A felicidade existe! anna summer

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Entre o amor e a vingança... Janus tem um objetivo muito claro, na vida: fazer justiça. E isso significa desmascarar o homem que o magoou e humilhou quando ele era ainda um adolescente indefeso, e que além disso prejudicou sua família. Por isso, ele foi estudar Direito, para descobrir um meio legal de atingir John Sheridan. Ao conhecer Maria Wollstone, no entanto, Janus encontra uma doçura e uma suavidade que julgara perdidas para sempre. Mais que isso, Maria lhe traz de volta a certeza de que a felicidade existe. A questão é: como trafegar entre aquele amor que parece perfeito e o caminho da vingança, do qual eleja não pode, nem quer retornar? Alguém pode se ferir, nesse jogo, e esse alguém pode ser Maria. Por isso, Janus decide mantê-la fora daquele terreno perigoso. Porém, longe de sentir-se protegida, Maria se sente excluída... Agora, Janus tem de tomar uma difícil decisão: contar a ela seu segredo, ou arriscar-se a perder aquele amor para sempre...

Digitalização e revisão: Marina

Formatação: Dominique


– Capítulo I Pegue essa bola, sua cabeça de vento! — Lia Carson gritou para Debra que, com as mãos na cintura, observava os prédios da cidade, do outro lado do vale, com ar sonhador. — Ora, não perturbe, garota! — Debra retrucou, sem se voltar. — Não vê que estou concentrada em outra coisa, muito mais importante? Maria Wollstone deu uma corrida ágil em direção à bola que rolava pelo gramado, além da quadra de basquete. Apanhando-a, lançou-a de volta a Lia, por sobre a cabeça de Debra. Então, perguntou: — O que há Debra... Entrou em alfa? — Se você tivesse visto Lester saindo do banho, hoje de manhã, entenderia o sentido metafísico das minhas dúvidas — respondeu Debra, com ar misterioso. — Ah, então você tem dúvidas... E posso saber quais são? — Bem, a principal delas é: por que a natureza faz coisas assim? Impaciente para retomar o jogo, Maria perguntou: — Que coisas, Debra? — Dar ao Lester um corpo perfeito, sem um cérebro correspondente. Decididamente, não consigo entender... — Lester é um bom rapaz, tem potencial — Maria opinou. — Só que ele ainda não amadureceu. Ou seja: não conseguiu equilibrar sua anatomia privilegiada com sua mente um tanto, digamos... — Lenta demais — completou Debra, com ironia. — O problema é; quando a cabeça de Lester "chegar ao lugar", quem vai querer seu corpo? Lia, que naquele momento entrava no garrafão e arremessava a bola à cesta, deixou escapar uma gargalhada. — Você é terrível, garota! — exclamou Maria. — Por quê? — Debra protestou. — Será que sou a única na Angels' Home que vê os rapazes sob um ângulo... Digamos... Sensual?


– — Não. Mas acho que nenhuma de nós gostaria de separar o corpo e a mente de algum daqueles rapazes, ora — rebateu Maria. — Você diz isso porque não tem nada faltando nem sobrando no seu Janus. — Aí é que você se engana. Em primeiro lugar, Janus não é "meu". E, em segundo, falta um bocado de coisas nele... Como, aliás, em quase todo mundo. — O quê, por exemplo? — Debra a desafiou. — A descontração de Irving... — Ou o dinheiro de Daniel — acrescentou Lia, mandando a bola com força para Maria. Espalmando a bola com habilidade, Maria controlou-a, batendo-a três vezes no chão. Depois, com um salto ágil, arremessou-a em direção à cesta... e acertou. — Uau! — exclamou Lia. — Essa foi demais! — Parece que a única maneira de se conseguir o homem ideal é esquartejar vários deles... — prosseguiu Debra, com ar sonhador. — E depois juntar os pedaços da maneira certa. — Eu não agüento mais essa conversa — Maria desabafou, caminhando até o banco de madeira onde havia deixado sua bolsa. — Sabem de uma coisa? Vou tomar uma ducha. — Eu também. Espere por mim. — Lia alcançou Maria, que já caminhava em direção ao vestiário. Ambas seguiram pela trilha ladeada por azaleias floridas, até o amplo terraço que dava acesso aos vestiários. Um arco de ferro separava aquela área dos outros espaços de lazer. A inscrição "Chácara Florida" aparecia em arabescos caprichosos, no alto do arco parcialmente coberto por flores. Em outros tempos, a Chácara Florida fora um clube onde as famílias abastadas de Clespreen vinham passar os fins de semana. A propriedade ainda mantinha algumas características daquela época: belas casas de campo, quadras de vôlei, basquete e tênis, uma imponente piscina olímpica, um salão de festas e outras dependências menores, para eventos. Apenas os estábulos haviam sido parcialmente desativados.


– Enquanto os donos do empreendimento não decidiam o que fazer com a maior parte da propriedade, as confortáveis casas de campo dos aristocratas de outrora haviam sido transformadas em repúblicas para estudantes. A proximidade da chácara com o campus universitário determinara essa mudança. — É impressão minha, ou você está preocupada? — Lia perguntou a Maria. — É por causa de Hector — Maria confessou, com um suspiro. — O professor de violão? —

Sim.

— Mas o que há com ele? — Já faz algum tempo que anda me assediando, com uma insistência exasperante. Estou pensando, seriamente, em abandonar o curso. — Ora, você não pode culpá-lo por tentar... Afinal, você é uma garota muito atraente. Já deveria estar acostumada a esse tipo de situação. — De fato, estou. O que não suporto são os subterfúgios que alguns homens usam para se aproximar. Dá vontade de dizer: "Tenha coragem de se expor, meu amigo. O máximo que pode acontecer é você ouvir um não como resposta". — Talvez esse seja, exatamente, o medo de Hector — Lia opinou, pensativa. — Mas, diga, como ele está assediando você? Com palavras, com gestos? — Do pior modo possível. A todo momento ele tenta se encostar em mim, sob o menor pretexto, como se fosse por acaso. E, depois, mal consegue se concentrar na aula, de tão excitado que fica. — Com um misto de cansaço e irritação, Maria repetiu: — É insuportável. — E o que você pretende fazer? — Não sei. Estou perdida... — Você poderia convidá-lo para tomar um drinque e abrir o jogo, de uma vez — sugeriu Lia. — Que tal? — Já pensei nisso. Mas ele pode se fazer de desentendido, dizer que estou enganada, fantasiando... — Ele não seria tão hipócrita.


– — Quem garante que não? O que se pode esperar de uma pessoa que manifesta seus desejos por meio desse tipo de subterfúgio? — Compreendo seu ponto de vista, Maria. É uma situação bem desagradável. Conversando, as duas entraram no vestiário. Deixando as bolsas sobre os bancos, livraram-se das roupas e dirigiram-se às duchas. Cada uma ocupou um boxe. O som do forte jato de água, atingindo os corpos jovens e o piso ladrilhado, espalhou-se pelo ambiente. Elevando a voz acima do ruído da ducha, Lia perguntou: — Você vai à festa na Neandertal, hoje à noite? — Provavelmente, não — respondeu Maria. — Tenho de terminar um trabalho para entregar segunda-feira na aula de literatura. Se eu conseguir adiantar bastante, irei, mas acho difícil. — Após uma pausa, perguntou: — E você? — Ah, eu não perderia uma festa dessas por nada neste mundo! — Você é impossível, Lia... — Oitocentos metros! — gritou Irving Loos, em pé, na beira da piscina, para Janus, que se aproximava nadando velozmente. Numa virada olímpica perfeita, Janus mudou do estilo clássico para o livre e acelerou o ritmo, cortando a água azul em braçadas vigorosas. E foi nesse estilo que Janus venceu os duzentos metros restantes. Com um metro e noventa de altura, Janus parecia talhado para a prática daquele esporte nobre. Os membros longos facilitavam seu deslocamento na água. — Novecentos — avisou Ira, pouco depois. Janus fez a virada e, mais uma vez, mudou o estilo, do nado livre para o de peito. Cruzando as mãos atrás da cabeça, Irving girou o corpo, repetidas vezes, para a direita e depois para a esquerda, fazendo um exercício de aquecimento. Não era muito alto: tinha cerca de um metro e setenta e cinco. Seus músculos, bem delineados, eram resultado de longas e pacientes horas nos aparelhos de ginástica. Moreno, com um rosto expressivo e um sorriso constante, Irving fazia sucesso com as mulheres.


– — Mil — disse o próprio Janus, apoiando as mãos na borda da piscina, a respiração um tanto ofegante. — Mil metros! A água escorria-lhe pelos cabelos negros e por todo o corpo, esbelto porém vigoroso. Alçando-se com facilidade para o piso de arenito que contornava a piscina, Janus tentava regularizar a respiração. O esforço do exercício longo e contínuo dava a seus músculos uma definição escultural. E a pele, molhada e reluzente, contribuía para uma impressão que Janus sempre causava: a de ter sido talhado em mármore. — Você ainda quer aquela carona para o centro da cidade? — ele perguntou, alcançando a toalha que havia deixado sobre uma cadeira esmaltada. — Quero, sim — respondeu Irving. — Meu carro só ficará pronto depois de amanhã. — Você ainda não me contou como foi o acidente — Janus comentou, caminhando para o vestiário. — Pura bobagem — disse Irving, acompanhando-o. — Um gato indeciso arrependeu-se no último momento... Ele ia atravessar bem na frente do meu carro, mas desistiu e voltou atrás. — Não deu tempo de evitar o atropelamento, eu suponho. — Claro que deu. E foi aí que a coisa se complicou. Pisei no freio e guinei para a esquerda, sabendo que ia bater nos latões de lixo sobre a calçada. — Irving riu, baixinho, antes de confessar: — Calculei mal a velocidade em que vinha. Os latões saíram voando, e eu fui bater em cheio contra a árvore que estava bem atrás deles. Uma pancada dura, amigo... — Ainda bem que você não se machucou... Estava sozinho? — Tinha acabado de deixar Pamela em casa, o que foi uma sorte. Ela nunca usa o cinto de segurança. Janus não comentou o fato. Aliás, era de poucas palavras. Não fosse por seu comportamento gentil, sempre atento e solidário com as pessoas, poderia ser tomado por um antissocial nato. Natural de uma pequena cidade costeira ao norte de Miami, Janus era neto de imigrantes italianos, por parte de mãe. Quanto ao pai, era espanhol naturalizado


– americano. Não se sabia muito mais sobre Janus, nem mesmo na Angels' Home, a república que ele dividia com outros sete estudantes: quatro rapazes e três moças. — Você vai à festa na Neandertal, hoje à noite? A pergunta de Irving ressoou no amplo vestiário masculino, totalmente vazio àquela hora do dia. — Vou dar uma passada rápida por lá. Tenho de estudar para a prova de direito constitucional, na segunda-feira. — A república vai estar em silêncio, como você gosta. Todos irão à festa. — Assim espero — disse Janus, entrando embaixo do chuveiro. A Neandertal era uma república bem maior do que a Angels's Home. Ocupava uma das maiores casas da Chácara Florida e possuía, além de inúmeros quartos, uma cozinha imensa e um salão de festas magnífico. Uma lareira de pedra, no centro do salão, dava um charme especial ao ambiente. A tradição exigia que todos os moradores da Neandertal fossem estudantes de arte. E essa regra vinha sendo respeitada, ao longo dos anos. Pelas características arquitetônicas, e pelo gosto de seus moradores, a república havia se tornado famosa por suas festas. Era uma questão de status, entre os estudantes da universidade, ser convidado para elas. Naquela noite amena de primavera, a república havia sido dividida em três ambientes, cada um com um gênero musical diferente. No salão de festas, música eletrônica; rock na varanda lateral, e blues e reggae nos fundos. Foram muitos os convites distribuídos. A brisa noturna trazia os sons da festa até o quarto de Janus, na república Angels' Home. Sentado diante do computador, ele repassava os itens complicados da pesquisa na qual vinha trabalhando. Livros abertos sobre uma grande mesa atestavam o esforço contínuo de Janus, que, envolvido em seus afazeres, esquecera-se do passar do tempo. Levantando-se, ele caminhou até a pequena sacada, onde se debruçou, recebendo no rosto a refrescante brisa noturna.


– Estrelas brilhavam no céu sem nuvens. Janus contemplou-as, enquanto uma inesperada onda de nostalgia o assaltava. Com um profundo suspiro, ele decidiu que já era momento de fazer uma pausa. Estava intelectualmente exausto e, nesse estado, pouco renderia em seus estudos. Com um meio-sorriso nos lábios, desligou o computador. Abriu o guarda-roupa, escolheu um suéter leve, jogou-o sobre os ombros e saiu do quarto. O silêncio que reinava na república era impressionante. Descendo as escadas, Janus atravessou a sala, abriu a porta e mergulhou na noite primaveril, rumo à festa. Maria Wollstone ouviu os passos de Janus descendo as escadas, e depois, o som da porta se abrindo e fechando. Uma vaga frustração tomou conta de seus sentidos, pois ela planejara convidá-lo para um lanche, assim que terminasse a sinopse de um texto que estava lendo. Era óbvio que Janus não percebera sua presença na casa, Maria pensou. Por um bom tempo, naquela tarde, ela havia desfrutado silenciosamente a presença dele no andar de cima. Na quietude daquele sábado à noite, em que todos haviam saído para a festa, parecia significativo para Maria o fato de somente ela e Janus terem ficado estudando, na república quase vazia. Agora, ele também se fora, deixando-a realmente só... E, o que era pior: desconcentrada, cansada e inquieta. Agindo por impulso, Maria abriu o armário e verificou suas roupas. Escolheu um vestido longo e solto, preto, de alças. Vestiu-se, escovou os cabelos e cobriu os ombros com um xale colorido e partiu para a festa. Como havia adiantado bastante o trabalho de literatura naquela tarde, teria tempo de concluí-lo no dia seguinte. Depois de perambular pelos ambientes da Neandertal, Janus dirigiu-se ao jardim dos fundos, atraído por um solo de guitarra especialmente ágil e provocante. Caminhou na direção do som e parou diante de um palco improvisado, onde um contrabaixo, uma guitarra e uma bateria davam seu recado nas mãos competentes de três músicos.


– Encostado a uma árvore, fora do círculo iluminado pelos refletores, Janus sentiu-se relaxar, os olhos semicerrados, a atenção totalmente voltada para a música, uma versão de A Little Help from my Friends, dos Beatles. Era tal a energia que irradiava do trio, que um silêncio respeitoso, quase solene, foi aos poucos se instalando no grupo de jovens excitados e alegres que perambulavam pelo jardim. Assobios, gritos e aplausos vibraram no ar, no final da performance. Então, quatro músicos entraram em palco, somando-se ao trio. Com essa nova formação, a banda iniciou uma seqüência fulminante de reggaes bastante conhecidos. A música atraiu mais estudantes, e, dali a pouco, todos começaram a dançar. Foi nesse momento que Janus viu Maria, com um copo na mão, movendo-se com graça e elegância ao ritmo irresistível da música jamaicana. Ela dançava sozinha, como se voltada apenas para si mesma, deixando a cadência tropical e mágica possuí-la por inteiro. O vestido preto, leve, esvoaçava em torno de seu corpo, marcando as formas generosas e as curvas sensuais. Com o movimento da dança, seus cabelos negros pareciam chicotear os ombros, cobertos por um xale colorido. Era um verdadeiro prazer observar aquela bela e jovem mulher, Janus pensou, deliciado. E resistiu, ainda por um bom tempo, em sua posição, antes de juntar-se a ela. — Não sabia que você dançava reggae — Maria comentou, ao vê-lo se aproximar, movimentando o corpo ao ritmo vibrante da banda. — Nem eu. — Ele sorriu. — Na verdade, só estou me deixando levar pela música. — A idéia é essa. — E como estou me saindo?

— Nada mal — respondeu ela, com sinceridade. Nesse momento, Maria ergueu os olhos para fitá-lo, e Janus estremeceu ao impacto da sensualidade neles contida. Os olhos verdes lhe pareceram incrivelmente misteriosos como os de um felino em sua peregrinação


– noturna pela selva. Havia neles um apelo atávico irresistível, que encontrava eco e concordância num recanto bem íntimo de seu ser, Janus concluiu. Ainda sob aquela forte impressão, afastou-se em direção ao bar, improvisado na varanda dos fundos da casa. Precisava de tempo para absorver a revelação contida no olhar de Maria e, principalmente, para analisar sua própria reação, os sentimentos decorrentes... Era como se estivesse vendo Maria pela primeira vez. Por um instante Janus pensou, tolamente, que aquela garota não podia ser a mesma que ele encontrava todos os dias na república, e com quem compartilhava opiniões ponderadas sobre filmes e livros. Não podia ser a mesma pessoa com quem saíra algumas vezes, acabando por trocar alguns beijos e leves carícias. Não, ele pensou, tomado por uma forte excitação. Aquela mulher era uma força da natureza, como o vento, o fogo, as tempestades. Apoiado ao balcão do bar improvisado, com o coração pulsando forte, Janus tentava compreender o que se passava em seu íntimo. — Quer um ponche, amigo? Como se despertasse de um sonho, Janus fitou o estudante que, usando um avental azul, olhava significativamente para o copo vazio que ele ainda segurava nas mãos. —

Sim — respondeu, numa voz que lhe soou estranha.

— Dois, por favor. — E entregou o copo ao rapaz. O estudante se afastou e retornou logo depois, trazendo os pedidos. —

São três dólares, amigo. Para as despesas da festa...

