ESCRIBAS Os materiais necessários para uma das mais antigas profissões do mundo
LOBISOMENS O lado obscuro dos contos e as conotações sexuais de tais histórias
ORIGENS DOS CELTAS Conheça a gênese do povo apontado como aglutinador das nações europeias
ARQUEOLOGIA NA AMAZÔNIA Os pesquisadores em busca de detalhes do povo que tanto fascinou os espanhóis 500 anos atrás
Bruxaria na Idade Média Gatos pretos, vassouras, velhas com verrugas: qual a verdadeira origem do mito da feiticeira, que tanto assustou e fez com que surgissem histórias que perduram até hoje
ENTREVISTA: Maria Regina Cândido fala sobre as antigas tradições mágicas nos dias modernos
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Número 26, ISSN 1982 - 8187
EDITORIAL www.escala.com.br Av. Profª Ida Kolb, 551, Casa Verde, CEP 02518-000, São
A Velha Verruga Ataca de Novo! Que os mitos sempre voltam com uma roupagem nova, isso não é novidade para ninguém. Na edição anterior vimos o que aconteceu com a imortal criação de sir Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes. Uns chamam de atualização, outros de readaptação, mas a verdade é que as histórias velhas ganham a atenção das pessoas sempre que aparecem com outras formas. Desta vez é o caso das bruxas. Desde a época em que a TV transmitia o hoje clássico seriado A Feiticeira, as personagens (Samantha inclusive) insistiam que “bruxas não tinham que ser necessariamente velhas verdes com verrugas na ponta do nariz que viajavam nas pontas de vassouras”. O recente seriado Charmed, com três bruxas que faziam qualquer marmanjo babar por elas, confirmou esse esterótipo. Porém, a História conta-nos outros detalhes. Essas senhoras, detentoras de um conhecimento antigo começaram sua longa e penosa estrada na época da Idade Média, quando a tradição e a ignorância imperavam graças às palavras impensadas de padres que adoravam condenar o que não entendiam. Aproveite e conheça outras paragens mais agradáveis, como a fantástica viagem que a repórter Mônica Canejo fez aos sítios arqueológicos amazônicos; leia a opinião de um historiador e uma psicóloga que, juntos, analisaram a evolução do mito da Chapeuzinho Vermelho; saiba mais sobre os celtas, esse misterioso povo que reinou durante 500 anos e até hoje fascina os arqueólogos; e aproveite para ver nosso caderno especial que traz dois artigos especiais, um sobre os escribas egípcios e os materiais que eles usavam; e outro sobre os Tapajós. E aguarde mudanças significativas no caderno a partir do próximo número, que servirá para os professores poderem usarem seus textos em atividades escolares. Continue a prestigiar as Leituras que a História nos oferece. Boa viagem.
Paulo (SP), Brasil Tel.: +55 (11) 3855-2100 Fax: +55 (11) 3951-7313 Caixa Postal: 16.381, CEP 02599-970, São Paulo, SP, Brasil EDITORIAL - Diretor: Sandro Aloísio Pré-impressão: Cíntia Karina dos Reis Produção: Fernanda de Macedo Alves Guedes e Rosana Ascenção Revisão: Bruna Baldini de Miranda PUBLICIDADE - Diretor: João Queiroz (joaoqueiroz@escala. com.br) Assistentes: Luciane Freitas e Adriana Neiva tel (11) 3855-2179 (faturamento) Agências - Gerente: Sumara Del Vecchio, sumaravecchio@escala.com.br Executivos de Negócios: Cláudia Arantes, Clóvis Cortez, Daniel Resende, Guenda Galeazzi e Mariana Galvão Diretos/Executivos de Negócios: Adriana Mauro, Adriana Paula, Jussara de Souza, Luciana Lima, Miriam Campanhã, Paulo Sérgio de Moraes, Yone Catoira e Zélia Oliveira Regionais Gerente: Alessandra Nunes, alenunes@escala.com.br Representantes - Interior de São Paulo: L&M Editoração e Comércio Luciene Dias (19) 3231-7887 Ceará: Dialogar Comunicação e Marketing Izabel Cavalcanti (85) 3264-7342 Minas Gerais: Box Private Media Rodrigo Freitas (31) 9421-6777 Paraná: AB Isoppo Publicidade Andreia Isoppo (41) 3343-1175 e 3342-0678 Rio Grande do Sul: Starter Online Cristina Zimmerman (51) 3327-3700 Rio de Janeiro: Marca 21 Carla Torres e Marta Pimentel (21) 2224-0095 Santa Catarina: Artur Tavares tel. (47) 9192-6554 - tel. (11) 7733-0665 COMUNICAÇÃO E MARKETING - Diretor: Filipe Rios Gerente de Comunicação: Patrícia Filgueira Assessora de Imprensa: Júlia Furquim Diretor de Arte: André Martins Assistentes de Arte: Joel Brogliato e Nathalia Valente Estagiária: Tarcila de Lourenzi VENDAS/ATENDIMENTO AO LEITOR Tel.: +55 (11) 3855-1000 sacweb@escala.com.br ATACADO DE REVISTAS Tel: +55 (11) 4446-7060 atacado@escala.com.br ATACADO DE LIVROS Tel.: +55 (11) 3855-2120 / 3855-2148 vendas@escala.com.br Distribuição com exclusividade para todo o BRASIL, Fernando Chinaglia Distribuidora S.A. Rua Teodoro da Silva, 907. Tel.: +55 (21) 2195-3200. Números anteriores podem ser solicitados ao seu jornaleiro ou na central de atendimento ao leitor, ao preço do número anterior, acrescido dos custos de postagem. Disk Banca: Sr. jornaleiro, a Distribuidora Fernando Chinaglia atenderá os pedidos dos números anteriores da Editora Escala enquanto houver estoque.
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Revolta da Chibata
A história da famosa Revolta da Chibata era um item contado antigamente nas escolas. Pelo menos sou da época em que se fazia isso. Hoje em dia muitos episódios de nossa História se perderam por reforma do currículo dos professores ou porque apenas caíram no esquecimento, como acredito que tenha sido esse o caso. Fico contente que uma publicação como a vossa ainda se preste não apenas a apanhar uma desculpa como o relançamento do livro como também querem levar a história de João Cândido para uma nova geração.
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Darwinismo no Rio de Janeiro
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É completamente absurdo que nos dias de hoje uma publicação como a sua ainda se dê ao trabalho de levantar a velha batalha de Criacionismo versus Evolucionismo. Por mais que se deem ao trabalho de dizer que o Homem veio do Macaco (uma das coisas mais absurdas de que já se teve notícia), a Ciência, que insiste em idolatrar como se fosse Deus, ainda nem se deu ao trabalho de tornar a Evolução uma verdade inquestionável.
Patrícia Argel Moura, por e-mail.
Druidas
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A cultura celta é tão vasta e poderosa que não merecia meras quatro páginas como vocês fizeram no último número. Gostaria de sugerir a vocês que pensem com carinho em lançar ou um número especial sobre o assunto ou pelo menos um desses livrinhos de banca que possam elucidar o assunto. Pensem bem: não sou adepta de druidismo ou de nada do gênero, mas não dá para ignorar que eles foram o povo mais importante do passado europeu.
Lúcia Berlioz, por e-mail.
São Luís Canonizar soberanos parece ser algo mais ultrapassado do que vender ossos de galinha pensando serem e santos. Porém, não é de hoje que ouço falar sobre Luís IX da França, cuja biografia conheci no último número de sua revista. É algo no mínimo interessante: por que a França canonizou ele e não houve um movimento no mesmo sentido para Ricardo Coração de Leão?
Edgar Davi Egídio de Melo, por e-mail.
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CRONOLOGIA | Edição 27 • Ano 2010
NOSSA CAPA
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Bruxaria Medieval
Em pleno florescimento do poder eclesiástico a antiga crença em remédios caseiros e rezas antigas fez com que aparecesse uma classe de pessoas com e supostos poderes: as bruxas que, na Idade Média, espalharam o terror e o caos a ponto dos padres iniciarem uma verdadeira batalha pela erradicação desse suposto mal e pela salvação das almas de seus rebanhos.
ESPECIAL
História em Perspectiva
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• Profissão: Escriba
ENTREVISTA:
Maria Regina Cândido Como o estudo da tradição mágica das civilizações antigas passou de um assunto cheio de crendices a matéria acadêmica? Nesta entrevista com uma das maiores especialistas nacionais sobre o assunto veremos que hoje sabemos mais sobre nossos antepassados por meio de seus hábitos religiosos do que pelos objetos deixados para trás.
Celtas
Muito se falou sobre eles, mas ainda nada se sabe com certeza. Por que, de todos os povos da Antiguidade, este continua exercendo fascínio? Na raiz da origem de muitos países europeus atuais, os celtas dominaram o cenário por pelo menos 500 anos até desaparecerem. Foram englobados por outras civilizações ou simplesmente tomaram outras formas mais convenientes?
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A Companhia dos Lobos Todos conhecem histórias de contos de fada como a de Chapeuzinho Vermelho. Poucos, porém, sabem as verdadeiras versões, como a que diz a garota se deita na cama com o lobo ou a em que ela come a carne e bebe o sangue da vovozinha, que já havia sido morta pela fera. Veja aqui as verdades sobre essa história não tão infantil assim.
Arqueologia na Amazônia
Com incríveis imagens e informações valiosíssimas, embarque numa viagem a alguns dos maiores sítios arqueológicos da América do Sul, bem ali na região nacional da Amazônia, visite locais que foram datados como sendo de mais ou menos nove mil anos atrás e verifique a luta entre presente, passado e futuro para a preservação desses tesouros e culturas.
• Tapajós – Os Povos da Floresta No primeiro artigo, conheceremos todos os objetos que eram tradicionalmente ligados a uma das profissões mais antigas do Egito Antigo e as dificuldades que os profissionais tinham em arruma-las. No segundo, faremos uma viagem ao rio Tapajós e descobriremos como os chamados Povos da Floresta lutam para manter seu legado vivo na região.
Seções 12
Fatos e Registros
22
Memória da Mídia
32
Nature
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Livros e Autores
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Brumas da História
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História da Arte
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Gente e Sociedade
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ENTREVISTA | Maria Regina Cândido
Antigas Tradições Mágicas dos Dias Modernos
Proteção contra Olho Gordo, benzer-se contra o mal, espetar bonecas e escrever tábuas com maldições. São apenas alguns dos hábitos adquiridos de civilizações antigas que chegaram até nós. Mas qual a sua origem e verdadeiro propósito? Conheça nesta entrevista exclusiva com Maria Regina Cândido, da UFRJ, uma das maiores especialistas sobre o assunto. Por Sérgio Pereira Couto
M
uito do que hoje sabemos sobre tradições mágicas vem de nossos antepassados distantes, da Antiguidade. Sem que muitos de nós saibamos, foram deles que herdamos crenças tão antigas quanto a dos bonecos vudus ou a das placas de cera com maldições inscritas, conforme retratado na série da HBO, Roma. Há muitos outros costumes que se enraizaram no conhecimento do homem moderno sem que ele saiba disso. Antigamente acreditava-se nos círculos acadêmicos que estudar essas crenças mágicas era uma perda de tempo e que apenas retratavam a tendência do ser humano em ser ligado a superstições. Com o passar do tempo essa tendência mudou, e hoje o assunto é tratado como uma
importante fonte de informações sobre o pensamento antigo. De olho nessa nova posição é que LEITURAS DA HISTÓRIA conversou com um dos profissionais mais graduados desse assunto, Maria Regina Cândido, professora Adjunta de História Antiga da UERJ, coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade, professora do Programa de Pós-Graduação de História – PPGH/UERJ e do Programa de Pós-Graduação de História Comparada –PPGHC/UFRJ, além de Pesquisadora Procientista da FAPERJ/UERJ. Ela nos contou detalhes interessantes que mostram que a magia antiga não é esquecida, mas sim sofre adaptações e insiste em não desaparecer. Confira a seguir.
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Torna-se apaixonante perceber as táticas dos usuários da magia que junto com o feiticeiro subvertem a ordem estabelecida para fazer mal ao inimigo” rava um mago especialista na magia do defixios e solicitava a inscrição do nome do inimigo na superfície de uma lâmina de chumbo. Em seguida, ambos, solicitante e o feiticeiro, colocavam a lâmina de chumbo denominado de defixios, na sepultura de algum morto recente, vítima de assassinato ou suicida, e aguardava o resultado: fracasso do inimigo ou a morte. Segundo Platão, esta magia era eficaz pois a vítima em geral ficava incapacitada ou morria. Considero os gregos como um dos maiores praticantes da magia, visando prejudicar o inimigo por meio dos defixiones ou katadesmos, pois não conseguimos identificar essa prática em nenhuma sociedade antes do período de Péricles em Atenas que se estende aos romanos e suas áreas de influência no Mediterrâneo, como os habitantes da Península Ibérica e nas áreas da Bretanha.
Crédito: UFRJ/Divulgação
Leituras da História (LH) – O que leva um historiador a se interessar por um tema tão polêmico quanto a magia no mundo antigo? MARIA REGINA CÂNDIDO – O tema magia está relacionado ao conceito de religião e, em meio ao interesse pelo tema e ao debate no mundo atual, percebemos o quanto essa relação está tempestuosa. Interessa-nos identificar o lugar de fala da religião, da superstição e das práticas mágicas junto à emergência do pensamento racional no universo grego. Diante desse fato nos questionamos de que forma e como os antigos vivenciaram os ritos religiosos e como reagiram quando consideraram que parte da população estava se apropriando desses mesmos ritos, dos deuses e lugares sagrados para cultos mágicos que visavam interesses ocultos e privados. No nosso caso, nos interessamos pelas críticas do poeta Eurípides e do filósofo Platão, que questionam as práticas mágicas emergentes na sociedade dos atenienses nos séculos V e IV a.C. E, por outro lado, tornase apaixonante perceber as táticas dos usuários da magia que junto com o feiticeiro subvertem a ordem estabelecida para fazer mal ao inimigo de maneira oculta, enterrando nos cemitérios pedaços de roupa, unha e cabelo do inimigo de forma a prejudicá-lo sem que ele saiba que está sendo vítima de maldição.
Maria Regina Cândido: estudando as origens dos atos mágicos na História da Humanidade
LH – Dentre as civilizações mais antigas, qual é a que mais fez uso da magia em seu dia a dia? MRC – A magia é uma prática ritualista presente em todas as sociedades do mundo antigo como a dos babilônios, a dos trácios, a dos egípcios, a dos gregos e romanos. Os povos antigos eram comunidades agrárias, fato que os coloca em contato próximo à natureza e na sua dependência. Tinham uma relação com os fenômenos da natureza muito próximo da base do custo-benefício, ou seja, faço rituais e oferendas e recebo as dádivas e desejos realizados, uma forma de amenizar o temor diante do desconhecido. As sociedades antigas praticavam a magia para conseguir melhores colheitas, para a fertilidade dos animais domésticos e das mulheres, visando o nascimento de crianças saudáveis do sexo masculino. Entretanto, chama-nos a atenção a emergência entre os gregos do V e IV século para o uso do que podemos identificar como práticas mágicas, visando prejudicar o inimigo de uma maneira específica, ou seja, o usuário da magia procu-
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ENTREVISTA | Maria Regina Cândido
O cenário religioso no Ocidente aponta para um mundo muito mais plural diante da multiplicidade de crenças, ritos e cultos que se apropriam de sistemas tradicionais e os usam de uma maneira não convencional”
LH – Sob seu ponto de vista pessoal, acredita que a crença na magia é parte do processo de desenvolvimento de uma civilização? MRC – A visão de que a magia faz parte de um processo evolutivo da humanidade integra a chamada teoria da secularização. O paradigma tem como matriz o Século das Luzes com Voltaire e Montesquieu, e se estende ao século XIX com Comte, Marx, Weber. Eles preconizam que a magia é o estado primitivo da religião e que ao chegar a modernidade, os seres humanos não teriam mais a necessidade das crenças mágico-religiosas, pois reinaria o império da ciência. E, claro que a teoria não se concretizou, pois percebemos na atualidade a emergência de vários cultos mágico-religiosos, uma acentuada necessidade de contato com forças sobrenaturais, jamais vistas na humanidade. O cenário religioso no Ocidente aponta para um mundo muito mais plural diante da multiplicidade de crenças, ritos e cultos que se apropriam de sistemas tradicionais e os usam de uma maneira não convencional. LH – O quanto das antigas crenças ainda temos na ativa nos dias de hoje? MRC – Percebemos nos cursos de extensão universitária abertos à comunidade um gradual interesse pelos cursos de religião e mitologia antiga. Existe uma retomada de interesse pelas antigas crenças religiosas da antiguidade. Tem-se uma acentuada procura de grupos exotéricos que desejam adquirir informações e conhecer as sociedades antigas, visando recuperar antigos rituais mágico-religiosos, tais como os relacionados à cultura egípcia, aos cultos celtas, gregos como o de dionisismo, o de Hecate e o de Demeter. O interesse que deixa transparecer um retorno ao contato com as divindades relacionadas com a natureza. Algumas crenças supersticiosas ainda permanecem entre nós, tais como o temor por gatos pretos na sextafeira; o poder mágico dos números três, sete, dez
e treze; não comer nada que caia no chão, ou até se benzer ao sair de casa para não temer as encruzilhadas. LH – O que conhecemos de mais importante sobre as crenças mágicas dos egípcios? MRC – Alguns pesquisadores, como Andre Bernand na obra Sorciers Grecs, afirmam que os egípcios foram herdeiros da magia dos babilônios. Uma das tradições aponta que o deus Hermes tem acentuada familiaridade com a divindade egípcia Thoth e que os princípios mágico-filosóficos dos pitagóricos sobre a transmigração da alma se aproximam dos saberes mágicos dos egípcios. Alguns filósofos pré-socráticos empreenderam viagens ao Egito, visando apreender os escritos secretos guardados nas paredes dos templos. No século IV a.C., o filósofo Demócrito de Abdera viajou até o Egito, local ao qual foi iniciado junto a conhecimentos e cultos secretos que resultaram na publicação de tratados sobre o ouro, a prata, as pedras e elementos da natureza. Há inúmeras fórmulas mágicas escritas em papiros hieráticos no Museu de Berlim do tipo apotropaico, ou seja, para proteger as crianças de doenças, contra mordidas de escorpião, proteção contra inveja, mal olhado ou contra assalto. Nos papiros mágicos podemos ler o seguinte encantamento: “Eu sou Anubis, Eu sou Osir-phre/ Osiris-Re, Eu sou Osot Soronouier, Eu sou Osisis a quem Seth destruiu. Eu (nome do solicitante) ordeno a você fazer, que me obedeça e me torne invisível”. Como podemos notar, o solicitante pede proteção contra algum mal. LH – Qual o ritual mágico mais curioso que se tem notícia? MRC – O ritual de preparação do feiticeiro que realiza a magia com o auxílio da deusa Circe, Hécate e Medeia. O feiticeiro se banhava visando a purificação do seu corpo, ficava três dias em total abstinência sexual e alimentar, colocava roupas limpas, e no terceiro dia, antes do nascer do Sol, saía em busca de determinadas ervas e raízes mágicas que só podiam ser arrancadas da terra usando os três dedos da mão direita e, durante a colheita, entoava alguns cânticos para a divindade Hécate. Em geral esta prática mágica tinha por fim atender ao solicitante que desejava reaver um amor perdido para outra pessoa. As ervas e raízes são usadas em banhos de imersão de forma
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a tornar o solicitante irresistível aos olhos do ser amado. O mais interessante é que ao final do ritual, o solicitante levava para casa uma poção mágica e/ou unguento. A poção deveria ser colocada aos poucos na bebida ou comida do ser amado, se colocasse em altas doses, causava a morte. O unguento aromático deveria ser colocado nas parte íntimas, fato que causava, depois de algum tempo, a impotência masculina. LH – As antigas placas de maldição romanas, placas de cera com inscrições vistas em seriados como Roma, da HBO, eram mesmo usadas? MRC – Sim. Usadas entre os romanos, gregos, iberos e britânico na antiguidade. Achei muito interessante o episódio veiculado pela série Roma. A prática exibida denomina-se magia dos defixiones ou katadesmoi, que consiste em selecionar uma lâmina de chumbo e inscrever o nome do inimigo ou adversário na sua superfície. O solicitante escreve a maldição que deseja para o seu inimigo: se for contra um artesão de sucesso, o solicitante pede a Hermes que retenha a sua mão, raciocínio de forma que ele não consiga administrar o seu
negócio de sucesso. Aristóteles, na obra Retórica, chama essa ação de inveja. Caso o inimigo seja alguém que vai levá-lo ao tribunal, o usuário da magia deve escrever o nome do acusador e suas testemunhas e pedir que eles não consigam chegar ao tribunal. Existe também as imprecações contra as atividades esportivas, em que o adversário coloca o nome do oponente na lâmina e pede às potências do mundo subterrâneo que seu inimigo não tenha forças para derrotá-lo. O período mais remoto dessa prática foi detectado entre os atenienses no V século a.C., e a tragédia Medeia de Eurípides seria uma forma de denúncia sobre a magia dos defixiones em Atenas. Somente com Platão, na obra As Leis, que vamos descobrir o nome dessa prática mágica, e com Teócrito, na poesia Idílio a Samatha, que conhecemos o seu procedimento. Esse tipo de magia não está ao alcance da população de poucos recursos, somente os indivíduos muito ricos tinham condições financeiras para pagar o feiticeiro e solicitar a sua realização. O alto preço se deve ao fato de ser proibido remover os túmulos de pessoas mortas. O ato consiste em crime previsto pela legislação dos
Laocoonte usava dons de profecia cedidos por Netuno. Para não denunciar o esquema do Cavalo de Troia, foi atacado por serpentes
Crédito: Laocoonte e Seus Filhos, conjunto de mármore, cerca de 200 a.C. (original). Museu do Vaticano. Roma.
