos com gelo em casa. — E band-aids. — Sou o único naquela casa que usa isso — ele disse colocando uma almofada debaixo do meu pé, elevando-o. E colocou o gelo em meu tornozelo. — Eu vim até aqui para me desculpar com você. Eu não deveria ter falado certas coisas pra você. Se você está apaixonada pelo Lucky... bem, isso não é da minha conta. Falei sem olhar para ele:
390 — Você estava certo sobre uma coisa. Bebe não tinha um tio. Achei uma entrevista feita com ela nos arquivos do jornal. Hattie e Mary Violet dizem que Bebe estava procurando caras online que tivesses dinheiro. — Hattie me disse isso. Jack pegou outra almofada e a colocou atrás da minha cabeça. Enquanto fazia isso, ele tocou meu ombro e minha cicatriz pulsou quente, da mesma maneira quando ele me abraçou quando caiu da bicicleta. Ele sentou no sofá próximo as minhas pernas. O sentimento de tê-lo ali, muito perto de mim, me encheu de desejo e arrependimento. Eu o queria de uma forma que nunca quis Lucky, pessoa que eu havia desejado ter uma relação de, digamos, quase sexo. — Elfo, me desculpe. Fiz você pensar que alguém aqui te odiava. Eu não disse nada. — Lucky nunca a amará, Jane. Você não é pra ele. Meu rosto ficou quente de raiva: — Você acha que eu não sei disso, Jack? Eu sei que não sou linda ou sofisticada ou engraçada. Sou a simples e comum Jane, a solitária, a desiludida garota órfã – mas isso não significa que eu não mereça amor. Isso não significa que eu não queira ser amada. Isso não significa que meu coração não se parte em pedaços, porque ele se parte e se fere, sim. — Eu nunca disse que você não merece amor, Jane — ele disse rapidamente. Desde a primeira vez que eu a vi parada na trilha, aparecendo
391 do nada no meio do bosque, como uma criatura do outro mundo, eu não consegui tirar você da minha cabeça. Eu o encarei para tentar perceber se ele estava falando sério e seus olhos verdes se encontraram com os meus, e ele disse: — Você está apaixonada pelo Lucky? Você e ele já... porque eu não acho que conseguiria suportar isso de você Jane. — Não, não fizemos nada disso. Então Jack se inclinou e me beijou. Seus lábios eram macios e quentes e seu beijo era firme, seguro. Seus braços rodearam meu corpo e eu sabia como perfeitamente certo aquilo era, estar ali com ele. Coloquei meus braços em torno dele. Cada pedaço do meu corpo desejava Jack. Seus lábios percorreram minha face, com beijos leves em minhas pálpebras e bochechas. Eu queria fazer amor com ele. Eu queria ficar ali com ele, naquele momento e para sempre. Mas eu o empurrei de repente: — Não posso fazer isso com a Hattie. — Hattie e eu somos amigos, sem tirar nenhum proveito um do outro, apenas amigos — ele disse e pegou minha mão. Ele beijou a palma da minha mão, e as pontas dos meus dedos e ondas de prazer percorreram meu corpo. — Mesmo?
392 — Mesmo — disse Jack. — Elfo, quero que você vá embora de Birch Grove. Inclinei-me para longe das luzes, na penumbra, ele não poderia ver o desapontamento em meu rosto: — Sou tão patética ao ponto de você achar que me dando um pouco de atenção pode me convencer? Ai, meu Deus, vá embora Jack. Deixe-me em paz e nunca mais volte aqui. — Jane... — Se você não for agora mesmo, conto aos seus pais e a Ian Ducharme o que você tem feito. — Deixe-me explicar. — Não quero suas explicações — retruquei, com o choro preso em minha garganta. — Não quero te ver nunca mais. — Ele se levantou e tirou a corrente prateada do seu pescoço: — Isso é para você — ele disse. — Não quero nada que venha de você. Ele colocou a corrente no meu colo e pude ver que o pingente era uma folha de prata: — Quero que fique com ela de qualquer forma. Quando Jack saiu e fechou a porta, chorei como não havia chorado quando minha mãe morreu. Chorei por ela, por Hosea, por mim mesma, por todos nós que já morremos um dia.
393
Capítulo Vinte
―Atos de vandalismo, incluindo destruição da propriedade escolar ou da vizinhança, resultarão em atos punitivos disciplinares, que incluem restituição e possíveis suspensões ou expulsões.‖ Manual da Aluna Birch Grove
Meu tornozelo ainda estava inchado na manhã seguinte e meu humor estava tão em baixa quanto a minha esperança era quando eu vivia com a Sra. Richards. Eu estava prestes a sair do meu chalé quando vi a corrente prata no sofá, exatamente no lugar onde eu havia deixado no dia anterior. A folha do pingente era delicada, assim como as folhas das bétulas.
JFM estava gravada trás dela. Embora eu odiasse a maneira de como ele tentou me manipular, eu a coloquei no pescoço, ajeitando-a dentro da minha blusa de modo que o pingente ficasse próximo ao meu coração. O metal sentiu o calor da minha pele. Passei pela enfermaria antes da minha primeira aula. A enfermeira examinou meu tornozelo: — É uma torção, mas você deveria repousar e o manter elevado o máximo de tempo que conseguir. Ela então envolveu uma bandagem bege um tanto elástica firmemente em volta do meu tornozelo e do meu pé.
394 — Não, preciso assistir às aulas. — Ela estendeu a mão, dando-me um antiinflamatórios: — Como você fez isso? — Cai de uma cadeira quando tentava alcançar algo no alto. — Você deve adquiri uma escada, antes que quebre o pescoço. Você quer muletas? — Não, obrigada, senhora. Posso caminhar sozinha. O Sr. Mason estava na porta do laboratório de química quando entrei na sala: — Você quebrou o pé? — Não, foi apenas uma torção no tornozelo. Estarei boa me alguns dias. — Se precisar se afastar por alguns dias para se recuperar... — Não, não quero ficar atrasada na matéria. — Esse é o motivo de você ser a minha aluna favorita, Jane. Ele sorriu um sorriso reconfortante, e meu humor melhorou por um momento. Sentei-me perto de Mary Violet. — Por que você está mancando? — Cai de uma cadeira. É apenas uma torção.
395 — Nossa! Isso não é muito excitante, a menos que você estivesse dançando em cima da cadeira. — Tragicamente, MV, eu apenas estava usando a cadeira como escada. MV, a Bebe teve aulas de químicas com o Sr. Mason? — Não, não teve. Por quê? — Nada, só curiosidade. — Minha mãe está preocupada, achando que você está comendo comidas industrializadas pré-preparadas, então ela quer que você vá mais vezes em casa apara almoçar ou jantar. No entanto, eu disse a ela que a galeria de super genitálias não faz bem à sua digestão sensível e ofende a sua modéstia feminina. — Você não disse isso! — Disse sim. E escrevi o poema que prometi a você. O nome é ―Ode a uma Inocente‖. Receitarei pra você mais tarde. — Classe, podemos começar? — O Sr. Mason parou em frente à sala, olhando diretamente para mim e para Mary Violet. Endireitei-me na cadeira, esperançosa de que ele não tivesse ouvido o que Mary Violet falou. Naquele dia, me senti como se eu estivesse me movendo vagarosamente por águas. Era mais do que o meu tornozelo machucado. Eu olhava em volta daquela nobre e honrada escola, os ambientes de tirar o fôlego, os estudantes inteligentes... e desejei que nunca tivesse conhecido Jack Monroe para que eu pudesse desfrutar de tudo que ser uma Companheira oferece.
396 — Se eu deixasse Birch Grove, eu não teria nada novamente, nem mesmo um lar adotivo para onde eu pudesse ir enquanto acabava os meus estudos. Fiquei na sala de música no horário do almoço porque eu não queria conversar com ninguém. Quando sai, passei pelo painel que escondia o túnel secreto. Lembrei-me de como Jack brincou quando o peguei, o brilho em seus olhos verdes e a maneira que sua boca se curvava para cima em um sorriso enquanto ele me provocava. Quando recebi a mensagem na aula de história que a Sra. Monroe queria me ver, fiquei pensando se Jack havia dito algo para ela. — Entre Jane, e feche a porta, por favor. Sentei na cadeira, oposta a sua mesa: — Há algo de errado, senhora? Ela sorriu serenamente: — A enfermeira disse que você machucou seu tornozelo. Queria apenas ter certeza de que está tudo bem com você. Todos em Birch Grove sempre estavam perguntando se tudo estava bem. — Cai de uma cadeira quando estava tentando pegar algo na prateleira. Esse é dos problemas em ser baixa. — Providenciarei uma escada para você. Como vai tudo mais? Hattie me disse que você ensaiou suas falas para a iniciação.