— explicou. Janus entregou-lhe duas notas de dois dólares. — Fique com o troco. — Obrigado — o rapaz agradeceu e guardou o dinheiro no bolso do avental, enquanto se afastava. A banda chegava ao ápice da apresentação, com uma salsa picante. Um coro de vozes masculinas apoiava o guitarrista, em mais um solo arrasador.


– Todos os presentes gingavam ao som da música. Mesmo aqueles que não estavam dançando moviam-se, contagiados pelo ritmo vibrante. A um sinal do líder da banda, a percussão entrou em repiques cada vez mais acelerados, num crescendo de volume quase insuportável, até que houve um corte brusco: a apresentação chegara ao fim. Gritos de alegria, pedidos de bis, assobios e palmas vibraram no ar. Então Janus viu Maria vindo em sua direção, com um sorriso singular no rosto corado. — Preciso beber alguma coisa — disse ela. — Estou com sede. — E não é só você. — Janus apontou para a turma que avançava para o bar, excitada e barulhenta. — Vamos cair fora daqui — sugeriu, entregando-lhe um copo de ponche. Pouco além da árvore onde Janus estivera encostado, havia um semicírculo de arbustos baixos, ao redor de alguns bancos de granito. Foi para lá que ambos se dirigiram. — Há muito tempo que eu não me divertia tanto assim — comentou Maria, sentando-se. — Você sumiu de repente... — A dança não é o meu forte. Preferi ficar observando. — Você estava indo muito bem. — Acredito. Mas dançar é outra coisa, bem diferente do que eu estava fazendo. E você deve saber do que estou falando, já que é uma especialista no assunto. Maria arregalou os olhos, surpresa. Então, inclinando a cabeça para trás, desatou numa gargalhada cristalina: — Especialista, eu? Não... — ela protestou. — De jeito nenhum! Apenas gosto de dançar... E, sem falsa modéstia, acho que nasci com esse dom. — Qualquer pessoa que a visse dançando hoje certamente a tomaria por uma exímia bailarina — Janus opinou, com franqueza. — Você deu um verdadeiro show, Maria. — Os ritmos latinos me fascinam. Acho que está no sangue... — Ela tomou um gole de ponche, antes de perguntar: — Já lhe contei que minha mãe é brasileira?


– — Lembro-me vagamente de você ter dito algo a respeito. — Pois é... Eu também sou. Nasci no Brasil, e tinha oito anos de idade quando vim para os Estados Unidos. — Mas seu pai é americano, não? — Sim. É pastor anglicano, natural do Tennessee. Foi ao Brasil como voluntário, para trabalhar com os índios, e acabou se casando com a filha de um fazendeiro local: minha mãe. — Após uma pausa, ela perguntou: — Você também é filho de estrangeiros, não? — Minha mãe descende de italianos naturalizados americanos. Já meu pai nasceu na Espanha e veio para cá quando era adolescente. — De qualquer maneira, não fazemos parte dos norte-americanos típicos, os anglo-saxões. — Este é um país jovem, colonizado por ingleses e dezenas de outros povos. Na verdade, o americano típico chega a ser raro... — Principalmente nos grandes centros urbanos — completou Maria, sorrindo. A conversa fluía num tom leve e agradável. A brisa era suave e, o clima, cheia de encantos. Janus sentia-se bem, como havia muito tempo não acontecia. Sua reserva natural cedia facilmente à presença de Maria, naquela noite. Havia uma excitação no ar, impossível de ser ignorada. Ele quase podia sentir o sangue correndo como fogo, nas veias. — O que aconteceu? — perguntou Maria. — Por que está me olhando desse jeito? — Desse jeito, como? — Como se me visse pela primeira vez. — Ela procurava as palavras adequadas, para traduzir o que sentia. — Como se eu fosse uma descoberta inesperada... Janus sorriu um tanto surpreso com a perspicácia e sensibilidade de Maria. E respondeu, com voz branda: — Talvez seja exatamente isso que esteja acontecendo... Pois me sinto surpreso e encantado com você.


– — Deve ser por causa desta noite de primavera, da magia da música — ela respondeu, subitamente tímida, mas lisonjeada. — Pois continuo sendo a mesma Maria de sempre. — É bem possível. E eu lhe pareço diferente, esta noite? Semicerrando os olhos e inclinando levemente a cabeça, ela respondeu, pensativa: — Nunca vi você tão exposto, tão perto da superfície. — E concluiu: — Sim, Janus, você parece diferente. — Acho que me encontro num estado de espírito in-comum. Só isso explicaria esse sentimento súbito, essa vontade quase incontrolável de beijar você. Maria deixou que o sorriso se apagasse em seu rosto. Uma expressão de grave serenidade fez com que seus lábios corados se entreabrissem, e que o verde profundo de seus olhos se tornasse quase tão escuros quanto seus cabelos. — E o que você está esperando? — ela murmurou, docemente. — Um convite? Com suas mãos fortes e másculas, Janus acariciou-lhe os cabelos, enquanto a atraía para si, colando os lábios aos dela. Com firme e delicada determinação, forçou a ponta da língua entre os dentes pequenos e alvos... E, lentamente, tocou-lhe o interior da boca num misto de curiosidade e maliciosa persistência. Maria gemeu baixinho e entregou-se ao beijo com prazer. Quando os lábios se separaram, ambos estavam ofegantes e visivelmente emocionados. — Até parece que foi nosso primeiro beijo — murmurou Janus, com voz rouca. — De certa forma, foi. — Maria tomou a mão dele e levou-a ao peito. — Sinta como meu coração está batendo forte. Sorrindo, ele tornou a beijá-la, agora com inequívoca paixão. A mão sobre o peito de Maria cobria o pequeno seio rígido, numa carícia leve e circular. — Não estamos indo depressa demais? — perguntou ela, sorrindo. — É possível. Mas a culpa não é nossa, e sim desta noite misteriosa — ele respondeu, no mesmo tom. — O perfume das flores, a brisa suave, essa magia no ar... Mal Janus acabou de falar, uma rajada de gritos e assobios chegou até ambos, vinda do palco improvisado, onde outra banda agora se instalava. Em meio ao


– alvoroço, uma garota magra, de cabelos curtos e brincos enormes, agarrou o microfone e deu início a uma canção, numa voz excessivamente aguda. E, para piorar ainda mais as coisas, a equalização dos instrumentos que acompanhavam a cantora parecia distorcida, causando um efeito desagradável, quase ofensivo aos ouvidos sensíveis. Uma ruga de contrariedade formou-se na testa lisa e morena de Maria. E isso não passou despercebido por Janus. — Terrível, não? — ele comentou, com um suspiro. — É tão fácil quebrar a perfeição de um momento — ela sentenciou, aborrecida. Em seguida, propôs: — Você se importaria se fôssemos embora? — De modo algum. Aliás, era isso que eu ia sugerir. Vamos caminhar um pouco? — Algumas centenas de metros longe do palco serão o suficiente — ela afirmou, num tom bem-humorado. Evitando a aglomeração, ambos contornaram a república e alcançaram a alameda que se estendia para além dos carros estacionados, conduzindo a um bosque de pinheiros. Os sons da festa iam ficando para trás. E a voz de Janus soou estranhamente alta, a ele próprio, ao perguntar: — Você vai viajar, nas férias? — Sim, mas só na segunda semana. Vou me encontrar com minha mãe, em Miami. E você? — Partirei na próxima quarta-feira. Prometi ajudar meu pai, este verão. — Sim? E o que ele faz? — É pescador. Também aluga chalés e barcos de passeio para turistas, em Heavenside. — Ah, sim, agora me lembro de você ter me falado sobre essa cidade. Mas, se não me engano, você também me contou que sua família tem um restaurante à beira-mar, ou algo assim...


– — O restaurante pertence à minha mãe, uma senhora adorável, sistemática e independente. A única colaboração que ela aceita dos homens da família é a opinião sobre os pratos que ela mesma cria, com peixes e frutos do mar. — Hum... Eu adoro frutos do mar! — É mesmo? — Janus parou e fitou-a com intensidade. Acabava de ter uma idéia. — Escute, Maria, Heavenside fica a apenas três horas de Miami... Você poderia ir até lá, me visitar. O que acha? — É uma idéia tentadora. — Então, o convite está feito. Promete que vai, ao menos, considerá-lo? — Prometo. — Ótimo! — Janus sorriu, satisfeito. Com um gesto natural, pegou a mão de Maria e, assim, os dois retomaram a caminhada. Maria sentiu um arrepio de prazer, no momento em que aqueles dedos longos e fortes envolveram os seus. Mas isso não era nenhuma surpresa para ela. Sabia que a atração física entre ambos era forte e recíproca. O que a comovia intensamente era a naturalidade com que Janus, naquela noite, estava abrindo mão de sua personalidade reservada e introspectiva, mostrando um lado carinhoso e sensível. Isso dava a Maria a medida exata da importância do momento que estava vivendo, mas também a assustava um pouco. O fato era que temia decepcioná-lo e, com isso, causar o refluxo de toda aquela sensibilidade exposta, unicamente para ela, naquela noite mágica. Contudo, não havia outra maneira de lidar com o medo, a não ser enfrentá-lo, e o melhor modo de fazê-lo, talvez fosse mergulhar fundo na magia da forte emoção que a unia a Janus. Talvez por isso, ao chegar à Angels' Home, ela deixou-se conduzir ao andar de cima, ainda de mãos dadas, para o quarto de Janus. A luz do abajur incidia diretamente sobre a cama, onde Maria se sentou, de repente tímida. Janus abriu a porta que dava para a sacada e deixou que a noite mágica penetrasse no aposento. Um fluxo de ar deslocou a cortina, num suave balanço. Aproximando-se de Maria, ele se ajoelhou no tapete em frente à cama e, envolvendo-a nos braços, pousou a cabeça em seu ventre.


– As mãos dela desenharam trilhas confusas pelos cabelos negros de Janus que, de olhos fechados, absorvia o calor e o aroma que dela emanavam. Recuando, ele prendeu a barra do vestido de Maria entre os dentes e, deslocando-se para a frente, desnudou as coxas firmes, cor de cobre, que se arrepiaram ao contato de sua respiração cálida e um tanto ofegante. Maria gemeu baixinho quando Janus forçou o queixo entre suas pernas, que se abriram como se tivessem vontade própria. Por sobre a seda azul da calcinha, a língua vermelha pesquisava a topografia oculta dos relevos e reentrâncias da flor pulsante e úmida, que se distendia, intumescida. Os gemidos de Maria eram agora um prolongado ciciar de palavras desconexas e murmúrios de ternura, que chegavam aos ouvidos de Janus como o canto de pássaros misteriosos das selvas tropicais. Os dentes alvos de Janus procuraram o limite exato entre a seda azul e a pele, mais suave que o próprio tecido que a cobria. Livrando os braços que sustentavam Maria, ele recuou, trazendo entre os dentes a minúscula peça azul que se desprendia lentamente, como a pele de um fruto delicado e sumarento. Livre da tração dos braços de Janus, o corpo de Maria declinou até se acomodar, horizontal e solto, sobre o colchão. Em pé, entre os joelhos abertos de Maria, Janus livrou-se das roupas com uma calma torturante, os olhos presos na confluência das pernas acobreadas, onde pulsava a flor ávida. O sexo rijo e vibrante estremeceu, livre, no ar, e Janus o acariciou sem pressa. Então, curvando-se sobre Maria, penetrou-a lentamente, movendo os quadris num jogo alucinante, até que o roçar macio das pélvis o impedisse de prosseguir. Maria arqueou o corpo, puxando o vestido por sobre a cabeça. Com os braços abertos, recebeu Janus em toda sua plenitude. A noite mágica e cálida acolheu o grito abafado de Maria e o gemido longo e profundo de Janus, quando ambos chegaram ao êxtase, que parecia sempre ir mais além, num crescente, interminável. Então, veio o silêncio, ponteado pelo brilho das estrelas na noite avançada. Os dias que se seguiram à grande festa na república Neandertal foram cheios de atividades para a maioria dos estudantes da Universidade de Clespreen. A


– proximidade das férias de verão, bem como o desejo de encerrar o período letivo com sucesso, promoviam uma agitação incomum naquele ambiente por si só dinâmico. Maria estava tranqüila quanto às matérias curriculares de seu curso, bastando apenas encerrar o trabalho sobre os antigos dialetos dos Montes Apalaches, para considerar-se oficialmente em férias, quando, então, iria para Miami, ao encontro da mãe. Janus havia partido na quarta-feira, como planejado. Mas, antes, reforçara o convite para que ela fosse visitá-lo em Heavenside. A despedida de ambos, em presença de outros colegas, fora carinhosa, mas quase formal. Na verdade, haviam se sentido um tanto inibidos. Sem querer analisar esse fato, Maria mergulhara fundo em seus estudos de violão, pois iria se apresentar no festival. A noite maravilhosa que passara com Janus ficara guardada em algum recanto de sua mente, que ela acessava apenas ao fechar os olhos, na hora de dormir. Então, com um sorriso íntimo e secreto, deixava-se levar por aquelas doces recordações. Acalentada pelas imagens sensuais e ternas, adormecia feliz. E, assim, a vida continuava. Mas nem tudo eram lembranças, nem tudo eram sonhos de amor. Havia também os problemas. E um deles, particularmente, estava tirando Maria do sério. Foi assim que, certa manhã, ela acordou disposta a pôr um fim ao problema que tinha com seu professor de violão. O assédio a que vinha sendo submetida em quase todas as aulas se tornara insustentável, e ela não achava justo abandonar um curso de que gostava tanto apenas para fugir do problema . O assunto era delicado, e ela precisava de auxílio para tentar resolvê-lo. Depois de muito refletir, Maria decidiu que a melhor saída seria falar com Debra. E foi procurá-la em seu quarto: — Estou com um problema sério e talvez você possa me ajudar — disse, sem rodeios. — Do que se trata, amiga? — Estou sendo assediada por Hector, e quero dar um fim a essa situação desagradável.


– — Está falando de seu professor de violão? — Debra reagiu, surpresa. — O próprio. — Mas Hector é um homem tão atraente... Por que ele apelaria para isso? — Como vou saber? — Maria retrucou, impaciente. — O fato é que ele fica se insinuando, até se esfregando em mim, durante as aulas. E minha paciência já chegou ao limite. — Por que você não abre o jogo com ele? — Não dá. Hector é muito tímido. E faz o tipo do professor sério. Se eu o chamasse para uma conversa, ele certamente negaria tudo. — Então, seria a sua palavra contra a dele — Debra concluiu, pensativa. — Ou seja: um problemão — Maria resumiu. — É exatamente isso que estou tentando evitar. — Por quê? Tem medo que não acreditem em você? Com um suspiro, Maria sentou-se na beirada da cama da amiga e tentou resumir suas razões: — Hector é da Venezuela e não tem cidadania americana. Ele veio para a universidade como professor convidado. — Estou começando a entender — disse Debra, correndo os dedos pelos cabelos ruivos e curtos. — Você não quer prejudicá-lo. — Exatamente. Além do mais, ele é um músico talentoso, e só Deus sabe o quanto deve ter batalhado para chegar aonde chegou. — No caso de o assédio ser comprovado, Hector seria desligado da universidade... Talvez até mandado de volta ao seu país. E você não quer isso — Debra concluiu. — Claro que não. Sem contar que, num confronto desse tipo, seria muito difícil provar alguma coisa. Eu também posso me dar mal, e ficar numa situação delicada. — Em outras palavras, o caminho não é por aí. Certo?


– — Agora estamos olhando o problema sob o mesmo ângulo — murmurou Maria, aliviada. — E então, você pode me ajudar? — Claro — Debra respondeu, sem hesitação. — E farei isso por dois motivos: em primeiro lugar, porque sou sua amiga. E, em segundo, por você ter se preocupado com o futuro de Hector... Uma atitude rara, nos dias de hoje. — Fico feliz por você entender minhas razões. — Você tem algum plano? Com um suspiro, Maria meneou a cabeça. — Já cansei de pensar, mas não consigo arquitetar nada. — Não se preocupe, vamos encontrar uma saída. — Debra saltou da cama. — Você já tomou o café da manhã? —

Só um copo de suco de laranja.

— Então, que tal descer e preparar alguma coisa para nós? Vou tomar um banho e logo a alcançarei. — Certo — Maria assentiu, caminhando até a porta. — Esperarei você na cozinha. Com o avanço do verão, o movimento turístico em Heavenside tornava-se mais intenso a cada dia. Janus mal tivera tempo de rever a pequena cidade costeira onde nascera, e já começara a trabalhar. Alojado em um dos chalés do pai, à beira-mar, levantava-se ao clarear do dia e dedicava-se a inúmeros afazeres. Muito habilidoso com as mãos, ele tinha uma espantosa facilidade para consertar todo tipo de máquinas. Isso incluía os motores dos barcos que seu pai alugava, e que precisavam de manutenção constante. Naquela manhã, Janus acordou a tempo de ver o sol nascer, na linha entre o mar e o céu. No horizonte, pequenas nuvens pareciam incendiar-se, em tons de púrpura e ouro fundido, e logo o astro-rei surgiu, estendendo sobre as águas um feixe de reflexos cintilantes e móveis, que vinha terminar aos pés de Janus. Tomado pela emoção do momento, e pelo fato de estar de volta a sua cidade natal, ele sorriu, feliz.