Esse tipo de magia não está ao alcance da população de poucos recursos, somente os indivíduos muito ricos tinham condições financeiras para pagar o feiticeiro e solicitar a sua realização”
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ENTREVISTA | Maria Regina Cândido
atenienses e dos romanos. As lâminas de chumbo foram encontradas no cemitério do Kerameikos em Atenas, em santuários de deuses como Deméter. Perséfone, Hermes e também em poços d’água na região da Ágora, de Atenas. As sepulturas selecionadas para o ritual eram aquelas de pessoas que morreram antes do tempo: suicidas, vítimas de assassinato, crianças e mulheres que morreram de partos. LH – Como era a figura do mago nas antigas civilizações? Corresponde ao que conhecemos ou era algo mais elaborado? MRC – A documentação nos aponta que os magos e feiticeiros eram pessoas comuns que, por alguma razão, como ascendência familiar, foram iniciados nas práticas da magia. O saber mágico consistia em conhecer a noite de lua certa para entrar em contato, por meio das palavras, cânticos e entonação, com as potências sobrenaturais: deuses, mortos e forças da natureza. A documentação do V século nos aponta para as mulheres feiticeiras denominadas de pharmakides como Circe, Calipso, Medeia e Hécate. Nos discursos, como oradores áticos século IV a.C. temos Andocides, Demóstenes e outros identificando como pharmakides, a sacerdotisa Ninos, a hetaira Frinea de Thespis e Theoris de Lenmos como praticantes da magia que trazia prejuízo para a coletividade ao disponibilizar os seus saberes mágicos a quem tivesse recursos para pagá-las por um alto preço. Como podemos observar, a documentação nos aponta para as mulheres estrangeiras como as especialistas nas práticas mágicas; as razões são diversas, tais como a proximidade com o preparo de ervas como alimento, o conhecimento de chá abortivo, de unguento que servia como estímulo sexual masculino e as poções mágicas visando despertar o amor eterno no ser amado. Entretanto, havia magos denominados de pharmakeus que exerciam as práticas mágicas proibidas às mulheres como o psychagogos, cujo ritual consistia em entrar em contato com os seres divinos como o realizado pelo filósofo Empendocles de Agracas e o ritual de nekromancia, atividade de evocação dos mortos. O ritual consistia em trazer de volta a alma desses mortos à superfície a fim de atender a solicitação que podia ser uma informação ou um pedido do feiticeiro.
LH - A magia romana tem antecedentes em outras civilizações como a etrusca? MRC – Por meio de documentação textual e das escavações arqueológicas podemos afirmar que as práticas mágicas visando o benefício da coletividade, como fertilidade do solo, dos animais e das mulheres, circularam por todo o mundo antigo; era prática comum. Entretanto, o hábito mágico de remover sepulturas com o intuito de atender interesses individuais devido à incompetência em gerir negócios, inveja pelo sucesso do adversário ou a cobiça; o local mais remoto a ser identificado é somente entre os atenienses do V século a.C. A partir deles que esse hábito se difunde para os romanos. Os etruscos são especialistas na arte da adivinhação e dos presságios. LH – O quanto das antigas crenças chegou até a Idade Média? MRC – A partir do Império Romano, vários manuais foram escritos e passados adiante pelos aprendizes de feiticeiro. O imperador Otavio Augusto determinou a queima de vários manuais que ensinavam os procedimentos mágicos, mas outros sobreviveram e chegaram até a Idade Média onde foram guardados em segredo. Já as lâminas de chumbo deixaram de ser usadas no século VI depois de Cristo e só foram descobertas pelos pesquisadores durante escavações arqueológicas no cemitério do Kerameikos em Atenas no século XIX. LH – Qual o objeto mágico mais usado? MRC – Dependendo da intenção do solicitante da magia, pode ser lâmina de chumbo, vísceras de animais como salamandras, ervas e raízes diversas, vinho, azeite, cera, recipientes para queimar algo que pertença ao inimigo. O ritual era realizado sempre à noite, de preferência na lua cheia, em lugares sagrados como fendas de santuários, cemitérios, leito de rios e poços de água, locais de acesso a um mundo subterrâneo. LH – Pode nos contar algum ritual mágico completo que tenha um significado histórico? MRC – Foi somente no III século que o poeta Teócrito nos apresentou o ritual mágico para trazer de volta a paixão e a pessoa amada através da destruição da rival. Antes, tínhamos somente algumas poucas informações de Platão.
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Foram encontradas aproximadamente duas mil lâminas de chumbo, sendo que somente 600 foram catalogadas” Não podemos esquecer que as práticas mágicas assim como os rituais de mistérios, eram ações às quais se guardava o silêncio, o segredo e não pretendo quebrar essa tradição, portanto, não vou falar mais... LH – O que os historiadores podem aprender com o estudo das práticas mágicas antigas? MRC – Os pesquisadores de magia e religião aprendem, por meio dos documentos e dos vestígios arqueológicos, que o mundo é, foi e será sempre composto pela diversidade de crenças e práticas mágico-religiosas muito singulares e interessantes. É de fundamental importância estudá-las pelo viés científico, visando entender as motivações, seus ritos, cultos e comportamentos dos antigos e comparar com as práticas encontradas nos dias atuais. LH – Há algum culto antigo que tenha se metamorfoseado quando do advento do cristianismo e que esteja em uso ainda hoje? MRC – Tanto os cultos quanto os ritos, por exemplo, o uso do incenso e do lume nos templos, estão presentes nas missas do catolicismo. Entrar na residência com o pé direito e sempre se benzer com a mão direita, enfim, passaríamos um bom tempo enumerando os usos do passado na atualidade. Alguns procedimentos considerados mágicos tornaram-se saber científico na modernidade, tais como o efeito de folhas das famílias das mentas ser muito útil para os problemas menstruais, as dores de varizes serem amenizadas com fricção de folhas de hera, a cebola selvagem e o alho triturados com óleo e vinho serem eficazes para conter sangramentos e secreção vaginal, uma planta como a belladona poder ser usada como calmante, mas em porções concentradas, tornava-se abortiva, e as ervas da família do opium serem eficazes como analgésicos ideais para as mulheres em trabalho de parto. LH – Sabe-se que a prática dos bonecos vudu tem raízes mais antigas. Havia equivalentes na antiguidade?
MRC – Achei interessante esta pergunta, pois existe o preconceito de colocarem as práticas mágicas identificadas como vudu como sendo oriundas dos negros africanos. Tal fato me permite alertar aos pesquisadores que no período de Péricles já existia a magia de amaldiçoar os inimigos por meio de bonequinhos de chumbo, argila ou cera, enterrando-os em sepulturas. Percebe-se um certo constrangimento dos europeus ao tratar o tema magia, pois estas bonequinhas, assim como as lâminas de chumbo, estão mantidas na área de reserva técnica, fora das vistas dos visitantes dos museus europeus. Foram encontradas aproximadamente duas mil lâminas de chumbo, sendo que somente 600 foram catalogadas (nós temos no NEA/UERJ a imagem e inscrições de aproximadamente 230 delas em processo de tradução e catalogação). Algumas foram encontradas junto com essas figuras humanas espetadas com estiletes tipo prego, localizadas em determinadas sepulturas do cemitério de Kerameikos. Não sabemos como os atenienses as chamavam, como algumas eram de chumbo, os pesquisadores por convenção as denominam de katadesmos. Nos papiros mágicos estão descritos procedimentos na confecção das bonecas vudu, a saber: pegar chumbo ou cera e confeccionar a figura humana, cujos órgãos genitais devem ser bem demarcados, as mãos devem ser atadas às costas e os pés presos. Em seguida, devem ser selecionadas treze pequenas estacas de ferro tipo prego, recitando enquanto perfura o boneco: “Eu estou perfurando este prego no cérebro de Fulano, enterro dois nos seus ouvidos, dois nos seus olhos e um na boca... Dois em seu peito... Um em sua mão... Dois eu enterro na genitália (pênis ou vagina) e dois nos seus pés. Eu enterro estes pregos em cada uma das parte de Fulano para não se interessar por ninguém, mas somente por mim, só pense em mim”. Como podemos observar, essa é uma magia amorosa denominada de philtros katademos, pelo fato de ser acompanhada por uma lâmina de chumbo com os dizeres acima e cuidadosamente colocada na sepultura de um indíviduo morto antes do tempo.
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fatos e registros
Encontrado fragmentos das antigas leis romanas O site EurekAlert, especializado em descobertas históricas, anunciou no começo de janeiro que parte de um antigo livro romano de leis que se imaginava perdido para sempre foi descoberto por pesquisadores do departamento de História da UCL (University College London). Simon Concordan e Benet Salway fizeram a descoberta depois de juntarem cerca de 17 fragmentos encontrados de um pergaminho incompreensível. Os fragmentos foram estudados como parte de um projeto do departamento, chamado Volterra, que analisava dez anos de leis romanas em todo o seu contexto político, legal e social. Os dois descobriram que os textos pertenciam ao Codex Gregorianus, ou Código Gregoriano, uma coleção de leis de imperadores que iam de Adriano (117-138) a Diocleciano (284-305), publicado por volta do ano 300. Pouco se sabe sobre a forma original do Codex, já que não há cópias intactas existentes. “O fragmento traz o texto em latim, numa caligrafia limpa e clara, talvez datada de antes do ano 400”, explica o dr. Salway. “Usa algumas abreviações de textos legais e a presença em ambos os lados dos fragmentos indica que pertencem a uma página ou páginas de um antigo livro de leis”.
Sarcófago Pode Fornecer Pistas Para o declínio dos Maias O Yahoo! News, do México, anunciou que um grupo de figuras pré-hispânicas encontradas num sarcófago maia datado de entre os anos 840 e 900 pode fornecer pistas sobre os reais motivos do declínio daquela civilização. A peça foi descoberta numa tumba em novembro de 2009 por especialistas do Instituto Nacional de Arqueologia e História, na cidade maia de Tonina, em Chiapas, na fronteira com a Guatemala. O sarcófago de pedra e o que o acompanhava datam do período acima citado, quando o declínio dos maias começou oficialmente. Os restos encontrados dentro pertenciam a uma adolescente de alto status. A peça é descrita como um tipo “único de antiguidade mexicana” e foi alterada por índios Tzotziles
entre 1490 e 1495, um período em que os maias já estavam em colapso. Os pesquisadores acreditam que podem determinar se o que causou a queda foram grupos influenciados pelas terras altas andinas ou se foram moradores da América Central, vindos da fronteira do que hoje seria o Novo México. A Civilização Maia, que durou de 2000 a.C. a 1546 d.C., meio século após a chegada dos conquistadores espanhóis, desenvolveu calendários, leis estatais e organizações políticas avançadas. Muitas teorias explicaram esse mesmo declínio como originado de guerras, doenças e revoltas de aldeões. Alguns especialistas acreditam no esgotamento de recursos naturais que terminaram por gerar fome e aridez nas terras cultivadas.
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Seriam da Vinci e a Mona Lisa a Mesma Pessoa? Que a vida de Leonardo da Vinci sempre esteve envolta em mistério, isso não é mais novidade. Mas desde O Código Da Vinci que muitos pesquisadores resolveram retomar antigas teorias e reexaminá-las. Uma delas seria a de que a famosa pintura do Museu do Louvre, a Mona Lisa, é na verdade um autorretrato do artista. Um grupo de cientistas italianos acredita nessa teoria a ponto de ter requisitado uma exumação dos restos de da Vinci a fim de obter o DNA por meio do teste de carbono. Se sua tumba, próxima ao Palácio de Amboise, na França, contiver o crânio intacto, eles creem que podem recriar a face de Leonardo e então compará-la com a pintura, segundo epxlicações dadas pelos
técnicos à Associated Press. “Não sabemos o que vamos encontrar se o túmulo for aberto, podemos dar de cara apenas com grãos de pó”, explica Giorgio Gruppipno, antropologista que participa do projeto. “Mas os restos estão bem preservados e são um arquivo biológico que registra eventos de uma pessoa em vida e, em alguns casos, na morte”. O líder do grupo, Silvano Vinceti, declarou que planeja acelerar os trâmites com as autoridades encarregadas do Castelo de Amboise. Há, porém, quem ache que os esforços italianos possam ser prematuros. Na França, a exumação de um corpo exige todo um procedimento legal que é muito demorado e moroso.
Avenida de Esfinges Será Restaurada Escavações realizadas em parte de um antigo caminho composto por esfinges, que uma vez ligou os templos de Luxor e Karnak, deverão terminar até março deste ano, anunciou o Supremo Conselho de Antiguidades do Egito para a agência de notícias Reuters. Os arqueólogos descobriram até agora 65 das 1350 imagens que ligaram o caminho entre os templos durante o período do faraó Amenófis III, que reinou cerca de 3.350 anos atrás. O projeto para a reconstituição custará cerca de sessenta milhões de libras egípcias (cerca de R$ 174.498.752,33 até o fechamento desta edição). Metade desta quantia será usada para compensar cerca de duas mil famílias que terão de ser realocadas para além do local onde está a avenida, segundo o arqueólogochefe egípcio, Zahi Hawass. O Supremo Conselho trabalha no momento em um terço do total de 2,7 quilômetros que ligou as esfinges, criaturas mitológicas com corpo de leão e cabeça humana. O resto da avenida enterrada deverá ver a luz do dia nos próximos anos. “Na área que estamos restaurando encontramos muitas esfinges”, diz Hawass. “Escavaremos o resto até chegarmos a Karnak, o que pode levar anos”. Lar de muitas das mais veneráveis antiguidades egípcias, Luxor e Karnak atraem milhares de turistas num país onde o turismo é uma fonte vital de recursos.
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ComporTAmenTo | fábulas
Companhia
dos Lobos: MORAL E SEXUALIDADE NOS CONTOS DA CAROCHINHA A História mostra que a evolução das condutas dos próprios personagens infantis não mudou muito com o tempo. No artigo a seguir veremos as comparações feitas no conto A Companhia dos Lobos, de Angela Carter, por meio de uma análise comparativa da fábula infantil Chapeuzinho Vermelho, nas versões de Charles Perrault e a dos irmãos Grimm.
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H
oje em dia, quando se fala em contos de fadas, logo nos vêm à mente a lembrança de obras universalmente conhecidas como A Bela Adormecida, O Pequeno Polegar, Barba-Azul, Chapeuzinho Vermelho e outras tantas que nos foram contadas na infância por nossos pais, babás ou professores, com a intenção primordial de mediar nossos primeiros contatos com a literatura e assegurar momentos de ludicidade e entretenimento. Contudo, em suas origens, que nos remetem ao final do século XVII, os contos de fadas, ao serem compilados pela primeira vez em livro pelo francês Charles Perrault,
por André Bozzetto Junior e Lílian rodrigues da Cruz apresentavam uma proposta considerada mais “grandiosa”, uma vez que além de entreter as crianças, propunham-se a transmitir lições de moral, importantes para a formação pessoal. Segundo Tatar (2004), citada por Hillesheim & Guareschi (2006), os contos de Perrault pretendem “conter uma moralidade louvável e instrutiva, mostrando que a virtude é sempre recompensada e o vício é sempre punido, estabelecendo uma relação direta entre a obediência e a possibilidade de uma boa vida”, afirmação que consta no prefácio de Contos da Mamãe Gansa, livro publicado pelo autor em 1697.
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ComporTAmenTo | fábulas
Chapeuzinho vermelho e seu antagonista na visão do pintor, escultor e ilustrador francês Gustave doré (1832-1883) 16 | leituras da história
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Crédito: Ilustração de Gustave Doré, feita por volta de 1897.
Oriunda da tradição oral, a versão de Perrault do conto talvez seja a mais difundida e conhecida no mundo. Embora originalmente não fosse dirigida ao público infantil, possui um flagrante teor erótico, evidenciado por algumas passagens como o momento em que a menina “tira a roupa” e “deita-se” com o lobo, cedendo ao assédio sedutor deste. Por fim, ela acaba devorada, como por castigo por ter se deixado seduzir. Assim, o conto de Perrault evidencia o cuidado que as “mocinhas” devem ter para não se deixarem levar pelos galanteios de lobos “gentis e prestimosos”, sob a pena de acabarem “virando jantar”. Coelho reforça essa ideia argumentando que neste conto “a intenção de alertar as meninas contra a sedução amorosa está bem clara” e que elas devem, portanto, “ser rigorosamente obedientes aos conselhos dos mais velhos”. Darnton (1986) afirma que a tradição oral, de onde Perrault retirou o material para sua compilação literária, também se valia dos contos para ilustrar argumentos morais, que circulavam entre qualquer faixa etária. Porém, a carga de violência e erotismo existente nesses contos era muito maior do que aquela evidenciada nas versões de Perrault. No caso da história que inspirou Chapeuzinho Vermelho, a menina (que ainda não era descrita como portadora do capuz rubro) era induzida pelo lobo a comer fatias de carne e a beber o sangue da avó antes de se despir em uma espécie de ritual erótico e, por fim, ser devorada por seu algoz. Para o autor, o conteúdo extremamente explícito dos contos difundidos por meio da oralidade era reflexo do próprio meio de vida dos seus principais propagadores, que eram os camponeses pobres, sobretudo os franceses. O excerto transcrito a seguir ilustra de maneira mais eficiente essa afirmação: “Famílias inteiras se apinhavam em uma ou duas camas e se cercavam de animais domésticos, para se manterem aquecidos. Assim, as crianças se tornavam observadoras participantes das atividades sexuais de seus pais. Ninguém pensava nelas como criaturas inocentes, nem na própria infância
Crédito: Estampa encontrada em casa de Penhores, na França.
A Sexualidade em Chapeuzinho Vermelho
É pela pena de Charles Perrault (1628-1703) que se conhece a versão tradicional de Chapeuzinho Vermelho
como uma fase diferente da vida, claramente distinta da adolescência, da juventude e da fase adulta por estilos especiais de vestir e de se comportar”(Darnton, 1986). Apesar de menos explícita em termos de violência, Hillesheim & Guareschi (2006) argumentam que a versão de Perrault continua expondo mais abertamente a questão da sexualidade porque foi escrita num momento em que esse tipo de assunto era abordado de forma meio indiscriminada entre adultos e crianças, uma vez que ambas as faixas etárias conviviam quase que indistintamente. Além disso, na visão das autoras, a punição irrecorrível da menina estaria também relacionada “ao seu pecado”, pois a mentalidade da época ainda estava muito apegada aos preceitos religiosos. Na Alemanha, mais de um século depois, também tendo o folclore europeu como referência, surgiu a versão dos irmãos Grimm de Chapeuzinho Vermelho, talvez mais conhecida que a de Perrault. De acordo com Hillesheim & Guareschi (2006), na versão dos irmãos germânicos, a história acaba
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comportamento | Fábulas
Crédito: Elisabeth Maria Anna Jerichau-Baumann, Irmãos Grimm, 1855.
As referências sexuais explícitas são omitidas em virtude da visão vigente no período, em que os assuntos de adultos e crianças não deviam mais se misturar, e tais elementos “deixam de ser considerados adequados ao universo infantil”
Com Jacob à direita e Wilhelm à esquerda, os Grimm contribuíram muito para o mito de Chapeuzinho Vermelho
sendo suavizada, com a omissão dos detalhes eróticos e com o acréscimo de um desfecho bem menos obscuro, onde a menina e sua avó acabam salvas por um caçador que dá cabo do lobo malvado. Neste caso, a lição de moral é igualmente mais amena, sendo traduzível como “nunca se desvie do caminho e nunca entre na mata quando sua mãe proibir”. Além disso, as referências sexuais explícitas são omitidas em virtude da visão vigente no período, em que os assuntos de adultos e crianças não deviam mais se misturar, e tais elementos “deixam de ser considerados adequados ao universo infantil”. Da mesma forma, o final redentor – em que a menina e a avó são salvas – está igualmente relacionado com a mentalidade da época, onde a visão iluminista, incutida da noção de desapego ao domínio do pensamento religioso, prega que a chapeuzinho vermelho pode “aprender a lição” e ter a sua “recuperação”, desde que consiga “controlar seus desejos sexuais anormais e, assim, viver uma vida sadia e feliz”. Na contemporaneidade, existem inúmeras versões de Chapeuzinho Vermelho, em diferentes idiomas, fazendo uso de diversas mídias e destinadas a diferentes públicos. Mantendo o foco da análise na relação com a moral e a sexualidade, uma versão que parece merecedora de especial atenção, principalmente em virtude de seu caráter contraditório e contestador, é aquela que consta no conto A Companhia dos Lobos, que integra o livro O Quarto do BarbaAzul (The Bloody Chamber and Other Stories), publicado originalmente em 1979, de autoria da escritora inglesa Angela Carter, e que em 1984 originou o filme com o mesmo nome, dirigido por Neil Jordan e com roteiro da própria Angela Carter.