397 — Sim, ensaiei, mas minha pronúncia não é muito boa — eu disse me recordando de Jack fazendo aquela leitura boba de latim. — O seu melhor esforço bastará, Jane. Como vão as coisas entre você e Lucien? — Estamos bem, senhora — quando olhei em seus calmos olhos, pensei o que de fato ela sabia sobre o desaparecimento de Bebe. — Você parece cansada, Jane. Se preferir, podemos usar seu machucado como desculpa para prorrogar os seus testes, assim você pode descansar. — Obrigada, mas prefiro acompanhar a matéria. — Esta é a atitude correta, Jane. Meu dia foi muito longo, já que tive que ficar até tarde para ajudar no fechamento do jornal. A noite já tinha caído quando eu finalmente deixei o Desajeitado. Caminhei sem pressa até o chalé e desejei poder desacelerar tudo – inclusive a iniciação, que iria me conectar a Lucky para sempre. Aquilo significava que eu nunca ficaria livre de Jack Monroe. Uma escada estava encostada no corrimão, na porta da frente. Levei-a para dentro, direto para o banheiro. A parte plástica que cobria o buraco do teto ainda estava no mesmo lugar. Eu tinha que arrumar aquilo, deixar como estava antes para que ninguém percebesse o que eu estava fazendo. Depois poderia tirar meu uniforme e rastejar até a cama.
398 Posicionei a escada e posicionei a parte plástica, a chave de fenda e os parafusos na prateleira, em um lugar fácil de alcançá-los. Meu tornozelo doía enquanto eu subia. Desta vez eu estava em um ponto mais alto do que estava na outra tentativa. Por impulso, alcancei o buraco aberto no teto, colocando minha mão dentro dele e tateando. Minha mão atingiu alguma coisa sólida e retangular. Puxei o objeto com o intuito de tirá-lo dali. Era uma caixa de jóias artesanal. Coloquei a caixinha em um degrau da escada e desci estranhamente da escada. — Enquanto na escrivaninha, acendi a luz de um abajur para ver a caixinha melhor. Letras feitas com cola colorida formavam as letras BB. Levantei a tampa e vi um maço grosso de dinheiro, a maioria de notas de 10 e de 20, todas presas com um elastiquinho. Além do dinheiro, havia uma caixinha de veludo; dentro dela havia um anel de Companheira. Fotos de Lucky, programação de peças estudantis, uma flor seca, ingressos de filmes e bilhetes de amigos na caixa. Em uma caixa de fósforos vermelha haviam três palitos de fósforo e um pequeno envelope plástico com maconha. Um cacho de cabelo dourado estava amarrado com uma fita vermelha. Bem no meio da caixa, havia um passaporte. Eu o abri e vi a foto de uma garota sorridente. Ela tinha uma aparência comum, como eu. As páginas estavam vazias, nenhum carimbo de aeroporto. Nenhum desses símbolos se encaixa mais do que o dinheiro. Ninguém que cresce na pobreza deixaria tanto dinheiro para trás, o que faz da teoria de Jack uma verdade: algo terrível aconteceu com Bebe.
399 Mas o que eu poderia fazer? Havia apenas uma pessoa que conhecia a Família e era sempre disposto a ajudar e compreensivo. Achei que poderia confiar nessa pessoa para me ajudar agora. Deixei o chalé com a caixa de jóias embaixo do braço. O vento estava forte, fazendo com que os galhos das bétulas se agitassem, sussurrando na noite. As gradações de branco faziam parecer que elas estavam vestidas para uma festa formal. Peguei dois galhos caídos no chão para que servissem como uma espécie de muleta para mim. As luzes acesas no terceiro andar no laboratório de química se destacavam em meio à escuridão. Entrei na escola pela única porta que estava aberta, uma porta lateral, próxima a escada. Subir aquelas escadas tão devagar levou anos, porque constantemente eu tinha que parar, encostar na parede e descansar. Antes de chegar ao terceiro andar, percebi que os adultos poderiam ver a maconha que Bebe e deduzir que ela era outra órfã drogadinha que fugiu. Coloquei a caixa de fósforos no bolso do meu blazer enquanto eu caminhava em direção ao laboratório de química. A porta estava entreaberta e vi o Sr. Mason organizando um experimento na mesa, com a tabela de elementos químicos. A escuridão de fora refletia no laboratório. — Sr. Mason? Ele se assustou e então sorriu:
400 — Oi Jane. Você sempre chegando do nada. O que está fazendo aqui tão tarde? — Posso falar com o senhor? — Claro. Sente-se aqui e dê um descanso para o seu tornozelo — ele disse enquanto movia uma cadeira de sua mesa para mim. Depois que me sentei, ele se sentou também: — Qual é o problema, Jane? — O senhor conheceu a Bebe, Breneeta Brown, certo? — Sim, ela estava na minha turma no ano passado. — Todos dizem que ela deixou a escola para viver com um tio, mas não acredito nisso. — Mesmo? — Achei uma entrevista que ela deu que deveria sair no jornal da escola. Ela não tinha nenhum parente vivo, e achei isso escondido no chalé — falei entregando a caixa de jóias ao Sr. Mason. Ele olhou as iniciais da caixa e levantou a tampa. Ele olhou o dinheiro, o passaporte e a mecha de cabelo dourado. — Onde estava isso? — No teto, em um buraco. Bebe teria precisado do passaporte se tivesse ido para a Europa, mas o mais importante é o dinheiro. Um órfão nunca deixaria esse dinheiro, não importa o que acontecesse.
401 O Sr. Mason levantou o anel da caixa de veludo e o segurou, e então as pedras brilharam sob a luz que vinha do teto: — Você está certa. Como alguém sem nada rejeitaria a oportunidade de ter educação, segurança financeira e uma família? Claire, minha esposa, não rejeitou. Ela não podia — ele olhou do anel para meu rosto. — Todos nós queremos uma família, Sr. Mason. A bondade em seu rosto desapareceu e deu lugar a uma voz áspera. — Os vampiros caçam garotas sem nada, sem beleza, sem opinião, como a minha esposa. Mas Claire era linda para mim. Eu não entendi aquela expressão estranha. — Todos me dizem que a amavam — eu disse. — O que podemos fazer para ajudar a Bebe? — Podemos ajudá-la ajudando outras garotas — ele abriu uma gaveta da sua mesa e retirou de lá algo metálico e brilhante e o deixou guardado em sua mãe esquerda. Então ele retirou da mesma gaveta uma faca de caça, com uma grande e afiada lâmina e a apontou para mim. Fiquei sem reação, aterrorizada. Um simples movimento mais brusco poderia provocar sua reação. — Pensei que Bebe seria a última Companheira, o fim da exploração dos vampiros sobre garotas vulneráveis. Mesmo porque, nem mesmo a polícia local poderia ignorar uma aluna assassinada. Vocês, garotas órfãs, têm sofrido tanto em suas curtas vidas, que decidi fazê-las não sentirem mais nenhuma dor.
402 Ele falou com firmeza e certeza: — Alguém retirou o corpo dela antes que a polícia achasse — ele disse. Tobias provavelmente encontrou o corpo em uma de suas ações noturnas. Terei melhores resultados agora. — O que o senhor está fazendo, Sr. Mason? — mantive minha voz em um tom calmo, esperando mantê-lo calmo, mas eu tinha um sentimento horrível. — Estou salvando você — ele respondeu. — Eu tentei. Eu tentei tanto salvar Claire das garras deles, mas ela não ouvia a razão. Mantive meus olhos nele enquanto tentava pensar em como eu poderia escapar dali: — Sua esposa se suicidou. — Apenas depois de abortar o filho de Tobias. Ela nunca quis filhos
meus, mas ela continuava a tentar ter os dele, na esperança de que ele largaria Hyacinth e ficasse com ela — os olhos do Sr. Mason ficaram apáticos e seu rosto vermelho. — Eles não te falaram sobre este problema, falaram? Caso você venha a ter sonhos de casamento com Lucien Monroe... — Eu sinto muito sobre a sua esposa, senhor — eu não poderia alcançar a porta mais rápido do que ele e tentei pensar eu outra rota de fuga. — Isso deve ter partido o seu coração.