– Retirando sem pressa o pijama curto que usara para dormir, colocou-o cuidadosamente sobre a areia e caminhou, dentro da esteira cintilante, pisando a água fria que quebrava na praia em pequenas marolas. Avançando sem pressa, na solidão da manhã gloriosa que o cercava, flexionou os joelhos e deixou-se cobrir pela primeira onda, mansa c lenta, que vinha em sua direção. Quando voltou à tona, Janus respirou longamente, antes de iniciar um nado cadenciado e firme, que o levou mar adentro. Nenhum pensamento ocupava-lhe a mente, banhada pelo mais puro prazer físico. Naquele momento, ele era apenas um homem em seu meio ambiente natural, como as gaivotas que o sobrevoavam, como os peixes que nadavam a sua volta. Já distante da praia, ele flutuou de costas, recebendo no rosto os cálidos raios do sol matinal. O primeiro homem deve ter se sentido assim, pensou, com um sorriso. Então, gozando de uma paz que havia muito tempo não experimentava, deixou-se embalar pelo movimento do oceano vivo, a sua volta. Por fim, decidiu retornar à praia, mas teve de se manter na linha de arrebentação por algum tempo, até que um casal, que passeava de mãos dadas, se afastasse do local onde deixara suas roupas. Tinha agido por impulso, ao entrar nu no mar. A emoção de reencontrar o lugar onde passara a infância e a adolescência havia ditado aquela ação impensada. De volta ao chalé, Janus colocou água para ferver, a fim de fazer um café. Em seguida foi para o chuveiro, de onde saiu, pouco depois, envolto numa toalha. Depois de preparar o desjejum e arrumar a mesa, foi para o quarto, vestir-se. Usando um macacão azul, desbotado por sucessivas lavagens, ele voltou à cozinha e sentou-se à mesa. O café exalava um aroma tentador, assim como os ovos com bacon e o pão aquecido na torradeira. Janus comeu com apetite, saboreando cada bocado do alimento preparado. Estava se servindo de uma segunda xícara de café, quando ouviu passos na escada que conduzia ao chalé. Uma voz querida, inconfundível, soou do lado de fora: — Olá! Posso entrar? — Claro, pai. O café ainda está quente.


– — Bom dia, filho. Vejo que se levantou cedo. Dormiu bem? Janus olhou com ternura para o homem que puxava uma cadeira e se acomodava à mesa. Dono de um porte elegante e vigoroso, Pablo Gassete não aparentava os quase sessenta anos que possuía. Apenas os cabelos loiros haviam se tornado um tanto ralos na fronte, e os fios brancos se misturavam à cor original. As rugas de expressão, na testa e em torno da boca, haviam se transformado em vincos profundos, com o passar do tempo. Mas seus olhos castanhos brilhavam ainda com a luz original, a força e a perseverança de sempre. — Dormi como um anjo, pai — Janus respondeu. — Se é que os anjos dormem — acrescentou, recorrendo ao gracejo para disfarçar a emoção que sentia. — Mas é claro que dormem... Principalmente os anjos da guarda dos moradores de Heavenside. Afinal, de que outro modo se explicaria a reeleição do nosso prefeito? Pablo piscou um olho para o filho, com ar maroto, e Janus riu, divertido. O senso de humor do pai mantinha-se intacto. — Problemas na comunidade? — perguntou, por fim. Servindo-se de uma xícara de café, Pablo fez um gesto vago com a mão, enquanto desabafava, com um toque de desgosto na voz: — Temos um prefeito que só acredita no poder da mídia. O que os antecessores gastavam em obras, ele esbanja em propaganda. Parece querer nos convencer, pelos jornais e pela televisão, que devemos ser gratos à prefeitura por cumprir com sua simples obrigação. — E a oposição? — Late, mas não morde. Ninguém quer se expor. — Pablo tomou um gole de café. — Mas deixemos esse assunto tedioso para lá. Conte-me sobre você, filho... Como vai a faculdade? — matérias.

Sob controle, pai. Mantenho-me acima da média e cm dia com as

Pablo sorriu, fazendo com a cabeça um gesto de assentimento. Sabia que o filho jamais se gabava de seus feitos, que sempre minimizava a importância de suas


– conquistas pessoais. Mas não era com a vida acadêmica de Janus que ele estava preocupado, e sim com outro assunto, doloroso c difícil de ser abordado. Mas, mesmo assim, necessário. Por isso, resolveu ir direto ao ponto: — E como você se sente, hoje, em relação à família Sheridan? Sem alterar um músculo do rosto, Janus respondeu, num tom calmo e pausado: — Nada mudou, pai. É tudo uma questão de tempo. Eles vão pagar pelo que fizeram. Retesando-se na cadeira, Pablo suspirou, deixando transparecer um cansaço que ia além do físico. Seu tórax vigoroso pareceu encolher-se dentro da jaqueta de couro que usava. — Talvez você ainda não saiba que Bob Sheridan está gravemente enfermo, meu filho — disse, após alguns instantes. — Tem os dias contados... — Estou sabendo, sim. Na verdade, nunca me preocupei seriamente com Bob. Afinal, ele sempre foi um "pau mandado" do irmão... Um homem sem vontade própria. — E isso não o leva a pensar que o tempo acabará por fazer justiça? — Pablo fitava Janus nos olhos. — Pois, nesta terra, tudo que se planta será colhido. — O tempo é um importante aliado, sem dúvida. Mas ele não fará, por mim, aquilo que deve ser feito. E, falando nisso... — Janus ergueu-se —, é preciso trocar o platinado do Yamaha. Aquele motor não agüentará mais uma semana, assim. Bem, até já. — E saiu. Pablo entendeu que a conversa terminava ali. Conhecia o filho o suficiente para saber que não arrancaria mais uma palavra dele sobre o assunto. — Aí vem Debra, a amiga de quem lhe falei — disse Maria ao professor de violão. A sua frente, uma xícara de café com canela, quase intocada, já havia esfriado. Ambos estavam sentados a uma mesa, na cantina da faculdade. Hector pareceu fazer um grande esforço para desprender os olhos do rosto expressivo de Maria. Por fim, voltou-se para observar a garota que se aproximava, sorridente.


– Sentiu-se ainda mais confuso ao tentar classificá-la. A garota usava roupas convencionais e até discretas, mas os cabelos ruivos, curtos e brilhantes, bem como a maquiagem, davam-lhe um ar exótico. Simplesmente inclassificável, ele pensou, levantando-se para cumprimentá-la. — Prazer em conhecê-la, Debra — disse, estendendo a mão, num gesto cordial. — Maria me falou sobre seu projeto. — Olá, Hector. Fico feliz em poder contar com seu interesse. — Em vez de apertar-lhe a mão, Debra beijou-o no rosto. — Estou bastante atarefado com os preparativos para o Festival de Verão. Mas não poderia recusar um favor à minha melhor aluna — Hector afirmou, lançando a Maria um olhar insinuante, que ela fez questão de ignorar. — Mas, sente-se, Debra. Quer tomar alguma coisa? — Um suco de abacaxi, com bastante gelo — ela respondeu, acomodando-se à mesa. — Eu vou pedir para você, ali no balcão — Maria ofereceu, levantando-se. Olhando de um para o outro, avisou: Preciso dar alguns telefonemas. Mas fiquem à vontade, sim? Aposto que vocês vão se entender às mil maravilhas. — Sem dúvida — Debra concordou, sorrindo para Hector, que não teve tempo de protestar. Permaneceu sentado, enquanto Maria se afastava a passos largos. Alguns instantes se passaram, antes que Debra abordasse o assunto: — Bem, você deve estar curioso para conhecer o roteiro que escrevi para o meu grupo de teatro. Afinal, já que você vai fazer a trilha sonora... — Espere um pouco — ele atalhou, desconcertado. — Eu não disse que faria o trabalho. Apenas concordei em conversar sobre o assunto. — É claro. E você não sabe o quanto estou agradecida por sua boa vontade. Debra abriu a grande bolsa de couro que trazia a tiracolo, retirou um calhamaço de folhas mal digitadas e o estendeu ao professor.


– Com cautela excessiva, como se estivesse tocando um animal que a qualquer momento poderia mordê-lo, Hector pegou as folhas. Por alguns instantes, tentou se orientar naquela confusão de frases riscadas e anotações ao pé das páginas. — Está um tanto confuso, não é mesmo? — Debra sorriu de modo encantador. — Mas trata-se de um assunto muito explorado, desde que uma garota chamada Monica Lewinsky acusou o então presidente dos Estados Unidos de assédio sexual. — Então é disso que trata o seu roteiro... Assédio sexual? — Exatamente. — E um assunto antigo, sem dúvida — Hector comentou, não muito à vontade. — Mas, por incrível que possa parecer, os assédios continuam acontecendo com uma freqüência alarmante. Por isso resolvi escrever sobre o tema, situando-o no meio estudantil... Mais precisamente, professores assediando alunas... Por aí. Um garçom aproximou-se, trazendo o suco que Maria havia pedido. — Obrigada — Debra agradeceu. Levando o pequeno canudo à boca, sorveu o líquido, enquanto semicerrava os olhos, com uma expressão deliciada. Mas, por entre as pálpebras, observava a reação de Hector. Recostado na cadeira, ele parecia um pouco entediado, impaciente para encerrar a conversa. Por fim, numa voz estudada e professoral, disse: — Debra... Este é o seu nome, não? —

Sim,

Hector — respondeu ela,

com muita calma.

— O que acha do meu tema? — Não existe assunto velho — ele sentenciou —, mas sim abordagens desinteressantes, mal elaboradas. — Aí é que está — ela retrucou, entusiasmada. — A novidade é que a aluna assediada pelo professor tem uma consciência social e humanista muito desenvolvida. Ela não quer prejudicar o sujeito, e sim fazê-lo entender a quebra de ética, o ridículo da situação. Uma ruga vincou a testa de Hector. Ele parecia mais atento, agora, e Debra aproveitou o momento para acrescentar:


– — O que você faria se estivesse na situação dessa aluna? — Conversaria francamente com o professor, é óbvio — respondeu ele, com um toque de irritação na voz. — Mas minha personagem não acredita que o professor tenha bom-senso suficiente para esse tipo de conversa. — Por quê? — Ora, porque um homem que usa esse recurso para revelar seu desejo é, no mínimo, um sujeito desequilibrado, com graves distorções comportamentais. Não lhe parece? Como Hector não respondesse, ela prosseguiu: — Levar o professor ao conselho de ética da universidade poderia arruinar a carreira dele. E é justamente isso que a aluna não quer. Por outro lado, deixar a situação como está... seria muito desconfortável para ela. — Em resumo, trata-se de um impasse — o professor concluiu, num tom neutro que, no entanto, parecia forçado. — Certo. E aí entra o que considero, modestamente, como a idéia brilhante do meu roteiro — ela disse, eufórica. — A aluna assediada mora numa república, com vários rapagões que a admiram e que fariam qualquer coisa por ela. Mas ela prefere pedir ajuda a uma amiga que tem um grupo de teatro. — Debra fez uma pausa de efeito. — Você... Está acompanhando meu raciocínio? — Prossiga — ele respondeu, friamente. — Pois bem... Essa amiga escreve um roteiro, denunciando o assédio, e começa a ensaiar a peça. O professor é convidado a assistir a um ensaio. Imagine o que pode passar pela mente do tal professor, ao ver-se retratado e exposto num palco. Imagine essa anomalia, que ele julgava tão bem escondida de todos, examinada à luz dos refletores por um público nada complacente. — E como termina a história ? — A voz de Hector soava estranha, tensa. — Bem... Creio que o desejável seria conduzir a peça para um desfecho positivo, com o professor percebendo o risco que está correndo e o ridículo da


– situação. A partir daí, ele resolve procurar a ajuda de um profissional, para mudar seu comportamento vicioso. — Bem otimista, o seu roteiro — Hector opinou, secamente. — Mas o tal professor poderia ignorar o aviso. Afinal, como você bem deve saber, não é nada fácil provar um assédio sexual, sem testemunhas. Debra sorriu, antes de responder: — Dei a esse roteiro o título Ensinando Ética por Meio da Arte. Mas tenho um segundo desfecho, do qual não gosto muito, devido ao seu caráter violento. — E explicou: — Esse termina com o professor sendo atropelado no campus universitário, pelos colegas de república da heroína. Mas soa meio ao estilo Agatha Christie, não? — Debra franziu o nariz, com desagrado. — E, decididamente, não faz o meu gênero. Prefiro o primeiro desfecho. E você? A poucos metros da mesa, Maria observava a cena, atenta. Viu quando Debra e Hector se levantaram, dando a conversa por encerrada. Oculta parcialmente por uma pilastra, ela esperou o momento oportuno para interceptar a amiga que vinha em sua direção. — E então? — perguntou, ansiosa. — Sucesso? — Total. Hector não vai mais incomodá-la. — Tem certeza? — Sou capaz de apostar minha bolsa de maquiagem nisso. E você sabe como adoro aquela bolsa. — Mas como foi a conversa? — Maria indagou, impaciente. — O que você disse? Como ele reagiu à história do roteiro? Enquanto caminhavam, Debra fez um resumo do que havia ocorrido, num tom leve e despretensioso, como se o assunto não tivesse grande importância. — Mas quero saber qual foi a reação de Hector — Maria insistiu. — Bem... Ele achou o desfecho do roteiro bastante otimista. E também argumentou que provar assédio sexual, sem testemunhas, é muito difícil. — E daí, o que você respondeu?


– — Disse que já havia pensado nisso, e que tinha a opção de um segundo desfecho, no qual o professor acabaria atropelado, no campus, pelos amigos da aluna assediada. Horrorizada, Maria deteve Debra, segurando-a pelo braço: — Você não fez isso! — E, antes que a amiga respondesse, ela concluiu, com um suspiro resignado: — Fez... Janus terminava de montar o motor no qual estivera trabalhando o dia todo. Apesar dos cuidados que havia tomado, tinha as mãos sujas de graxa e o macacão num estado lastimável. Limpando-se com uma estopa embebida em solvente, caminhou até a janela da oficina onde se encontrava. O sol declinava nas montanhas, por de trás das colinas de Golden Oak, o bairro nobre da pequena cidade turística. Em outros tempos, Golden Oak pertencera aos pais de Lúcia Danunzzio, mãe de Janus. Ele crescera ouvindo histórias de uma época feliz e próspera, na qual a música, a dança, os melhores vinhos e os pratos mais saborosos eram constantes nas festas promovidas pela família Danunzzio. Certa vez, ele perguntara à mãe por que os avós haviam vendido a pequena fazenda, com vista para o mar, à família Sheridan, mas Lúcia se esquivara do assunto com frases vagas, imprecisas, sobre dívidas e sucessivas crises financeiras. E ela agira exatamente assim, nas muitas outras vezes em que Janus a questionara sobre o fato. Fora somente muito mais tarde que Janus se inteirara da verdade brutal, da falcatrua orquestrada por John Sheridan e outros gananciosos corruptos, contra os quais seus avós nada puderam fazer. A lembrança desse fato doloroso e cruel era por demais perturbadora. Os olhos azuis de Janus estavam fixos no poente, mas o esplendor daquele final de dia não tocava sua sensibilidade aguçada. O rancor contra os Sheridan o dominava por completo, impedindo-o de contemplar a beleza que se descortinava a sua frente. Naquele momento, os traços perfeitos de seu rosto pareciam esculpidos em pedra. Janus passou um bom tempo mergulhado nesses pensamentos sombrios. Por fim, suspirou profundamente e, atirando a estopa sobre o balcão de ferramentas, deu o dia de trabalho por encerrado.


– O Paradiso funcionava numa antiga e bem-conservada construção de madeira sobre pilastras de concreto, situada no final da praia principal de Heavenside. Erguido sobre uma colina que separava duas praias, o restaurante tinha uma localização privilegiada. Da varanda que circundava a construção, descortinava-se uma impressionante vista da linha costeira e do azul infinito do mar. Quando Janus chegou ao restaurante, as luzes da orla já estavam acesas. Estacionando seu velho Mustang vermelho, ele deixou-se ficar ali, por um longo tempo, contemplando aquele cenário magnífico. Centenas de imagens e sensações vieram-lhe à mente, reacendendo iras e alegrias guardadas no mais profundo de seu ser, por muito tempo. Janus sabia que aquele estado de espírito não era nada desejável para o reencontro com a mãe, depois de uma ausência prolongada. Afinal, Lúcia merecia o melhor. Respirando fundo, procurou se acalmar, buscando o equilíbrio necessário. Só então desceu do carro e caminhou, a passos largos, em direção à escada que dava acesso ao restaurante. — Mamma Lúcia! — exclamou a velha cozinheira, de trás do balcão. — Venha ver quem chegou! Saindo da cozinha, enxugando as mãos no avental, Lúcia entrou no salão. Seus olhos negros brilhavam, numa expressão de alegre expectativa. — Janus, meu filho querido... Parado ao lado de uma coluna, ele contemplou a figura esguia da mãe, que se aproximava. Tudo naquela mulher irradiava força e decisão. O tempo apenas tocara a superfície daquele rosto amado, acentuando as linhas de expressão cm torno dos olhos. Os cabelos presos num coque continuavam tão negros como sempre haviam sido. — Mãe... que saudades... — ele murmurou, ao abraçá-la.

eu sou.

Senti muito a sua falta, filho. Por que demorou tanto ;i vir me ver?