Sexualidade e Insinuações nas Telas de Cinema O conto da autora inglesa, claramente destinado ao público adulto, fundamenta-se principalmente na versão de Perrault, mas agrega uma série de outros elementos ao seu conteúdo. Um dos aspectos mais inovadores é a abordagem do personagem “lobo mau” como sendo um lobisomem, que, sob a influência da lua cheia, tem o dom de metamorfosear-se tanto em um predador quadrúpede, carnívoro e voraz, como em um belo rapaz, misterioso e sedutor. Além disso, a história principal que todos conhecemos – da menina que vai visitar a avó e é assediada pelo lobo – é entremeada por outras histórias paralelas, onde diferentes personagens se veem às voltas com os maléficos lobisomens. De forma quase explícita, a narrativa de Carter faz permanentes referências à sexualidade, o que pode ser ilustrado pela própria descrição das personagens, como no momento em que ela se refere ao lobisomem dizendo que “antes de se tornar lobo, o licantropo se despe completamente” e que, portanto, “se virmos um homem nu entre os pinheiros, corramos como se o diabo estivesse atrás de nós” (Carter, 2000). O mesmo se verifica na descrição da própria chapeuzinho vermelho, conforme ilustra o excerto a seguir: “Os seios começam a despontar; o cabelo parece linho, tão louro que mal forma sobra na testa; as faces são de um escarlate e branco emblemáticos, e já lhe começaram as regras, esse relógio dentro dela que dará sinal uma vez por mês. Ela está de pé e move-se dentro do pentáculo invisível da sua própria virgindade. É um ovo intacto; um vaso selado; tem dentro o espaço mágico cuja entrada está fechada por uma válvula de membrana”.
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Chapeuzinho Vermelho Versão Nacional De todas as músicas já compostas sobre a personagem, foi mesmo a de Braguinha que ganhou os trechos mais lembrados por pelo menos três gerações e é a que mais tem passagens dúbias. Vejam a letra:
Porém, ao contrário das três versões abordadas anteriormente – do folclore oral camponês, de Perrault e dos irmãos Grimm – que, em diferentes teores e graus de profundidade, traziam uma lição de moral, o que Carter faz em A Companhia dos Lobos é justamente questionar a moralidade. O questionamento é expresso de forma bastante clara através das atitudes da menina, que mesmo estando ciente das intenções do lobisomem, acaba entrando no “jogo” proposto por ele. Um dos momentos em que isso fica evidente é exatamente quando o lobisomem, em sua forma humana, propõe para a menina a aposta de ver quem chega antes até a casa da avó. Caso o adversário vencesse, a menina teria de lhe dar um beijo. Então, ela teve o esmero de se demorar pelo caminho “para ter certeza de que o lindo rapaz ganharia a aposta” (Carter, 2000, p. 207). Ao chegar à casa da avó, a menina logo descobre que a anciã fora devorada pelo lobisomem, mas mesmo assim se despe e deita-se na cama com ele. E aqui surge outra inovação da versão de Carter: em vez de ser devorada pela monstruosa criatura, a menina “acasala” com ele, e o conto termina com ela
dormindo “em paz e docemente na cama da vovozinha, entre as patas do lobo afetuoso”. Na versão cinematográfica de A Companhia dos Lobos, o roteiro elaborado pela escritora evidencia essa visão de forma extrema. O filme nos mostra a menina sendo constantemente advertida pelos seus pais e pela avó para que “não saia do caminho” e tenha cuidado com os lobos, “principalmente aqueles que não são peludos por fora, mas sim por dentro”. Apesar de todas as recomendações, ela se entrega voluntariamente aos assédios do lobisomem. O final desta versão elaborada para as telas é ainda mais emblemático, em que após manter relações sexuais com a monstruosa criatura, a própria menina se transforma em lobisomem e foge para a floresta, em companhia de outros quadrúpedes. Assim, a leitura que podemos fazer de ambas as versões de A Companhia dos Lobos é que, para Carter, no que tange à sexualidade, não há inocência. Apesar de todos os avisos, apesar das infrutíferas tentativas de controle por parte dos familiares, a menina cedeu aos seus impulsos carnais e se deixou levar
Crédito: Ilustração do artista inglês Walter Crane (1845 –1915)
Pela estrada afora, eu vou bem sozinha Levar esses doces para a vovozinha Ela mora longe, o caminho é deserto E o lobo mau passeia aqui por perto Mas à tardinha, ao sol poente Junto à mamãezinha dormirei contente [Lobo Mau] Eu sou o lobo mau Lobo mau, lobo mau Eu pego as criancinhas Pra fazer mingau! Hoje estou contente Vai haver festança Tenho um bom petisco Para encher a minha pança
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A avó simbolizava a pregação de uma pretensa moralidade, a imposição de limites, a obrigatoriedade de se seguir determinadas regras, e por isso foi morta
pela curiosidade e pelas tentações do sexo. E assim o fez tendo plena consciência das intenções daquele que “a seduziu”. A cena do filme em que a menina se transforma em outro lobisomem, parece simbolizar o que é visto pela autora como parte de um processo esperado: após conhecer o sexo, o ser humano estará para sempre “transformado”. Após ser “atacada” por um predador, a “vítima” também se torna um predador, e, por sua vez, passa a estar apta para atacar outras “vítimas”. O ocorrido não foi considerado um ato de maldade. A única a ser literalmente devorada foi a vovozinha, pois ela se opunha à ordem vista como natural. A avó simbolizava a pregação de uma pretensa moralidade, a imposição de limites, a obrigatoriedade de se seguir determinadas regras, e por isso foi morta – para que o lobisomem e a menina tivessem liberdade para fazer o que desejassem.
Considerações Finais Realizando uma breve análise do contexto histórico em que as duas versões de A Companhia dos Lobos foram elaboradas, entre o final da década de 1970 e início da de 1980, verificamos que se tratava do auge do movimento conhecido como pós-feminismo na Inglaterra, cujo símbolo maior provavelmente seja a ascensão de Margaret Tatcher ao cargo de Primeira Ministra inglesa, considerado inédito e revolucionário. Angela Carter foi claramente inf luenciada por este movimento, tanto que ao longo de sua carreira de escritora publicou diversos artigos, crônicas
e mesmo romances exaltando a condição feminina. Escreveu até novas versões de caráter feminista para obras de Charles Baudelaire e até do Marquês da Sade. No caso específico de O Quarto do Barba-Azul, livro onde consta o conto A Companhia dos Lobos, a autora elabora novas versões para vários contos de fadas de circulação mundial, como O Gato de Botas, Branca de Neve, A Bela e a Fera, entre outros, onde as personagens principais são femininas e o desfecho dos contos sempre se dá no sentido de evidenciar aspectos relevantes relacionados à condição de mulher, como o desejo de liberdade, o não conformismo perante a tentativa de imposição masculina e o confronto direto visando a defesa de suas ideias. É neste sentido que podemos compreender a postura da chapeuzinho vermelho de A Companhia dos Lobos. Ela dispunha das informações que falavam acerca de si mesma e também tinha sido devidamente advertida sobre o perigo dos lobisomens. Mesmo assim, a personagem principal refuta a condição de inocente, considerandose apta a tomar decisões em conformidade com seus desejos, julgando-se mulher e, principalmente, abnegando as normas e tabus impostos pelos mais velhos. Tendo em vista estes apontamentos, parece pertinente concluir com uma ref lexão acerca da temática da infância, da moral e da sexualidade que permeia as diferentes versões de Chapeuzinho Vermelho e as concepções vigentes nos dias atuais em relação a essa temática. O século XXI
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A Origem Oral de Chapeuzinho Vermelho ser originárias de contos orientais muito semelhantes. Essas primeiras variações da narrativa diferem da atual versão de várias maneiras. O antagonista nem sempre é um lobo, mas por vezes um ogro ou um bzou ou lobisomem, o que torna a história uma espécie de “prova”, usada em “julgamentos de lobisomens”, similares aos mais famosos “julgamentos de bruxas”. O lobo geralmente deixava o sangue e a carne para a garota comer, que então inadvertidamente canibalizava sua própria avó. Depois, o lobo também pedia que ela tirasse sua roupa e a jogasse no fogo. Essa versão foi apresentada ao público moderno em várias histórias em quadrinhos da série Vertigo, da DC Comics, como as de Neil
apresenta uma realidade singular, onde as crianças parecem se adaptar de forma cada vez mais rápida e até mesmo um tanto autônoma em relação ao mundo que as cerca. Se levarmos em conta que elas têm acesso a uma enxurrada de informações, oriundas das mais diversas fontes (Internet, televisão, revistas, entre outros), que a estrutura capitalista parece investir cada vez mais na visão da criança enquanto consumidora, e que a mídia, de uma maneira geral, veicula conteúdos de teor sexual com ênfase sem paralelo, não nos parece absurda a ideia de que o conto sobre a meiga menina de capuz vermelho e o lobo malicioso esteja esperando para ser escrito novamente.
Gaiman, em Sandman. Há ainda variações mais pesadas, como a que descreve que a garota é comida na cama depois de nela ser jogada, e a história termina aí. Em outras, ela consegue reconhecer o disfarce da fera e tenta escapar, afirmando para sua “avozinha” que ela precisa ir ao banheiro e que não quer fazê-lo na cama. O lobo a deixa ir relutante, mas amarra um pedaço de barbante no pé dela para que não escape. Ela, claro, consegue romper a amarra e foge. Curiosamente nessas versões, a garota não tem ajuda de nenhuma figura masculina, mas termina por se salvar graças à sua astúcia. Em algumas, ainda, não existe nem o famoso chapeuzinho vermelho em suas vestes.
n André Bozzetto Júnior
Para saber
Embora não haja formas escritas da história da personagem no período anterior ao da versão de Charles Perrault, as origens de Chapeuzinho Vermelho podem ser rastreadas de forma oral por vários países europeus e em vários volumes anteriores ao século XVII, dos quais alguns ainda podem ser encontrados em várias bibliotecas daquele continente, muitos diferentes tanto em forma quanto em conteúdo. Diz-se que os camponeses franceses do século XIV, bem como os italianos, onde também existe uma boa quantidade de versões sobreviventes, incluem La finta nonna (A Vovó Falsa). A história também é chamada de “A História da Vovó”, com raízes que os pesquisadores desconfiam
Carter, Ângela. O Quarto do Barba Azul. Rocco, 2000. Coelho, Nelly Novaes. Panorama Histórico da Literatura Infanto-Juvenil. Ática, 1991.
é professor de História, graduado em Estudos Sociais – História Mestrando em Letras pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e Bolsista CAPES
Darnton, Robert. O Grande Massacre de Gatos. Editora Graal, 1996. Hilleshein, Betina; Guareschi, Neuza M. F. Contos de Fada e Infância. Parte de Educação & Realidade, v. 31, nº 1.1996. Jordan, Neil. A Companhia dos Lobos. Inglaterra: Flashstar. 1984.
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memória da mídia | TV
Crédito: Arquivo divulgação site Telehistoria.com.br
Programas de Auditório: Quando o Público é o Show
Bizarrices, shows de calouros e figuras de circo. O programa de auditório começou a atingir um novo patamar a partir do momento em que deixou de ser apenas um apanhado de entrevistas e começou a fazer com que o público se sentisse dentro da produção. (Parte 2 de 2) Por Amara Rocha
E
Alguns exemplos de diretores que investiram no programa de auditório: Walter Clarck,quando de sua aparição na revista Veja, de março de 1971; e Sílvio Santos, em 1969, que teve mais audiência do que a transmissão da chegada à Lua
m 1956, estreou na televisão Abelardo Barbosa, o Chacrinha, que, desde os anos 1940, trabalhava no rádio. De 1956 a 1960, apresentou o programa infantil Rancho Alegre, mas só adquiriu notoriedade em 1960, na TV Rio, com a Discoteca do Chacrinha, lançada em auditório. Esse programa seguia a fórmula do rádio: a figura central de um animador que incentiva a participação do público e a apresentação de calouros e artistas consagrados. No entanto, Chacrinha imprimia uma personalidade bastante singular ao aparecer em cena com os figurinos mais inusitados (roupas de palhaço, vestidos de noiva, etc) e ao tratar o público, inclusive os calouros, com uma mistura de intimidade e agressividade, tornando célebre os bordões: “Quem quer bacalhau?”, “Terezinha-
aaa”. E ainda dar buzinada e entregar abacaxis para os calouros que fracassavam, para delírio do público. Apesar da aparência “caótica” próxima a um circo, Chacrinha foi o responsável pela promoção de vários talentos nacionais e abriu espaço na televisão para linguagens inovadoras como o Tropicalismo. Outro ícone dos programas de auditório também começou sob a influência do rádio. Sílvio Santos iniciou na TV em 1962 com Vamos brincar de forca? Ele frequentava programas de auditório e admirava, particularmente, o Trem da Alegria, citado anteriormente, apresentado pelo Trio de Osso, formado por Héber de Bôscoli, Yara Salles e Lamartine Babo. Assim, a partir dessas influências, assume sua condição de animador. Em depoimento a Maria Celeste Mira, descrito no livro Circo Eletrônico: Silvio Santos e o SBT,
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ele diz que conseguiu assimilar os estilos de César de Alencar (outro locutor de programas de auditório de rádio muito importante) e de Héber de Bôscoli, não imitando um ou outro, mas por ter visto como eles se comunicavam com o público. Segundo Silvio, o Héber dizia: “Quem é que está com um sapato da Cedofeita no pé?” Aí todo mundo gritava: “Eu, eu, eu!” – “Quem é que trouxe talãozinho?” – “Eu, eu, eu!”. Então, aquele bate-papo que o Héber de Bôscoli tinha com o auditório foi praticamente a maneira que Silvio incorporou na televisão. Na mesma TV Rio, teve início, em 1957, o programa Noite de Gala, que apresentava quadros de música, humor e entrevistas. Sua realização teve a participação ativa do comerciante de eletrodoméstico Abraão Medina. Segundo Walter Clark, em seu livro Campeão de Audiência, em negociação com a Philips e a Philco, conseguiu que fizessem um investimento acima do convencional para a produção do programa, esperando que aumentasse a venda de aparelhos de televisão. Nesse show de variedades, destacavase Flávio Cavalcanti, que se notabilizou como apresentador e entrevistador de personalidades, mantendo um tom inusitado e polêmico. Em Noite de Gala, Flávio Cavalcanti chegou a entrevistar o deputado Tenório Cavalcanti, controvertido líder político de Caxias, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, que ficou conhecido como o Homem da Capa Preta. A entrevista ocorreu em 1960, época em que Tenório, que também era advogado, defendia um cliente acusado de assassinato num episódio que ficou conhecido como Crime do Sacopã. No meio da entrevista, o apresentador propôs doar dinheiro para obras de caridade, caso Tenório deixasse raspar sua barba em frente às câmeras. A capa preta, a barba e a metralhadora, que apelidara de Lurdinha, eram as marcas registradas de Tenório. Depois de muita negociação, o deputado aceitou a proposta, incluindo a imposição de que o apresentador pulasse na piscina como estava vestido. A audiência da TV Tupi chegou a 94%. As emissoras Tupi e Continental enviaram equipes de reportagem para cobrir o que se tornara um grande evento. Nesse mesmo programa, em 1961, foi entrevistado o presidente norte-americano John F. Kennedy, diretamente da Casa Branca, em Washington D.C.. A história dos programas de auditório é
Sensação de exclusão diminui nos programas de auditório em pesquisa divulgada pela Agência uSP (universidade de São Paulo) de Notíciais em abril de 2004, a jornalista Carmen Lígia Torres analisou nove programas de auditório. Passando por cima do preconceito social que existe nessa área, conseguiu concluir que “As pessoas assistem porque se identificam”, quando se referiu aos programas. e conclui: “quando essas pessoas se veem retratadas na TV, sentem-se pertencentes à sociedade, menos excluídas”. Para a realização de tal pesquisa a jornalista consultou livros e jornais e realizou quatro sessões de discussão com grupos de 11 mulheres de
itapecerica da Serra, em São Paulo, além de duas entrevistas individuais em profundidade com duas delas. os programas que participaram da pesquisa, patrocinada pela escola de Comunicação e Artes da uSP (eCA), foram Programa do ratinho, com Carlos massa (SbT); Superpop, com Luciana gimenez (rede TV!); é Show!, com Adriane galisteu (record); hebe, com hebe Camargo (SbT); Programa raul gil, com raul gil (record); Sabadaço, com gilberto barros (bandeirantes); domingo Legal, com gugu Liberato (SbT); domingão do Faustão, com Fausto Silva (globo); e domingo da gente,
vasta, pois há mais de 50 anos eles têm tido presença marcante na televisão. Aqui foram citados apenas alguns apresentadores e situações que ficaram na memória de gerações. Estes programas, como todo produto da mídia, estão impregnados de historicidade, de questões relacionadas a comportamento, política, enfim, a tudo que afeta diretamente a sociedade. Para alguns teóricos, trata-se de um produto menos importante, simples resultado do que classificam como indústria cultural. Para outros, como Norbert Elias, é também nos momentos de lazer que os grupos humanos constroem sua identidade. E nessa perspectiva, torna-se bastante interessante olhar para a “aura” de participação e intimidade que a mídia construiu com o seu público. A grande sedução que a imagem e o desejo de participação têm particularmente junto ao público brasileiro é fundamental para se pensar o mundo contemporâneo e as opções individuais e coletivas que lhe dão sentidos. Para o bem, e para o mal...
com Netinho de Paula (record). esses foram apontados como os mais assistidos nas emissoras abertas, de acordo com números divulgados pelo ibope (instituto brasileiro de opinião Pública e estatística) durante o segundo semestre de 2002. dentre as conclusões que a pesquisadora chegou, estão itens que o público considera essencial para um bom programa, como variedade de quadros e cenas, presença de auditório e apresentador, além de estética, que inclui palcos, sofá, ambiente, linguagem pessoais e, frequentemente, um espaço para assistência de carências.
AmARA ROCHA é doutora
em história Social da uFrJ, historiadora e pesquisadora associada do programa Avançado de Cultura Contemporânea da uFrJ. Autora de diversos artigos sobre teoria da modernidade e do consumo, história urbana e história da mídia e do livro Nas ondas da modernização: o rádio e a Televisão no brasil de 1950 a 1970
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Bruxaria Medieval
Do Paganismo à Heresia a propagação na crença de conhecimentos ocultos levou ao fortalecimento da figura das bruxas algo que era, ao mesmo tempo, respeitado e temido como uma herança de tempos antigos. mesmo assim sua associação com o profano e o proibido levou a Igreja Católica a tomar medidas para combater mais esse “mal na terra”. Por James Andrade
ietzsche (1844-1900), em seu O Livro do Filósofo, refere-se ao período da seguinte maneira: “A história e as ciências humanas foram necessárias contra a Idade Média: o saber contra a crença...” . O estudo do período medieval se inicia, deste modo, imerso em errôneas pressuposições. Um engano grosseiro que, aos poucos, se desfaz. Eventos importantes ocorreram. Um deles foi a solidificação do cristianismo, que criou Instituições e Dogmas, permitindo que nos refiramos a esta institucionalização como Igreja. Olhar para a Idade Média como algo de importância própria é o mínimo para se desfazer este mal-entendido; mas falemos de bruxaria. E de bruxas.
Como os registros históricos, principalmente aqueles vinculados à Inquisição e ao Santo Ofício, nos dão conta de que em cada quatro casos envolvendo bruxaria três eram com mulheres – outras fontes indicam números ainda mais insignificantes de homens – focaremos aqui o aspecto feminino do mito. As novas cores com que foram pintadas neste período, de certa maneira, tangencia como o papel da mulher também se modificou. Começaremos por uma visão panorâmica do assunto.
Origem do Termo O termo “bruxa” se perde no tempo, remontando facilmente a épocas pré-romanas. Em inglês, a palavra witch pode significar tanto bruxa, quanto feiticeira; provavelmente tem sua origem nos termos
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los CaPriChos, GruPo De 80 ilusTraÇÕes Do PinTor esPanhol FranCisCo GoYa.