403 — Eu amava tanto a Claire que aceitei dividi-la, mesmo sabendo que ela odiava quando eu a tocava. É por isso que o amor é sacrifício. Achei que poderia provar o meu amor, mas ela estava obcecada por Tobias.
Não Acorde os Mortos, eu pensei. Ele golpeou a sua mesa com a faca de caça e aquilo fez com que um calafrio percorresse a minha espinha. — Sr. Mason, tenho certeza que deve haver outra maneira de impedilos. O senhor é um homem analítico. Vamos à polícia. A polícia prestará mais atenção se tiverem um corpo e uma testemunha, Jane — ele disse. — Eu iria esperar até a sua iniciação, mas como você veio até mim. Vamos ao auditório para a nossa própria cerimônia de sangria. Quando as alunas chegarem para a assembleia de amanhã, encontrarão você lá, abatida por vampiros sedentos por sangue. Ele abriu sua mão esquerda e me mostrou o objeto metálico, presas. — Comprei estas especialmente. Irei usá-las apenas para provar a todos que esses vampiros são uns monstros — ele disse colocou as presas em seu bolso. — Levante-se Jane. Fiquei em pé me apoiando na parede para disfarçar a tremedeira. Se eu gritasse, ele poderia decidir me matar mais rapidamente. O Sr. Mason não tirou os olhos de mim enquanto abria a gaveta de sua mesa. Dela, ele retirou algo envolto em um pano branco: — Este foi o robe de iniciação da Claire. Eu mesmo fiz a bainha para você. Vista-o.
404 Com dificuldade, apoiando-me nos galhos, coloquei o robe, passandoo pela minha cabeça. O robe vermelho com ornamentos na cor marfim cobriu o meu uniforme. Então, ele estendeu o anel que era de Bebe. — Coloque-o também — ele disse. — É uma pena, Jane, porque você realmente é uma aluna exemplar e você faz, e fez tudo por conta própria. Gostaria de poder fazer isso com uma dessas alunas putinhas e mimadas, como a Mary Violet e seus estúpidos ensaios, sempre com caneta roxa. Coloquei o anel, mas ele ficou muito largo e, enquanto isso, continuei a fitar o Sr. Mason: — Posso colher evidências para o senhor. — Isso não funcionará, Jane, porque você já está sob o feitiço deles. O feitiço do dinheiro, da segurança, o feitiço de ficar próxima a Lucien Monroe. — Penso por mim mesma, Sr. Mason. — Precisa confiar nisso, Jane — falou indo até sua mesa novamente e pegou um frasco pequeno e marrom e um lenço. Colocou tudo no bolso. — Assim que chegarmos ao auditório, você inalará uma espécie de álcool e sentirá uma agradável sonolência, então estará tudo acabado. Você não sentirá nenhuma dor. E não sentirá solidão nunca mais. Você terá o tipo de paz que Claire e Bebe finalmente tiveram. Vamos? — ele me perguntou como se estivesse me perguntando se eu queria dançar.
405 — Fui mancando em direção à porta, me apoiando nos galhos, como se me sentisse fraca. Quando cheguei à porta, segurei um dos galhos, o mais grosso, com as duas mãos e o lancei para trás com toda a minha força. O Sr. Mason gritou com o golpe e a faca caiu no assoalho polido. Sem que eu pudesse esperar, ele agarrou o galho e o arrancou das minhas mãos. Antes mesmo de conseguir sair pela porta, ele agarrou o robe, puxando-o para trás, me fazendo cair de costa no chão. Ele bateu a porta. Eu gritei: — Não! — e rolei para baixo da mesa do laboratório, tentando chegar ao outro lado da sala. — Jane, seja sensata. Você não tem motivos para viver — o Sr. Mason puxava as cadeiras enquanto ia em minha direção. Consegui me levantar. Olhei em volta à procura de algo para me defender. O tubo de ensaio etiquetado potássio estava em uma prateleira longe. — Fogo! — eu gritei, porque em City Central ninguém respondia a um pedido de socorro, mas respondia a fogo. — Fogo! Agarrei vários tubos de ensaios que estavam próximos e os arremessei contra a janela. O Sr. Mason se virou para ver o vidro quebrado. Acendi o fogareiro. O gás começou a subir. O Sr. Mason não havia percebido o que eu estava fazendo. — Ninguém pode te ouvir — ele disse e circulava, tentando me encurralar no canto da sala.
406 Fui para o lado oposto a ele e puxei o banner antigo de pano que continha a tabela periódica. — Deixe-me ir Sr. Mason. Deixarei Birch Grove e nunca direi uma palavra sobre o que sei. Enfiei meu braço dentro do robe e senti a caixa de fósforos no meu bolso. — Eles irão apenas substituir você por alguma outra triste órfã. Garotas como você sempre podem ser substituídas. — Claire não era substituível — eu retruquei me afastando do fogareiro. — Eu não sou substituível. Passei minha vida inteira evitando predadores e agora eu era quem precisava dar o bote. Enquanto ele tropeçava nas cadeiras. Risquei um fósforo e o joguei em direção a um pano que era utilizado para cobrir o fogareiro. O fósforo caiu exatamente no lugar certo e a chama começou em segundos. O velho pano começou a pegar fogo. O Sr. Mason agarrou a ponta do pano em chamas e gritou: — Garota estúpida! Ele retirou o pano de perto do fogareiro, jogando-o no chão. Enquanto ele tentava apagar a chama do pano, agarrei tubos que continham elementos químicos e os arremessei, no Sr. Mason e no fogo. Ele então correu até mim, me agarrou e me jogou contra a mesa. Minha cabeça bateu com tanta força que lágrimas vieram instantaneamente aos meus olhos. Meu professor ficou de pé na minha frente enquanto
407 olhava para o frasco de éter. Ele o abriu, derrubando o conteúdo no lenço e o inclinando em minha direção. Chutei bem no meio de suas pernas e o éter se uniu aos outros elementos químicos em sua roupa. — Garota maldita! Joguei-me naquele chão impecável, rolando, e me levantei. Na prateleira ao meu lado vi um grande tubo de ensaio prateado de potássio com suas células vermelhas oxidadas intactas dentro de uma jarra de óleo mineral. Na mesa, alguém tinha deixado um grande copo com água. Com o éter evaporando de suas roupas, o Sr. Mason se moveu rapidamente. O medo me fez pensar rápido. Agarrei o tubo de ensaio com o potássio e o joguei para que ele se quebrasse perto dos cartazes que haviam na sala. Joguei em seguida a água, rezando para que ela atingisse o alvo. Atingiu, e eu me abaixei. Assim que a água se espalhou, o reativo do metal entrou em combustão, se transformando em violentas chamas. O fogo foi em direção ao Sr. Mason e suas roupas encharcadas de elementos químicos. Instantaneamente, elas se incendiaram. Ele se debateu e caiu no chão, tentando rolar para abafar o fogo, então, tudo o que era inflamável explodiu.