Cheguei há apenas dois dias e estava me organizando... Você sabe como


– — Claro que sei... Cheio de manias! Não fosse pelo seu pai, eu teria ido visitá-lo no chalé. — Ora, não vá brigar comigo, agora — ele provocou-i, num tom carinhoso. — Diga-me, o que preparou para o jantar? — Lulas fritas na manteiga, acompanhadas de purê de abóbora. — Meu Deus! — ele exclamou, cerrando os olhos. — Mas, antes um cálice de grappa e caldo de mariscos, para preparar o estômago. Venha... Reservei a varanda norte só para nós. Não quero saber de turistas ouvindo nossa conversa. Tomando o filho pela mão, Lúcia o conduziu através do salão, ainda vazio àquela hora, até a área reservada. A alegria transparecia na extrema vivacidade de seus gestos e no sorriso constante em seu belo e nobre rosto. — Você continua sendo a mãe mais linda da costa leste — Janus declarou, em tom de poesia. — E você continua sendo o maior mentiroso do país — ela retrucou, no mesmo tom. Ambos riram, intensamente emocionados, fitando-se nos olhos. — Sente-se, filho. Conte-me sobre as coisas importantes que lhe aconteceram, em todos esses meses de ausência. — Para começar, fiquei seis meses mais velho, mamma — ele gracejou. — Não diga?! Que coincidência, aconteceu o mesmo comigo... Ambos voltaram a rir. Por fim, Lúcia pediu: — Vamos, conte. Não havia como escapar de um relato minucioso a respeito de todas as suas atividades, e Janus sabia disso muito bem. Então, relaxou e falou longamente sobre a república e seus moradores, sobre as matérias do semestre, as características de cada professor, os esportes que praticava, as festas que freqüentara.


– Embevecida, Lúcia absorvia cada palavra do filho, vivenciando as cenas como se elas estivessem acontecendo naquele exato momento. Volta e meia interrompia Janus para fazer perguntas ou exigir detalhes sobre o relato... Pois era uma grande ouvinte. A chegada do caldo de mariscos e dos aperitivos interrompeu, por um momento, aquela doce intimidade. Mas depois de provar a entrada e bebericar a forte grappa italiana, ambos retomaram a conversa. Agora era a vez de Lúcia relatar os acontecimentos de Heavenside, as peripécias ocorridas no restaurante, cenas engraçadas com turistas desastrados. E, finalmente, as pequenas rusgas com o marido que, segundo ela, estava ficando ranzinza, devido à idade. Em seguida o jantar foi servido. Quase em silêncio, ambos se dedicaram a degustar o fino prato preparado com esmero pela própria Lúcia. — Devo pedir a sobremesa, filho? — indagou ela após terminarem o jantar. Tocando o abdômen, Janus afirmou: — Não há espaço suficiente sequer para uma mínima dose de doces. Mas eu aceitaria um café, bem forte e sem açúcar, por favor. — Café turco... — Lúcia sentenciou. — Você tem o mesmo gosto do seu pai. — Sou tão Gassete quanto Danunzzio, mamma... Você deveria ter escolhido um patrício como marido, se quisesse que eu fosse inteiramente italiano. — Eu não escolhi seu pai. Foi ele que me escolheu. — E por que você o aceitou? — Porque ele era o homem mais lindo que eu já tinha visto na vida — ela confessou, ternamente. — Havia fogo nos olhos e nas veias daquele espanhol dos diabos. Um garçom trouxe o café e afastou-se em seguida. Janus provou, e aprovou a bebida fumegante. — Perfeito, mamma.— Tomou todo o conteúdo da xícara e serviu-se uma segunda vez. Então, pediu: — Fale-me sobre o restante da família... Tem tido notícias de Rocco?


– — Oh, aquele... — Lúcia não completou a frase, mas assumiu uma expressão de desgosto. — Trata-se ainda do caso da loja de conveniência, mammal — perguntou Janus, um tanto impaciente. — Antes fosse, meu filho... — Com um misto de amargura e indignação, Lúcia anunciou: — Sabe que agora o seu primo trabalha para os Sheridan? — É mesmo? — Havia surpresa na reação de Janus, mas não indignação. — Pois é... Logo ele, que mal podia ouvir o nome daquela família, sem rogar uma praga — Lúcia comentou, inconformada. — Bem, mamma, Rocco trabalha com jardinagem — Janus tentou contemporizar. — Ele deve estar fazendo um bico para ganhar uns trocados a mais. — Ora, não me venha com essa! — Lúcia retrucou, nada convencida com o argumento. Por fim, com um suspiro, acrescentou: — Mas deixemos esse assunto de lado, meu filho. Não quero me aborrecer, esta noite. — Está certo — ele apressou-se a concordar. — Vamos falar de outra coisa. — Ótimo. — Recompondo-se, Lúcia perguntou, em outro tom: — E quanto a você, filho? Conheceu alguém... especial? Um leve sorriso aflorou aos lábios de Janus, antes que ele respondesse: — Parece que sim. É muito cedo para dizer, mas conheci uma garota que realmente me impressionou. Os olhos de Lúcia se iluminaram de entusiasmo: — Meu filho... Que bela notícia você me traz! E como se chama a bambina? — Maria. Mas não se anime tanto, mamma... — ele tentou, inutilmente, conter a euforia da mãe. — Maria... — ela repetiu, emocionada. — É italiana?


– — Brasileira, mamma. Aliás, ela e a mãe são brasileiras. O pai é nascido aqui, nos Estados Unidos. — E como ela é, filho? Bonita? — Linda. — E Janus descreveu: — Morena, não muito alta, cabelos negros e olhos verdes como o mar. Enquanto Janus descrevia Maria, com os olhos perdidos na paisagem noturna de Heavenside, lágrimas assomaram aos olhos de Lúcia. Lágrimas de esperança e alegria, que ela tratou de disfarçar, apoiando o rosto na palma das mãos. E esse choro emocionado tinha toda a razão de ser... Desde o triste episódio com Lanna Sheridan, quando Janus tinha dezesseis anos, ele jamais voltara a demonstrar um interesse tão forte por alguém. De vez em quando, aceitava a companhia de uma ou outra garota, mas sem grande entusiasmo. Sim, Lúcia pensou. Algo mudara, em seu amado filho. E esse "algo" era a presença do amor, ela bem o sentia. O amor que fora soterrado no peito adolescente de Janus, graças à brutalidade dos Sheridan, que tanto mal haviam causado a sua família. — A propósito, convidei Maria para conhecer Heavenside, nestas férias — ele anunciou, por fim. — E o que ela respondeu? — A ansiedade transparecia na pergunta de Lúcia. — Parece que gostou da idéia. Ela vai se encontrar com a mãe, em Miami, e depois talvez venha para cá. — Maria será muito bem-vinda. — Não se entusiasme tanto, mamma — ele avisou, pela segunda vez. — Por enquanto, não há nada certo... Foi apenas um convite. — Sei, sei... Mas diga-me, filho, vocês fizeram amor? Janus sorriu francamente, diante da pergunta direta e indiscreta da mãe. Fazer amor, para Lúcia, era uma conseqüência natural de um relacionamento sério entre duas pessoas que se queriam bem. Não caberia, jamais, em sua concepção de fazer amor, o sexo eventual, passageiro, motivado apenas pelo simples prazer físico. Isso ela chamava simplesmente de "sexo", e acrescentava: como fazem os


– animais, franzindo o nariz em sinal de desagrado. Por todos esses motivos, Janus respondeu, sem vacilar: — Sim, mamma. Fizemos amor. — E como foi? Os olhos de Janus fixaram-se na porcelana antiga da xícara de café a sua frente. — Foi como encontrar a mim mesmo, depois de muito tempo — disse, lentamente. — Compreendo. — A voz de Lúcia soava com gravidade. — E ela, filho? — Houve um momento em que ela chorou, mamma... e não encontrou palavras para dizer por quê. Um sorriso iluminou o rosto de Lúcia: — Ela virá, filho. — Apertando a mão de Janus por sobre a mesa, com uma energia e uma certeza insuperáveis, Lúcia repetiu: — Ela virá. Prepare seu coração para recebê-la.

Capítulo II

Em Clespreen, Maria enfrentava a dura prova de uma aula com Hector, depois da tarde em que o deixara conversando com Debra, na cantina. Tudo corria dentro da maior normalidade, com os gestos e palavras esperadas de ambas as partes. Mas Maria estava tensa. Quanto a Hector, mostrava-se distante e frio. Ao executar pela quarta vez uma frase melódica particularmente difícil, Maria deixou cair os braços e, meneando a cabeça, confessou: — Não consigo me concentrar.


– — O problema técnico está na pausa — ele explicou, forçado um sorriso. — Às vezes você chega no tempo certo, mas parece que coloca um ponto final na pausa, quando, na verdade, deveria preparar o ritmo do trecho seguinte. Veja... — Hector cantarolou a frase musical, marcando o compasso com a mão direita. — Está claro, agora? — Acho que sim. — Então, tente de novo. Maria obedeceu, sem grande convicção, e tornou a falhar. Hector aproximou-se dela, pela primeira vez, naquela aula. Inclinando-se e fitou-a nos olhos enquanto dizia: — Acontece que o problema não é técnico, certo? — Sim... Acho que sim. — Você acha... e eu tenho certeza. —Voltando sobre os próprios passos, ele caminhou até a janela. — Aceitei você como aluna de música latino-americana por sua percepção rítmica, pela capacidade de intuir a dança e a alegria que existem por trás das frases mais solenes e tristes. Mas, para isso, é preciso mais do que entender: é preciso sentir. — Eu sei, Hector — Maria aquiesceu. — E estou muito agradecida por tudo o que tem me ensinado. — Não quero sua gratidão. Quero que você toque o que foi escrito na partitura, com tudo o que há de brasileiro em seu sangue. Onde estão a ginga, a malícia, a célula rítmica oculta na cadência? Hector estava coberto de razão, e ela nada tinha a dizer. — O que quer que eu faça? — perguntou, por fim. Ele caminhou até a mesa e, abrindo a gaveta, retirou um CD. Entregando-o a Maria, disse: — Vá para casa, pense em coisas que a razão não explica e ouça essas músicas. E agora, preste atenção a um conselho de amigo... —

Sim?


– — Deixe o violão de lado, até que a vontade de tocá-lo seja mais forte do que o medo de errar. — Farei isso — ela respondeu, erguendo-se e guardando o violão no estojo. — Quando achar que encontrou algo, um caminho qualquer, me avise. Arranjarei um horário para você. — Está bem, Hector. — Maria guardou o CD na bolsa. — Obrigada. — Boa sorte — ele disse, como despedida, sem fitá-la. Maria deixou a sala de aula, sentindo-se péssima. Chegando ao estacionamento do campus, cumprimentou vagamente um ou outro conhecido, colocou o estojo do violão no banco de trás de seu carro e partiu. Já estava escurecendo, e a perspectiva de chegar à república quase vazia não era nada atraente. Lia Carson havia partido alguns dias atrás, e, naquela manhã, Debra voara para Los Angeles, deixando a Angels' Home com um ar de abandono. Mas a grande ausência, Maria tinha de reconhecer, era de Janus, com seu silêncio pleno de significados, seu sorriso raro e encantador, sua força interior compartilhada com tanta generosidade. Onde estaria, naquele momento, o dono daquelas mãos grandes, fortes e sensíveis, daqueles olhos azuis que sabiam fitar com tanta compreensão? Maria sorriu, inundada pelas recordações da noite inesquecível que passara com Janus. Que surpresa descobrir nele um amante maravilhoso, tão delicado e atento! Que vigor e fogo se escondiam naquele corpo esbelto, insaciável na procura de dar e receber prazer! E que ternura comovente a invadira, ao observá-lo durante o breve sono, depois do amor, quando o belo rosto do homem viril e exigente transformara-se aos poucos, até chegar à expressão mais pura de um menino dormindo em paz! O estado emocional de Maria mudava. A brisa fresca da noite que caía acariciava-lhe o rosto enquanto ela dirigia seu pequeno Opel pelo campus universitário. Sentindo-se gradativamente melhor, à medida que se aproximava da república, Maria tomou uma decisão: dar-se um tempo. Quarenta e oito horas, não mais... Se em


– dois dias não resolvesse o problema com a peça musical que a atormentava, desistiria de se apresentar no festival, por mais que isso lhe doesse. A república estava vazia, tal como ela havia previsto. Atravessando a sala, seguiu direto para seu quarto. Colocando o violão ao lado da estante, introduziu o CD que Hector lhe dera no aparelho de som e atirou-se na cama. — Pensar em coisas que a razão não explica — ela repetiu, pronunciando pausadamente cada palavra. — O que será que Hector quis dizer com isso? Fechando os olhos, deixou-se embalar pela música. Aos poucos, foi relaxando, relaxando... até que adormeceu. — Rocco? Sou eu, Janus! — Rapaz, até que enfim você ligou! Fiquei sabendo de sua chegada por tio Pablo. E então, como estão as coisas? — Sem grandes novidades. E você, como vai? — Levando a vida, do melhor jeito possível. Bem, o que é que você manda? — Estava pensando em encontrar você para colocar os assuntos em dia. Que tal lhe parece? — Maravilha. Onde? — No Marlin. Pode ser? — Estarei lá em vinte minutos. — Combinado. Desligando o celular, Janus saiu do acostamento e se misturou ao trânsito leve dos turistas que trafegavam pela orla iluminada, na praia principal de Heavenside. Ainda havia bastante gente na praia. Casais passeavam de mãos dadas, parando vez por outra para trocar um beijo apaixonado. A noite estava agradável e propícia. Era como se convidasse as pessoas a desfrutar o que havia de melhor na vida. Acelerando o carro, Janus saiu da pista principal e tomou uma via secundária, que serpenteava pelas colinas, longe das luzes e dos veranistas despreocupados.


– Sorriu ao lembrar-se de como fora difícil entender, na infância, a lei número um dos moradores mais pobres dos paraísos turísticos: trabalhar duro nas temporadas, para servir os visitantes. Afinal, os turistas eram a fonte de renda da comunidade. Toda aquela estrutura fora montada especialmente para eles. Quem ignorasse essa lei, fatalmente se daria mal. Rocco era um triste exemplo desse fato. Ele recebera, como herança dos pais, uma loja de conveniências bastante lucrativa, mas não soubera administrá-la como deveria e acabara falindo. Sem outra condição de sobrevivência, fora trabalhar como jardineiro nas mansões de Golden Oak, entre elas a vasta propriedade da família Sheridan, que um dia pertencera a seus ancestrais. Essa era uma triste história, que Janus e Rocco bem conheciam, e estavam longe de dar por encerrada. A estrada agora descia em curva, em direção a uma pequena enseada. Janus diminuiu a marcha. Os faróis do carro iluminaram o estacionamento quase vazio do Marlin, um bar situado na entrada de uma marina rústica, usada pelos pescadores locais. Na adolescência, Janus chegara a trabalhar naquele local. Charlie, o proprietário, fora um patrão justo e generoso. Uma grande estima nascera entre ambos, apesar da diferença de idade. Por isso, foi com profunda emoção que Janus desceu do carro e aproximou-se do bar, que parecia vazio. Parando na varanda, junto a um balcão de madeira tosca, Janus anunciou, elevando a voz: — Ei, Charlie! Você tem visita! — Quem é? — É Janus, seu velho preguiçoso! Levante dessa rede e mostre sua cara feia. Charlie veio de dentro do bar, arrastando os chinelos. Os cabelos inteiramente brancos emolduravam-lhe o rosto marcado pelo tempo, onde se estampava um sorriso: — Ora, vejam só quem resolveu aparecer! O verão traz cada surpresa... Os dois homens apertaram-se as mãos.


– — Como vai, meu amigo? — perguntou Janus, fitando-o dentro dos olhos, que brilhavam de satisfação. — Não tão bem quanto você. Mas dá para o gasto. Quando chegou? — Há dois dias. — Até que não demorou muito para aparecer, desta vez. Como estão Pablo e Lúcia? — Bem. Acabo de jantar com minha mãe. — Santo Deus! — Charlie exclamou. — Não vejo sua mãe desde a Grande Feira de Abril. Ela preparou um mines trone monumental, para quase cem pessoas. Foi uma verdadeira sensação. — Posso imaginar. — E, por falar nisso, estou fazendo meu jantar. Pule o balcão e entre. Você será meu convidado. — Agradeço, mas eu não seria capaz de comer mais nada, hoje. Além disso, vim para me encontrar com Rocco, que já deve estar chegando.

uma

— Compreendo. Vocês devem ter muito o que conversar. Aproximando-se de prateleira, Charlie alcançou

uma garrafa empoeirada. Depois de limpá-la com um pano de pratos, abriu-a com o saca-rolha, colocando-a em cima do balcão. Com sua costumeira calma, serviu dois copos e estendeu um a Janus, enquanto dizia: — Eu estava guardando este vinho para uma ocasião especial. Um brinde a sua chegada. — E a nossa amizade, Charlie. Os copos se tocaram, num leve tilintar, e ambos beberam em silêncio, saboreando com prazer o vinho de ótima safra. Pouco depois, ouviram o som de um motor se aproximando. Logo em seguida, os faróis de um carro varreram as paredes da varanda. — Rocco está chegando — Janus concluiu.