Duas bruxas voam juntas numa mesma vassoura (que muitos consideram uma paródia aos Cavaleiros Templários) durante um de seus sabbaths
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CAPA | Feitiçaria
dos com o sobrenatural, consequentemente, anglo-saxões “wissen”, (conhecimento) e “wicom a Magia, sendo ela mesma, já habitada kken” (adivinhação). Vinculando, portanto, as por outros tantos mitos e crendices. Aqui tebruxas a atividades adivinhatórias e àquelas mos outro elemento que, invadindo o plano relacionadas com o acúmulo de conhecimento, real, irá marcar profundamente a figura das como o trato com as ervas e raízes. bruxas: os Mitos. Neste contexto, podemos traçar o perfil das Na Roma antiga existiam as Strix (origem da bruxas, de forma geral, como personalidades palavra italiana strega = bruxa); eram mulhefemininas que estavam envolvidas em práticas res que, em certas noites, transformavam-se em “medicinais” (chás, beberagens e uma infinicorujas e procuravam criandade de outros artifícios para ças para sugar-lhes o sangue. curar os enfermos) e vaticínios Monstros similares eram as (profecias). Coisas que nas “stringlas” gregas. As germâsociedades antigas, de certo Uma lacuna nicas “streghe” podem estar modo também nas atuais, em quase sempre neste mesmo caldeirão. nada se diferenciavam entre A Grécia, em especial, é si, sendo ambas entendidas preenchida particularmente rica em micomo Magia. pelas mulheres tos de monstros femininos A Magia sempre foi entenque, desde que facilmente se associam dida como uma interferência a bruxas. Em sua vasta mina ordem natural das coisas, sempre, são tologia encontramos Atena, uma ingerência, obtida por mais identificadas deusa da Sabedoria, cuja ave meio de palavras, gestos, com o sobrenatural preferida é a coruja e que leva objetos, oferendas, estando ninfas para um revigorante sempre relacionada com o sovoo noturno sob o luar. A vinbrenatural. São das concepgativa Lâmia, que, tendo perções mágicas do mundo que dido seus filhos, vinga-se sugando o sangue de brotam as religiões. Aqueles que com ela se crianças. Medeia e seus muitos feitiços, capazes envolviam, por aprendizado ou por dom inaaté de devolver a juventude ao já velho Esão, to, sempre gozaram de um certo status social. pai de Jasão. Circe, que transforma a tripulação Uma lacuna quase sempre preenchida pelas de Odisseu (Ulisses) em porcos. As tessalianas, mulheres que, desde sempre, são mais identique podiam assumir a forma de qualquer anificadas com o sobrenatural. mal. As Sibilas, e muitas outras. O exemplo que nos chega do que seriam esAssim colocados, lado a lado, pessoas reais e tas personalidades femininas são as parteiras entes míticos, pode parecer estranho, porém é e as benzedeiras, ainda tão presentes na vida necessário um esforço de nossa parte em tentar de muitos brasileiros que vivem longe dos granentender que, em um mundo complexo, porém des centros e que, recuando-se poucos anos (40 pouco compreendido como o antigo, bem como no máximo), podemos identificá-las mesmo o medieval, todos estes elementos inevitaveldentro de nossas famílias (minhas duas avós, mente se promiscuiriam, gerando um amáltanto materna quanto paterna, eram parteiras gama onde todas as partes envolvidas seriam e benzedeiras). chamadas de feiticeiras, magas, catimbozeiEstas mulheres estavam portando plenamenras, parteiras, curandeiras, benzedeiras e muite integradas ao grupo social. Não que estas tos outros nomes que, à época, tinham signifirelações fossem sempre pacíficas, muito pelo cados similares: bruxas, deixando claro que a contrário; em épocas em que a mortalidade infronteira entre o imaginário e o real era muito fantil era assustadora, a figura da parteira tenmais tênue do que podemos supor. dia a oscilar entre salvadora e carrasca. Convém Vemos assim, que em praticamente todas as nos lembrarmos também que neste mesmo exsociedades pré-medievais a figura feminina, trato social ainda se inseriam os desviados, os com maior ou menor intensidade devido à sua doidos, os desajustados e tantos outros, todos capacidade de gerar vida e sua condição de vistos, de uma maneira ou de outra, envolvi-
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A Bruxa Primordial A bruxa primeva é, portanto, o resultado mágico da fusão da mulher sábia, aquela que auxiliava no parto e cuidava das enfermidades, dos vitimados pelo sobrenatural, os desajustes mentais e sociais e dos muitos monstros sugadores de sangue que povoavam o imaginário popular, estando inequivocamente ligada a elementos naturais, a um saber ligado à terra, aos seus ciclos e aos seus muitos deuses; em especial os da fertilidade, em suma, Pagã. Um ser que vivia na tênue fronteira entre o real e o imaginário. Uma figura complexa. E ambígua. Essa ambiguidade, tão presente (a mesma erva que cura pode também matar) foi uma constante; e neste ponto não se restringe apenas à questão de gênero nem de época, sendo o médico de hoje tão vítima desta desconfiança quanto a bruxa de outrora. Esta desconfiança, disfarçada, mas nunca superada, contribuiu para a existência de um convívio no meio social, no mínimo, delicado. Situação facilmente estendida para todas as mulheres que, com seus humores e sangramentos, sempre esteve envolta pelo manto do sobrenatural. A distinção social dada à bruxa e a seus saberes tipicamente femininos reflete, em certa medida, a distinção dada à própria mulher. Seria fácil, portanto, nestas sociedades, supor o papel da mulher laureado de um certo prestígio, ainda que mínimo. Afinal, acima de tudo estava a figura da mulher como mãe; ela, enquanto geradora de vida, assumia maior importância até do que o seu fruto, o filho.
Contexto Na Idade Média isso mudou. Para pior. Neste ponto é necessário se fazer uma pequena introdução sobre os muitos povos, diferentes entre si, que habitam a Europa neste período.
A Idade Média se inicia; segundo alguns defendem, com a queda do Imperador Augústulo (algo como Augustinho) em 476 d.C – indo terminar com a queda de Constantinopla (1453 d.C.). A condenação ao exílio deste trêmulo rapazola, que recentemente perdera o pai, Orestes, marca a queda do Império Romano do Ocidente e o fim da Antiguidade. Data meramente ilustrativa, uma vez que a agonia do Império Romano foi um processo longo e seus ecos persistiram por muito tempo. O fato é que o desmoronamento da bem azeitada máquina administrativa romana – da qual a Igreja é a herdeira direta – lançou todo o continente, sua maior parte pelo menos, em um confuso desmantelo. É no bojo deste efervescente caldeirão de raças e credos, em meio a estes povos em franco processo de aculturação, que aqui, para efeito de simplificação, iremos reduzir para duas correntes principais: Os “Romanos”, aqueles que estavam integrados no moribundo Império, sendo ou não 100% romanos. E os “Germanos”, todos os povos que, pressionados pelos hunos, por outros povos, pela escassez de terras cultiváveis ou ainda pela própria fragilidade do Império Romano, desceram das frias terras do norte, avançando pelas praticamente inexistentes fronteiras romanas. Todos estes povos tinham suas bruxas, e viam a mulher sob óticas diferentes. Ainda mais interessante é dizer que as próprias mulheres se viam de forma diferente. Foi neste ambiente, em que todos influenciavam e eram influenciados, nos séculos em que se fomentou a formação das futuras nações que se consolidaram na Idade Moderna, é que assistimos o cristianismo (aquele nascido no Concílio de Niceia (325 d.C.), tornado de Estado no Édito da Tessalônica (380 d.C.) e reforçado nos outros muitos concílios que se seguiram) se tornar uma Instituição e ganhar corpo. Força. Poder. É no confronto direto com esta “nova” religião que o mito da bruxa ganhará os contornos que hoje vemos e em paralelo, assistiremos o delinear de uma nova posição a ser ocupada pela mulher, pois, no seu processo de “formatação”, a religião criada em nome do Cristo afasta, paulatinamente, as mulheres dos seus nichos de poder, assumindo, em definitivo, seu aspecto Patriarcal. Justo a religião que, em
Crédito: Galeria Corcoran, Washington. D.C.
“sexo-frágil”, sempre foi relegada à casa e aos filhos, associando-se ao bem-estar. Por outro lado, também eram capazes de terríveis vinganças e sórdidas maquinações. Hécate, deusa grega da bruxaria, que vagava pelas noites, sendo vista somente pelos cães que ladravam à sua passagem, às vezes aparecia associada à deusa Diana (Ártemis), a Lua. Na Idade Média os dois mitos praticamente se fundiram.
Tela do pintor norteamericano Douglas Volk (1856-1935) que mostra uma acusação de bruxaria, muitas vezes feita em tom dramático
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seus primórdios, galgou importantes degraus apoiada por mulheres (vide a mãe e a esposa de Constantino). É na institucionalização do Cristianismo que a mulher perde sua projeção inicial, relegada a um papel subalterno na Igreja que nascia. Uma nova realidade era escrita, não sem conflitos, arbitrariedades, sangue e Fé Verdadeira. Uma realidade regida por um Deus Único. Nas famigeradas “Três Ordens” (séc. XI) os que oram ocupam o topo da tríade. Um dos passos mais importantes dados pela Igreja no sentido de exercer controle sobre seus seguidores foi dado no Concílio de Latrão (também chamado Latrão IV), convocado pelo então papa Inocêncio III, em 1215. Onde, dentre muitas outras resoluções, estabeleceu-se a obrigatoriedade da Confissão. Todo Cristão, a partir dos sete anos, ficava obrigado a se confessar com um sacerdote pelo menos uma vez por ano, correndo a distinção social o risco de excomunhão se dada à bruxa e a não o fizesse. Neste concílio também é recomendado aos seus saberes padres uma atenção espetipicamente cial às heresias, estimulanfemininos reflete, do o interrogatório em casos de suspeitas e, caso ficasse em certa medida, comprovado o desvio, a a distinção dada à punição (lembremos que à própria mulher mesma época existia a perseguição aos Cátaros). Nessa nova realidade que surgia era o Filho, não mais a Mãe, a figura de maior importância. Mesmo que haja, principalmente após as Cruzadas (séc. XI a XIII), uma certa redescoberta do feminino cristão, na figura de Maria, a relação de primazia estava irremediavelmente comprometida. E aquele saber das bruxas, desde há muito associado a deuses muitos, será marcado indelevelmente pela chegada do Deus Único. Apoiado nestes pressupostos é inegável que a Idade Média irá assistir a um reescrever do papel da mulher na sociedade, coisa que já vinha sendo delineada, mas que naquele momento ganha novos e fortes contornos. A mulher do cristianismo não é a mesma das religiões pagãs. Não diria nem melhor nem pior, só diferente. No período medieval estas mulheres se
chocarão. O imaginário popular da época irá opor, bem ao gosto da época, duas figuras diametralmente opostas: a bruxa e a santa. Uma, no sentido espiritual, tocada pelo Divino e a outra, no sentido mais carnal, tocada pelo Profano. A sexualidade feminina será o principal campo de batalha destas novas concepções. Não creio ser necessário dizer qual o nome reservado para as mulheres das religiões pagãs. O Sexo, tão comum e natural nas religiões primitivas, torna-se, no decorrer dos séculos, a ruína dos homens. A leitura dos livros que compunham a Bíblia (aqui me refiro aos canônicos), uma das muitas possíveis, em que se constata que o Cristo, em não sendo casado, morreu puro, cria uma ideia, gestada nos mosteiros e disseminada por todos os cantos, que a
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Crédito: Pintura mutal datada da primeira metade do século XIX
os primórdios, que opunha Bem e Mal em uma disputa incansável, vemos o surgimento de outras frentes de batalha. Contra os infiéis que, ignorantes do Cristo, mereciam esforços para a salvação; contra aqueles que professavam outros entendimentos do mesmo Cristo; contra aqueles que abandonavam as fileiras da Igreja, e agora contra o desejo e a volúpia, que minavam a vontade dos homens, abriam espaço para o pecado.
A Posição da Igreja
salvação estaria vinculada à pureza do corpo. Algo que, face a uma mulher desinibida, seria impossível. O desejo carnal é um movediço pântano onde muitos se perderão, não por culpa própria, obviamente, mas devido à natural (como era entendida na época) volúpia feminina. Salvar a alma passaria, portanto, pelo combate a esta volúpia, uma via perigosa começava a ser trilhada, um caminho que se iniciou no asceticismo e terminou na autoflagelação. O ideal de “amor sem sexo”, hoje dito platônico, dos trovadores dos séculos XI e XII vincula-se a estas ideias. Assim sendo, uma guerra espiritual estava declarada. E não foi a única. Além das inúmeras guerras mundanas, a Idade Média assistiu também a muitas guerras espirituais. Além daquela que todo Cristão sabia travar desde
Para a Igreja, porém, a luta era uma só, e louvável: a defesa da Fé, o que significava a salvação da alma, algo que, visto no contexto medieval, valia todos os esforços. Para muitos, ainda hoje vale. Uma guerra de muitos frontes e de perdas consideráveis, calorosamente travada nos muitos séculos da Idade Média, uma contenda que tratava tanto a maledicência e o malefício, que, claro, existiam, quanto às protociências que despontavam como sendo puro Mal. Tudo em nome do Dogma que, em última análise, é tão somente uma Opinião. Todos perderam, mas principalmente as mulheres, que assistiram, não passivas, mas incapacitadas, um lento remodelar da sua relevância social. Relacionar a mulher com o pecado não era novidade – Eva estava lá desde os primórdios para comprovar a verdade inegável do fato – porém, este é só um dos aspectos que irão. compor o arquétipo da Bruxa que nos chega nos dias de hoje. A da bela e sensual jovem, caminho da perdição. No outro extremo desta composição está a decrépita e medonha anciã, aquela que tem um narigão e uma ruga quase tão grande quanto ele. A madrasta da Branca de Neve, da adaptação para o cinema de Walt Disney, é um exemplo magnífico por representar, no mesmo personagem os dois extremos; antes dos filmes da Disney as ilustrações dos contos dos irmãos Grimm se encarregaram de fornecer o arquétipo de como seria uma bruxa velha. O caldeirão e a vassoura são outros elementos associados a elas. Notar que, em sua maioria, são elementos do cotidiano feminino, comuns na sua labuta de esteio familiar, que assumem novas conotações. O objeto onde se cozinha é o mesmo onde se fundem poções maléficas; a ferramenta de
À esquerda: pintura na parede externa do Mosteiro de Rila, na Bulgária, retratando as bruxas e parte delas com os demônios
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CréDiTo: Tela MaGiC CirCle, Do PinTor inGlÊs John WilliaM WaTerhouse, De 1886
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Beemot, Lúcifer, entre outros; ou importados de outras crenças, como o Pã grego, os Sátiros romanos, o mesopotâmico Pazuzu. Na Idade Média, o Diabo estava em todos os lugares e as mulheres, comprovadamente fracas na Fé, eram o seu quintal. Ardiloso, capaz de mudar de forma, apresentava-se como Súcubbus (aquela que fica por baixo), para seduzir os homens e Incubbus (aquele que fica por cima), para quem as mulheres se entregavam. Notar a sutileza em dizer que as mulheres se “entregavam” e que os homens eram “seduzidos”. As atividades do Diabo, porém, seriam vistas com um certo desdém até meados do século XIV, é comum o entendimento dele não como adversário, mas sim como um empecilho. Até meados do século XI, a bruxaria também será vista, pela Igreja, com olhos mais complacentes, algo pitoresco, integrado à concepção popularesca do Cristianismo.
Os Cristãos
Tela de Waterhouse que retrata a preparação de uma bruxa para um de seus rituais. não falta nada, do caldeirão aos pássaros pretos
limpeza se torna o meio de transporte mágico; assim por diante. Nestes elementos, porém, uma outra leitura é possível, mais sombria, mas necessária; é no seio do cotidiano, na rotina do dia a dia, no envenenar da comida, no cozinhar do cachorro preferido e servir como sopa que a vingança feminina se manifesta. Novamente notamos a dubiedade do mito, sempre calcado em um delicado equilíbrio que, na Idade Média, será definitivamente quebrado com o surgimento de uma nova figura, fundamental para se buscar uma visão aproximada do que foi a bruxaria medieval: O Diabo. Demônios dos mais diferentes tipos povoaram o imaginário medieval, vindos das tradições cristãs: como Asmodeu, Baal ou Belzebu,
O Cristianismo foi totalmente hegemônico no longo período medieval. Porém, não foi linear em seu desenvolvimento, nem tão pouco homogêneo. O cristianismo praticado nos grandes centros, tidos como mais cultos, era, em muito, diferente daquele praticado nos locais mais afastados, tidos como mais tacanhos. Nestes locais ermos se mostrava como uma crença confusa, uma mistura de crendices, de antigas religiões e dos ensinamentos ouvidos dos pregadores das boas novas (Evangelhos). Tudo cerzido por uma compreensão toda própria do que significava cada um destes elementos. Porém, demarcava fortemente o seu espaço, e crescia a olhos vistos. O pensamento cristão medieval tangenciou todo o continente Europeu, indo muito além dele. Logo, no mundo medieval, ser cristão era quase condição sine-qua-non para ser aceito socialmente; quem não fosse batizado era taxado de “Pagão” ou “Infiel”, e vitimado pelo preconceito. Com a invasão muçulmana, esta situação se radicalizou ainda mais. Na Idade Média, o Deus Único Trinitário (Pai, Filho e Espírito Santo) torna-se a fonte de tudo. A realidade está sujeita à sua vontade, uma vez que Ele a criou pode interferir nela à seu belprazer. Portanto, para se conseguir algo basta pedir à Sua representante na Terra: a Igreja.
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“... Para bolhas e biles, Cosme e Damião; Santa Clara para os olhos; Santo Apolônio para os dentes; São Jô para as doenças de pele...” (Scot, Discoverie: A Discourse of Divels, cap. xxvi). A lista continua, mostrando a especificidade de cada santo em determinada área, isso sem levar em conta aspectos como a adoração de relíquias (objetos tocados pelos santos ou até mesmo partes do seu corpo ou vestuário), a crença pia na transubstanciação do pão e do vinho em carne e sangue na Eucaristia, nas muitas qualidades divinas da hóstia, da água benta, dos rosários, dos amuletos, dos escapulários. O período medieval foi totalmente dominado pela Magia. Outras épocas também o foram, mas o que torna este período especial são as tentativas, muitas vezes violentas, de se criar uma Magia única, de natureza cristã. De início, a Igreja medieval não perseguiu a crendice, mas se valeu dela para crescer. Tudo aquilo que não era Divino só podia vir do Diabo e como o próprio era também uma criatura de Deus, a hegemonia estava na eminência de ser criada, bastando para tanto associar cada elemento não pertencente à religião cristã com elementos que existissem dentro dela. Surgiram assim deuses antigos que foram transformados em demônios, outros ainda foram substituídos por santos que executaram as mesmas funções. Para garantir um bom parto não mais se clamava à romana Lucina, para este momento especial lá estavam Santa Margarida ou Santa Marpúgis; isso sem falar da própria Maria, mãe de Deus, que nos chega como Nossa Senhora do Bom Parto. No decorrer da Idade Média, um monopólio dos aspectos não naturais da vida se estabelece. A faceta mágica da Igreja Cristã é tão fortemente disseminada que até mesmo os feitiços e encantamentos perderam o seu aspecto de manipulação de objetos, digamos naturais, para se tornarem manipulações sacrílegas de elementos cristãos, tornando-se assim, herética. Como vemos nos dois exemplos a seguir: A Bruxa “primitiva”, que perdurará, grosso modo, até meados do séc. XII, em meio a um
cristianismo atulhado de crendices de caráter pagão: “... Então, com os cabelos soltos, deu três voltas em torno do corpo, enfiou lascas de madeira em seu sangue (...) no caldeirão pôs ervas mágicas, com sementes e flores de suco acre, pedras do Extremo Oriente, e areia do litoral (...) a cabeça e as asas de uma coruja, e as entranhas de um lobo...” (Medeia e Esão: Bulfinch´s mytology – 2006). A Bruxa “herege”, que ganha notoriedade cada vez maior a partir do séc. XII, frente a um cristianismo que se busca mais puro: “... E a Fé, toda sua, obtida no Batismo Santificado, em sacrilégio, renegam (...) a Alma deles posta em perigo, ofensa à majestade Divina...” (Summis Desiderantes Affectibus: Bula Papal; Inocêncio VIII– 1484). No processo que acabou por levar Joana D’Arc (1412-1431) a um “Auto de Fé”, leia-se fogueira, já figurava a palavra bruxa, vinculada à heresia.
Para saber
Esta, por sua vez, era auxiliada na árdua tarefa de intermediária por um sem número de santos, santas e mártires, todos envolvidos em resolver as mazelas mundanas.
Franco Jr, Hilário. A Idade Média. Nascimento do Ocidente. Editora Brasiliense, 2006. Ehrenreich, Bárbara; English, Deirdre. Witches, Midwives and Nurses: A History of Women Healers. University of New York, 1973. Le Goff, Jacques. A Bolsa E A Vida: A Usura Na Idade Média. Editora Brasiliense, 2004. Thomas, Keith. Religião E O Declínio Da Magia. Crenças Populares Na Inglaterra (Séculos XVI E XVII). Companhia das Letras, 1991. Ginzburg, Carlo. Os Andarilhos Do Bem: Feitiçarias E Cultos Agrários Nos Séculos XVI E XVII. Companhia das Letras, 1988. Eymerich, Nicolau. Manual Dos Inquisidores (Directorium Inquisitorum). Rosa dos Tempos, 1993.
n James Andrade é
pesquisador de história antiga e medieval. É autor do livro Getsêmani, a Verdade Oculta (Giz Editorial, 2008)
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NATURE | Genética
Genoma Revela o Lado Carnívoro dos Pandas Mais parecidos com cachorros do que com humanos, os simpáticos ursos símbolo da China mostram que são bem diferentes do que se revelam em público, pelo menos no que diz o material genético.