408 Os gritos do Sr. Mason eram de um som horrível que me transformaram novamente em uma criança assustada. Eu estava tremendo e meu único pensamento era correr, correr em direção à noite. O fogo sugou o oxigênio e a luz da sala e os sons eram opressores – estampidos e estrondosos. Engatinhei em direção à porta, prendendo o ar para não respirar todo aquele veneno de elementos químicos. Finalmente cheguei ao batente da porta, e uma mão agarrou meu tornozelo esquerdo, torcendo-o. Gritei de choque e de dor. Tentei me agarrar em algo e senti minha mão tocar em um objeto longo e sólido no chão. O galho de bétula. Com uma das mãos, agarrei o galho e, unindo as duas, tentei me desvencilhar do homem em chamas. E consegui. Levantei-me. Coloquei minha mão um pouco para dentro do robe de mangas longas para poder abrir a porta, pois era impossível abrir a maçaneta que estava muito quente. O ar surgiu, alimentando ainda mais o fogo. As chamas aumentaram, chegando até mim. Joguei-me no chão e rolei pelo corredor. Meus olhos estavam tão vermelhos e tudo estava tão escuro que nada tinha forma. O sistema de incêndio no corredor começou a funcionar, jorrando água por todos os lados e disparando o alarme. Engatinhei um pouco mais pelo chão e desmoronei. Os atordoantes barulhos que vinham do fogo, a água fria jorrando e a expressão de fúria de um homem enlouquecido – de repente tudo veio à minha mente. Eu me lembrei.
409 Lembrei da ira do meu padrasto me arrastando para longe do corpo da minha mãe Agora é a sua vez. Eu me lembro do chão, das poças de sangue, do rosto da minha mãe. Lembrei de correr em direção à noite procurando por um lugar seguro. Eu precisava me sentir segura. Jack disse que havia uma passagem do lado oposto ao laboratório. Arrastei-me por todo o corredor até alcançar a parede e a pressionei freneticamente, lutando para ficar consciente. Sentindo muita dor, me arrastei mais pressionando desta vez outra parte da parede. Ela abriu. Engatinhei para dentro do túnel secreto e fechei a passagem, deixando para trás as chamas aterrorizantes e o som insistente do alarme de incêndio. O túnel era um breu. Encostei-me contra a parede, com a respiração ofegante e pensei, por favor, por favor, por favor. E quando enchi os pulmões, o ar que veio era delicioso e limpo, verde e com cheiro de terra, como Jack. Lembrei-me do caminho que levava ao rio de águas transparentes. Baixei minha cabeça e bebi daquela água, que descia deliciosamente por minha garganta. Alguma coisa, alguém se moveu em minha direção. Eu a reconheci imediatamente porque ela me levantou do chão naquela noite terrível. A Senhora da Floresta sorriu para mim: Alguém, bem distante, chamou por mim: — Jane! Jane!
410 Jack pensei, Jack, estou aqui A Senhora da Floresta sussurrou em sua linguagem e eu sabia que ela me dizia para voltar, que ela sempre estaria comigo. Abri meus olhos e vi escuridão e senti um calor intenso. Tentei gritar
Jack! Jack, mas minha garganta estava seca, eu conseguia apenas tossir. Continuei tentando gritar seu nome porque precisava dizer a ele que eu o amava que eu queria viver, mas nenhum som vinha da minha garganta. Ninguém nunca conseguirá me encontrar aqui, escondida na completa escuridão. Eu iria morrer presa em uma cilada de sombras.
411
Capítulo Vinte e Um
―Cada aluna é marca de sua educação. Quando ela vai para o mundo externo, se recorda de suas experiências da Escola Birch Grove como extraordinárias e significativas‖ Manual da Aluna Birch Grove
Quando voltei a mim, luzes vermelhas de emergência piscavam na escuridão da noite. Eu estava deitada em um banco frio de mármore que dava para a frente do prédio principal. Caminhões de bombeiros e carros de polícia lotavam o estacionamento e bombeiros ainda lutavam contra o fogo no terceiro andar. Tudo era estranhamente laranja, refletindo as chamas que vinham do terceiro andar da escola. As pedras de anjos na fachada pareciam que estavam se erguendo do apocalipse. Paramédicos corriam com equipamentos em minha direção e gritando instruções um para o outro enquanto Jack estava agarrado a minha mão, olhando para eles. — Eu morri de novo? — perguntei com um filete de voz. Jack olhou para mim e sorriu aquele seu lindo sorriso: — Jane!
412 E então ele gritou para a equipe de paramédicos: — Ela está consciente! Quando os paramédicos tentaram me dar oxigênio, eu os empurrei: — Não, eu estou bem, estou bem. — Seu coração parou! — um deles disse. — Pensamos... Lucky, seu namorado, salvou você. —Olhei para o estonteante rosto de Jack e seus amplos olhos verdes: — Jack me salvou não Lucky. Alguém enrolou um lençol em volta de mim e eu comecei a tremer dentro das minhas roupas molhadas. Um bombeiro que estava um pouco atrás dos paramédicos veio falar comigo: — Senhorita, havia mais alguém dentro do prédio? — Sr. Mason estava no laboratório — respondi. O bombeiro balançou a cabeça e saiu indo falar com sua equipe. — Vamos te levar para o hospital — uma paramédica disse. — Não! — eu disse olhando na direção de Jack, que vestia roupas completamente encharcadas. Ele me ajudou a sentar e encostei-me ao banco. — Podemos cuidar melhor dela no hospital. Você tem o número dos pais dela? — disse a paramédica a Jack.
413 — Ela é uma menor emancipada — ele respondeu. — Ela toma suas próprias decisões. A mulher deu de ombros e rapidamente examinou meus olhos, pulmões e pulso. Seus treinados dedos logo acharam uma cicatriz atrás na minha orelha, mas precisamente no lóbulo, e um hematoma na parte interna do meu cotovelo. Ela disse rispidamente a Jack: — Ela é uma Companheira da família Monroe? — Ela é nossa amiga — ele disse. Ela balançou a cabeça: — Escute, você inalou uma quantidade muito pequena de fumaça. Fora isso, está tudo bem com você. É um milagre. — É mágico — Jack disse. — Ela é uma criatura mágica. Ela consegue sumir e aparecer quando deseja. Ela pode conversar com as árvores. A mulher olhou para ele, novamente balançando a cabeça: — Seja lá o que isso quer dizer... Ela empacotou seus equipamentos e retornou para a ambulância, nos deixando a sós. Jack beijou minha testa e senti seu cheiro singular. Ele disse: — Pensei que tinha perdido você, Elfo. Era por isso que eu queria que você fosse embora. – para manter você segura.
414 — Voltei por você — falei. — O Sr. Mason assassinou Bebe e ele iria me matar também. Mas ele queria que as pessoas pensassem que a Família tivesse me matado. — Meu Deus! — ele exclamou. — Pobre Bebe. Eu não consigo acreditar que o tio Albert poderia... — seus olhos de encheram de lágrimas — Diga que meus pais não sabiam disso. — Eu realmente acho que eles não sabiam. Depois daquele primeiro tumulto, reparei que alguém chorava muito. Olhei em volta da multidão e vi a Sra. Monroe. Ela estava parada em frente ao prédio e as lágrimas desciam de seus olhos compulsivamente. Tobias Monroe estava imóvel ao lado da esposa. Lucky estava lá também assistindo ao fogo. Ele parecia tão glorioso quanto os anjos naquela luz sinistra das chamas e percebi que o que sentia por Lucky era quase a mesma coisa que sentia por aquelas estátuas de anjos. O fogo era horrível, mas ao mesmo tempo magnífico. E pensei nos sacrifícios de sangue dos vampiros na antiga cerimônia da colheita ao deus do sol. — Tenho que falar com os meus pais e já volto para ficar com você. Tudo bem você ficar sozinha por um minuto? — Claro, vá lá sim. Vi enquanto ele caminhava para a sua família. Ele deve ter contado a eles o que o Sr. Mason havia feito. O Sr. Monroe se virou para a sua esposa
415 e colocou os braços ao redor dela. Lucky colocou as mãos no rosto e Jack abraçou. Jack deixou sua família e foi falar com os policiais. Voltando a ficar próximo de mim, ele disse: — Um dos policiais vai nos dar uma carona até a casa dos Heyers. No caminho rápido, vi os vizinhos para fora de suas casas, assistindo ao fogo em Birch Grove. Mary Violet e sua família estavam nos esperando no estacionamento. — Jane! – minha amiga gritou e toda a sua família veio me perguntar se eu estava bem, dizendo que eu era bem-vinda, querendo saber se eu precisava de alguma coisa. O Sr. Heyer disse: – Todos vocês, quietos! Deixem a Jane descansar. Jack me ajudou a entrar. A Sra. Heyer mostrou o caminho para o quarto de hóspedes, no primeiro andar, e Mary Violet me ajudou a tirar os sapatos, meu uniforme molhado e a bandagem suja do meu tornozelo. Eles limparam as minhas mãos e pés com um pano morno umedecido, passaram hidratante na minha pele e colocaram uma bandagem limpa no meu tornozelo. Quando levantaram meus braços para me vestirem com uma camisola de flanela, olhei para a parede e vi uma pintura na parede que misturava rosa, pink e bege.