– — Bem, vou tratar do meu jantar. Você e seu primo podem ficar à vontade. Se precisarem de alguma coisa, não me chamem... Pulem o balcão e sirvam-se. — Está certo. Obrigado, meu velho. Pegando a garrafa e seu copo, Janus encaminhou-se para uma mesa de onde se divisava a praia, o estacionamento e a estrada mergulhada na escuridão. Qualquer veículo que chegasse próximo à marina seria facilmente percebido, dali. Rocco estacionou ao lado do carro de Janus. Aproximou-se com um largo sorriso no rosto. — Vejo que você já está se cuidando — disse, apontado a garrafa. Os dois se estreitaram num forte abraço. Além de primos, eram amigos desde a infância. Juntos, haviam vivenciado as vantagens e desvantagens de nascer e crescer numa pequena cidade costeira: a beleza da paisagem, o contato com a natureza em seu mais puro esplendor, as gangues de praia, os namorados ciumentos das meninas infiéis, as ondas perigosas no surfe quase todos os dias, os tombos e arranhões, a fúria das mães com as roupas rasgadas e as notas baixas no colégio. Tanta história compartilhada resultará numa amizade que ia muito além dos laços de sangue. Filhos únicos de duas irmãs, Lúcia e Claudia, as Danunzzio, como eram co-conhecidas na cidade, ambos eram mais que primos. Eram como irmãos. — Pegue um copo para você, no balcão — sugeriu Janus. — O vinho está ótimo. — Prefiro uma cerveja, primo. — Então, terá que se servir sozinho. Charlie está fazendo seu jantar. Com incrível agilidade, Rocco transpôs o balcão, mal apoiando as mãos na grossa prancha de madeira. Pouco depois estava de volta, sorvendo a espuma branca que transbordava de um copo alto e cristalino. — Rapaz... você está ótimo! Como vai a vida de universitário? — perguntou, acomodando-se à mesa. — Nada mal. Sigo garimpando as informações que me interessam e tentando não me aborrecer com as matérias chatas — Janus resumiu. — E as garotas?


– — Noventa por cento delas querem o que noventa por cento dos rapazes estão loucos para dar, ou vice-versa. Então, parece que está tudo certo, você não acha? Rocco levou alguns segundos para entender o raciocínio de Janus. Então desatou numa risada cristalina, enquanto batia nos joelhos, com as mãos espalmadas. — E como é que você fica, dentro disso? — indagou, por fim. — Às vezes faço parte dessa estatística — Janus respondeu, com um meio-sorriso. — Mas não muito. — Você sempre foi muito discreto e sortudo com as mulheres. Pensando em Maria, Janus sorriu misteriosamente, antes de dizer: — Talvez você tenha razão, primo. O tempo dirá se realmente tenho sorte, ou não. — Do que você está falando? — Estava... — Janus sorveu mais um gole de vinho. — Mas chega de falar de mim. Conte-me sobre você. Como vão os negócios? E as conquistas? — As conquistas não vão muito bem — Rocco respondeu, com um suspiro. — Para as garotas de Heavenside, sou como espaguete em casa de italianos... Ou seja: pura rotina. Não tenho mais mistério nem atrativos para elas. — Mas você não parece estar carente, nem infeliz — Janus comentou, com ar maroto. — Bem... Digamos que vinte por cento delas se contentam com os vinte por cento que tenho para dar. Em suma, não me queixo. Foi a vez de Janus rir. — E os negócios, Rocco? — Bem, ganho o suficiente como jardineiro das mansões, para manter um nível de vida razoável. — Menos mal. Janus fez uma longa pausa, enquanto terminava seu copo de vinho. Então retomou a conversa, num tom diferente:


– — Fiquei sabendo que você está trabalhando na mansão dos Sheridan. — Não foi nada fácil — Rocco respondeu, em voz baixa e grave. — Eles são desconfiados e muito espertos. Preferem contratar pessoas de fora. — É claro. E como você conseguiu entrar lá? — Fiz amizade com o velho jardineiro deles. O homem gosta de jogar gamão e freqüenta um bar na Praça do Sol, daqueles que têm mesas com tabuleiros incrustados. —

Sei onde é.

— Então... um dia, Miguel, esse velho jardineiro, pegou uma gripe forte e não pôde trabalhar. O rapaz que costumava substituí-lo estava viajando. Percebi que minha chance tinha chegado, e não vacilei. — Rocco terminou de beber a cerveja e serviu-se novamente. — Resumindo, foi assim que consegui penetrar no reduto dos Sheridan. — Estou impressionado, primo — Janus confessou, com franqueza. — Sempre soube que você era bom no que fazia, mas dessa vez você se superou. — Obrigado. Eu estava mesmo precisando de alguns elogios... Sobretudo neste momento, em que todos me condenam por acharem que me vendi aos Sheridan. — Houve essa reação, não é? Rocco respondeu com um lento gesto de cabeça: — Sim. Tio Pablo, quando soube, ficou me olhando por um longo tempo, sem dizer nada. Foi o único da família a se manter neutro. Continua me tratando como se nada tivesse acontecido. Mas acho que ele desconfia de algo. — Temos de tomar cuidado. Meu pai enxerga longe. — E você acha que eu não sei disso? — E quanto a mamma... o que ela disse? — Tia Lúcia não quer ver me ver, nem pintado de ouro. — Rocco sorriu, com os lábios, mas seus olhos traziam uma expressão de amargura. Estendendo a mão por sobre a mesa, Janus tocou-lhe o braço, num gesto de solidariedade e carinho.


– — Precisamos ser fortes. Não podemos envolvê-los nesse assunto, você sabe. — Claro — Rocco assentiu, com tristeza. Em seguida retirou alguns papéis do bolso da jaqueta e colocou-os sobre a mesa. — Dê uma olhada nisso. São cópias, é claro. Os originais continuam guardados na gaveta do escritório de John Sheridan. Janus tomou os papéis nas mãos. Com muita atenção, observou as várias tabelas numéricas e as anotações feitas a lápis, na margem das folhas. — Do que se trata? — Nada muito importante. São apenas contas, e uns rabiscos do John Sheridan. Os olhos de Janus fixaram-se no rosto sorridente de Rocco, e, aos poucos, ele foi entendendo o significado de tudo. — Minha nossa! Você conseguiu acesso ao escritório de John! — Mais que isso. Consegui fotografar, passar para o computador e imprimir uma cópia, sem deixar pistas. Isso parece muito simples nos filmes, mas não é nada fácil na prática. Janus assoviou baixinho, antevendo as possibilidades que se abriam para ambos. Rocco prosseguiu: — Se eu tivesse um bom equipamento de escuta, poderia gravar as reuniões que acontecem naquele escritório. Assim ficaríamos sabendo de coisas importantes, você não acha? — Você pode fazer isso sem correr riscos excessivos? —

Sem dúvida alguma — Rocco garantiu, com tranqüilidade.

— Você terá o equipamento — Janus afirmou. — Quando? — Digamos... Dentro de três dias. — Perfeito. Em breve teremos os primeiros resultados. Ambos falavam em voz baixa, apesar de contarem com a


– discrição de Charlie e o isolamento do local, àquela hora da noite. Não eram tolos. Sabiam do perigo que corriam. Mas haviam jurado desmascarar os Sheridan e fazê-los pagar por seus crimes, desmandos e outras injustiças cometidas. — Agora, conte-me o que você tem feito pelo nosso plano — pediu Rocco, recostando-se na cadeira. — Estudei a fundo as leis de incorporação no Estado ila Flórida, a intervenção do governo federal na distribuição de terras confiscadas no pós-guerra e as principais jurisprudências sobre o assunto. — Janus fez uma pausa. — lista acompanhando meu raciocínio? — Ouço sons, apenas — Rocco respondeu, sorrindo. — Até compreendo as palavras, mas não tenho a menor idéia do que elas significam, primo. —Significam que estou investigando a parte legal da situação. Se existir uma só possibilidade de reavermos as I terras dos Danunzzio, dentro da lei, eu a encontrarei. Pode ter certeza. Maria acordou com a sensação de que aquele dia seria propício a boas novidades. O sol que entrava pelo vão das cortinas entreabertas convidava a uma volta pelos arredores da república. Depois de um banho e de um desjejum saudável, ela deitou a Angels' Home, iniciando uma corrida leve em direção .10 lago, pelo caminho de cascalho que cortava o gramado. O ar frio da manhã trazia o doce perfume das flores que cresciam desordenadamente, ao longo do bosque. O silêncio profundo era cortado apenas pela respiração cadenciada de Maria e pelas solas flexíveis de seus tênis, <obre o cascalho. Nenhum pensamento habitava sua mente, que se concentrava apenas em sentir a natureza ao redor, buscando harmonizar-se com aquele cenário perfeito. O sangue fluía por seu corpo, ao compasso do coração pulsando forte. — Um, dois, três... Um, dois, três... Um, dois, três... Inconscientemente, ela marcava, a cada três passos, o compasso ternário da peça que não conseguia tocar. O ritmo era perfeito e, de repente, a melodia que Maria tocara centenas de vezes, sem acertar, soou em seu ouvido, cristalina, sem falhar em uma só nota.


– Com os olhos semicerrados, ela percorreu a partitura, que sua memória trazia gravada, até a problemática escala descendente que tanto a atormentava. — Um, dois, três... Um, dois, três... Pausa, dois, três... Com a naturalidade de uma inspiração perfeita, toda a escala brilhou em sua mente, como um meteoro que rasgasse o céu noturno. Relutando em acreditar em sua sorte, ainda correndo no mesmo ritmo, Maria tentou outra vez. E de novo a difícil escala desenhou-se em sua mente. Foi com emoção e humilde orgulho que ela cantou, na divisão perfeita dos passos, as notas que tanto perseguira, em horas e horas de exaustivo estudo. Em meio à euforia que a abrasava, ela murmurou: — Obrigada, bom Deus. — E logo em seguida: —Agora, o violão... Preciso do violão. Voltou correndo à Angels' Home. A porta estava aberta, e Maria quase esbarrou em Irving Loos, que estava de partida. — Ei, aonde vai com toda essa pressa? — ele perguntou, atônito. — Confirmar um milagre — Maria respondeu, de passagem. No quarto, Maria pegou seu instrumento com um misto de respeito e afeto. Sentando-se numa banqueta, em frente à estante de partituras, respirou fundo e começou a tocar. Estava tão concentrada que nem percebeu a presença de Irving, parado à porta, com um ar de espanto no rosto, a mochila de viagem pendurada no ombro. A profusão de acordes, seqüentes e rápidos, preencheu o espaço sonoro do quarto iluminado pelo sol que entrava pela janela totalmente aberta. Aquele era o início da peça musical. Então, numa rapidez espantosa, as escalas fluíram dos dedos de Maria, que pareciam dançar sobre as cordas do violão como alegres malabaristas. Na manhã seguinte ao encontro com Rocco, no Marlin, Janus já tinha um plano para a compra do material de escuta. Assim, quando Pablo chegou, para o café da manhã, ele conduziu a conversa para o ponto que lhe interessava: — Precisamos de peças para reposição em vários motores, além de verniz náutico, fibra de acrílico e outras coisas mais.


– — Faça a lista e mande para Tom — Pablo recomendou. Em três dias, todo esse material estará aqui. — Sei que Tom é competente, pai... mas estou pensando em dar um pulo até Miami, para fazer umas compras para mim. — Muita coisa? — Na verdade, não. Preciso trocar o equipamento de som do carro, comprar umas roupas, livros e material de informática. —

Sendo assim, vale a pena ir até lá — concordou 1'ablo.

Foi o que pensei. Diga-me, pai, como está o caixa da firma?

— Normal, para começo de verão. Está precisando de dinheiro? —

Sim, mas não quero um empréstimo.

— Não? Janus serviu-se de mais uma xícara de café, enquanto explicava o que tinha em mente: — Você acha que poderia ganhar algum dinheiro se colocasse a Sunrise para alugar? — Claro! Eu sempre lhe disse isso, filho. Os turistas ficam loucos pela sua lancha... Principalmente os jovens, que gostam de praticar esqui aquático. — Sorrindo, Pablo perguntou: — Você resolveu alugá-la, este verão? — Eu, não. — Janus sorriu. — Mas você, talvez, sim. — E acrescentou: — Quero lhe vender a Sunrise, pai. — Por quanto? — Preço de mercado. — Não tenho todo esse dinheiro disponível, no momento. — Metade agora, e o resto quando você puder, da forma que puder... Sem juros, é claro. — Fechado. Acho que conseguirei pagá-lo até o final do verão.


– — Ótimo — disse Janus, estendendo a mão. — Mas não tenha pressa. Toque aqui, pai. Pablo retribuiu o cumprimento. Mas, embora satisfeito com o negócio, estava intrigado. Sem resistir à curiosidade, perguntou: — Você já passou por diversos apertos financeiros, mas nunca quis dispor da Sunrise, nem para aluguel. O que está acontecendo, filho? Janus detestava mentir para o pai, mas, naquela circunstância, não podia dizer a verdade. Para a própria segurança de Pablo e Lúcia, era melhor mantê-los longe do caso com os Sheridan. — Meus valores já não são os mesmos, pai — respondeu, por fim, desviando os olhos. — As prioridades mudam com o tempo. No dia seguinte, bem cedo, Janus partiu em seu velho Mustang rumo a Miami. A rodovia estava em ótimas condições e o trânsito fluía tranqüilamente. No rádio do carro, uma seleção de velhos sucessos de Eric Clapton fizeram Janus sorrir. Aquelas músicas lhe traziam lembranças da adolescência, de um tempo em que fora feliz, sem a menor consciência da maldade do mundo. Era apenas um rapaz, como tantos do litoral da Flórida, preocupado com campeonatos de surf, roupas, garotas... Bons tempos, aqueles, ele pensou, imprimindo ao Mustang uma velocidade maior. Aos vinte e sete anos de idade, já estava se transformando num saudosista... Mas, recordando o passado, Janus tinha de admitir que sentia saudades daquela sensação de liberdade e de maravilhoso espanto diante de cada surpresa que a vida oferecia. Lembrava-se claramente de como vibrara ao descobrir o poder de dar e receber prazer, numa relação a dois. E isso acontecera havia tanto tempo! Nunca mais se sentira assim, livre e aberto a todas as emoções... Nunca mais, até a noite da festa na Neandertal, quando descobrira um universo de delicadas sensações, no corpo generoso de Maria. Sim, ele pensou, com um sorriso. Só podia chamar de "generosidade" a maneira natural e quente com que ela o recebera, no jardim mais secreto e reservado de seu corpo em flor. Maria se revelara uma mulher, no sentido mais completo da palavra. Havia, em seus movimentos, um equilíbrio intuitivo entre ousar e seguir a ousadia do outro. Isso fazia dela a parceira ideal para a bela dança do amor.


– Mas o que acontecera entre ele e Maria fora muito além da sensualidade. E Janus procurou, em vão, palavras para descrever a sensação que o invadira, durante e depois de ter feito amor com ela. — Indescritível — disse, baixinho. Depois disso, aquela velha sensação corrosiva de estar só no mundo desaparecera como por encanto. Pela primeira vez, depois de anos, acordava feliz, pensando em alguém. Janus lançou um rápido olhar ao seu celular, sobre o banco do passageiro, enquanto uma vontade crescia em seu interior. E se falasse com Maria? E se a surpreendesse naquela bela manhã, com uma frase simples e despretensiosa como: "Sinto saudades de você"? Por alguns segundos, ele brincou com aquela idéia tentadora, mesmo sabendo que não a levaria adiante. Era um risco tolo. A possibilidade de que Maria atendesse, surpresa, distante ou indiferente, era muito grande. E ele não suportaria viver todos os dias e noites daquelas férias sabendo que suas esperanças e sonhos eram nada mais que um engano. Um engano induzido por sua carência e solidão. Não, Janus decidiu. Não iria forçar a sorte. O tempo diria se o sentimento que Maria lhe despertara, naquela noite, era correspondido ou não. De qualquer maneira, ele pensou, em poucos dias teria resposta à pergunta que secretamente carregava, desde que partira de Clespreen. Um telefonema de Maria, dizendo que viria a seu encontro, em Heavenside, seria a confirmação da importância que ela dera ao fato. Caso isso não acontecesse, ele teria de conviver com a dura realidade de que tudo fora apenas ilusão. Sinalizando à direita, Janus cortou as três faixas, diminuindo progressivamente a velocidade do carro, até ganhar o acostamento e o acesso a um posto de gasolina. Precisava reabastecer o velho Mustang. Sob o foco cruzado de três refletores, Maria acomodou-se em frente à estante com a partitura. Respirou fundo e, tomando o violão nas mãos, correu o polegar pelas cordas num acorde aberto, amplo e sonoro. Depois, foi um fluir constante de emoções e sons, onde a técnica e a habilidade, impecáveis, prestavam serviço a sua arte, como se ela fosse, também, um instrumento de algo que transcendia a compreensão. Maria, a música e o violão


– pareciam fundir-se num só bloco. E o resultado foi puro encantamento, estética, magia e beleza. Uma voz profunda elevou-se, na platéia, no silêncio que se seguiu à apresentação: — Bravo... Bravíssimo! Esse foi o princípio de uma manifestação coletiva de aplausos contínuos e ininterruptos, em meio a assobios e exclamações. Um verdadeiro delírio, que envolveu Maria numa sensação de total surpresa. Erguendo-se, com o violão na mão esquerda, ela curvou-se graciosamente, com um sorriso tímido no belo rosto, que ainda guardava sinais de gravidade, devido à concentração exigida pelo profundo exercício da música. — Obrigada — ela agradeceu. — Muito obrigada. E deixou o palco, sob os aplausos que não queriam morrer. Atrás da cortina, Hector a aguardava. Cumprimentou-a com um sorriso comovido, dizendo: — Parabéns, Maria. Você conseguiu. — Mal posso acreditar, Hector. Parece que todos gostaram da minha interpretação. — É claro que sim. — Você arrasou, Maria — disse um rapaz, que se apresentaria a seguir com um solo de clarineta. — Vai ser difícil agradá-los, depois disso. Sem saber o que responder, ela apenas sorriu, ainda aturdida por tudo o que estava acontecendo. — Vejo você no coquetel? — perguntou Hector, aproximando-se. — Sinceramente, eu gostaria de ir para casa — ela confessou. — Compreendo. Mas há certas obrigações sociais da-, quais não se pode fugir. Isso faz parte da vida de um músi co. Além disso, preciso falar com você.