A
sequência genética completa do panda gigante revelou que o urso símbolo da China tem todos os genes necessários para digerir carne e não sua comida favorita, o bambu. A equipe internacional analisou a sequência da ursa Jingjing, uma panda de três anos que foi, por sinal, a mascote dos jogos de Pequim em 2008, e descobriu que ela não tinha genes que pudessem ajudá-la com a produção de celulase, uma enzima que descompõe o material das plantas chamado celulose. “A dieta de bambu dos pandas é possível graças às bactérias do seu intestino e não à sua composição genética”, afirma Wang Jun, diretor do Beijing Genomics Institute na cidade de Shenzhen, província de Guangdong, que liderou o projeto de identificação da sequência genética. Os pesquisadores descobriram também que o gene T1R1, que alberga um receptor fundamental do gosto do sabor “umami” da carne, encontra-se na condição de “pseudo-gene” inativo no animal devido a
Por Jane Qiu duas mutações. “Isso pode explicar porque a dieta do panda é principalmente herbívora embora seja classificado como um carnívoro”, diz Wang. A pesquisa, publicada na Nature, mostra que os pandas têm uns 21 mil genes aglomerados em 21 pares de cromossomos, incluindo um par de cromossomos sexuais. De todos os mamíferos pesquisados até agora, os pandas são mais parecidos com os cães – com 80% de semelhança – e apenas 68% parecidos com os humanos. Mas o genoma do urso passou por menos alterações genéticas que o cão e o homem ao longo do tempo, sugerindo que sua evolução é mais vagarosa. O panda é considerado como um “fóssil vivo”, porque se acredita que seus antecessores tenham vivido na China há mais de oito milhões de anos. O estudo mostra também que os pandas possuem quase o dobro da diversidade genética que os humanos. “Isso sugere que o panda tem uma boa chance de supervivência apesar do reduzido número de indivíduos na
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Ameaça ao Habitat Os críticos salientam que proteger o sensível e delicado habitat do panda é mais importante agora do que pensar na conservação. A China deve ter aproximadamente 1.600 pandas selvagens – embora esse número seja assunto de discussões constantes. Mais trezentos vivem em cativeiro. Alguns conservacionistas, como Fan Zhiyong, diretor do grupo de conservação do programa para a conservação das espécies da WWF China, acreditam que o genoma do panda terá pouco efeito nos esforços de conservação. “Proteger os pandas selvagens continua sendo a prioridade, mas seu habitat está ficando cada vez menor”, afirma Fan. “Se um dia os pandas selvagens deixarem
de existir, o que vamos fazer com a sua informação genética?” Embora a China tenha declarado algumas regiões como santuários para os pandas desde 1960, o desenvolvimento econômico costuma passar por cima dessas iniciativas de conservação. Portanto, não é raro o habitat dos pandas ser invadido por projetos de construções enormes como represas e rodovias. O turismo também é uma ameaça considerável porque os pandas são criaturas tímidas. Por exemplo, Jiuzhaigou, um santuário de pandas em Sichuan é visitado por milhões de turistas por ano. “Você não vê um panda sequer”, conta Fan. “Não surpreende que seja assim”. “Não há dúvida que a informação do genoma e a proteção do habitat são f undamentais para os esforços de conservação”, diz Wang. O genoma do panda, o primeiro de uma série de esforços do Instituto Shenzhen, será um teste de como a informação genética pode ajudar na conser vação das espécies ameaçadas, conclui. O time já obteve um mapa genético do urso polar e começou a identificar a sequência do genoma do antílope tibetano.
De todos os mamíferos pesquisados, os pandas são mais parecidos com os cães, com 80% de semelhança, e apenas 68% de compatibilidade com os humanos
CRÉDITO: OCEAN PARK, HONG KONG.
população”, afirma Wang. “O estudo constrói a base biológica para entender melhor os pandas e pode ser empregado para melhorar a conservação da espécie controlando as doenças e estimulando a reprodução da espécie”, diz Jianguo Liu, um biólogo conservacionista da Universidade do Estado de Michigan em East Lansing, Montana, que não participou do estudo.
Tradução de Exacta,
originado da revista Nature
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LIVROS E AUTORES
Química Perigosa
O Primeiro Voo
De Pedra em Pedra
A esta altura, o leitor deve estar cansado de ouvir falar de II Guerra Mundial, suas causas, consequências, biografias de quem participou e até mesmo de ler análises tecnológicas. Porém, ainda vale dar uma olhada neste volume em especial, escrito por um professor de História do Holocausto da Universidade de Clark, na Pensilvânia, Estados Unidos. Aqui ele diz que a guerra foi uma confluência não apenas do Holocausto em si, mas também da ascensão do III Reich e da própria Revolução Russa. Um caldeirão que explodiu da maneira mais absurda possível e que não há como esquecer. Porém, Hitler, Stalin e Lênin ainda assombrarão aulas de História e redações de vestibular. Os pesadelos de qualquer um que entra no mundo acadêmico.
Quem afinal inventou o avião, o brasileiro Santos Dummont ou os esforços conjuntos dos irmãos Wright? Certamente não é de hoje que vemos biografias sobre Dummont, mas esta é especial porque conta, de uma maneira romanceada, sua vida e obra de tal forma que o leitor se sente impelido a participar do projeto de construção do famoso 14-Bis. A capa lembra certas obras pulp que, com toques de humor e muita informação, passavam para o leitor a verdadeira natureza do assunto. E neste quesito o livro cumpre sua função com louvor. Dummont está na História, quer os irmãos Wright queiram ou não. E na concorrência pela autoria da máquina mais rentável do mundo, os norte-americanos perdem para Dummond em ser o 1o a voar. O assunto ainda vai dar discussão, mas com certeza, os Wright vão ter muito pelo que chorar.
Em tempos em que falam bobagens em best-sellers, como a de que maçons tomam sangue em caveiras humanas, uma obra como a que a editora WMF Martins Fontes coloca na praça é essencial para acabar com o festival de besteiras que insiste em circular por aí. Nesta obra muito bem acabada e de capa dura, o leitor encontrará milhares de pinturas e quadros de graus históricos que mostrarão não apenas a contribuição dos maçons para a grandeza norte-americana (e de outros países do mundo) como também termina de uma vez com os boatos que envolvem bodes e morcegos. Já que a Maçonaria é alvo do mundo literário, que pelo menos os leitores estejam bem informados sobre suas verdadeiras intenções. E este livro é um excelente começo, para quem gostaria de se tornar maçom.
FASCISMO DE ESQUERDA: A HISTÓRIA
LÊNIN, STALIN E HITLER – A
O BRASILEIRO VOADOR
A MAÇONARIA – SÍMBOLOS,
SECRETA DO ESQUERDISMO
ERA DA CATÁSTROFE SOCIAL
Márcio Souza
SEGREDOS, SIGNIFICADOS W.
Robert Gellatelly
Editora Record
O Perigo da Esquerda O subtítulo já diz tudo: a história secreta do esquerdismo americano. É estranho pensar que as filosofias de homens tão distantes no tempo quanto Hitler ou Stalin possam, ainda hoje, exercer alguma influência. Mas a verdade é que certos fantasmas se recusam a nos deixar. Esta obra, em especial, oferece uma perspectiva sobre as teorias e práticas que definem o fascismo. Jonah Goldberg analisa as figuras históricas com um olhar que as deixa semelhantes a outras mais modernas, como Hillary Clinton, que têm defendido políticas e princípios notavelmente semelhantes aos do nacional-socialismo.É uma obra que mostra claramente as origens do fascismo no clássico pensamento esquerdista.
AMERICANO Jonah Goldberg páginas
Editora Record
546
Editora Record
803 páginas
301 páginas
Kirk McNulty 320 páginas WMF Martins Fontes
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Línguas, tradições e Fascínio Durante cerca de 500 anos, eles foram figuras dominantes na Europa, mercê de uma atitude que conjugava conquista com sobriedade. Mesmo com todas as adversidades, e o contínuo movimento do tempo, eles não foram esquecidos pelos historiadores modernos. Por Pedro Silva
V
ários séculos após o seu desaparecimento enquanto sociedade estruturada, os Celtas continuam a ocupar o nosso quotidiano e, mais curioso ainda, a fazer parte do imaginário de muitas pessoas. A ambiência céltica, composta por lendas onde o amor e a magia se conjugam, assim como a visão da importância de comunhão una com a natureza, são algumas das razões que levam, ainda hoje, a uma presença constante do elemento céltico
em livros, na televisão e, para alguns, mesmo nos seus hábitos diários. Mas, afinal de contas, quem era esse povo? Esta terá sido uma das questões mais colocadas pelos historiadores, tendo em conta que, ao contrário dos seus congêneres do Império Romano, o povo celta não tinha por hábito a existência de cronistas, e todos os relatos sobre a sua história surgem, como tal, de forma indireta ou mediante os estudos arqueológicos.
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Exemplo de cruz céltica, que combina uma cruz equidistante com um anel que faz interseção por trás
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CrÉDIto: reNNes, frANçA. estÁtuA DA DeusA BrIGIDe.
civiLizaçõeS | Celtas
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Acredita-se, atualmente, que os seus antepassados mais diretos fossem as chamadas Culturas dos Túmulos (enterravam os seus defuntos em espaços próprios para o efeito, os primórdios das sepulturas atuais) e dos Campos de Urnas (que tinham por costume incinerar os seus mortos e colocar as cinzas em urnas posteriormente enterradas no campo), ambas da Idade do Bronze e localizadas entre os rio Reno e Danúbio. Na verdade, tanto a Cultura de Hallsttat (originária da Áustria) quanto a Os celtas eram, acima de La Tène (Suiça) têm sido de tudo, contemporâneos, apontadas como formadoras mais ou menos diretos, do caráter peculiar que os veio a caracterizar. de um grupo de povos Este início histórico tem luindo-europeus que, a partir gar, aproximadamente, entre do norte e centro europeu, os anos 1500 e 700 a.C., em vieram, posteriormente, a ter uma fase que costuma ser grande importância histórica conhecida por protocéltica. Ainda assim, os historiadores não chegaram a um consenso generalizado, tendo em conta que alguns afi rmam que os primeiros vestígios arqueológicos remontam apenas a 900 a.C., ou seja, já no fi nal da Idade do Bronze, e datas anteriores terão que ser baseadas apenas na suposição. Seja como for, a grande verdade é que convém assinalar que os celtas eram, acima de tudo, contemporâneos, mais ou menos diretos, de um grupo de povos indo-europeus que, a partir do norte e centro europeu, vieram posteriormente a ter grande importância histórica, como os germânicos, os armênios ou mesmo os eslavos e os gregos. Aliás, a troca comercial com estes últimos veio a resultar em peças de cerâmica encontradas nos túmulos celtas e, para além disso, num termo – keltoi – com o qual o grego Heródoto denominava este povo da Europa Central. Foi, também, por meio dos cronistas da Grécia Antiga que pela primeira vez deparamos com referências escritas aos celtas, em torno do ano 500 antes da nossa era. Durante muitos anos, confundiu-se a civilização dos celtas com o próprio período da Idade do Ferro, tendo em conta que é praticamente num mesmo momento que ambas despontam para uma mais vincada presença histórica. Estamos a falar, obviamente, do
momento em que, a partir de La Tène (cerca de 450 a.C.), partem para a conquista de novos territórios, logrando alcançar a Grã-Bretanha, a Gália e mesmo a Península Ibérica. Com tal feito, os celtas tornaram-se, ainda que durante um breve período histórico, em uma das culturas dominantes da zona europeia e, de certo modo, precursores da mitologia nórdica. Ainda assim, convém frisar que “não existe, portanto, uma raça céltica, tal como, aliás, nunca existiu um império céltico à maneira dos romanos: o que une os celtas é a comunidade de língua, de religião, de estruturas sócio-culturais e, em último lugar, de estado de espírito. E somos obrigados a constatar que aqueles que chamamos de celtas não eram, inicialmente, senão uma pequena elite guerreira e intelectual que submergiu, num dado momento, os povos que habitavam a parte ocidental da Europa. Esta elite celtizou as populações aborígines e arrastou-as para a sua esfera política, cultural e religiosa. Nasceram, assim, as civilizações célticas”.
cultura de Natureza Ao contrário de outras civilizações da época, e mesmo posteriores, os celtas não primavam pela extravagância nem pela opulência desmesurada. É provável que aí resida parte fundamental do seu fascínio para uma parte da população atual. Desconhecem-se os seus principais líderes, embora hajam algumas referências vagas de cronistas romanos a Vercingetórix, um chefe gaulês que enfrentou, sendo bem-sucedido, as legiões lideradas pelo romano Júlio César; a Breogão, líder dos Artabros (Galiza); e a Ambriorix, o qual parece estar relacionado com uma fase gloriosa da epopeia celta. Para além do mais, não nos legaram conjuntos arquitetônicos de relevo e, apesar de se recusarem terminantemente a redigirem a forma como utilizavam as plantas na vertente medicinal (todas as informações eram transmitidas, entre os druidas, ou sacerdotes ancestrais, única e exclusivamente por via oral, como pode ser visto no artigo sobre os Druidas, desta edição), o certo é que hoje em dia poucos são aqueles que não os consideram como amantes da natureza e um povo lendário, num misto de mito e realidade histórica. A isto não será alheia a existência
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de uma massificação do fenômeno celta, mas igualmente à vertente misteriosa que, como bem sabemos, tem quase sempre o objetivo de despertar ainda mais curiosidade. Certo é que os celtas, a quem Estrabão chamava keltai – um termo que, no Império Romano, tinha por sinônimo “os audazes” –, constituíam uma sociedade mais complexa do que em princípio possamos pensar. Atendendo ao fato de terem sido uma das primeiras culturas a utilizar, o ferro, não deixa de ser curioso que, apesar de os associarmos sobretudo ao manejo da espada (nomeadamente a sua gladius hispaniensis, com 40 a 50 cm de lâmina e cabo com cerca de 20 cm), o certo é que eram prolíficos agricultores, sendo responsáveis pela introdução do arado, e servindo-se do cavalo não apenas para os combates, mas também para o auxílio no cultivo da terra. Compostos por uma combinação de tribos distintas, os celtas definiam a sua li-
derança mediante uma composição harmoniosa entre a mente e o corpo, ou seja, entre a dita “força bruta” dos guerreiros e o “poder intelectual” a cargo dos druidas, figuras sempre consultadas antes da tomada de qualquer decisão. Estamos assim perante uma sociedade com ideologia tripartida. Eis uma descrição do romano Júlio César:
Imagem do deus chifrudo chamado Cernunnos, entidade pagã cujo culto, de origem celta, se espalhou por quase toda a Europa
“A primeira e segunda classe, sacerdotal e militar, são constitutivas daquilo a que chamamos a soberania, por outras palavras, a autoridade espiritual e o poder temporal: uma vez mais, a primeira é hierarquicamente muito superior à segunda. O sacerdote tem sempre mais importância do que o guerreiro (e o político que daí resulta), porque o guerreiro é, sendo as coisas como são, o menos inteligente e menos dotado dos dois. (…) De resto, o guerreiro pode ser dispensado, enquanto o sacerdote em geral, quer seja um brâmane ou um druida,
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civilizações | Celtas
A Língua Celta Se já é difícil poder discutir qual seria a verdadeira forma de cultura celta (há pesquisadores que afirmem que tudo não passa de versões misturadas com elementos de outros povos com quem houve miscigenação), imagine só o que é convencer sobre como seria a língua celta original. Para tanto, é necessário que façamos um reapanhado sobre o que sabemos acerca do assunto. É de conhecimento público que há dois ramos indo-europeus do grupo denominado centum. Um deles é chamado de o celta-Q (goidélico), que é o mais antigo, do qual originaram as atuais línguas, como a irlandesa, o gaélico da Escócia e a manx, falada na Ilha de Man, um pequeno pedaço de terra que fica justamente entre a ilha da Grã-Bretanha e a da Irlanda. O segundo grupo é chamado de celta-P, também conhecido como galo-britânico, que era falado tanto por habitantes da antiga Gália quanto pelos da Bretanha, na França. Destes originaram-se nos dias modernos o galês, do País de Gales (uma das línguas mais difíceis de serem ouvidas e aprendidas) e o bretão, falado na Bretanha. O registro mais antigo de que se tem notícia de uma língua celta data do século VI a.C.
e muito foi obtido por meio de escritos legados pelos autores greco-romanos. São poucos dados e não permitem que se trace um quadro completo e imparcial sobre o que foi a realidade diária desses povos, o que faz com que muitos pesquisadores façam interpretações errôneas sobre o modo como viviam. As chamadas línguas celtas descendiam do protocelta, também conhecido como celta comum, definido como “um ramo da superfamília das línguas indo-europeias”. O termo celta foi usado para descrever essas línguas pela primeira vez em 1707 pelo naturalista galês Edward Lhuyd, embora já estivesse em uso desde os tempos greco-romanos. Durante o primeiro milênio depois de Cristo, tais línguas eram comuns na Europa em regiões que iam do Golfo da Biscaia e do Mar do Norte, na região do Reno e do Danúbio até o Mar Negro e a Península Balcânica Superior, chegando até a Ásia Menor (Galácia). É errado pensar que não são mais faladas, já que são regiões (menores, claro) que as mantêm em uso, como algumas áreas na Grã-Bretanha, na já citada Ilha de Man, na Irlanda, na Ilha Cape Breton, na Patagônia e na península da Bretanha.
não tem o direito de ignorar ou transgredir o seu estado de perfeição supra-humana. Aliás, para além do druida, esse resto é múltiplo e multiforme. Sendo a terceira classe a dos artesãos e a dos criadores-agricultores, a terceira função é, de uma maneira geral, tudo o que são as duas outras, com uma profusão de aspectos que tornam o estudo detalhado e ao mesmo tempo longo e delicado. É nesse sentido que pudemos constatar e afirmar que a terceira classe produtora é complexa na sua constituição mas simples no seu funcionamento, enquanto se passa o inverso na classe sacerdotal, simples na sua constituição e complexa no seu funcionamento.” Dentro deste clã, normalmente constituído por famílias aparentadas, o ponto principal era o conjunto e não a individualidade, isto é, o indivíduo existia apenas como membro de um grupo para o qual devia contribuir, tendo em conta a preservação do bem-estar geral.
A divisão abaixo é a mais usada para explicar aquelas que se originaram do protocelta: 1) Gaulesa – Inclui as línguas lepôntica, nórica e gálata. Eram faladas numa ampla região da França à Turquia e da Bélgica ao norte da Itália. Hoje todas estão extintas. 2) Celtibérica – Falada nos tempos antigos na Península Ibérica, mais especificamente ao sul de Portugal, na Cantabria, em Aragão, Castela, Leão e em regiões específicas da Espanha. 3) Galaico – Falada na Galécia, atuais Galiza Astúrias, Província de Leão, Zamora, Salamanca e norte de Portugal. 4) Lusitano – Apontado como um possível idioma de origem celta, embora esteja ainda em estudo. O lusitano verdadeiro hoje está extinto. 5) Goidélica – Inclui as variações irlandesa, gaélica escocesa e manesa. Houve época em que o irlandês era falado também na costa sudoeste da Inglaterra e na região sul de Gales. 6) Britônica – Inclui as variedades galesa, bretã, córnica, cúmbrica e a língua dos pictos. Os historiadores consideram totalmente possível a existência de uma língua britônica na Ilha de Man antes da chegada dos escotos no século IX.
De certo modo, os celtas eram um povo muito fechado em si mesmos, governados por um líder (rei) que, na verdade, não detinha um poder absoluto. Eleito por um conselho mesclado por nobres e “homens-livres”, o rei tinha, essencialmente, o papel de líder militar. E era no campo de batalha que as suas decisões se tornavam inquestionáveis. Quanto ao mais, o dia a dia dos celtas quedava-se por um regime de discussão interna, assente sobretudo nos debates que ocorriam nas assembleias dos clãs. Neste sentido, não deixa de ser curioso perceber que as suas noites eram, não raras vezes, passadas nos átrios construídos de propósito para o convívio social, o diálogo, e onde tanto podiam comemorar as vitórias militares como escutar canções ou declamações poéticas. Realce ainda para o fato de não fazerem distinção entre sexos, pelo que as mulheres possuíam direito de expressão e, em alguns casos, como ocorreu com Boudica (a rainha dos Icenos – Norfolk, Inglaterra –
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O Gaulês Moribundo
Crédito: Museus Capitolinos, Roma
Esta famosa estátua romana, provavelmente uma cópia de um original helênico, é uma das imagens mais bem conhecidas do povo gaulês, um ramo dos celtas
entre os séculos I a.C. e I d.C.), tornaram-se até grandes líderes militares.