416 Eu sorri porque agora eu entendia que aquela pintura celebrava a vida e a mulher da floresta, e eu estava tão feliz por estar viva. A Sra. Heyer me entregou duas pílulas e um copo de água: — Isso ajudará com a dor e ajudará a dormir. Balancei minha cabeça: — Passei muito tempo da minha vida sem sentir nada. Eu quero sentir as coisas. Mary Violet colocou um sino prateado ao lado da cama: — Toque o sino e viremos o mais rápido que pudermos. Quando elas estavam saindo do quarto, vi Jack na porta, em pé, ainda com as calças molhadas e com uma camiseta clara. — Ficarei com a Jane. Os olhos de Mary Violet se arregalaram e sua boca cor-de-rosa se abriu de surpresa. — Eu quero que ele fique — eu disse. A Sra. Heyer levou a filha pela mão, tirando-a de dentro do quarto, e fechou a porta. Jack veio para a cama e se deitou ao meu lado. Curvei meu corpo para ficar mais próxima a ele: — Como você me achou? — Você gritava meu nome tão alto — ele falou. — Segui a sua voz.
417 Aconcheguei o rosto dele em minha mão e adormeci. Um longo tempo depois ouvi uma criança dizer: — Este quarto cheira a churrasco. E alguém respondeu: — Você é uma praga sobre a Terra. Quando abri meus olhos, o sol estava iluminado, Mary Violet e seu irmão estavam me observando. — Você acordou! — ela disse contente, sentando-se na cama. — Bobby, diga à mamãe que a Jane está acordada. Ele saiu gritando do quarto: — Ô maããããããããããe. — Onde está o Jack? — perguntei. — Foi para casa, mas voltará logo. Supostamente, eu devo te aborrecer fazendo perguntas, mesmo que eu esteja sendo consumida pela curiosidade — ela piscou. — Você poderia ter sido morta, JW, e o Sr. Mason morreu no incêndio. — Eu já imaginava. — Como o fogo começou? Era uma pergunta tão simples: como o fogo começou? Começou quando vim para Birch Grove, ou até antes, com os Alfas, ou com a morte de Hosea, ou na noite em que eu corri rumo à tempestade?
418 Falar a verdade não ajudaria Bebe, nem puniria o Sr. Mason. — O Sr. Mason estava fazendo um experimento e a bancada com os elementos químicos caiu e pegou fogo. Ele tentou apagar as chamas, mas não conseguiu. Ela balançou a cabeça: — É. Todos pensaram que só poderia ter sido um acidente. A escola estará fechada por uma semana. Algumas turmas que eram do Desajeitado serão transferidas para outro prédio. A Sra. Heyer trouxe Chá com mel e muffins: — Olá, querida — ela disse. — As crianças fizeram os muffins para você esta manhã. Os Heyers eram cuidadosos comigo. Não me fizeram muitas perguntas e Mary Violet preparou um banho especial para mim com a banheira cheia de espuma. Agnes trouxe para mim várias roupas cor-derosa bem quentinhas e um par de tênis: — Acho que servirão. Embora pink seja uma cor para meninas bobas mimadas, você não é nada disso. — Obrigada, Agnes — eu não resisti em provocar. — Sua irmã ama pink! Agnes riu: — Minha irmã é um gênio, secretamente. As calças serviram perfeitamente.
419 Jack veio em sua bicicleta por volta das nove. Eu estava descansando em uma cadeira no jardim, aproveitando os raros raios solares da região. — Oi, Elfo! — ele disse e se sentou na grama ao lado da cadeira. Seus cabelos estavam mais curtos. — Obrigada por me achar ontem à noite — eu disse. — Por que você ainda estava no prédio? — Eu ainda estava no bosque quando você saiu do chalé. Segui você até o prédio principal e fiquei esperando por você no lado de fora do prédio. Depois de um tempo ouvi o alarme de incêndio. — Você estava me espionando de novo? — Não, eu estava pensando em me desculpar com você — ele entrelaçou seus dedos nos meus. — Eu não poderia viver com a minha criatura mágica me odiando. Ela poderia me jogar um feitiço para que virasse um idiota de verdade, ao invés de um cara que age como um. Quando ri, meus pulmões doeram: — Você ia se desculpar ou estava apenas pensando em se desculpar? — Declaradamente eu peço desculpas a Jane Willians por todo o meu comportamento passado, presente e futuro. — Desculpas aceitas. Quem cortou o seu cabelo? — Eu mesmo. Precisava de um corte de cabelo — ele disse. Você quer me contar o que aconteceu ontem à noite?
420 — Quero — eu disse, começando pela parte de achar uma caixa de jóias e indo encontrar o Sr. Mason. — Quando ele falou comigo da outra vez sobre Companheiras, ele agiu como se isso fosse uma oportunidade maravilhosa. Hesitei, e Jack disse: — Tudo bem. Eu sabia sobre o meu pai e a tia Claire. Todos nós sabíamos, mas fingíamos que todos eram apenas amigos. — Isso não era terrível para a sua mãe? — É difícil de dizer. Ela aceita isso como se fosse normal para a Família, e com a tia Claire lá, minha mãe não tinha que se preocupar se estava ignorando meu pai ou não — ele disse com um sorriso triste. — A verdadeira paixão da minha mãe sempre foi a escola, sua excepcional escola para garotas excepcionais. A paixão do Sr. Mason era a sua esposa. Perdê-la fez com que ele perdesse a cabeça. — Como você conseguiu escapar? — Conhecimento é poder. Mesmo uma pessoa pequena pode fazer uma devastação com conhecimentos básicos de química — eu disse com um grande sorriso. O Sr. Mason não sabia o que tinha acontecido com o corpo de Bebe. — Meus pais não dirão e acho mesmo que eles não sabem, de verdade. A Família limpa toda e qualquer pista.
421 Nuvens começaram a aparecer no céu. Os raios solares não duraram muito. — Meus pais querem que você vá em casa para conversar com eles — Jack disse. A Família oferecerá algo para você em troca do seu silêncio sobre o Sr. Mason. Hattie passará para te buscar às 15h. — Você estará lá? — Não fui convidado, mas se você quiser que eu fique com você, eu fico. — Quero sim — respondi. —Você e Hattie são realmente só amigos? — Sim, Hattie e eu somos apenas amigos — ele se levantou tirando a grama que ficou em sua roupa e me beijou docemente. — Vejo você mais tarde. Depois que ele saiu, Constance e Mary Violet se juntaram a mim no jardim. Elas colocaram cadeiras ao meu lado. — Absolutamente, eu não consigo mais — disse MV. — Você tem que me contar o que está acontecendo ou ficarei louca de curiosidade. — Mary Violet morre se não sabe da fofoca por completo — Constance disse se inclinando e me dando um beijo na bochecha. — Todos estão perguntando os detalhes a ela e ela não sabe de nada, exceto que Jack Monroe dormiu ontem à noite com você, o que ela me contou inúmeras vezes. — Eu estou chocada — disse Mary Violet. — Achei que você estava caidinha pelo Lucky!
422 Constance puxou seus óculos para a ponta do seu estreito nariz: — O chefe do corpo de bombeiros fez um anúncio sobre o acidente, e você não tem que nos contar nada. Mas caso você queria conversar sobre o assunto, somos todas ouvidos, Jane. — Pobre Sr. Mason — disse Mary Violet. — Ele nunca mais havia sido o mesmo depois da morte de sua esposa. Era como se ele não pudesse sair de Birch Grove porque o espírito dela o caçava. — Acho que MV está certa — eu disse. — O Sr. Mason me disse sobre ela. Não queremos esquecer as pessoas que amamos. Mary Violet inclinou sua cabeça para o lado: — JW, a Sra. Monroe disse que seria rude pergunta isso, mas isso foi antes, agora somos amigas. Como sua mãe morreu? — Meu padrasto atirou nela. Eu não sei o motivo, porque eu só tinha sete anos. Ele estava bêbado e furioso. — Ele atirou em mim também. Ambas disseram: — Oh, meu Deus! E seus braços envolveram meu corpo, em um abraço. Quando elas me soltaram, Mary Violet disse: — Foi isso que causou aquela cicatriz no seu ombro?