– Com um suspiro, Maria entendeu que não poderia negar-se àquela sugestão. — Está bem, Hector. Eu irei. — Ótimo. Então, até mais tarde. Respondendo aos cumprimentos e sorrisos que desabrochavam de todos os lados, Maria chegou ao camarim. Guardou o violão no estojo, recolheu as partituras e desmontou a estante. Pouco depois, deixava o teatro, pela saída de serviço. No estacionamento dos fundos, seu carro a aguardava. Teria aproximadamente duas horas para absorver o que havia acontecido e ordenar suas emoções. Precisava alcançar o equilíbrio emocional necessário para se expor, em público, agora sem o escudo protetor da arte. Sem o violão. Dirigindo sem pressa pelas ruas desertas do campus, Maria procurou uma imagem que representasse a síntese de tudo o que sentia, naquele momento. Entre tantas que afluíam a sua mente agitada, surgiu o rosto de Janus, os lábios entreabertos, os olhos semicerrados, e aquela expressão contrita, quase dolorosa, que ele havia assumido segundos antes de se entregar ao mais profundo êxtase. Comovida, ela murmurou: — Janus, querido... Logo estaremos juntos. O coquetel oferecido pelos organizadores do Festival de Musica Latino-Americana da Universidade de Clespreen aconteceu no saguão do prédio da reitoria. Uma imensa mesa, coberta por toalhas bordadas em tons pastel, apresentava uma quantidade exagerada de salgados e doces, dispostos em arranjos artísticos de extremo bom gosto. Na cabeceira da mesa, uma seleção de vinhos variados, junto a fileiras de belas taças, aguardava os apreciadores da nobre bebida. No centro, uma poncheira de cristal, cercada de frutos multicoloridos, dava um toque de frescor ao arranjo. A um canto do extenso saguão, fora montado um palco. Nele, um trio de cordas da Venezuela, que também se apresentara no festival, improvisava sobre temas latino-americanos bastante conhecidos. Maria chegou ao local aproximadamente duas horas depois de ter deixado o teatro. Havia tomado banho e trocado de roupa. Trazia os cabelos presos num coque,


– em estilo espanhol, adornado com uma presilha de madeira. Usava um colar de ametistas que enfeitavam também o fecho de sua pequena bolsa de mão, e combinavam com sua pele morena, valorizada pelo vestido branco, de algodão, sem mangas. Desde a adolescência, nos Estados Unidos, Maria estava acostumada à admiração das pessoas por seu tipo exótico e beleza incomum. Para ela, isso era natural, assim como ter o nariz arrebitado e os olhos verdes. Mas não se orgulhava desse fato, apenas aceitava-o. Porém, a reação causada por sua presença no coquetel conseguiu surpreendê-la. Havia deferência e respeito no modo como as pessoas a olhavam. Isso a agradou; era algo novo e estimulante. E foi então que Maria compreendeu uma das verdades óbvias que regiam a vida: se a beleza lhe fora dada por um capricho da Mãe-Natureza, o respeito que a cercava agora fora uma conquista pessoal, fruto de seus esforços e dedicação à música. Essa constatação fez com que cia se sentisse feliz. Naquele momento, Hector aproximou-se, acompanhado de um senhor distinto, que se apresentou como Lionel Uell, empresário do showbiz. Em poucas palavras, Lionel elogiou sua apresentação no festival e demonstrou interesse em contratá-la. O objetivo era integrá-la a um grupo de músicos que viajaria pelo país com um repertório que ia da bossa-nova ao jazz, passando pelos ritmos centro-americanos. — Mas ainda sou estudante, não só de música como de literatura americana — ela explicou. Com um sorriso, Lionel retrucou: — A vida dá muitas voltas, srta. Wollstone. E sempre existe a possibilidade de trancar a matrícula. — Eu sei. Mas, realmente, isso não está nos meus planos. Com ar compreensivo, quase paternal, Lionel disse: — É o "novo" se apresentando diante de seus olhos. Imagino o quanto isso a assusta. Mas peço-lhe que pense sobre o assunto. — Entregando-lhe um cartão, acrescentou: — Entre em contato comigo, se mudar de idéia.


– Maria pegou o pequeno retângulo de papel-cartão e leu, rapidamente, os dados ali impressos. Abaixo do nome, Lionel Bell, e de sua função, empresário artístico, vinham o número de telefone e endereço de um escritório situado no centro comercial de Miami. — Obrigada, senhor — ela agradeceu, gentilmente, guardando o cartão na bolsa. Pouco depois, enquanto o empresário se afastava, Hector perguntou: —

Quer tomar alguma coisa, Maria? Um vinho, talvez?

— É uma boa idéia. Um copo de vinho branco cairia bem. Conversando, ambos caminharam até a mesa. Hector serviu duas taças. Entregou uma a Maria e pegou a outra para si. — A sua brilhante apresentação! Maria aceitou o brinde e a homenagem, mas no fundo estava inquieta. Alguma coisa, no olhar ou na voz de Hector, não condizia com suas palavras gentis. Havia ali uma sombra de amarga ironia, que ela não podia ignorar. Uma ironia que se tornava cada vez mais evidente à medida que ele comentava sobre o coquetel, o público, a admiração com que todos a olhavam. — O que está acontecendo, Hector? — ela perguntou, a certa altura. — Você disse que precisava falar comigo. — De fato — ele respondeu, mudando subitamente de tom. — Só não sei se o local é propício. — E olhou em torno, de modo significativo. — Não seja por isso. Venha — ela disse, com desenvoltura. — Deve haver uma sala deserta, por aqui, onde poderemos conversar à vontade. Hector a acompanhou, através do saguão. Demonstrando uma calma que estava longe de sentir, Maria abriu a porta da antessala da reitoria. — Tal como eu previa, não há ninguém por aqui. O que você acha, Hector? Podemos conversar nesta sala? —

Sem dúvida — ele respondeu, visivelmente nervoso.

— Ótimo. — Maria acomodou-se num sofá antigo, de couro, com a taça de vinho ainda nas mãos. — Por favor, fale... Do que se trata?


– Em pé, no centro da sala, Hector sorveu um longo gole de vinho, antes de dizer: — Para começar, gostaria de ter notícias de sua amiga Debra. Ela simplesmente desapareceu, depois daquela tarde em que você nos apresentou. — Debra partiu há alguns dias. Vai passar as férias com a família, em Los Angeles — Maria respondeu. — Estranho... — A ironia voltava à voz de Hector. — Por quê? — Ela parecia tão aflita para me convencer a musicar o tal roteiro teatral... — Talvez Debra tenha mudado de idéia, depois de conversar com você. Ela é imprevisível, sabe? — E você acha isso normal? Mesmo depois de ter se empenhado tanto para que eu a conhecesse... Fechando os olhos por um instante, Maria respirou fundo. O confronto, do qual fugira por tantas razões, agora parecia inevitável. E isso era o que ela menos desejava, naquela noite. Tomando fôlego, disse, no tom mais pausado que conseguiu: — Hector, dentro de quarenta e oito horas estarei a caminho de Miami, de férias. Quando voltar, não me inscreverei em seu curso, e isso é uma promessa. Assim sendo, que tal deixarmos esse assunto de lado? Qual tal nos despedirmos como bons amigos? — Suponho que isso seja muito cômodo para você, agora que conseguiu tudo o que queria. Ofendida, Maria argumentou: — Pelo que me consta, você cumpriu sua função de professor, para a qual foi contratado por esta universidade. E eu cumpri com a minha, de aluna, estudando e me dedicando ao máximo. O que há de errado nisso? — perguntou, friamente. — Acontece que houve um envolvimento pessoal. Algo que transcendeu, e muito, a simples relação de um professor com sua aluna. E é isso que você está tentando negar. Maria sorriu, meneando a cabeça lentamente.


– — Você está enganado, Hector. Eu não nego essa transcendência. — Ah... Então finalmente vamos ter, aqui, um pouco de sinceridade. — Toda a que você puder suportar ou entender. — Minha capacidade de suportar e entender foi posta à prova naquela conversa ridícula com sua amiguinha. Roteiro teatral... Que palhaçada! — Digamos que aquilo foi uma parábola... Um espécie de "aviso aos navegantes", se é que você me entende. — Você chama de "parábola" a ameaça velada de denúncia por assédio sexual. E como você chamaria a ameaça de morte por atropelamento? — Concordo que Debra exagerou naquele desdobramento do roteiro. No original, não havia a opção por um final trágico. Acho que ela se empolgou. — Então você admite que estava a par de tudo? —

Sim.

Num tom acusador, ele a questionou duramente: — Como pôde fazer isso, Maria? Onde está sua parte na responsabilidade pela transcendência que ambos sabemos que houve entre nós? — Aí é que está o problema, Hector. Isso que aconteceu não tem o mesmo significado para nós dois. — Não me venha com essa, Maria. Que diferença pode haver entre nossas concepções de transcendência? Você sabe muito bem da forte atração sexual que sempre existiu entre nós. — Apenas na sua cabeça, Hector — ela afirmou, com veemência. — A transcendência a que me refiro é uma somatória de admiração, gratidão e compreensão. Admiração por seu talento, gratidão pela forma quase mágica que encontrou para ensinar, e compreensão pela solidão profunda de um artista, num país estranho, que se agarra à ilusão de ser correspondido num sentimento unilateral. — Unilateral? — ele repetiu, como se acabasse de levar um duro golpe. — Você tem coragem de...


– — Unilateral e opressivo, além de injusto. — Injusto, por quê? — Porque esse sentimento equivocado me obrigou a suportar um assédio sexual constante, de alguém a quem tanto respeito e admiro. Um silêncio tenso caiu no ambiente. Hector estava pálido, os lábios entreabertos, os olhos fixos no vazio. — Sinto.muito — disse Maria, erguendo-se. — Tentei evitar esta cena dolorosa, mas você não quis entender. Deixou a taça sobre uma mesinha de canto e caminhou até a porta. Ia sair, mas voltou-se, como se quisesse encontrar uma palavra de conforto, que minimizasse a dor daquele homem perplexo, parado no centro da sala... Em vão. Era tarde demais para qualquer consolo. Agora, só havia uma palavra apropriada àquele momento, e ela a pronunciou com firmeza: — Adeus. Deixando a porta aberta, Maria atravessou o saguão a passos largos, a cabeça baixa, o coração oprimido pela angústia. Em poucos minutos, alcançou o espaço seguro e isolado de seu carro, onde entregou-se a um pranto convulso e prolongado. Ao voltar de Miami, no dia seguinte, Janus parou num posto de serviços, à beira da estrada, e ligou do celular para Rocco. Foi ele quem lhe deu a notícia do falecimento de Bob, irmão de John Sheridan: — Está tudo muito agitado, aqui na mansão — disse Rocco, num tom abafado. — Tem gente chegando de todas as partes. — Você acredita que poderemos nos ver, ainda hoje? — Janus perguntou. — Por pouco tempo, e somente lá pelas nove da noite. Pode ser? — Está bem. — Onde? — No Marlin. — Combinado. Até logo, primo.


– — Até. A notícia pegou Janus de surpresa, embora ele soubesse que o estado de saúde de Bob era grave, e que sua morte era esperada por todos. Os excessos, principalmente o álcool, haviam lhe minado a saúde, já fazia um bom tempo. Qualquer inimigo daquela família teria motivos para comemorar a notícia. Afinal, tratava-se de um a menos com quem se preocupar e combater. Mas, para Janus, não era assim. Seu assunto com os Sheridan passava longe de uma mera vingança, e a morte de Bob pouco ou nada influía no minucioso jogo que ele havia armado, para destruir o esquema liderado por John. Pensando bem, Janus quase se dava o luxo de sentir pena de Bob, um pobre-diabo, divorciado, sem filhos, que nunca tivera opinião própria. Sempre se deixara envolver nas negociatas e falcatruas do irmão mais velho. Que vida miserável ele deve ter levado, para acabar assim, Janus pensou, retomando a viagem. O resto do percurso até Heavenside transcorreu sem incidentes. A tarde estava perfeita, e o trânsito, leve. A todo momento, Janus pensava em Maria, e surpreendia-se acreditando que ela viria ao seu encontro. Essa alegre expectativa, que o acompanhava desde que acordara, em Miami, não era racional. Tratava-se apenas de uma sensação, forte e contínua, como se ambos estivessem sintonizados na mesma freqüência. Janus riu de si mesmo, relaxando o corpo de encontro ao assento. Estava se deixando levar pela imaginação. As chances de ter Maria a seu lado, naquele verão, eram pequenas. O bom-senso o advertia que era melhor baixar as expectativas, para não sofrer uma decepção. Mas, definitivamente, o lado racional de Janus não estava funcionando, naquele dia. A sensação de bem-estar permanecia em seu íntimo, desafiando seu senso de razão. Quase sem perceber, ele começou a cantarolar uma velha canção de infância, que falava de amor, enquanto o carro rasgava a pista aquecida pelo sol. No Marlin, um antigo relógio, incrustado num velho timão marcava nove horas e vinte minutos, quando Rocco chegou.

de

escuna,


– Janus e Charlie estavam lá, saboreando um vinho espanhol, sentados a uma mesa protegida do forte vento leste que soprava desde o anoitecer. Ambos se ergueram pai.i saudar Rocco, e Charlie afastou-se para providenciar mar. um copo. — Como foi a viagem a Miami, primo? — perguntou Rocco, vestindo a malha que trazia sobre os ombros. — Melhor do que eu esperava — respondeu Janus. Com ar maroto, Rocco perguntou: — Teve uma noite divertida, na grande cidade? — Tevê e cama. — Então, o que significa "melhor do que eu esperava"? — Eu estava me referindo ao material que você me pediu para comprar. É mais simples de usar do que eu imaginava. Além do mais, paguei bem menos do que previa. — Que ótimo! Rocco ia perguntar mais alguma coisa, mas calou-se, pois Charlie voltava, trazendo um copo. Serviu Rocco c, pegando seu próprio copo, disse: — Fiquem à vontade. — E afastou-se novamente. — O que, exatamente, você vai fazer agora, Charlie' — perguntou Janus. Rocco lançou-lhe um olhar inquieto. Quantas vezes o ouvira dizer que não queria envolver ninguém naquela história? Por outro lado, era óbvio que Charlie sabia que eles tramavam contra os Sheridan. Afinal, o velho marinheiro não era tolo e, além disso, conhecia muito bem os fatos. — Quer mesmo saber? — disse Charlie, voltando-se. Fitando-o nos olhos, Janus respondeu, num tom sereno: — Quero, sim. — Pois muito bem, a resposta é "nada". Não vou fazer nada, a não ser acomodar meu velho esqueleto sobre o sofá e fingir que estou interessado em algum programa da televisão, enquanto penso: Por que será que Janus e Rocco ainda não me chamaram para participar dessa "vendetta " contra o,v Sheridan?


– — Foi mais ou menos isso que pensei, quando estava chegando a Heavenside, hoje à tarde, com o sol se pondo disse Janus. Por alguns segundos, Charlie permaneceu em pé, o corpo meio curvado, a expectativa brilhando em seus olhos, enquanto perguntava: - E resolveu o quê? Que preciso de aliados. — Num tom grave, Janus convidou: — Sente-se conosco, Charlie. — Em seguida olhou pura Rocco, pedindo seu apoio. — Tudo bem, primo? Claro

Rocco

aquiesceu

e

sorriu

para

Charlie:

Junte-se a nós, amigo. Acho que essa confusão dá para mais de dois. Passava das dez da noite quando Rocco partiu, levando o equipamento de escuta que Janus trouxera de Miami. Quanto a Janus, permaneceu no Marlin, conversando com Charlie até às onze horas. - Como você está bonita, Maria! — exclamou Alda Wollstone, ao abraçar a filha, no aeroporto de Miami. — Um pouco magra, talvez. Impressão sua, mamãe. Eu nunca mudo de peso. No máximo, ganho ou perco meio quilo, não mais que isso. Mantendo as mãos unidas, ambas se olharam com amor nos. olhos de Alda eram castanhos, translúcidos e receptivos. Os de Maria, verdes, inquietos e felizes. - Há quanto tempo, filha... - Oito meses, alguns dias e várias horas. - Oito meses, dezoito dias e... —Alda consultou o relógio, antes de concluir: — ...quatro horas. Maria riu. Era impossível ganhar da mãe, no cálculo das saudades... - Você tem notícias de papai? — perguntou. - Vou encontrá-lo em Nova York, na próxima semana.