O Fim De Um Sonho Conquistador Mesmo um povo de caráter guerreiro, como os celtas, não poderia subsistir de uma forma dispersa. Aliás, a História ensina-nos que, até os grandes impérios, criteriosamente organizados, acabam sempre por sucumbir. Ora, no que à civilização céltica diz respeito, de certo modo estavam condenados logo de cara, posto que não existiam enquanto estrutura militar, política e social unívoca. Para além disso, o fato de terem convivido cronologicamente com uma das maiores organizações militares da história da humanidade, no caso o Império Romano, também em nada contribuiu para um maior prolongamento temporal da vivência celta. Como tal, este povo alto, forte, ruivo e de olhos claros, foi forçado a enfrentar o seu próprio destino e, logo em 390 a.C., invadi-
ram o norte da península itálica, saqueando Roma, encetando assim uma disputa que viria a terminar apenas alguns séculos depois. Cerca de 290 a.C. fizeram uma breve incursão a Delfos, na Grécia, angariando novo rival militar. Novas conquistas na Ásia Menor ou mesmo nos Balcãs os tornaram um alvo cobiçado por várias civilizações vizinhas. Ora, logo a partir do século II a.C., os celtas veriam-se fustigados pelo poderio de povos germânicos. A finalizar, o Império Romano iria “integrá-los” pela força da espada, primeiro na Gália e, posteriormente, na Península Ibérica nos anos finais da era que antecedeu a atual. Restava, ainda, um bastião celta, no caso nas ilhas britânicas. Isso devia-se, sobretudo, à força da insularidade, que impedia um ataque maciço das hostes romanas. Mas, tal como sempre acontecia, o império sediado em Roma não sossegava enquanto não alcançasse os seus intentos e, em meados do primeiro século, o
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Afinal, quem eram as nações celtas, que deram origem a esse povo tão admirável e que é objeto de estudos até hoje? Os europeus convencionaram chamar de Nações Celtas as áreas onde a cultura daquele povo habitou. As localizações exatas de onde teriam vivido e prosperado vem sendo objeto de discussão desde meados do século passado, já que muitos usam a “celticidade” para justificar sua identidade nacional. Hoje em dia, as regiões celtas são conhecidas como Cinturão Celta ou Franja Celta, por estarem localizadas mais comumente no noroeste da França e em partes da Escócia e Irlanda, a noroeste e oeste respectivamente, onde o gaélico ainda é falado. As nações que são incluídas mais comumente entre as Nações Celtas são: 1) Bretanha 2) Cornualha 3) Irlanda 4) Ilha de Man 5) Escócia 6) Gales Há ainda quem coloque a Galiza como uma sétima nação e acrescente a região norte de Portugal como uma oitava. Estas seis, pelo menos, são as oficialmente reconhecidas pela Liga Céltica, fundada em 1961 e que cuida da herança da cultura daquela civilização. Cada uma pode ostentar (ou seja, adotar) uma língua céltica própria. Quatro das seis nações da lista oficial (Bretanha, Irlanda, Escócia, Gales) contêm áreas onde uma língua céltica ainda é usada pela comunidade. Em geral, essas comunidades ficam nas regiões oeste de seus respectivos países e afirmam ser mais célticas do que as anglicanizadas. É claro que nem todos concordam com essas posições. Pesquisas de cunho antropológico afirmam que as nações atuais que se consideram célticas pouco ou nada tem a ver com os verdadeiros celtas. E afirmam: “O uso do termo ‘celta’ para descrever coletivamente os povos falantes das línguas modernamente assim designadas, é bastante recente e data do século XVIII. Críticas ao uso do moderno termo ‘celta’, muitas vezes com fins políticos, consideram esta como uma deturpação da História”.
Crédito: Museu das Antiguidades Nacionais, Saint-Germain-en-Laye, França.
As nações celtas
imperador Tibério Cláudio planejou um forte ataque militar que veio a resultar no domínio da Bretanha, ainda que por lá tivessem permanecido alguns redutos celtas. Pouco a pouco, esta civilização inicialmente indo-europeia iria absorver a cultura romana, mormente na língua utilizada – a qual passou a ser, oficialmente, o latim – mas também nos costumes, sendo de acreditar, pelos achados arqueológicos, que os celtas teriam alguma participação no governo local, ainda que sob a supervisão romana. Terminava, assim, o seu sonho inicial de povo conquistador. Mas não desaparecia, no entanto, a lembrança de uma cultura e de um folclore tão peculiares que, por certo, o tempo jamais conseguirá apagar. Uma curiosidade: os celtas tinham nos druidas uma casta particular, constituída por jovens escolhidos, que recebiam formação diretamente dos anciãos. Não sendo celibatários e podendo possuir bens terre-
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Pese embora o fato de terem tido uma presença mais discreta que outras culturas que por aqui deixaram a sua marca histórica e arqueológica, os celtas têm ainda oportunidade de se ver envolvidos com a Lenda da Fundação de Portugal
nos, os druidas praticavam uma mescla de adivinhação, análise astrológica e medicina baseada nas ervas. O seu calendário lunar iniciava-se a 1 de novembro. Acreditavam na importância da terra-mãe e na força solar, sendo que as suas cerimônias praticavam-se, sobretudo, ao ar livre, em bosques e junto a lagos ou rios. Acredita-se que tivessem pequenos templos, onde adoravam pequenas figuras de madeira representando as suas divindades. Entre elas, contavamse: Lug (doador do conhecimento), Teutates (protetor do comércio), Cernunnos (senhor dos animais) e Epona (deusa da fertilidade). Em Portugal, os celtas tiveram presença efetiva, no caso em concreto na zona que atualmente conhecemos por Alentejo. Terão chegado em torno do século V a.C., e o cronista Estrabão informou-nos mesmo que, na região compreendida entre o Tagus (Tejo) e o Anas (Guadiana), habitariam “na maior parte dela” povos célticos ou, mais concre-
Para saber
tamente, celtiberos, por resultarem de uma fusão com os iberos (que deveriam ser provenientes do norte da África). Pese embora o fato de terem tido uma presença mais discreta que outras culturas que por aqui deixaram a sua marca histórica e arqueológica, os celtas têm ainda oportunidade se verem envolvidos com a Lenda da Fundação de Portugal. Nela, o mitológico Gatelo, conquistador da Irlanda e da Escócia, teria chegado ao país e edificado um “Porto Gatelo”, hipoteticamente localizado onde hoje se erguem as cidades de Porto e Gaia.
Laguna, Manuel Velasco. Breve Historia De Los Celtas. Nowtilus, 2009. Powell, T.G.E. Los Celtas. Oberon, 2005. Solana, Manuel Yanez. Los Celtas. Edimat Lobros, 2002. Vena, Teresa de la. Los Celtas. Akal Ediciones, 2002. Haywood, John. Os Celtas: Da Idade Do Bronze Aos Nossos Dias. Edições 70, 2009.
PEDRO SILVA é pesquisador e autor de diversos livros sobre história portuguesa. Vive em Tomar, Portugal, de onde escreve para várias publicações
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Brumas da História | Pirataria
Os Terrores Femininos dos Sete Mares
As mulheres também conseguiram se tornar o pesadelo de muitos homens e algumas fizeram mais fortuna do que eles. Nesta primeira parte, conheceremos a vida de uma das mais famosas, Ann Bonny.
(Parte 1 de 3)
N
ão só de homens viveu a pirataria. Ann Bonny e Mary Read passariam para a posteridade como mulheres piratas. Conquistaram o respeito de muitos homens e foram, por muito tempo, sinônimo de terror para muitos navios mercantes. Para entender este fenômeno isolado é necessário escavar a vida dessas duas personagens em detalhes. Comecemos por Ann Bonny, que, por mais estranho que pareça, exerce fascínio pelo que não se conhece dela. De acordo com documentos históricos, Ann Bonny era considerada uma mulher obstinada, independente e dona de um temperamento corajoso e terrível ao mesmo tempo. Muitos a consideram uma mulher à frente de seu tempo, uma vez que suas ações quebraram muitas convenções numa época em que a mulher devia, pelos padrões da sociedade, comportar-se de maneira subserviente. Embora não se saiba ao certo a data de seu nascimento, acredita-se que tenha vindo ao mundo de maneira ilegal na Irlanda, mais precisamente no condado de Cork, entre 1697 e 1700, filha de Mary Brennen, que trabalhava para seu pai, William Cormac. Este era um cidadão
Por Sérgio Pereira Couto respeitável na cidade de Kinsale, onde exercia a medicina, até que sua esposa legítima tornou seu caso público, o que o forçou a abandonar a Irlanda em vergonha. Decidido a começar uma nova vida no novo mundo, Cormac e Mary Brennan, levando consigo a pequena Ann, viajaram juntos para o continente americano. Estabeleceram-se em Charleston, na Carolina do Sul, que possuía na época uma grande comunidade mercantil. Lá, ele apresentou Brennan como sua esposa oficial e Ann como sua filha legítima e começou a praticar medicina novamente. Os registros dão a crer que seus clientes deram-lhe fama e fortuna, pois logo foi possível para a família adquirir sua própria plantação em Charleston, o que fez com que fossem aceitos plenamente no alto escalão social. Ann cresceu com a reputação de ser dona de um temperamento corajoso e impetuoso, além de ter uma disposição tão impulsiva quanto. Sua mãe havia morrido durante sua mais tenra idade, e Ann assumiu a responsabilidade de comandar os afazeres domésticos da casa de seu pai. Cumpriu a tarefa com muito desembaraço, mas há uma história que retrata um método um tanto estranho para lidar com servos de resis-
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Casamento Ann e o capitão Bonny se casaram contra a vontade do pai dela, que a deserdou, custando seu dote. Nessas condições, nenhum dos dois se interessava em permanecer em Charleston, e logo o casal se mudou para o que na época se chamava Nova Providência e que hoje tem o nome oficial de Nassau. A cidade é descrita na época como “um covil de maldade” e um “paraíso pirata”. O tempo logo provou que essas descrições não eram nem um pouco exageradas, pois a maioria da comunidade da época era formada por piratas e suas amantes. Qualquer um poderia pensar que isso inibiria Ann, mas o efeito foi justamente o oposto. O casamento, porém, logo a desagradou. No início ela ficou cansada de bancar a esposa fiel e que espera o retorno de seu marido quando este se lançava ao mar, mas mesmo depois que ele desistiu da pirataria e começou uma carreira como informante para o governador Woodes Rogers, entregando seus amigos piratas por recompensas,
CRÉDITO: LIVRO SOBRE PIRATAS DATADA DO SÉCULO XVIII.
tência obstinada. Ela supostamente matou uma serva por ter esbarrado nela, mas não há nenhum fato concreto que apoie este caso. É sabido, entretanto, que ela espancou um jovem por tentar assediá-la sexualmente e o machucou o suficiente para deixá-lo de cama por um bom tempo. Nessa época tinha apenas 14 anos. Aos 16 anos, apaixonou-se por um capitão que a cortejava sem o conhecimento de seu pai. James Bonny é mais uma figura enigmática na história da pirataria. Registros afirmam que seria na verdade ou um soldado sem um tostão ou um pirata por tempo limitado. Seja como for, o fato é que o velho William Cormac descobriu o romance e, como era de se esperar, não ficou nada contente com isso, pois tinha planos para que Ann se casasse com um homem de Charleston de sua escolha e se tornasse uma dama respeitável. Ele esperava que a filha assumisse seu lugar como a esposa de um dono de plantação. Ela sabia que seu pai olhava com desconfiança para seus desejos, seu temperamento e que tinha uma tendência para gostar de atividades tidas como exclusivamente masculinas na época. Ela desejava viver aventuras e emoções fortes e terminou sendo atraída pelo tipo de homem de mau gosto que dava às pencas nos cais e portos de Charleston, o lugar onde encontrou pela primeira vez James Bonny.
Este é um dos poucos retratos que se conhece de Ann Bonny, que se tornou mais temida que seus companheiros masculinos na pirataria
Ann se mostrava pouco contente com a situação. Muitos de seus amigos nas ilhas eram piratas ou haviam conquistado seu modo de viver à base da pirataria, o que fazia com que Ann visse seu marido como um vira-casaca. Ela logo daria seus passos independentes, sendo o primeiro deles travar conhecimento com um homem rico chamado Chidley Bayard, que a levava consigo para viajar e gastar dinheiro. Mas não se dava muito bem com os tipos de amigos que ele tinha. Num baile em que ele a levou, foi apresentada à cunhada do Governador Lawes da Jamaica e deixou os dois. Ann esperou até que Bayard se afastasse e começou a fazer insinuações sobre o tipo de relacionamento que ela mantinha com ele. A reação da cunhada do governador não podia ser diferente: horrorizada, esta não considerou Ann uma pessoa que valesse a pena travar amizade e logo ordenou que se afastasse de seu convívio. A reação da futura pirata foi se afastar da mulher o suficiente para dar um soco nela bem na boca, quebrando dois dentes no processo. Esse foi o fim de sua relação com Bayard, e mais uma vez ela se viu confinada a uma vida de tédio. CONTINUA NAS PRÓXIMAS EDIÇÕES
SÉRGIO PEREIRA COUTO
é jornalista com passagem por revistas como Discovery Magazine e Ciência Criminal. É autor de mais de trinta títulos, todos enfocando aspectos curiosos da história universal, entre eles os romances Sociedades Secretas e Help – A Lenda de um Beatlemaníaco, além dos livros de pesquisa Almanaque das Guerras, Decifrando o Símbolo Perdido e Códigos e Cifras: Da Antiguidade à Era Moderna
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“Todo este rio, nas margens e terra adentro, está povoado de índios e tantos em números, que para dar uma ideia de sua multidão, que se do ar deixassem cair uma agulha, há de dar em cabeça de índio e não no solo”
Um Mundo de Engobos, Excisões e Geoglifos Os maiores sítios arqueológicos da América do Sul estão na região brasileira da Amazônia. A história de sua formação revela aos profissionais que insistem em escavar nesses locais um passado interessante pelo qual vale a pena arriscar dias e noites de trabalho.
Por Mônica Trindade Canejo | Fotos de Maurício de Paiva
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Estatueta Santarém, acervo do MAE-USP
Amazônia Antiga, Arqueologia do Entorno Usar a fotografia para se despertar uma reflexão sobre a delicada relação do homem com o ambiente amazônico ao longo de milênios: é desta ideia que parte o livro Amazônia Antiga, com fotos de Maurício de Paiva e texto de Mônica Trindade Canejo. O livro traz ainda um texto de Eduardo Góes Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, reconhecido internacionalmente como maior autoridade no assunto, e prefácio do experiente e respeitadíssimo fotógrafo e editor, João Bittar.
A
ssim escrevia, por volta de 1542, frei Gaspar de Carvajal, integrante da expedição do espanhol Francisco de Orellana pelo rio Amazonas. Quase quinhentos anos depois, os pesquisadores se empenham em suas investigações em busca de saber um pouco mais sobre esta gente que impressionou o cronista. As pesquisas científicas se iniciaram a As pesquisas na partir da segunda metade do século XIX, Amazônia começaram com nomes como Karl Von Martius (1794no século XIX. Mas foram 1868), Ferreira Penna (1818-1888), Ladissomente nos últimos lau Netto (1828-1894) e Curt Nimuendaju quinze anos que o (1883-1945). Mas a arqueologia só passou vislumbre de sociedades realmente a ser pesquisada de forma sissofisticadas esbarrou temática depois da passagem do casal norte americano Betty Meggers (1921) e em provas concretas Clifford Evans (1920-1981). Jovens estuabundantes dantes da Universidade de Columbia estiveram pela primeira vez na Amazônia a partir do final da década de 1940 e, apoiados nas teses de Julian Steward (1902-1972), traçaram um perfil de
como acreditavam ser a Amazônia pré-histórica. Steward defendia a ideia de que as condições ecológicas determinavam como um grupo desenvolvia sua estrutura cultural. Em frente ao cenário amazônico, onde não havia caça de grande porte nem condições propícias para a agricultura intensiva, Meggers e Evans sugeriram que os habitantes dividiam-se em grupos reduzidos que se alimentavam de pequenos animais, pesca e coleta, mudando-se com frequência de endereço. Características que dificultavam o desenvolvimento de classes sociais e princípios de estado, mantendo-os sempre organizados socialmente de modo muito simples. Mas, e os relatos de Carvajal e de outros cronistas de sua época? Eram apenas fantasia? Apesar do modelo de teoria empregado por Meggers e Evans ter sido contestado por vários de seus conterrâneos – como Donald Lathrap, que defendia que a Amazônia seria na verdade um berço de importantes inovações culturais, afir-
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mando inclusive que a cerâmica mais antiga das Américas seria encontrada na Amazônia Central – no Brasil a tese conhecida como “determinismo ecológico” só foi realmente deixada de lado a partir da década de 1980, quando Anna Roosevelt (1946-), bisneta de Theodore Roosevelt e aluna de Lathrap, defendeu a ideia da existência de sociedades complexas que baseavam sua economia na cultura intensiva de milho e mandioca nas férteis terras da várzea. A partir daí, os pesquisadores mudaram o foco dos estudos e a busca passou a ser por provas destas sociedades complexas. “Ao se examinar mapas de distribuição das terras indígenas na Amazônia contemporânea e compará-los com mapas de distribuição de sítios arqueológicos, nota-se que a ocorrência de sítios é mais ampla que a de terras indígenas”, a afirmação é de Eduardo Góes Neves, doutor em Arqueologia pela Universidade de Indiana (EUA), professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e coordenador
do Projeto Amazônia Central, um revolucionário projeto de arqueologia que tem atraído pesquisadores de todo o mundo. Mas as evidências não param por aí: existem ainda alterações na paisagem, a exuberância da produção cerâmica em alguns pontos, solos alterados pela presença prolongada de grandes grupos, datações surpreendentes...
Caboclos e índios contemporâneos não são descendentes dos antigos habitantes, mas guardam modos de vida muito similares: são herdeiros da natureza
Primeiros Habitantes Na Amazônia brasileira estão os maiores sítios arqueológicos da América do Sul. E é no Pará, na Serra dos Carajás e em Monte Alegre, que estão os mais antigos indícios de populações humanas na Amazônia. Vestígios como artefatos líticos e pinturas que representavam humanos e animais, estudados por Roosevelt e sua equipe nos anos 1980, mostram que a presença humana na Amazônia tem, pelo menos, 11.200 anos. Outros sítios arqueológicos, com datas em torno de 9.000 anos, foram localizados em áreas bem
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Nas pequenas comunidades ribeirinhas, como esta no Marajó, as pessoas contam histórias de mistério e visagens sem saber que estão assentadas em antigos espaços sagrados para habitantes remotos
diversas, como nos arredores do alto rio Madeira, em Rondônia e em Iranduba, próximo a Manaus. Mas há pesquisadores, como o próprio Neves, que creem que estas datas podem chegar a 14 mil anos. Uma gente inquieta que ia e vinha por estas terras, buscando pouso e alimento. Importantes vestígios arqueológicos são também encontrados nos sambaquis (veja glossário), sítios encontrados no litoral, formados por montes de areia e conchas. Como nos lembra a arqueóloga Denise Pahl Schaan, presidente da Associação Brasileira de Arqueologia: “A Amazônia é rica em água, mas muita gente não se dá conta de que a região também tem mar. Da foz do rio Oiapoque, no Amapá, à baía de São Marcos, no Maranhão, são aproximadamente 1.500 km de litoral Atlântico, que compõem uma das maiores extensões contínuas de manguezais do Planeta”. Uma área com riquíssima biodiversidade que vem sendo ocupada pelo homem há pelo menos 5.500 anos. Pessoas que acrescentavam à sua ‘mesa’
moluscos e crustáceos. Foi também a observação destes sambaquis no final da década de 1980 que possibilitou a estimativa da presença de grupos humanos no baixo Amazonas: amostras de carvão e conchas retiradas do sambaqui de Taperinha foram datadas entre 7.600 e 7.335 anos a.P. Uma data que indica a idade da cerâmica mais antiga já encontrada no continente (esbarrando de perto nas previsões de Lathrap).
Lavoura Arcaica Usando um vestido branco e com gestos delicados, Dona Raimunda Braga, 79 anos, nos fala sobre a fertilidade de seu terreno: “Todo tipo de plantação vinga. A terra, mais úmida, custa a secar. Se a gente não usar adubo, as plantas ficam viçosas do mesmo jeito”. Sentada em frente à sua casa, em Iranduba, AM, ela nos conta que a vida toda lidou com a lavoura e hoje sua família planta mamão, coco, banana e laranja. Milênios antes, como Raimunda, outros moradores já se
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encontravam na região e faziam as primeiras experiências com a agricultura. Estamos falando de grupos de horticultores do estabelecimento do sedentarismo. Este período, que pode ser chamado de ‘formativo’, ainda traz muitas incógnitas. Mas a intensificação das pesquisas nos últimos dez anos começa a trazer algumas evidências. A arqueóloga Denise Maria Cavalcante Gomes, pós-doutora em Arqueologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em pesquisas realizadas na área do Rio Tapajós, em Santarém (PA), determinou datas entre 3.800 e 3.600 a.P para aldeias de ceramistas horticultores. Uma data não muito distante, 4.000 a 2000 a.P, foi sugerida por Anna Roosevelt para uma ocupação semelhante na Caverna da Pedra Pintada, também no Pará. É provável que se organizassem em pequenas aldeias, variando entre 40 e 300 pessoas. Mesmo que a agricultura não tenha, até hoje, se consolidado como principal modo de subsis-
tência, o cultivo de algumas plantas possibilita- O pescador não sabe, mas vam o enriquecimento da dieta e, até, intercâm- repete em seu dia a dia a lida que muitos outros já tiveram bios comerciais dos excedentes. Um processo nos últimos milênios, como que se iniciou séculos antes, com a domestica- os fabricantes desta urna ção de algumas espécies vegetais, como a man- Guarita, no Amazonas dioca, a pupunha e o mamão. Por domesticação queremos dizer que este homem aprendeu a selecionar os melhores exemplares e interferir em sua reprodução, na tentativa de se obter os melhores resultados, um Neste ponto, a mandioca processo que poderia acompanhar é uma espécie de rainha gerações. Uma espécie de melhora- local. Há evidências de mento genético pré-histórico. Neste que seu cultivo tenha se ponto, a mandioca é uma espécie de rainha local. Há evidências de iniciado há cerca de 5.000 que seu cultivo tenha se iniciado há anos, em Rondônia, no cerca de 5.000 anos, em Rondônia, alto rio Madeira no alto rio Madeira. E, até hoje, ela é indispensável em qualquer casa amazônica, onde é servida na forma de diferentes farinhas, acompanhando carnes, peixes, açaí...