423 — Sim. Acho que não a escondi propriamente. Conto pra vocês do que me lembro depois, mas não me lembro de muita coisa. E não quero que sintam pena de mim! Mary Violet disse: — Solidariedade não é pena. — Empatia, consolo, ou compaixão — Constance disse, creio que tentando concordar com sua amiga. — Falando em paixão — disse Mary Violet. — Eu disse compaixão — retrucou Constance. — Como você roubou o Jack da Hattie? — Ele me jurou que, na verdade, eles são apenas amigos — respondi. — Eu já imaginava — falou Constance. — Eu imaginei isso primeiro — disse MV — então eu ganhei! Minha mãe me disse para te alegrarmos, então recitarei o poema que fiz pra você, a Ode a uma Inocente. — Por favor, não faça isso — Constance disse. — Ela vai levantar os braços agora — eu disse. — Vou mesmo! — ela disse e levantou seus braços.
424 ―Oh, querida senhorita Jane, tão pensativa e verdadeira, Seu coração imaculado é como uma manhã serena, Em sua jornada rumo à educação acadêmica Se deparou com pinturas nada convencionais Privacidades das damas, tão essências, Deram lugar à vulgaridade despudorada.‖
Hattie chegou na casa dos Heyers faltando quinze minutos para as três. Ela me deu um forte abraço: — Estou tão feliz que você está bem. No caminho, ela me falou: — Jack me contou o que aconteceu. Estou tão triste por Bebe. Preferiria mil vezes que ela tivesse conseguido escapar de ‗nós‘ e tivesse ido viver com alguém que a amasse. Você pensa nisso como uma fuga, mas ela provavelmente viu a Família como uma segurança — eu disse. — Ontem à noite, quando vi os Monroe juntos pensei é isso que família é, pessoas que apoiam as outras na alegria e no luto. — Jack me disse que era para eu te dizer que de fato nós não estamos namorando. — Mas por que vocês fingem que estão namorando? — Porque isso deixa Lucky louco. Estúpido, mimado, egoísta Lucky. Ele pode ir pro inferno. Boa sorte pra você com Lucky.
425 — Decidi que não quero mais a iniciação, Hattie. Ela me olhou com olhos arregalados: — De verdade? — Sim, de verdade. — Por quê? — Porque você está certa. Esse envolvimento de Companhia não é saudável para ninguém. Hattie parou o carro no estacionamento dos Monroe atrás de um outro carro, que tinha uma antena de polícia: — Vamos encarar o círculo de fogo agora. Ela me ajudou a chegar até a porta de entrada e tocou a campainha. Tobias Monroe abriu a porta: — Todos estão aqui. Por favor, junte-se a nós. Hattie, você pode esperar na sala familiar. — Eu vou ficar na reunião. — Não é apropriado — ele disse com uma voz cansada. — Sr. Monroe, o senhor não tem o direito de me dizer o que é apropriado — ela disse e marchou até a sala de estar. A Sra. Monroe e seus filhos estavam sentados no sofá. Ela estava mais elegante do que nunca, mas mesmo assim, eu via a tristeza em seus olhos e a tensão em seu maxilar.
426 Jack sorriu para nós e meu coração acelerou com o seu sinal. Lucky disse um oi para mim e lançou um olhar preocupado para Hattie, que puxou uma cadeira. Ian Ducharme, o membro do Conselho, vestia um terno azul impecável e estava sentando em uma cadeira de couro no canto da sala. Quando eu estava olhando para ele, acenou e deu um sorriso. Notei um homem e uma mulher em roupas de negócios que estavam parados em pé ao lado da lareira. A Sra. Monroe os apresentou a mim: — Jane, esta é a detetive Fox e o oficial Thumond, do Departamento de Polícia de Evergreen. Eles estão acompanhando o acidente de ontem à noite. A mulher, detetive Fox, disse: — Srta. Willians estamos felizes que esteja bem e é muito triste que o Sr. Mason não tenha sobrevivido. — Ele era um ótimo professor — eu disse. — Temos o relatório inicial do chefe dos bombeiros e precisamos de sua declaração porque houve uma morte — ela disse. — Sabemos que a sua memória possa estar ainda abalada. Pessoas em crise têm problemas em recordar dos acidentes. Eu sabia que ela estava procurando por desculpas. — Um pano começou a pegar fogo e atingiu os elementos químicos.
427 A detetive Fox sorriu: — Obrigada. Já tenho tudo o que preciso. Olhando para a Sra. Monroe, ela falou: — Sra. Monroe, por favor, me telefone caso tenha algum problema. — Ligarei. Obrigada Katie. O parceiro da detetive escreveu algo no bloco de anotações e a detetive Fox disse: — Srta. Willian sei que isso é traumático, mas tenho certeza de que terá uma vida de sucesso. Sou uma aluna de Birch Grove também. Quando ela estendeu a mão para me cumprimentar, vi o anel de ouro brilhando em seu dedo, ela era uma Companheira. Depois que eles saíram, a Sra. Monroe olhou para mim: — O que aconteceu foi um choque terrível para todos nós, Jane. Nunca pensamos que Albert Mason fosse capaz de tentar machucar ninguém. — Mas a senhora sabia que alguém tinha assassinado Breneeta Brown — eu disse. — Breneeta desapareceu — a Sra. Monroe disse educadamente. — Presumimos que ela deixou a escola, que era seu direito, já que ela é uma menor emancipada. — Perdoe-me, mas a senhora está mentindo. A Sra. ou o Sr. Monroe encontraram o corpo de Bebe no anfiteatro. Vocês inventaram uma história
428 para encobrir a ausência dela e a senhora vem fingindo que ela mantém contato com a senhora. Ian Ducharme olhou com interesse a expressão congelada da Sra. Monroe. E seu marido apertou as mãos nervosamente. Finalmente, o Sr. Monroe disse: — Não posso mais lidar com isso. Nada está certo desde que Claire... desde que ela nos deixou. Preciso de uma bebida. Ele saiu rapidamente da sala enquanto sua esposa o olhava com irritação. Ela se recompôs: — Jane, quero lhe assegurar que este incidente nada tem a ver com o que sentimos por você. Vamos adiar a iniciação e ficaremos felizes de fazer qualquer coisa para tranquilizá-la. — Decidi que não quero ser uma Companheira — disse. — Você está em estado de choque. Precisa descansar. Você ainda tem a semana toda, e você e Lucky podem viajar para algum lugar, qualquer lugar. Temos uma casa em uma estação de esqui, ou se quiser ficar próxima ao oceano... Por que não conhecer Paris, Jane? — Férias não me farão mudar de ideia e tenho que estudar para as provas que estão chegando. — Lucky — Hattie começou. A Sra. Monroe chamou a atenção da minha amiga:
429 — Harriet, você não faz parte desta discussão. — Sim, faço sim — disse Hattie. Lucky darei a você uma última chance. Você vai continuar a insistir em ter uma Companheira? Lucky abaixou sua cabeça, como um animal que se sente ameaçado: — É uma tradição, e é meu direito. Eu já disse isso a você, naquela noite, no bosque. Você pode se acostumar com isso, como todas as outras garotas se acostumam. — Eu não sou como as outras garotas, Lucky — Hattie se levantou e foi até Lucky. — Você sabe que sempre amei você e sei que você sempre me amou. Já é hora de você deixar de ser esse menino mimado e virar um homem, alguém que eu respeite. Lucky olhou para Hattie com toda a adoração que eu havia sonhado que ele teria por mim. — Deixe-a para lá, Lucky — sua mãe disse. Você pode seguir com a tradição e encontrar alguém melhor que Hattie Tyler. Assim que ela terminou de falar, Lucky se levantou: — Você está maluca, mãe. Não existe alguém melhor do que a Hattie. Ela é mais esperta do que eu, ela é mais legal do que eu, e ela é a garota mais maravilhosa que já conheci. Se ela está disposta a me tolerar, então serei um idiota se eu a deixar para lá. Vamos sair daqui Hattie. Ele pegou em sua mão e saiu. A porta de entrada bateu quando eles saíram.