– Ele está bem, e manda beijos. — E como vai a fazenda? Maria se referia à propriedade dos avós maternos, no Brasil, onde nascera e vivera até os oito anos de idade. — A fazenda ainda resiste ao assédio da monocultura. Mas o plantio desmesurado da soja e da cana de açúcar fazem um estrago enorme no meio ambiente, ameaçando a nossa flora e fauna. — Que pena... Tudo poderia ser muito melhor, se as pessoas tivessem mais consciência e bom-senso. — Pois é. Algum dia todos os povos entenderão que o mundo é um só, e que devemos cuidar deste planeta como cuidamos de nossa própria casa. — Esperemos que esse dia chegue logo — disse Maria, com um suspiro. Fez-se um silêncio grave, quase triste, entre ambas. Maria recuperou-se primeiro: — Bem... Acho que não vamos solucionar os problemas do mundo, neste aeroporto. — Você tem toda a razão — concordou Alda, tentando sorrir. — Está um dia lindo lá fora, e meu carro nos aguarda no estacionamento. Vamos, filha? — Claro, mamãe! — Olá! Há alguém em casa? Ei, primo! Olá-á? A voz de Rocco chegou até Janus, arrancando-o aos poucos do sono, até trazê-lo à realidade. — Entre, Rocco. A porta está aberta — disse Janus, elevando a voz. Logo em seguida, Rocco entrou no quarto: — Desculpe-me por chegar assim, tão cedo, primo. Tive de aproveitar uma saída, a serviço, para vir aqui. — Você sabe que não deveria... -— Janus começou a dizer.


– — Era preciso — Rocco o interrompeu. —Além do mais, deixei o carro dos Sheridan atrás da prefeitura. Vim para cá a pé. Mas não se preocupe, ninguém me viu. — O que houve? — perguntou Janus, já sentado na cama, recostando-se nos travesseiros. — Ao instalar a escuta no escritório de John "Belzebu" Sheridan, vi sobre a mesa uma pasta que foi tirada do cofre, quando chegou a notícia da morte de Bob. — É mesmo? —Janus o fitava com extrema atenção. — li o que havia na pasta? — Pelo que percebi, enquanto fotografava, trata-se do orçamento real das obras do novo condomínio que os Sheridan estão construído, em suas terras. — Não estou entendendo. — Bem, as quatro páginas que vinham depois, assinadas pelas autoridades competentes, tratavam dos mesmos materiais e serviços, só que com os preços alterados para mais... Muito mais. —

Superfaturamento?

— Exato. Acho melhor você verificar. Rocco atirou um envelope sobre a cama, e Janus começou II examinar os papéis, o olhar atento a cada detalhe. Então Rocco voltou a falar, em outro tom de voz: —

Só mais uma coisa, primo...

Sim?

— Ela está na cidade. — Ela, quem? — Lanna Sheridan. Acaba de chegar da Espanha. Veio para o enterro do tio. — Eu deveria ter previsto — disse Janus, como se pensasse em voz alta. — O enterro será às quatro da tarde, no Monte Santo. Bem, preciso ir, agora. — Vá, primo. Você fez bem em vir até aqui. — Ligarei à noite, para dar notícias. — Com um aceno, Rocco despediu-se e saiu.


– Fechando os olhos por um momento, Janus tentou absorver a última notícia dada por Rocco: Lanna Sheridan estava em Heavenside. Onze anos haviam se passado... Como ele se sentiria, ao vê-la? Mas, pensando bem, será que precisava encontrar-se com Lanna? Janus consultou-se, intimamente, e compreendeu que sim, que acabava de tomar a decisão de rever o grande amor de sua infância e adolescência. Saltando da cama, com os sentidos em alerta, foi até a cozinha e colocou água para ferver. Em seguida, tomou uma ducha. Pouco depois, lia o material trazido por Rocco, enquanto aguardava a chegada do pai para o café da manhã. Encostado a um cipreste, no Cemitério Monte Santo, Janus observava, a uma distância conveniente, o movimento em torno do mausoléu dos Sheridan. Todas as autoridades de Heavenside estavam presentes. Afinal, tratava-se do enterro de um Sheridan, não importando o quanto o falecido, Bob, tivesse sido desprestigiado em vida. No centro das atenções estava o patriarca da família, o poderoso John, alto e ainda forte, apesar da idade avançada. Sua figura impressionante irradiava o poder que todos ali pareciam reconhecer, sem contestação. Um acidente aéreo levara a esposa de John, antes que ela pudesse lhe dar um herdeiro. Ele jamais voltara a se casar. Agora, em torno de John, estavam seus irmãos, Neal, Kevin e Linda, com as respectivas famílias. Linda, a única mulher, entre quatro irmãos, fora uma estrela de cinema relativamente famosa. Tinha a seu lado apenas a filha, já que o marido fora banido da família depois do envolvimento num escândalo fartamente noticiado pela mídia. Essa filha única, que acabara de chegar da Espanha, era Lanna, o motivo da presença de Janus naquele local. O vestido negro que Lanna usava não conseguia esconder as formas perfeitas de seu corpo escultural. O véu que pendia do elegante chapéu ocultava-lhe o rosto, mas não o pescoço esguio, nem os cachos loiros, que lhe caíam abaixo dos ombros. Uma tristeza profunda tomou conta de Janus enquanto ele observava a mulher que, quando menina, fora sua companheira de aventuras nas praias de Heavenside. Por longos anos, ambos haviam sido inseparáveis, nos jogos e nos estudos. As famílias


– não interferiam nessa profunda amizade. Ao contrário, pareciam aprová-la. Lanna freqüentava a casa de Janus e, ele, a mansão onde ela morava, com aquela naturalidade despida de conceitos que só as crianças sabem ter. O pai de Lanna, um conhecido ator de cinema e tevê, era extremamente liberal, tanto quanto sua esposa. Os dois formavam um casal que Janus achava adorável. Tanto que jamais se sentira constrangido na presença deles. Em contrapartida, ignorava os tios de Lanna, e era ignorado por eles. Esse arranjo feliz funcionara por muito tempo, até a adolescência, quando Lanna e Janus descobriram-se apaixonados. Então fora a vez dos primeiros beijos, das primeiras carícias, dos planos de vida que traçavam de mãos dadas, sobre as rochas, com os olhos perdidos no mar...

O movimento em torno do mausoléu intensificou-se, arrancando Janus de seu devaneio. Inúmeras pessoas se apresentavam ao patriarca e aos demais familiares, com seus pêsames, apertos de mãos e abraços. A cerimônia chegara ao fim. Como numa cena premeditada e dirigida, Lanna e sua mãe caminharam em direção à limosine que as aguardava numa alameda, a vinte metros do local onde Janus se encontrava. Incapaz de se mover, ele continuou apoiado ao cipreste, os óculos escuros erguidos sobre a testa, os olhos fixos no véu que escondia o rosto da mulher que tanto amara. Era impossível dizer se em algum momento da curta trajetória até a limusine Lanna percebera a presença de Janus, estático, à sombra da árvore. Mas o fato é que, antes de inclinar-se para entrar no carro, ela ergueu o véu e olhou em sua direção. Tudo foi muito rápido. Dois ou três segundos, não mais, e logo Lanna desapareceu no interior do luxuoso veículo. Janus sentiu um estranho calafrio. Cobrindo os olhos com os óculos escuros, caminhou rapidamente em direção ao local onde estacionara seu carro. Havia se arriscado demais, expondo-se daquela maneira. Era imprescindível que deixasse o Monte Santo antes que as saídas ficassem congestionadas. Caso contrário, poderia ser reconhecido por alguém que naturalmente perguntaria o que ele estava fazendo no enterro de um Sheridan. E chamar a atenção sobre sua pessoa era a última coisa que Janus desejava.


– — Tem certeza de que não quer levar esses sapatos, filha? — Alda perguntou. — Ficaram tão bem em você... — Também gostei, mamãe. O problema é que não fazem o meu estilo. Não tenho roupas que combinem com eles. — Mas ainda estamos fazendo compras, e você poderá se interessar por um conjunto mais sofisticado. — Mamãe, de uma vez por todas, eu só preciso de um biquíni e talvez de um confortável chapéu de praia. Algo bem descontraído... Tropical, entende? — Então, estamos no lado errado da cidade. — Eu estou no lado errado da cidade. E isso porque vim acompanhar você em suas compras — Maria retrucou, tentando manter o bom humor. — Está bem, não precisa se irritar — Alda apressou-se a dizer. — Só pensei que nessas férias você poderia ser convidada a uma festa mais chique e... — Interrompendo-se, indagou: — Do que você está rindo, Maria? — De uma frase que minha amiga Debra costuma usar, quando se refere ao relacionamento entre mães e filhas. E Maria sentenciou: endereços diferentes". — Muito —

— "As

engraçada, essa

mães

sua

são todas

amiga!

iguais. Apenas moram em

— disse Alda, num tom severo.

Sem dúvida. E também muito inteligente, você não acha?

— Mas o dia de vocês chegará. Pela lei natural das coisas, um dia vocês terão filhos adolescentes para criticá-las. — Da minha parte, só espero dar aos meus o mesmo amor que recebi de você — retrucou Maria, sincera. Pega de surpresa, Alda fitou-a nos olhos. — Você pensa realmente assim? — Penso. Sua capacidade de amar é assombrosa, mamãe. Com um sorriso travesso, ela completou:


– — Às vezes, até transbordai Alda sorriu de volta. — Acho que vou me esquecer que você cresceu e lhe dar umas palmadas no traseiro, como quando você era pequena. — Você nunca me bateu! — Maria exclamou, rindo. — Não? Falha minha. Foi por isso que você ficou assim. — Assim como, mamãe? — Maria perguntou, com ar angelical. — Atrevida! — Alda continha o riso. — Não sei o que laço com você... — Leve-me para almoçar — Maria sugeriu. — Estou com fome. Consultando o relógio de pulso, Alda concordou: — É uma boa idéia, filha. Pouco depois, ambas saboreavam filé de peixe com maionese, num restaurante no centro da cidade. — Um senhor muito elegante, na segunda mesa à esquerda, está olhando com insistência para cá — comentou Alda, a certa altura. — É alguém de quem deveria me lembrar? Discretamente, Maria olhou na direção indicada pela mãe. Levou apenas alguns segundos para reconhecer o homem a quem Hector a apresentara, no coquetel oferecido pelos organizadores do Festival de Verão. — Trata-se de um empresário artístico que conheci há alguns dias,em Clespreen — explicou. — O sobrenome dele é Bell, mas não me recordo do primeiro nome. Pois bem, o sr. Bell me convidou para participar de um grupo de músicos que ele representa. — E o que você respondeu? — Que, no momento, não pretendo interromper os estudos para me profissionalizar. — E ele?


– — Não ficou muito convencido com meus argumentos. — Parece que você terá de repeti-los... O Sr. Bell está vindo para cá. — Ora, mamãe, talvez ele queira apenas me cumprimentar e conhecer a linda mulher que está em minha companhia. Alda não pôde responder ao gracejo da filha, pois o empresário já se encontrava ao lado da mesa. Com uma leve inclinação de cabeça, disse, numa voz bem modulada: — Que surpresa agradável vê-la em Miami, srta. Wollstone... E ainda mais em tão bela companhia. — Prazer em revê-lo, Sr. Bell — Maria respondeu, com um sorriso. — Esta é minha mãe, Alda Wollstone. Mamãe, este é o Sr. Bell, de quem lhe falei. Curvando-se, ele tomou a mão que Alda lhe oferecia c beijou-a delicadamente, antes de dizer: — Lionel Bell, a seu dispor, senhora. Agora entendo de onde vem a beleza de Maria, que encantou a todos no concerto em Clespreen. — Minha colaboração genética na formação estética de minha filha, sr. Bell, resume-se apenas na cor de cobre de sua pele e no tipo mignon que a ela assenta melhor do que a mim. Pena que Oliver, meu marido, não esteja presente. Pois o senhor sem dúvida notaria que Maria herdou do pai os olhos verdes, o nariz arrebitado e os lábios cheios. Surpreso, e a um só tempo encantado com a resposta rápida de Alda, o empresário sorriu: — Eu certamente notaria esses atributos no Sr. Wollstone, embora não seja exatamente um apreciador do sexo masculino. — Após uma pausa, prosseguiu: — Mas, na verdade, a beleza a que me refiro vai um pouco além dos belos traços físicos de sua filha. — Ah, sim? — Sim — ele repetiu, antes de explicar: — Trata-se da feliz conjunção entre uma rara beleza física e uma aura de simpatia e graça, que agora tenho o prazer de confirmar de perto. Isso, Maria certamente herdou da senhora.


– Depositando o garfo sobre o prato, e evitando olhar para a filha, que sorria com ar maroto, Alda capitulou: — Quer se sentar em nossa companhia, Sr. Bell? — Nada me daria maior prazer, senhora. Mas vejo que ainda estão almoçando, e não quero ser mais inconveniente do que já fui. — Voltou -se para Maria. — Meu escritório fica a duas quadras daqui, no segundo andar do número 36. Aguardarei vocês para um café, depois do almoço. Com licença. — Com outra curvatura, afastou-se a passos rápidos. — Qual a sua impressão sobre ele, mamãe? — Maria perguntou. — O sr. Bell é um homem muito hábil com as palavras, e sabe se comportar como um perfeito cavalheiro. — E o que mais? — É elegante, bem apessoado... — Você me acompanharia numa visita a ele? — Pode ser... Está pensando em reconsiderar o convite para participar do grupo musical? — Não. Mas fiquei curiosa para conhecer o local de trabalho do Sr. Bell. — Então, está decidido. Ambas terminaram o delicioso almoço, conversando sobre generalidades. Aceitaram a sobremesa sugerida pelo maitre e só então deixaram o restaurante, caminhando lentamente pelas calçadas de uma Miami colorida pelo verão. — Eis o número 36 — disse Alda, parando à entrada de um suntuoso edifício. — Você tem certeza de que quer minha companhia? — Absoluta. —Então, vamos lá. Mãe e filha caminharam pelo luxuoso saguão, até o elevador que servia os andares pares.


Capítulo III Janus trabalhava no motor de uma lancha, na grande bancada de madeira da oficina, quando um ajudante se aproximou. — Tem uma pessoa na recepção, querendo falar com você — o rapaz avisou. — Estou ocupado. Não dá para você resolver? — Eu tentei, mas parece que o assunto é pessoal. Limpando as mãos numa estopa embebida em solvente, Janus atravessou o galpão, visivelmente contrariado. Detestava quando alguém o interrompia no trabalho. Lá fora, uma mulher o aguardava. Era Lanna, num vestido preto elegante e discreto, condizente coni o momento que sua família vivia. — Olá, Janus. — Como vai, Lanna? — Bem... dentro das circunstâncias, é claro. Não imaginei que tio Bob estivesse tão mal. Sinto-me culpada por não ter vindo antes. — É muito difícil prever o desfecho, em casos de doenças crônicas como a do seu tio. Quer entrar? — Não, obrigada. O rapaz que me atendeu disse que você estava ocupado... — De fato. Ela sorriu, e seus olhos negros, detalhadamente, como se o avaliassem.

aveludados,

percorreram

Janus

— Preciso ver Eveline, na ilha de Lock Beach, hoje à tarde — ela disse, por fim, com um sorriso provocante. -• Você poderia me levar até lá?


– Janus sabia que Eveline tinha sido babá de Lanna, e que ambas se queriam muito bem. Depois de aposentada pelos Sheridan, a velha senhora voltara a residir na ilha onde nascera, a vinte milhas do continente. — Hoje é um mau dia, Lanna — ele respondeu. — Não sei a que horas terminarei o motor que estou consertando. Por que você não usa uma das lanchas de sua família? O sorriso deixou o belo rosto de Lanna, mas seus olhos ainda brilhavam, travessos. Aproximando-se de Janus, até que os corpos quase se tocassem, ela disse, num tom insínuante: — Porque quero ir com você. Envolto pelo perfume sutil que emanava de Lanna, Janus estremeceu levemente. — Está certo — concordou, após alguns instantes. — Mas só ficarei livre por volta de três horas da tarde. — Para mim, esse horário está ótimo. — Acontece que, saindo às três, só estaremos de volta quando for noite fechada... — Não importa. Então, está combinado? — Sim — ele confirmou. — Espero você às três, no cais principal. O sorriso voltou ao rosto de Lanna, e só então ela se afastou, os olhos presos aos de Janus, os pés movendo-se lentamente para trás. Por fim, voltou-lhe as costas, enquanto dizia: — Até mais tarde, Janus. — Até... — ele respondeu, num tom polido, quase frio. Nada em seu semblante demonstrava o turbilhão de sentimentos contraditórios que fervilhavam em seu coração. Faltavam quinze minutos para as três horas. No cais, Janus conversava com alguns pescadores. Sob a pala do quepe branco, que trazia uma âncora azul, bordada, seus olhos inquietos examinavam a linha do horizonte.


– — Parece que o vento vai girar para o quadrante norte .— ele observou. Voltando-se para o pescador mais velho do grupo, acrescentou: — O que acha, Peter? — É bem possível — o outro respondeu, fitando o mar. Aquelas nuvens baixas prometem chuva. — Pode apostar nisso. O mar estará agitado, esta noite disse outro pescador. — Você vai para longe, Janus? — Não. Farei apenas uma breve viagem até Lock Beach. — E pretende regressar hoje mesmo? —

Sim.