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A possibilidade de se armazenar a mandioca sob a forma de pão ou farinha por longos períodos a tornava interessante não só para evitar a fome em tempos de escassez, também a colocava na bagagem dos caixeiros viajantes de então, que atravessavam a Amazônia negociando itens como o peixe seco, cerâmica, ferramentas de pedra e valiosos adornos verdes de jadeíta.
Fronteiras Fluidas “(...) em cada povoado que chegam acham casas cheias de pescado seco, que eles levam a vender pelo sertão e tem suas contrações com outros índios. Vão os caminhos muito abertos, de muitos seguidos, porque corre muita gente por eles”. A afirmação é de Diogo Nunes, viajante português que percorreu a região em 1538, portanto antes mesmo de Carvajal, e se refere à região do rio Solimões. Como Nunes, outros cronistas da mesma época fazem referências ao tema. O antropólogo Antônio Porro, especialista em etno-história, diz em seu livro O Povo das Águas: “(...) quase todos os cronistas dos séculos XVI e XVII deixaram depoimentos sobre o assunto, embora, no geral, muito superficiais. Observe-se contudo que, tão importantes quanto as breves notas sobre o comércio propriamente Os estudos sugerem que dito, são as evidências de comunicações regulares e não limitadas à os cacicados surgiram guerra entre grupos distintos taninicialmente na ilha de to vizinhos como por vezes muito marajó, onde a cultura afastados”. Estes relatos nos falam conhecida como marajoara de uma Amazônia viva e ricamente povoada na época do descobrimenperdurou por 900 anos to, que estudos arqueológicos vão comprovando a cada dia. Manuel Arroyo, um arqueólogo chileno que pesquisa na região da Amazônia Central, afirma que ‘fica claro que há relações a longa distância. A paisagem foi transformada pelas ocupações humanas’”. Mas os cronistas seiscentistas também fizeram referências ao modo como estes grupos se organizavam politicamente. Eles descrevem que os grupos indígenas tinham, além de seus próprios chefes locais, um chefe regional, num modelo de poder que se estendia por espaços longos e periféricos. Caso de Mauricio de Heriarte, companheiro de viagem de Pedro Teixeira numa expedição realizada entre 1637 e 1639, que escreveu sobre os Omagua, então habitantes do Alto Amazonas:
“Governão-se por principaes nas aldeias; e no meio desta província, que he dilatada, ha um Principal, ou rei delles, a que todos obedecem com grandíssima sujeição...”. A esta forma de poder hoje os pesquisadores chamam de cacicado (veja glossário). Depois do período formativo, o que a Amazônia presenciou foi um adensamento populacional, com consequente necessidade de maior organização social e política. O grande número, a complexidade e o tamanho de sítios arqueológicos com idades em torno de 2.000 anos ajudam os pesquisadores a compreender esta transformação. Os estudos sugerem que os cacicados surgiram inicialmente na ilha de Marajó, onde a cultura conhecida como marajoara perdurou por 900 anos. Já na Amazônia Central (Manaus e ar-
Breve linHA Do TeMPo 11.200 a.P. (antes do presente) – data provável das primeiras ocupações na Amazônia, de acordo com vestígios encontrados na Caverna da Pedra Pintada, em Monte Alegre, no Pará. 8. 500 a.P. – datação de uma ponta de flecha de sílex, encontrada pelo arqueólogo norte americano James Petersen durante escavações no sítio dona Estela, em Iranduba (área do PAC), a 25 km de Manaus, em 2002. 7.600-7335 a.P. – data das cerâmicas encontradas pelas pesquisadoras Maura Imazio da Silveira, Anna roosevelt e equipe no sambaqui de Taperinha, no Pará: o mais antigo do continente. 2.000 a.P. – Início da formação de Terra Preta na Amazônia Central (na região do alto Madeira, estima-se que esta formação se inicie 2.000 antes). 1.550 a.P. – Início da ocupação Marajoara, no Arquipélago de Marajó, PA. 1.100 a.P. – Início dos cacicados na Amazônia Central. 650 a.P. – Final da ocupação Marajoara. 500 a.P. – Chegada dos europeus à Amazônia.
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redores), eles se formaram por volta do ano 900 d.C.. Boa parte destes cacicados estava em plena atividade quando os europeus chegaram e impressionou os cronistas de então, que os interpretaram como ‘reinos’. Um rico processo sócio-cultural em plena expansão que foi interrompido justamente pela abrupta chegada dos europeus, com sua agressividade e agentes patogênicos para os quais os índios não tinham nenhum tipo de defesa. Um dos principais sinais desta fase são as visíveis modificações na paisagem, como estruturas monumentais erguidas no Arquipélago de Marajó, no Acre e na Bolívia. Outros grandes indicadores são a produção de cerâmica e a presença de solos modificados pela atividade humana por longo período: a Terra Preta Arqueológica (glossário).
Terra Preta “Me desculpe, mas nisto eu não vou acreditar”. Assim falou um morador do Amazonas à educadora Maria Teresa Parente, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, durante os trabalhos de educação patrimonial realizados junto às comunidades próximas a sítios arqueológicos. Ele falava sobre a terra preta, um tipo de solo bastante encontrado na região, ter origem humana. E ele tem sua razão: como a terra, tão representativa força da natureza, pode ter sido feita pelo homem? Então a jovem precisou de toda a sua habilidade para explicar que este elemento da natureza só apresenta estas características que tem hoje por interferência do homem. Por isto, conhecê-lo é tão importante para desvendar segredos de um passado remoto. Estas manchas de solo escuro (que podem ser de poucos metros ou de até centenas de hectares – com profundidades de 0,30 a 2,00m) não eram propositais, mas fruto de anos de manejo e descarte – como restos de alimentos e palha dos telhados – que foram deixando suas marcas. Além de férteis e ricas em matéria orgânica, as terras pretas possuem pH próximo a neutro, o que ajuda na conservação de ossos, muitas vezes encontrados dentro de exuberantes urnas funerárias de cerâmica. Em sítios arqueológicos, com elas é possível associar fatores naturais – o próprio solo – e fatores culturais – fragmen-
tos de cerâmicas, refugos orgânicos e carvão de fogueira (que lhe confere a cor escura), ossos de animais e peixe, cascas de frutas e raízes. “As terras pretas talvez sejam o melhor indicador de que os ambientes amazônicos foram modificados pelas populações indígenas que ocupavam e reocupavam a área antes da conquista e, há 2000 anos, junto de um denso padrão de assentamento”, diz Eduardo Góes Neves. Comprovando a passagem humana, a terra preta se espalha por toda a Amazônia brasileira, deixando sinais no Pará, no Amazonas, em Roraima e até no Xingu, onde o pesquisador Michael Heinckenberg, da Universidade da Flórida, realiza pesquisas, relacionando vestígios arqueológicos com atuais grupos indígenas. Quanto maior a mancha produzida no solo natural, maior o agrupamento humano que ali esteve. Quanto mais profunda, maior o tempo desta ocupação.
Para os moradores da Amazônia, encontrar peças arqueológicas faz parte do cotidiano. Como o deste morador, que colocou uma urna funerária da fase Guarita em sua sala. Autazes, AM
Aldeia da louça Mas, nos idos de 1500, Gaspar de Carvajal não atentou para o escuro do chão. Seus olhos estavam deslumbrados com outra coisa: a belíssima cerâmica, que ele descreveu como “a melhor que já se viu no mundo, porque a ela nem a de Málaga se iguala. É toda vidrada e esmaltada de todas as cores, tão vivas que
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entrevista | Denise Pahl Schaan Leituras da História – Como você vê o panorama atual das pesquisas arqueológicas no Brasil? Denise Pahl Schaan – Acho que estamos vivendo um bom momento, de expansão, de multiplicação de cursos e de arqueólogos. A arqueologia no Brasil está crescendo. LDH – E especificamente na Amazônia? DPS – O mesmo, mas ainda falta muita pesquisa e mais pessoas, especialmente as pessoas locais precisam ter oportunidade para estudar. Na UFPA estamos já no segundo curso de especialização em Arqueologia e recentemente mandamos para a CAPES uma proposta de um programa de pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Antropologia nos quatro campos, o que inclui a arqueologia e a antropologia biológica, inexistentes até agora na região. LDH – Você acredita que os profissionais brasileiros estão bem preparados? Há necessidade de mudanças na forma como estes profissionais são formados? E com relação aos colegas estrangeiros? DPS – Há excelentes cursos de mestrado e doutorado em Arqueologia no Brasil que em nada ficam devendo aos do exterior. Acho, entretanto, que o Doutorado no exterior é bastante benéfico, pois os cursos no exterior, principalmente nos EUA, exigem mais do aluno e a vivência com profissionais estrangeiros é importante para os contatos profissionais, para aprender a escrever em outra língua, etc, insere melhor o profissional. LDH – Há até pouco tempo, alguns pesquisadores sugeriam que a Amazônia pré-cabralina era habitada por sociedades pouco sofisticadas. O que as atuais pesquisas dizem sobre isto? DPS – Hoje sabemos que a Amazônia era habitada por sociedades complexas, regionais, os chamados cacicados, em várias regiões. Não há como negar, pois há suficientes evidências arqueológicas. LDH – Gostaria que você falasse um pouco sobre a sua tese a respeito da iconografia marajoara. DPS – A iconografia marajoara é uma linguagem visual, que possui regras de funcionamento, como uma gramática. A escrita pode ser pictórica ou fonética. Em qualquer um dos casos, cada símbolo pode ser traduzido por significados e todos eles juntos formam frases. Os signos marajoara não foram palavras ou frases, mas veiculam cenas, ideias,
Denise Pahl Schaam durante estudos sobre os geoglifos no Acre. Ela é também a principal pesquisadora da cultura Marajoara, no Pará.
histórias. Você pode comparar com os vitrais nas igrejas católicas em que há cenas da paixão de Cristo. Os vitrais, em sequência, contam uma história. LDH – Como você desenvolveu esta tese? DPS – Meu maior desafio no estudo da iconografia marajoara era demonstrar que mesmo os desenhos mais geométricos tinham na verdade significados, ou referentes conhecidos e reconhecidos pela população. Descobri o significado de alguns, não todos, através da comparação exaustiva da decoração de várias peças. Verificando as posições que os desenhos ocupavam, um em relação aos outros, pude perceber que alguns se equivaliam e quando o “naturalista” equivalia-se ao “geométrico”, eu já sabia o que o geométrico significava. LDH – E o que significa “possuir um cógido visual” dentro deste contexto? DPS – O que se percebe na iconografia marajoara está presente na arte de muitas sociedades sem escrita. Como dos Wayana, Walbiri, Asurini, há muitas publicações sobre isso. Nesse sentido, o marajoara não se destaca. A questão é que na arte marajoara isso é demonstrável. Em outras artes só se sabe porque se pergunta para os índios, no caso de sociedades contemporâneas. LDH – Como a população atual lida com os vestígios arqueológicos? DPS – As pessoas locais sabem identificar os tesos como tendo sido construídos pelos índios, reconhecem a cerâmica e a coletam caso possam tirar algum proveito financeiro. Em geral quebram a cerâmica para ver se há algo de valioso dentro
– como ouro. Mas não têm o sentido da preservação. LDH – Qual é, para o seu trabalho, a importância de se relacionar com os moradores? DPS – É fundamental, você não chega na casa de ninguém botando banca e mexendo em tudo. Você tem que entender que o arqueólogo é o estrangeiro, que deve pedir licença, ouvir as pessoas, procurar seu apoio. Só se trabalha com autorização local. As pessoas em geral gostam de participar das pesquisas e sabem muito bem lidar na terra, escavar, entender o que encontram. Acho também que por meio do nosso trabalho podemos sim sensibilizar as pessoas para as questões relativas à arqueologia, preservação, história, entre outros. LDH – Atualmente você também tem participado de pesquisas no Acre, onde são encontrados os geoglifos. Pode descrever como são estas estruturas? DPS – Estes sítios arqueológicos são formados em geral por um conjunto de estruturas geométricas compostas de trincheiras/muretas, muretas lineares sem trincheiras, caminhos circundados por muretas, além de montículos no interior ou exterior dos geoglifos. LDH – O que você diria sobre a precisão geométrica das estruturas? Há um fundo simbólico? DPS – Sua geometria perfeita indica seu caráter francamente simbólico: denota a maneira correta de construir assentamentos ou praças cerimoniais, implicando aí talvez a intenção de seguir as diretrizes deixadas por espíritos ancestrais.
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glOSSÁriO Açaí: fruto da palmeira Euterpe Oleracea, nativa da Amazônia. Indispensável na dieta do paraense até hoje, o açaí já era consumido bem antes da chegada dos europeus, de acordo com vestígios encontrados em cerâmicas arqueológicas. Antiplástico: elemento (cascas de madeira, cacos triturados, conchas...) que é adicionado à argila na hora de se produzir a cerâmica. é utilizado para dar maior resistência aos objetos. Também é conhecido como tempero. Antropomorfo: com forma humana. Arqueologia: área do conhecimento que busca, através de análise de vestígios materiais, estudar o modo de vida de sociedades do passado. Cacicados: sociedades estratificadas em que um poder político centralizado comandava diversos grupos, abrangendo áreas com até dezenas de quilômetros. A maioria dos cacicados amazônicos surgiu no final do primeiro milênio d. C. engobo: camada de argila associada a substancias vegetais que pode recobrir a superfície de peças de cerâmica. Pode ser ou não pigmentado. estratigrafia: ramo da geologia que estuda as camadas de rocha, buscando compreender seu processo de formação. excisão: retirada de áreas da superfície da cerâmica, antes ou depois da queima, para se produzir desenhos em alto relevo. Fase: modo como são classificados artefatos com semelhantes confecção e decoração, dentro de uma disposição espacial e temporal em comum. Por exemplo: fase Guarita, fase marajoara. Feição: manchas escuras no solo resultantes de combustão. geogliflos: grandes estruturas geométricas desenhadas no solo. No Brasil, podem ser encontradas no Acre. incisão: motivo produzido em baixo relevo ao se apertar um instrumento na superfície da cerâmica. Jadeíta: pedra verde utilizada para a confecção
Para saber
espantam, e além disso os desenhos e pinturas que fazem nela são tão compassados que com naturalidade eles trabalham e desenham tudo com o romano”. Tantos séculos depois estas mesmas peças continuam atraindo olhares intrigados. Para os pesquisadores, o interesse que elas despertam vai muito além da beleza. Urnas funerárias, estatuetas, recipientes ritualísticos, vasos, pratos, e diversos outros objetos de uso cotidiano: um legado material que nos conta um pouco mais sobre quem as fez. Observação do processo de fabricação, comparações estilísticas, quantidade, resquícios de alimento, desenhos padronizados, material utilizado, entre outras coisas, são ferramentas à disposição de pesquisadores que ajudam a compreender datas e caminhos percorridos, hábitos e relações sociais, crenças e saberes. Em toda a região, da foz do Amazonas ao sopé dos Andes, é possível encontrar peças, com destaque para as da chamada ‘tradição polícroma ’ (glossário). Ricamente adornadas com pinturas em preto, branco e vermelho, e com apliques e formatos antropomorfos (glossário), as cerâmicas vão indicando aos pesquisadores onde havia uma ocupação humana. Aqui e ali, estes objetos vão nos contando histórias destas gentes, povoadores de um imenso território, num caminho temporal que se estende ao passado em vários milhares de anos, sucedendo-se uns aos outros. Mas não são apenas os estudiosos que lidam com estes objetos. Encontrados nos fundos dos quintais, nas margens dos igarapés, aflorando nos barrancos depois de uma chuva forte, peças e fragmentos fazem parte do dia a dia do atual morador da Amazônia. É este homem que, ao capinar sua rocinha, encontra este tesouro deixado há séculos. Como se fosse possível reviver o passado, até hoje o caboclo segue um modelo cotidiano que não difere muito do dos antepassados remotos. Pescam, caçam, colhem açaí (glossário), constroem casas com madeira nativa, viajam em canoas, torram a farinha. É fácil ver como a vida continua seu caminho nos mesmos locais que foram habitados há milhares de anos. Em cada sítio arqueológico, os vestígios remotos. Nos seus entornos, os caboclos de hoje. É, novamente, o homem ocupando seu lugar no ambiente amazônico.
de pingentes, brincos e outros adornos. lítico: produzido com pedras (por exemplo: pontas de flecha, machadinhas...). Monolito (ou monólito): grande bloco inteiriço de rocha sobre um terreno. Montículo: espécie de monte construído com Terra Preta e grande quantidade de fragmentos de cerâmica arqueológica. Policromia: tipo de acabamento em peças de cerâmica caracterizado por pinturas em preto e vermelho sobre engobo branco. Cerâmicas policrômicas podem ser encontradas praticamente em toda a região amazônica. Pré-história: período que antecede a escrita. No Brasil, é considerado pré-histórico o que é anterior à chegada dos colonizadores europeus. sambaquis: aterros arqueológicos produzidos com areia e conchas. Estão presentes em boa parte da costa brasileira. sito arqueológico: local onde são encontrados vestígios deixados por sociedades do passado. sítio-escola: pesquisas realizadas em sítios arqueológicos periodicamente, onde alunos de diversas áreas têm oportunidade de participar de escavações. Tesos: grandes montes artificiais com até 12 m de altura e 3 hectares de área. São comum no Arquipélago de Marajó, no Pará, e podem ter sido construídos para moradia da elite marajoara. Terra Preta Arqueológica: tipo de solo produzido ao longo de séculos através do acúmulo de dejetos orgânicos derivados de atividades humanas. Tradagem: retirada em sentido vertical de volumes de terra para amostra. Geralmente, estas amostras são separadas a cada 20 cm para se definir as camadas arqueológicas. Tradição: modo como são classificados artefatos com semelhantes confecção e decoração, mas com disposição espacial e temporal diversos. Por exemplo: Tradição Polícroma da Amazônia. Zoomorfo: em forma de animal.
dE PAIvA, Maurícia; CANEJO, Mônica Trindade. Amazônia Antiga. dBA Editora, 2009 FAUSTO, Carlos. Os Índios Antes do Brasil. Jorge Zahar Editor, 2000 NEvES, Eduardo Góes. Arqueologia da Amazônia. Jorge Zahar Editor, 2006 POrrO, vozes. O Povo das Águas. vozes/Edusp, 1996. MEGGErS, Bette. Amazônia, a Ilusão de um Paraíso. Civilização Brasileira, 1987.
môniCA trindAde CAneJO é jornalista, fotógrafa e coautora do livro Amazônia Antiga, Arqueologia do Entorno, da dBA Editora
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História da arte | Oriente
(Parte 3 de 3)
Os Mistérios da
Arte Indiana
Misteriosas e atraentes aos olhos dos ocidentais, as produções indianas fascinam por sua variedade de formas, cores e personagens retratados. Nesta terceira e última parte do artigo iniciado na edição 25, veremos as danças gestuais, a influência do budismo e a situação da Índia no século XVI.
A
dança gestual, que parece ter nascido na Índia, foi exportada para o Japão, a Indochina, a Indonésia, a Micronésia e a Polinésia; na direção oeste, é possível que tenha chegado à Grécia. Juntamente com os produtos do mundo mediterrâneo, veio o cristianismo – e talvez o apóstolo São Tomé, se dermos crédito a Camões e à tradição em geral. No século II d. C., tornou-se importantíssimo o comércio romano com a Índia meridional e o Ceilão, ponto privilegiado nas rotas de comércio marítimo que ligavam o sul indiano com os árabes, os chineses e os povos do sudeste asiático. Não é de se admirar que, no mapa-múndi de Ptolomeu, essa ilha – que, desde tempos muito remotos, já comerciava com o Egito – apareça maior do que o próprio subcontinente indiano. Continuemos com a arte máuria dos tempos de Ashoka. Na arquitetura, as construções em campo aberto alternam-se com os monumentos rupestres, marcantes na arte indiana. Contemporaneamente, constroem-se colunas isoladas com capitéis campaniformes e em
Por Giovanni Renart forma de animais ou de símbolos extraídos do budismo; a influência iraniana evidencia-se nos leões alados, grifos e motivos florais – é provável que os artistas responsáveis por essas obras tenham vindo da Pérsia; igualmente, pode-se supor que as inscrições em pedra feitas a mando de Ashoka tivessem seu modelo na Pérsia de Dario I. É plausível que muitos artistas persas tenham emigrado para a Índia por ocasião da queda do Império Aquemênide, em fins do século IV a. C., o que justificaria a presença persa nesse tipo de arte. A Índia máuria não deixa nada a desejar, quanto ao luxo e ao esplendor, em relação à dos mogóis, que existiu dois milênios depois. Deve-se a Ashoka a fundação do mosteiro de Sanchi, em cujas imediações o budismo esculpiu a sua bíblia na pedra. É ainda entre os máurias que se estabeleceram os grêmios de artesãos, de importância marcante para o desenvolvimento posterior da arte indiana. Juntamente com os comerciantes e os nobres, foram eles os patrocinadores da arte budista no período que se segue à desintegração do império dos máurias.