430 A Sra. Monroe cruzou seus tornozelos graciosamente, mas sua voz tremeu quando ela falou: — Ele mudará de ideia, Jane. Lucien sempre foi impulsivo, mas ele não quebrará um costume importante. — Desista querida — disse repentinamente Ian Ducharme. — Mas... — assustou-se a Sra. Monroe. — Você realmente quer discutir comigo? — mesmo sorrindo ele parecia perigoso. — Agora vá consolar o seu marido para que ele não afogue todas as mágoas na bebida. Gostaria de falar com Jane. — Eu vou ficar — anunciou Jack. O Sr. Ducharme lançou um olhar para a diretora, que levantou rapidamente e deixou a sala. O membro do Conselho se moveu para o sofá, encarando-me: — Bem, Jane, você nem mesmo me deu a chance para provar que eu estava certo. — Por que você disse a eles que eu era satisfatória? Seus olhos negros brilharam de deleite: — Curiosidade. A vida muda e eu suspeitei que você descobriria isso facilmente. — Onde está o corpo de Breneeta? — indaguei.
431 — O que passou, passou. As cinzas dela se foram com o vento. Mas agora que o jovem Monroe declinou o privilégio da Companhia, acho que não temos nenhum problema. O que você gostaria Jane? Eu sabia imediatamente: — Gostaria que estabelecessem uma bolsa de estudos no meu antigo colégio, City Central, em homenagem a um amigo meu Hosea Sabatier. Deve cobrir todas as despesas do aluno essa bolsa. — Um pedido sensato — disse o Sr. Ducharme. — Há algo mais que você queira Jane? — Espere — disse Jack. — Foi prometido a Jane a educação de Birch Grove, assim como uma educação universitária que incluía TODAS as despesas dela. Já que ela poderia ter morrido, ela deve receber isso. O Sr. Ducharme fitou Jack: — Você é o advogado dela? — O conselho dos Elfos apenas é feito à meia-noite. — Ah, achei que tinha sido o único a notar isso nela, algo que não é desse mundo — disse o Sr. Ducharme. — Tudo bem, ela receberá isso. Jane, quando terminar os seus estudos, podemos rever a sua relação com a Família. Não somos tão conformistas quanto este lado particular, e sempre há lugar para alguém digno de confiança e bem educado, especialmente alguém que – misteriosamente – sobreviveu a duas situações fatais. Ele olhou de relance para o seu relógio de ouro:
432 — Tenho que ir. Minha oferta está razoável para você? — Sim, obrigada. — Você me acompanha até lá fora, Jane? O Sr. Ducharme ofereceu seu braço a mim e fomos até o lado externo da casa. Ele parou na sombra de um pinheiro: — Posso confiar no seu silêncio? — Não tenho razões para expor a Família. Eu até sentiria pena deles se mostrassem compaixão pelos outros. — Isso é muita generosidade sua Jane. — O senhor está rindo para mim, ou de mim? — Para você, porque você é uma jovem tão séria. Mas não seja muito séria, ou você se tornará como Hyacinth. — Tentarei evitar isso, senhor. — Farei os arranjos necessários para o nosso acordo. O Programa de Companhias aqui em Birch Grove foi suspendido até segunda ordem. — Fico feliz. — Adeus, Jane — ele pegou minhas mãos nas suas. — Acredito que nos encontraremos novamente um dia sob circunstâncias mais felizes. Talvez quando você me conte os segredos por trás desses olhos castanhos. — Conto apenas se me contar os seus segredos. Ele riu:
433 — Você já está seguindo o meu conselho. Tenho algo para você — ele disse abrindo o porta-malas do seu carro. — Isso foi achado no corredor perto da escola. Acredito que seja seu. — Obrigada — eu disse pegando-o e olhando, maravilhada as novas raízes e folhas do galho. Ele então entrou na Mercedes e foi embora. Eu olhei para baixo, para a escola. O telhado carbonizado, em contraste com as cores externas das paredes, parecia feridas. Eu não queria voltar para dentro da casa dos Monroe. Carregando o broto cuidadosamente em minha mão, caminhei vagarosamente ao redor da casa e peguei uma trilha que dava no chalé. Quando cheguei ao anfiteatro, sentei em um banco para descansar meu tornozelo. O mármore era liso e frio. O que Claire Mason e Bebe sonharam para suas iniciações? O que todas nós sonhamos: amor e segurança. Distraidamente, olhei entre os galhos e vi uma sombra negra por entre eles. Eu não sabia dizer a sombra se tratava da Senhora da Floresta, ou de Bebe, ou um truque de luz, mas eu não tive medo desta vez. A escuridão daquela sombra se expandiu, crescendo, e foi embora. Jack me achou no anfiteatro e sentando próximo a mim disse: — Você saiu sem me avisar. — Precisava vir até aqui.
434 O vento soprava nas folhas de outono e estávamos sentados em meio a tanto silêncio que um trio de veados se aproximou. Eles olharam para nós antes de saírem a passos lentos. Jack me disse: — Fiquei feliz em você não ter decidido se juntar aos seus amigos da floresta e ir embora. — Pensei nisso, mas algo está me prendendo aqui. Você me ajuda a chegar até o chalé? — Elfo — ele disse com um largo sorriso — você pediu ajuda de verdade? — Tudo bem pedir aos amigos um pouco de solidariedade e conforto. — Posso te carregar? — Não, pode me dar seu ombro. Peguei o broto da árvore e me apoiei nele: — O que é isso? — ele indagou. — É um galho que me ajudou na noite passada. Podemos plantá-lo. Jack foi paciente enquanto eu desci vagarosamente. Quando chegamos aos degraus do chalé, ele correu na frente e abriu a porta, então voltou para perto de mim para me auxiliar a entrar. Quando ele me colocou no sofá, olhei em volta do cômodo e notei pequenas mudanças: — Alguém esteve aqui. Coisas estão em lugares diferentes.
435 — A equipe de segurança da Família provavelmente esteve aqui ontem à noite. E agora, Elfo? — ele perguntou enquanto se sentava ao meu lado no sofá e pegava em minha mão. — Eu não sei. Pensei em me transferir para outra escola, mas existem algumas coisas que me prendem a este lugar. — Como... — A poesia de Mary Violet, o Free Pop, o jornal de Birch Grove. — São ótimas coisas para te manter aqui. Algo mais? — Sim. Eu amo o bosque, e eu tenho amigos, e tem também esse cara... Ele é incrivelmente desagradável. Ele me provoca e me diz para partir. Ma ele me traz pizza e me faz rir. Ele é incrivelmente sexy e talentoso. E ele é engraçado também, e atencioso. Tenho minhas suspeitas de que ele é muito inteligente. — Eu jamais conseguiria competir com um modelo de perfeição desses. — Não tente competir, seja você mesmo — eu disse. O problema é que ele vem sendo muito inconsistente e eu não tenho certeza se ele realmente se preocupa comigo. Jack colocou seu braço em volta de mim e inalei seu perfume de pinho e terra: — Acho que ele estava em conflito porque achava que você estava apaixonada por uma outra pessoa e ele estava tentando te manter segura, embora ele sempre quis que você permanecesse aqui.
436 — Ele quer que eu fique agora? — Sim, porque ele está apaixonado por você. Ele nunca havia conhecido uma garota mais bonita, mais corajosa, mais esperta que um Elfo. E tudo o que ele quer Jane, é estar com você. Puxei Jack para mim e o beijei. Quando nossos lábios se separaram ele falou: — Você sabe que isso será complicado. — Comparado com o que passei isso será facílimo. Jack abriu um imenso sorriso e então ele me beijou de novo, e de novo. Sua boca tinha o gosto daquela água límpida que provei no Outro Mundo, seus braços eram fortes como os braços que me carregaram na noite da tempestade e seus olhos eram da cor da fonte, da nascente. E quando ele disse Jane, fique comigo, eu disse, para sempre. Escorreguei minha mão para dentro de sua camiseta, sentindo seu corpo quente, e ele tirou a camiseta. Beijei seus ombros nus, senti as batidas do seu coração e ele abriu o zíper da minha jaqueta. Seu corpo me matinha aquecida, mesmo eu estremecendo a cada toque seu. — Seu tornozelo não está doendo? — ele perguntou. — Não muito. Seja cuidadoso. — Farei apenas o que você quiser. Diga o que você quer. — Quero você.
437 — Não tenho que apressar as coisas... eu posso esperar — ele hesitou. — Já morri duas vezes, Jack. Posso não voltar da próxima vez. Não quero mais esperar para viver. Ele me levou para o quarto e vagarosamente me despiu, me alisando, me beijando. As carícias com suas mãos firmes me fizeram esquecer a dor em meu tornozelo, e esqueci de tudo, menos dele. Seu corpo nu era surpreendente para mim e quando o toquei sua respiração ficou ofegante: — Jane, Jane. Porque estávamos nos conhecendo ainda, ele tentava ser gentil e não machucar mais meu tornozelo. Tentamos nos ajeitar um no outro e nossos corpos molhados às vezes não se encaixam direito e escorregávamos, mas Jack ria e eu ria também, porque era melhor não sermos sérios demais. E quando achamos nosso ritmo e as sensações cresceram dentro de mim, apertei minhas mãos em seus ombros e tudo foi muito melhor do que imaginei, porque ele estava ali, olhando diretamente para mim, ele estava
me vendo. E gritei de prazer e de felicidade.
No meio da noite quando as bétulas dançavam no vento do outono e catavam suas canções, Jack e eu acendemos a lareira e nos enrolarmos em uma manta. Seus dedos calejados passaram por cima da minha cicatriz e ela pulsou quente, como se ela desejasse o seu toque. Ele falou: — Ela tem o formato de folha. Como você conseguiu essa cicatriz?
438 — Meu padrasto atirou em mim e eu escalei uma árvore — respondi. — Não, o que realmente aconteceu é que a árvore me levantou e me salvou. Essa foi a primeira vez que eu morri. Eu sempre achei que a cicatriz fosse a marca da bala, mas agora percebo que é a marca da árvore que me salvou. — Então eu estava certo. Você é mágica. — Não eu, mas a Senhora da Floresta — seus dedos tatearam a minha tatuagem. — o que o ‗H‘ significa? Contei a ele sobre Hosea e como o amei. — Ele parece com alguém que queria muito te fazer feliz. ‗H‘ é também para happy, alegria em inglês, e para hope, também em inglês, esperança — e pensou por um momento — e para honey, mel em inglês, que, ao mesmo tempo é um agrado e é doce, como manteiga de amendoim. — Essa última parte era para ser uma piada? — eu disse passando minha mão por sua perna musculosa. Pensei o quanto ele era lindo. Ele então disse: — Tenho uma coisa para falar a você, e então ele falou devagar e com calma:
―Karissima, noli tardare studeamus nos nunc amare sine te non potero vivere iam decet amorem perficere.‖
439 Traduzi o poema em minha cabeça enquanto ele falava: ―Minha querida, não hesite! Vamos estudar a arte do amor. Sem você, não consigo viver. Agora é o tempo para aperfeiçoarmos o nosso amor.‖ — Os próximos serão em português, porque não posso recorrer a Catalina todas as vezes que eu quiser declamar um poema pra você. — Eu amo você, Jack. Ele ficou comigo durante toda a semana em que Birch Grove esteve fechada. Ele trouxe sua guitarra, bicicleta, seus shorts imundos e muitas camisetas, incluindo uma camiseta ‗Dog Waffle Laboratório de Pesquisa‘ para mim. Ele cuidou de mim, preparando torradas e chá pela manhã e me trazendo pizza à noite. Ele lavava a louça e cantava músicas para mim. Ele pendurou a pintura das bétulas em cima da lareira e plantou o broto de bétula do lado de fora, bem na janela do meu quarto. E quando Jack me tocava, sentia cada nervo vivo em meu corpo, como no dia em que nos encontramos pela primeira vez e senti sua mão em meu ombro. Mary Violet e Constance me visitaram, trazendo os cupcakes da Sra. Heyer, filmes e flores. Mary Violet esperou Jack sair para o ensaio da banda para me dizer: — Hattie está tão ocupada com o Lucky que mal temos nos vistos. — Ela deu uma passadinha ontem — Constance disse e piscou para mim com aqueles olhos de amêndoa.
440 — Ficou um milésimo de segundo apenas. — Foram quase quatro horas, MV! — Constance disse. MV olhou para as coisas de Jack que estavam pela casa toda: — Todo mundo encontra um amor, menos eu. Até mesmo Constance está se encontrando com Joe, que está no mesmo ano que nós em Evergreen. Quando ele estava na sétima série, Joe riu muito alto porque uma bola de softball bateu na minha cabeça no piquenique de Quatro de Julho, então eu não o aprovo! — Ela se recuperará — Constance disse para mim. — Três caras já a convidaram para o Baile de Inverno. — Eles não contam. Eu os conheço desde que éramos embriões e nossas mães frequentavam as mesmas aulas de pré-natal. Acho que vestirei minha irmã Agnes em um smoking e levá-la como minha acompanhante. — Você não faria isso! — Constance e eu dissemos juntas e todas começamos a rir.
Depois de alguns dias, quando já conseguia caminhar distâncias curtas, Jack e eu íamos ao bosque à noite. Parávamos no anfiteatro e ele embrulhava seus braços em mim, me mantendo aquecida enquanto conversávamos. Comecei a lembrar mais sobre a minha vida antes: minha mãe me empurrando em balanços nos parques, um gato cinza que tínhamos, enchendo balões em um dia de verão...
441 Pedaços de mim começaram a aparecer. Algumas vezes eu até conseguia imaginar a mulher que me tornaria: uma pessoa quieta, já que se tratava de Jane Willians, que amava resolver os problemas em um laboratório e que ficava ainda mais feliz ao chegar em casa e ver sua família. Quando a semana acabou, eu disse: — Jack, Você precisa voltar para a sua casa. — Tem muito drama lá, Jane. Hattie e minha mãe estão sempre discutindo. Além disso, quero ficar com você. — As aulas começam na segunda e não conseguirei estudar se você estiver aqui comigo — eu disse. Não se esqueça do item de depravação moral do Manual da Aluna de Birch Grove. Mary Violet já está até escrevendo poemas sobre a perda da minha inocência. Ele sorriu aquele sorrido amplo, que mostra seus dentes: — Não gostaríamos de um escândalo. Tudo bem, mas exijo visitas privilegiadas. — Constantemente, e talvez você pudesse procurar por faculdades. — Já está cansada de mim? — Faculdades com um bom programa de música e um ótimo departamento de química e, claro, uma pizza maravilhosa. Uma faculdade que fique em uma floresta — eu disse. Quero viver onde existam árvores, e quero viver com você — disse brincando com o pingente do colar que Jack me deu. — JMF... Qual é o seu nome do meio?
442 — Forrest — ele disse. — É o nome da minha família biológica. Jacob Forrest Monroe. Em ciência e em matemática sempre há uma busca por uma elegante solução, uma resposta que ao mesmo tempo seja simples e verdadeira. Ainda sonho com as noites em que morri. Às vezes tenho pesadelos, como estar perdida nas passagens secretas sem conseguir encontrar a saída. O caminho para a fuga havia se tornado uma prisão. Mas com mais frequência eu sonhava que estava no bosque. O vento soprando e as bétulas levantando suas raízes do solo e se movendo, graciosamente. Elas cantam em seus sussurros em uma língua que antecede qualquer tempo. Eu sou pequena, brincado de roda-roda com outras garotas e cantando cinzas, cinzas, todas caem no chão. De alguma forma, sei que minhas amigas de brincadeira são Claire Maison e Bebe. Há outras meninas aqui também, e muitas usam o anel de Companheira, as pedras brilhantes como sangue em suas mãos pequeninas. Somos fantasmas de uma infância perdida e sempre frequentaremos este lugar.
FIM...
443
http://www.martaacosta.com
444