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Crédito: British Museum, Londres, Inglaterra.
Finda a época máuria em 184 a. C., começa a dos shungas, brâmanes de origem incerta. É um período conturbado politicamente, em que diversas dinastias indianas e não indianas desfazem a unificação que tanto havia custado aos máurias realizar. Além da dinastia shunga, reinante no centro e no norte da Índia, destacou-se o reino dravídico dos Andhra de Satavahana, que existiu entre o século I a. C. e o IV d.C. e teve a sua capital em Amaravati, famoso centro irradiador das artes. Também tiveram importância os reinos indo-gregos do noroeste, tais como os governados por Demétrio II e Menandro, ainda no século II a. C.. Na arte, o budismo tomou a dianteira: floresceram os mosteiros rupestres e os relicários (estupas), em cujos baixos-relevos encontramse as primeiras composições narrativas dos grandes temas da vida de Buda e do próprio budismo. É somente a partir do século II d.C. que a escultura budista adquire autonomia, não mais se limitando a ser um complemento da arquitetura.
A Era Helenista A penetração helênica na Índia teve consequências profundas. Sobre as pegadas de Alexandre, sírios, gregos e citas estabeleceramse no Punjab durante a era helenista, criando a arte greco-bactriana. Seguiram-se a eles os cushans, tribo da Ásia Central etnicamente ligada aos turcos, que conquistaram Cabul no século I d.C., fazendo dela sua capital. É notável que, já na Era Aquemênide (século IV a.C.), houvesse gregos desterrados da Hélade em Báctria. Quanto à desintegração dos reinos indo-gregos formados após a morte de Alexandre, foi um efeito da pressão exercida pelos citas, por sua vez desalojados das estepes asiáticas pelos yuch-chi, um dos povos contra os quais havia sido construída a muralha da China, cerca de 220 a.C.. Além da Báctria, os citas estabeleceram-se também na Pártia e no norte da Índia, de onde foram mais uma vez expulsos pelos yuch-chi). Empregando técnicas e estilos que remontam a tradições iranianas, partas, citas, helenísticas, romanas e indianas, a arte religiosa cushan desenvolvese no noroeste da Índia até o século III d.C. Em meados do mesmo século, com o fim da dinastia parta (226) e a emergência dos sassânidas, os
cushan, já debilitados, não tardam a se tornar vassalos da Pérsia sassânida. Quanto aos citas, os cushan os haviam empurrado para o sul e o oeste da Índia, onde permaneceram até o início do século V. Sob o reinado de Kanishka (d.C. 78 – 144 d.C.), celebrouse o quarto concílio budista, que resultou na expansão do budismo na Ásia Central e na China; estreitaram-se relações que já existiam por meio do comércio. Desviando-se dos ensinamentos de Buda, muitos monges passaram a viver de forma cômoda e distante da população, isolados em seus mosteiros. Era um dos sinais das dissidências internas que culminariam com o cisma do início do século II d.C., reconhecido no quarto concílio budista. Aos budistas ortodoxos (seita hinayana, “filiados ao veículo menor”) coube expandirse pelo Ceilão, a Birmânia e o sudeste asiático; os inovadores (mahayana, “filiados ao veículo maior”) espalharam-se pela Índia, a Ásia Central, o Tibete, a China e o Japão. Dentre as muitas inovações em apreço, estava a deificação de Buda, algo que ele mes-
Moeda que representa o rei gupta Chandragupta II, representante do chamado “século de Péricles da Índia”
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História da arte | Oriente
mo sempre havia recusado; a ideia da vinda do Buda Maitreya, salvador que redime a humanidade por meio do seu próprio sofrimento, indica uma possível influência “Os Panchatantra cristã. Entretanto, parece que a doutrina mahayana já existia no (Cinco Livros) I a.C., em Andhara. Denmarcam o apogeu século tre os pensadores budistas que do conto indiano” expuseram os novos preceitos, destaca-se a figura de Nagarjuna, considerado o “São Paulo do budismo”. Diferentemente do budismo, que se converteu em religião universal, o jainismo deteve-se dentro das fronteiras indianas. Nem por isso deixou de passar por um cisma: dividiu-se entre os
digambara [“vestidos pelo ar” = “nus”] e os shvetambara [“vestidos de branco”]. Entre os séculos I e II d.C., surgem as primeiras representações antropomórficas de Buda, talvez sob inspiração jainista e certamente grega. Pertence ao mesmo contexto a arte de Gandhara, que se estende até o século IX d.C. Consequência das conquistas de Alexandre e seus herdeiros, ela marca “o encontro do mundo helenista e do mundo budista”, assinalando também a primeira “interpenetração, no domínio das artes figurativas, entre a Ásia e a Europa”. Nos temas relativos à vida de Buda, ora vemos deuses hindus (Indra e Brahma), parto-mesopotâmios (Nanaia) ou gregos (Atena); o próprio Buda aparece como o deus Apólo. Afinidades estilísticas parecem indicar uma descendência entre algumas estátuas de Buda e as da Mesopotâmia helenista, notadamente Palmira e Hatra. Na arquitetura, capitéis jônicos e coríntios, além do próprio planejamento urbanístico, evidenciam a influência helenista. Há também traços centro-asiáticos e iranianos na arte de Gandhara, ou seja, a orientação frontal e o peso estilístico das obras em pedra. Nas pinturas, que são raras, misturam-se tradições ocidental, iraniana e indiana. Na ourivesaria, os motivos utilizados têm origem cita, sármata e indiana.
O Período Andhra
Capitel encontrado em Wat U Mong, Chiang Mai, Tailândia
Em relativa simultaneidade com a dinastia cushan, floresceu no centro e no sul da Índia o período Andhra recente (25 a.C. a 320 d.C.). Duas tendências artísticas se fizeram notar: uma, de índole autóctone e tradicionalista; outra, seguidora da arte de Gandhara. Uma decoração rica substituiu as formas sóbrias nos santuários rupestres e nos mosteiros. Os baixos-relevos de caráter narrativo tornaramse mais dinâmicos e complexos; as figuras foram postas em planos diversos, sugerindo profundidade espacial. As estátuas, por sua vez, eram moldadas com cuidado especial; alcançaram uma delicadeza e uma espiritualidade que só seriam superadas na Era Gupta. No século IV, ocorreu uma nova unificação
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CrédItO: Museu dO PaLÁCIO de tOPIKaPI, eM InstanBuL, na turQuIa
oferecida pelos chineses e indianos aos nômades do centro da Ásia foi parcialmente responsável pela fúria com que os hunos caíram sobre a Europa”. No fi m do século VI, atacados pelos turcos e pelos persas na Báctria, os hunos deixaram defi nitivamente de constituir um perigo para os indianos. Ainda no século IV, durante o reinado de Samudragupta (ele mesmo, ao que parece, poeta e músico), foi grande o florescimento da literatura e de todas as outras artes. Um exemplo entre muitíssimos: possivelmente iniciados no século II e concluídos somente no século VI, os Panchatantra (Cinco Livros) marcam o apogeu do conto indiano. É a mais importante coletânea indiana de fábulas, representantes de um padrão nunca alcançado nos gêneros narrativo e didático. Seu raio de propagação é enorme: traduzido para o pahlevi, chega à Pérsia sassânida no século VI; em árabe, surge no mundo islâmico por volta do ano 750, de onde nasce uma versão hebraica no século XII, fonte para a tradução latina de Giovanni da Capua no século XIII; mais alguns percursos e a obra alcança La Fontaine no século XVII. Em 1251, o texto árabe foi diretamente traduzido para o castelhano sob os auspícios do rei espanhol Alfonso X. Eis um paradigma a destacar, segundo Louis Renou: “O chacal, ministro do leão, exerce o papel da raposa nas fábulas do Ocidente”.
Para saber
da Índia, desta vez sob o primado da dinastia gupta, marcada pelo retorno ao antigo culto hindu; pode-se repetir com Jean Roger Rivière que se trata da “idade de ouro da cultura hindu” e que os guptas, “adoradores de Vishnu, muito cultos, conscientes do seu papel histórico e cultural, fi zeram da Índia refinada, rica e poderosa do século IV ao VI um centro de difusão para toda a Ásia”. Foi realmente uma nova época, que se estendeu até o século VII – apesar da ruptura causada pela invasão dos hunos em 500 d.C., que acelerou a decadência gupta (Coomaraswamy prolonga a Era Gupta até o ano 720). Foi preciso esperar até os primeiros anos do século VII para que Harsha-vardhana, da mesma linhagem gupta, libertasse o norte da Índia, estabelecendo sua capital em Kanauj. Graças a ele, as artes ganharam novo impulso. Tal como Samudragupta, Harsha foi artista; escreveu três peças de teatro. “Podemos conjeturar do esplendor, tamanho e prosperidade de Kanauj com base no incrível fato de os muçulmanos terem-lhe destruído 10 mil templos durante a invasão de 1018”, diz Will Durante (convém destacar que a arquitetura dos teatros seguia as regras estabelecidas para a edificação dos templos. Nada mais natural que o sentido ritualístico estivesse presente em cada etapa da construção de um edifício teatral). Distantes das invasões que assolam o norte da Índia nessa época, o drama e o teatro sânscritos refugiam-se no sul, notadamente na parte que corresponde ao atual Estado do Kerala, sob os auspícios do rei Kulaschekara Varman e do seu ministro Tolan. Os guptas deram à cultura indiana uma amplitude continental; segundo Coomaraswamy, “quase tudo que pertence à consciência espiritual comum da Ásia, o ambiente no qual as diversidades são reconciliáveis, isso descende da Índia gupta”. Outro mérito dos gupta foi o de ter debilitado o poderio huno; quando invadiram a Índia, os hunos já não representavam uma ameaça tão grande. Talvez por isso a Índia não tenha tido um destino semelhante ao do Império Romano. É plausível a hipótese de Romila Thapar, segundo a qual “a resistência
Página de um manuscrito persa do século XV, que mostra o chacal vizir (à direita) tentando convencer o rei leão (à esquerda) a entrar para a guerra
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GIOVANI RENART é filósofo e escreve para esta publicação
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Os Homens Sábios da Sociedade Celta Caracterizados por filmes e histórias em quadrinhos como uma espécie antiga de magos, os druidas são muito mais do que simples sacerdotes. Nesta segunda e última parte do artigo, conheceremos o papel dos vates, mais detalhes sobre a tradição druídica e um pouco sobre o misterioso homem chamado Merlin.
(Parte 2 de 2)
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odos, com certeza, já ouviram falar de bardos ou dos próprios druidas, que a esta altura do campeonato dispensam apresentações. Porém, poucos ouviram falar dos vates, a terceira classe que pertencia à casta. Esses membros eram versados em adivinhação e medicina, dominavam a escrita (ao contrário dos bardos) e sabiam interpretar os sinais que a natureza lhes enviava. Segundo alguns relatos, eram capazes de diagnosticar doenças apenas ao observar a fumaça que saía da chaminé da casa de seu paciente. Os vates (também conhecidos como ovates) eram jovens estudantes, no primeiro nível da formação de um druida. Ao contrário dos druidas e dos bardos, tinham sua própria cor de vestimenta, o verde, que segundo a tradição druídica é a cor que mais traz à lembrança os tenros anos da juventude. Eles centravam seus conhecimentos nos poderes de observação, analisando e observando os efeitos que a natureza exercia sobre a vida e
Por Sérgio Pereira Couto a matéria. Assim, pode-se concluir que eram estudantes de ciências naturais. Os vates também eram escritores de prosa e compositores. De acordo com o historiador, geógrafo e filósofo grego Estrabão (63 a.C. ou 64 a.C. - cerca 24 d.C), os vates eram “intérpretes dos sacrifícios e filósofos naturais. As suas artes divinatórias também eram bem conhecidas, assim como o fato de serem responsáveis pelo calendário de ‘Coligy’, que era descrito como um meio de previsão solar/lunar”.
Merlin A sociedade celta considerava os druidas como pessoas que possuíam laços estreitos com o poder. Enquanto a autoridade do rei era concedida numa base que possuía uma origem divina (mesmo quando os soberanos eram politeístas), a autoridade do druida era essencial também para aprovar os suseranos. Que o diga o rei Arthur, que, na maioria das versões da lenda, necessita da apro-
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Seja como for, o mago de Arthur é um exemplo do quanto a figura do druida ficou presa à imaginação medieval. Não importa se ele foi uma pessoa real ou não.
Desmistificações Embora sejam frequentemente associados aos celtas, muitos pesquisadores afirmam que é um erro associá-los somente com aquele povo. Um site de druidismo na Internet afirma que “dissociar os celtas dos druidas é o mesmo que dissociar os pajés dos índios nativos de nossas terras. Ou, grosso modo, dissociar os padres do catolicismo”. Isso vem de um ponto de partida simples: nem toda tribo celta possuía um druida ou mesmo seguia o druidismo como religião. A maioria das tribos que se localizavam em regiões como as da Gália, Grã-Bretanha e Irlanda com certeza possuíam druidas. Importante é ressaltar que as versões modernas não possuem necessariamente etnias celtas, da mesma maneira como não é necessário ser hebreu para seguir o judaísmo. Uma outra desmistificação importante é a de que os druidas eram monoteístas. Esse é considerado um erro absurdo originado de desinformações difundidas pelo chamado
Druidas modernos, após realização de cerimônia de saudação ao Sol, posam contentes com suas atribuições cumpridas e fé renovada na natureza
Crédito: Andrew Dunn, Ordem dos Bardos Ovates e Druidas
vação de Merlin para assumir o cargo de rei da Inglaterra. Também é desnecessário dizer que a figura de Merlin impregnou de tal modo os relatos de contos e lendas na Idade Média que, por muito tempo, o mago e o druida se tornaram um só. Mas quem era essa figura tão influente na vida real? Essa é uma pergunta que os pesquisadores tentam responder até hoje. Para muitos, o mago seria mesmo um último druida que teria exercido seu poder na Grã-Bretanha já invadida pelo pensamento cristão, que foi descrito por este último como um filho de uma freira com um íncubo. Mas há aqueles que preferem ver em Merlin uma alegoria de outras figuras históricas. Uma delas seria a do encantador, uma classe de eremitas que viveu na floresta de Broceliande, na Bretanha. Eram ao mesmo tempo profetas, bardos e curandeiros. Essa seria a base para a criação de Merlin, que foi depois adaptada pelo escritor Robert de Boron no século XII. Segundo ele, o mago é filho de uma virgem violentada pelo Diabo e que adquire esse conhecimento ainda pequeno, decidindo-se por usá-lo para o serviço de Deus.
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DRUIDAS | Magos
vista histórico que confirme que o famoso círculo de pedras foi erguido por essa casta sacerdotal. A data mais aproximada para a construção de Stonehenge é tida como sendo em 2000 a.C., muito tempo antes dos celtas terem sequer chegado às ilhas britânicas, fato que somente ocorreu por volta do ano 700 a.C.. Esse resultado foi obtido por meio de análises de datação por Carbono 14, e até antes disso era costume atribuir o Stonehenge aos druidas. Sobre isso, o site Druidismo afirma: “No entanto, não existe a menor chance dele ser um monumento druida, ainda que podemos deduzir que os druidas realizavam cerimônias em Stonehenge ao descobrirem seu alinhamento com o nascer do sol no Solstício de Inverno”.
Ilustração do livro Old England: A Pictorial Museum, de Charles Knight
mesodruidismo, um período intermediário entre o druidismo clássico (que era praticado pelos celtas entre 600 a.C. até mais ou menos o século X d.C.) e o druidismo praticado hoje, também chamado de neodruidismo. Segundo o site Druidismo Brasil: “Se houve ou há algum druida monoteísta, certamente ele nasceu depois do século XIX e esteve ou está professando a religião de forma equivocada, inf luenciado pelo poder do cristianismo. Os druidas clássicos pré-cristãos eram politeístas e, como todo sacerdote pagão, veneravam os espíritos da Natureza, deuses tribais, deuses da paisagem e os ancestrais. O druidismo moderno, ou neodruidismo, é igualmente politeísta, pois se baseia nas crenças dos druidas clássicos e não nos druidas do Renascimento do século XIX”. O ponto mais polêmico com certeza vai fazer muita gente se sentir enganado: os druidas não construíram Stonehenge. Embora os neodruidas frequentem o lugar até hoje e insistam que lá é o lugar de determinados rituais, não há nada do ponto de
Isso está de acordo com a maneira como se descreve que os druidas faziam seus sacrifícios. A palavra evoca no mínimo cenas sangrentas com miolos e tripas para todos os lados e uma imagem de druidas com suas vestes tingidas de vermelho. Porém, vamos ver que a cena se torna menos violenta quando enxergada com olhos clínicos. Segundo pesquisadores britânicos, os celtas acreditavam que fazer sacrifícios apaziguava a ira dos deuses e trazia sua proteção. Contudo, eles não faziam nada nesse sentido e recorriam aos druidas para que isso fosse feito. Estrabão relatou que os gauleses (sim, aqueles mesmos da tribo do Asterix) tinham por costume matar um condenado com um golpe de espada para que os druidas observassem os movimentos do moribundo e, por meio deles, pudessem prever o futuro. Outro setor em que a presença dos druidas se fazia necessária era na escolha de plantas medicinais. Suas poções eram famosas por conter segredos que até hoje deixam os historiadores com a sensação de que havia um conhecimento natural perdido. Depois de vermos algumas características dos druidas e de, por fim, alguns dos mitos que envolviam suas pessoas, é fácil falarmos de níveis de poder. Segundo alguns textos irlandeses, havia druidas tão poderosos que
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podiam “mandar nos elementos”. Se isto era verdade, não podemos saber ao certo, mas o fato era que eles presidiam grandes festas religiosas do calendário celta, entre elas a festa de Samain, que celebrava o primeiro dia do ano celta e que corresponde à data de primeiro de novembro. Essa mesma festa foi absorvida pelo cristianismo e transformada no feriado de Todos os Santos. Porém, sua força não fez com que a festividade do dia anterior, o Dia das Bruxas ou Halloween, desaparecesse do gosto popular.
“Certamente as práticas do druidismo moderno são muito diferentes das dos druidas históricos, pois vivemos em outros tempos, com outras necessidades. Essa é uma das vantagens de uma tradição oral. Ao contrário de religiões que têm como base textos sagrados imutáveis, o druidismo não fica limitado a escrituras ou leis, mas sabe evoluir com o passar dos séculos, sendo sempre algo novo, significativo e capaz de satisfazer os anseios de quem segue este caminho. No druidismo não há espaço para o radicalismo, não há espaço para interpretações diferentes de um mesmo conceito (como acontece entre as diversas correntes cristãs e islâmicas, por exemplo, em que cada uma tenta impôr a sua versão, a sua interpretação dos textos sagrados). Os textos
sagrados do druidismo são os mesmo há milhares de anos, mas eles evoluem, porque não foram escritos: os ‘textos’ sagrados do druidismo são o passar das estações do ano, são os ritmos da Natureza, as marés, as flores, as tempestades, as trilhas do Sol e da Lua através do firmamento. É um texto ‘interativo’, que não deve ser memorizado ou entendido, mas sim sentido no fundo de nossas almas”.
Para saber
O processo de conversão à civilização romana e depois ao cristianismo fez com que a natureza oral de seus ensinamentos não fosse suficiente para garantir a conservação de seus ensinamentos. Desde então, o druidismo se tornou o tema central de apaixonados por certo romantismo literário. O neodruidismo é a corrente mais recente de adoradores dessa tradição. Remonta até o século XVIII, quando o inglês John Toland fundou em Londres a Ancient Druid Order (Ordem Antiga dos Druidas), que tinha por objetivo transmitir a tradição sacerdotal druídica, que teria sobrevivido com o passar dos séculos. Hoje em dia há muitos grupos que se dizem guardiões dessas tradições. Para analisar o assunto, o site Druidismo postou o seguinte comentário:
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CréDito: Mr. DAnPort.
O Druidismo Hoje
Druidas em Londres realizam o círculo de saudação das forças naturais em plena cidade
SÉRGIO PEREIRA COUTO
é jornalista com passagem por revistas como Discovery Magazine e Ciência Criminal. é autor de mais de trinta títulos, todos enfocando aspectos curiosos da história universal, entre eles os romances Sociedades Secretas e Help – A Lenda de um Beatlemaníaco, além dos livros de pesquisa Almanaque das Guerras, Decifrando o Símbolo Perdido e Códigos e Cifras: Da Antiguidade à Era Moderna
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CRÉDITO: VICENTE PASTORE/IMS
GENTE e Sociedade
O
fotógrafo italiano Vicenzo Pastore (1865-1918) fi xou residência em São Paulo em 1894 e a sua rica produção se destacou, entre outras qualidades, em documentar a formação da nova metrópole em seus aspectos cotidianos aparentemente banais, mas altamente reveladores, que nos alcançam como documentos primários dos mais valiosos. O Instituto Moreira Salles guarda o seu acervo e lançou a coletânea Na Rua, com 43 imagens que atestam a importância desta produção. Nesta, meninos jogam bola de gude em frente à Estação da Luz, cerca de 1910.
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