— Haverá ondas fortes, na volta — avisou Pedro. — Se eu fosse você, não me demoraria muito por lá. — Estarei atento, amigo. Não se preocupe. Despedindo-se com um aceno, Janus afastou-se do grupo. "*Tinha acabado de avistar Lanna, que avançava pelo cais. Usava calça preta, de tecido leve, e um blazer cor de vinho sobre a blusa de seda, também preta. Seu belo rosto estava parcialmente oculto pelos óculos escuros e pelo chapéu de aba mole, suficientemente larga para protegê-la do sol. Um sorriso estampou-se em seus lábios no momento em que ela avistou Janus, que a fitava com franca admiração. Os outros homens ali presentes estavam boquiabertos e, com toda a certeza, encantados. Decididamente, Lanna era única, Janus pensou, com um sorriso um tanto irônico. Poderia reconhecê-la, mesmo de longe, em qualquer lugar do mundo, pelo porte de princesa, pela elegância natural com que se movia. Ela sempre fora assim, desde menina. O tempo só fizera apurar esses dons naturais. Algum sentido oculto parecia sussurrar, aos ouvidos de Lanna, o tom e o ritmo dos lugares por onde passava. Ela nunca hesitava, ao caminhar. Os ombros, sempre eretos, poderiam parecer rígidos, não fosse o movimento natural dos braços e o


– balançar suave dos quadris. Os cabelos longos, loiros e anelados, agitavam-se ao vento com indescritível encanto. Um suspiro profundo e involuntário deu a Janus a medida alarmante do quanto ele estava afetado pela simples aproximação da bela mulher em que Lanna se transformara. Retirando os óculos de sol, ela venceu os poucos metros que os separavam. Apoiando a mão no peito de Janus, ergueu-se na ponta dos pés para beijá-lo no rosto. — Você está irresistível, nesse traje náutico — disse ela — Veste-se sempre assim, para navegar? Recuando de leve, ele empurrou o quepe para trás c olhou para si mesmo, com um toque de displicência. Usava uma camisa aberta, branca, de brim, sobre a camiseta regala que trazia o logotipo da microempresa de Pablo, estampa da em azul e prata. Bermuda cinza, meias brancas com detalhes em azul e tênis brancos completavam o traje. — É o que uso, normalmente, quando levo turistas para passear, nos barcos de meu pai. — Com um toque de sarcasmo, acrescentou: — Dá um certo ar de respeito e confiabilidade. Ela riu, divertida, inclinando a cabeça para trás e levando a mão à boca. — Mas eu confio em você de qualquer jeito, Janus... Com ou sem figurino náutico. Afinal, não sou turista. E esta não será a primeira vez que navegaremos juntos. — Você e eu sabemos disso, mas não a Capitania dos Portos — ele retrucou, apontando com o polegar para o prédio de três andares, às suas costas. — Compreendo. Só espero que você não tenha se esquecido de trazer a sunga de banho. Quero sua companhia, quando mergulhar em mar aberto. — Você sabe que isso é contra o regulamento — ele advertiu, sem se alterar. — A fiscalização anda bastante rigorosa. — E desde quando você se importa com regulamentos? — Sempre que estou a trabalho, procuro não me afastar demasiadamente das regras.


– — Então, devo entender que esse passeio a Lock Beach 6 uma transação comercial? — Para a Capitania dos Portos e para a empresa de seguros, sim. O sorriso ameaçava congelar-se no rosto de Lanna, e Nua voz soou um tanto fria, ao indagar: — E quanto devo pagar pelo passeio? — Nada. É cortesia da casa. — Faço questão. — Já disse que é cortesia. — Eu insisto. — Bem, nesse caso, são cento e vinte dólares pela lancha c piloto, mais vinte e cinco dólares para o contramestre. Abrindo a pequena bolsa que trazia consigo, Lanna retirou um cartão de crédito internacional e estendeu a Janus. Erguendo a mão, num gesto de recusa, ele explicou: — Não tenho como processar a transação, aqui no cais. — Então, como faremos? — Em geral, os contratos são efetuados antecipadamente, nas agências de turismo espalhadas pela cidade. — Nesse caso, mandarei alguém cuidar disso para mim, IImanhã. — Lanna guardou o cartão de volta, na bolsa. — Ikm, o que estamos esperando? — Nada. Caminhando na frente, sem esperá-la, Janus dirigiu-se ao atracadouro onde o contramestre já o aguardava, a bordo da Sunrise, a lancha que ele vendera ao pai, dias atrás, para comprar o equipamento de escuta, já instalado na mansão da família de Lanna. Pouco depois, a Sunrise zarpava. — Mas é um violão Ramirez autêntico! — Maria exclamou, extasiada.


– — Este instrumento tem, seguramente, o triplo da sua idade — assegurou Lionel Bell. — Vamos, toque alguma coisa. Assim, você poderá sentir a sonoridade... — Não sei se devo... — Ora, filha, não seja tímida — Alda incentivou, sentando-se numa cadeira confortável. — Ninguém, melhor que você, saberá apreciar o verdadeiro valor deste Ramirez — afirmou o empresário, sentando-se ao lado de Alda. A sala de ensaios, onde os três se encontravam, tinha uma acústica perfeita. Puxando uma banqueta, Maria acomodou-se no centro do tablado de madeira que funcionava como palco. Emocionada, tocou as cordas com o polegar c fechou os olhos, para melhor sentir a vibração emitida pelo instrumento. Deixando pender a cabeça de lado, ainda de olhos fechados, iniciou uma peça de Villa-Lobos, o genial compositor brasileiro, cuja obra Alda adorava. Aos primeiros acordes, um suspiro escapou dos lábios entreabertos de Alda. Lionel Bell recostou-se no assento e esticou as pernas, buscando uma posição mais cômoda, para ouvir a performance de Maria. O Brasil estava contido por inteiro naquela música instigante e surpreendente, inspirada na magia, na força e na beleza da selva amazônica, o ritmo profundo das cascatas em grotas úmidas, o canto dos pássaros rompendo o silêncio da selva, o sol ardente secando as folhas molhadas pela chuva tropical. Duvidando que o empresário norte-americano pudesse compreender o sentido mais profundo daquela música genuinamente brasileira, Alda voltou-se para fitá-lo, e constatou, gratamente surpresa, que o homem parecia comovido. Com a discrição que lhe era peculiar, Alda desviou os olhos e concentrou-se na sutil interpretação de sua filha, que parecia honrar o som magnífico do instrumento. Quando Maria chegou ao final da peça, deixando pender o braço direito e erguendo o rosto, com um brilho de satisfação nos olhos, Lionel exclamou: — Muitos já tocaram esse violão Ramirez, mas não com tamanha propriedade. Parece que ele foi feito para você, Maria. Alda levantou e, caminhando até o centro do tablado, curvou-se para beijar a filha.


– — Estou impressionada — confessou, tomada por uma forte emoção. — Sua interpretação de Villa-Lobos é surpreendente. Parabéns, querida. Você finalmente chegou i\ maturidade musical. - Tenho tanto a estudar ainda, mamãe... — ela respondeu, com franqueza. — Há tantas coisas que ainda não domino e outras que mal entendo... - É natural que seja assim, minha filha. Mas posso n firmar, sem sombra de dúvida, que você conseguiu encontrar sua própria sonoridade no instrumento. -

O violão ajudou muito — Maria fez questão de frisar.

- Sem dúvida — Lionel concordou, com entusiasmo. Mas é evidente que você começa a ter um estilo pessoal, que será sua marca registrada no mundo da música. - Meu Deus, vocês estão me deixando sem jeito, com todos esses elogios. Voltando-se para Alda, Lionel comentou: —É um absurdo privar os amantes da música do talento de sua filha, a senhora não acha? Pelo que sei, Maria tem se apresentado com certa freqüência, no meio estudantil.

Não duvido. Mas trata-se de um público extremamente restrito. O que quero dizer é que ela está pronta para ingressar no mundo profissional. Alda sorriu e olhou para a filha, antes de responder: — Bem, Sr. Bell, creio que cabe a Maria decidir sobre esse assunto. — Claro. Mas sua opinião poderia pesar bastante nessa decisão, senhora — ele insistiu, sem perder a elegância — Estou certo em pensar assim? — Talvez. Mas, exatamente sobre o assunto — declarou Alda.

por

isso,

pretendo

me manter neutra

— E quanto a você, Maria, o que tem a dizer sobre isso — O mesmo que lhe disse em Clespreen, há poucos dias Sr. Bell — ela respondeu, com simplicidade.


– — Pretendo terminar meus estudos antes de considerar a possibilidade de uma carreira artística. O empresário ficou pensativo por alguns instantes. Por fim, perguntou: — O que você ainda espera do mundo acadêmico, que o exercício da profissão não lhe possa dar? Sem hesitação, Maria resumiu: — O conhecimento técnico de vários compositores que ainda nem comecei a estudar, o tempo necessário para me aprofundar em suas obras e a orientação de professores excelentes, entre outras coisas. Lionel Bell sorriu. Retirando do bolso um programa de apresentações, entregou-o a Maria: — Este é o repertório que pretendemos apresentar na próxima temporada, que terá a duração de seis meses.Maria leu o programa com atenção e sorriu, encantada: — Conheço quase todos esses compositores e já toquei a maioria dessas músicas. — Então, posso concluir que você não precisaria de orientação acadêmica para executar essas obras? — Exato — ela respondeu, convicta. — Trinta horas de ensaios com os músicos da minha companhia seriam suficientes para que você apresentasse de programa? Mais do que suficientes. Mas aonde o senhor pretende chegar? A uma proposta muito clara. E espero, sinceramente, e você a considere com carinho. — Ante o olhar atende Alda e Maria, ele esclareceu: — Um contrato de seis meses, com minha empresa, para uma turnê pelo país, executando o repertório especificado nesse programa. Posso garantir que seremos bastante generosos quanto ao pagamento pela sua participação. Mas eu teria de trancar a matrícula na faculdade — u protestou. - Por seis meses, apenas. Depois, ficaria a seu critério prorrogar o contrato por mais um período, ou voltar aos ludos.


- Não — Maria murmurou. Depois repetiu, num tom mais firme: — Não! Eu não tenho nem mesmo um guarda-roupa que suportasse uma turnê tão longa. - Você está em Miami. Duvido que não encontre aquilo o que precisa para vestir-se adequadamente — Lionel sugeriu, com um sorriso encorajador. — Não. — Ela meneou a cabeça, reforçando a negação. Além disso, meu violão... — O que há com ele? — Bem... Eu adoro meu instrumento, mas ele não está altura de um compromisso tão sério como esse que o senhor está propondo. Lionel Bell ficou em silêncio, como se quisesse preparar o clima para valorizar o que tinha a dizer: — Bem, o Ramirez poderia entrar no contrato, se isso for do seu agrado. Até mesmo Alda, que em geral era tão controlada, deixou transparecer seu espanto diante daquela oferta. Atônita, Maria acariciou o fantástico instrumento com a palma da mão, por um longo momento. Então, um sorriso quase triste insinuou-se em seus lábios, enquanto a cabeça se movia, numa negativa lenta e dolorosa. — Não posso... Realmente, não posso deixar os estudos — Pense bem, Maria. Você tem quinze dias para considerar minha oferta e me dar uma resposta. A Sunrise cortava o mar azul com leveza e equilíbrio Fora inteiramente projetada para aquelas águas e atendia u todas as exigências do mais crítico navegador. O próprio Janus havia desenhado o projeto da Sunrise, depois de um estudo profundo sobre as embarcações leves que percorriam aquele trecho litoral. O resultado ali estava: a Sunrise era a lancha mais bela e eficiente da região. Tinha um


– espaço interior amplo e confortável, e os dois potentes motores de cem cavalos atendiam perfeitamente às necessidades daquela estrutura, mesmo em tempo adverso e com carga total. A familiar sensação de prazer que Janus sempre sentiu ao pilotar a Sunrise o invadiu. O bom humor, decorrente daquele estado de espírito, o levou a passar o comando ao contramestre, para se juntar a Lanna. Recostada confortavelmente numa cadeira de vime, Lanna já havia se livrado do traje de luto, mantendo apenas o chapéu e os óculos escuros para proteger-se do sol. Usando um maio azul, inteiriço, com as longas pernas estendidas, ela parecia alegre e relaxada. — Vejo que você já está à vontade — disse Janus, com um sorriso. — Quer algo para beber? Um refrigerante, um suco de frutas, talvez? — Uma cerveja — ela respondeu. — E bem gelada. É possível? — Vou providenciar. Em poucos instantes, ele voltava embutida num invólucro de isopor e um copo alto.

com

uma

lata

de inveja

— Aqui está. Mais alguma coisa? —

Sim... Sua presença.

Janus sentou-se na cadeira ao lado, sabendo que esta-v;i pisando num terreno perigoso, mas do qual não queria fugir. Seus olhos azuis procuravam, na bela e sofisticada mulher, algo que o tempo não houvesse mudado. Lanna parecia tão segura de si, tão soberana em sua beleza, que era difícil encontrar qualquer sinal da menina e adolescente que ele tanto amara. Ambos saborearam a cerveja em silêncio, por algum tempo. Por fim, Lanna comentou: — Você parece tão sério e distante... Fico só imaginando o que passa por sua cabeça. — Neste exato momento, estou pensando que você se transformou numa linda mulher.


– Ela sorriu, deliciada, mordendo o lábio inferior, num trejeito infantil que Janus reconheceu, sobressaltado. Aquele era o primeiro sorriso realmente franco que Lanna lhe oferecia, desde que haviam se reencontrado. — Você também se tornou um belo homem... Apenas mais sério e circunspecto do que eu me lembrava. Ambos se olharam por um longo momento, em busca de algo que o tempo apagara. — Era inevitável, eu creio — disse Janus. — Sempre tive uma natureza introvertida. — Não era essa a impressão que você causava aos nossos colegas daquela época. — Não? — ele perguntou, surpreso. — Em Heavenside, você era tido como um rapaz seletivo MO extremo. Quando abandonava sua reserva natural, para nos presentear com uma ou outra frase, sentíamos um orgulho incontrolável por sermos objeto de sua atenção. Foi a vez de Janus sorrir. — Interessante... — ele murmurou. — Não é essa a imagem que tenho de mim mesmo, naquele tempo. — Isso é natural. Nunca percebemos, exatamente, como os outros nos vêem — disse Lanna, pensativa. — Concordo. Mas, de qualquer maneira, você não deveria se incluir nessa impressão geral. — Por que não? — Porque nós éramos íntimos, ora. Ou você se esqueceu das muitas horas que passamos juntos, das longas conversas que costumávamos ter, a sós? Uma expressão de total espanto assomou ao rosto de Lanna, seguida por um riso divertido. — Posso saber qual é a graça? — ele perguntou, incomodado.


– — Você chama de "intimidade" aquela camaradagem simples que havia entre nós? E chama de "longas conversas" os meus monólogos intermináveis, nos quais você encaixava uma frase ou outra? Janus fitou-a com estranheza: — Não é possível que você pense assim... — Por que não? — Não... — ele murmurou, fitando-a no fundo dos olhos. — Você deve estar zombando de mim. — E ante a expressão interrogativa de Lanna, argumentou: — E as nossas caminhadas pela praia, depois do surf, quando eu a acompanhava até sua casa? — Ora, não foram tantas assim. Acho que isso aconteceu cerca de quatro ou cinco vezes, no último ano que passei em Heavenside. — Para mim foi tão intenso... — ele confessou. Estendendo a mão, Lanna tocou-lhe o pulso queimado de sol, num gesto meigo e carinhoso: — Nunca duvidei da riqueza do seu mundo interior, Janus. Mas para a jovem inexperiente e superprotegida que eu fui, você era o ideal inatingível, vindo de um mundo excitante e perigoso, que eu não entendia, e do qual nunca faria parte. O ruído profundo e abafado dos potentes motores, na popa, sobrepunha-se ao da quilha do barco, que rompia as lianas azuis do mar imenso. Lanna tirou os óculos e o chapéu, e se ergueu, revelando todo o encanto de seu corpo jovem. — O último a cair na água é um caranguejo manco! — ele gritou, pisando a borda da lancha e atirando-se ao mar. Janus ergueu o braço, sinalizando ao contramestre. Mas o homem, muito atento, já havia diminuído a aceleração e agora descrevia um amplo círculo, em cujo centro Lanna emergia, como uma entidade das águas. Livrando-se rapidamente das roupas, Janus saltou por sobre a borda, num mergulho raso. E em rápidas braçadas, alcançou Lanna.


– Eram quase cinco da tarde quando a Sunrise atracou na pequena enseada da ilha de Lock Beach. Um bote de borracha, movido por um pequeno motor elétrico, foi arriado ao lado da lancha. Nele se instalaram Lanna e Janus, que o pilotou até a praia de areia muito alva c fina. Assim que desembarcaram, Janus arrastou o bote até um ponto seguro, amarrando-o a uma árvore. — Você pretende demorar, Lanna? — ele perguntou. — Não. Será uma visita rápida. Por quê? — É que o tempo vai mudar. Quanto mais cedo deixarmos a ilha, melhor. — Ficarei atenta ao relógio. Você vem comigo à casa de Eveline? — Não. Vou aproveitar esse resto de sol para dar uma caminhada pela praia. Faz tempo que não venho a Lock Heach. — Está bem. Então, até mais tarde. Com um leve aceno, ela se despediu. Janus permaneceu parado, perto do bote, observando-a enquanto se afastava.

Estava pensativo e um tanto abalado. A conversa aparente mente casual que havia tido com Lanna, durante o percurso, perturbara-o bem mais do que ele gostaria de admitir. Lanna havia minimizado, ao extremo, algumas das mais belas recordações que ele trazia, de um passado que julgara feliz, e fora aparentemente sincera, ao fazê-lo. Mais que isso: deixara bem claro o que sentia a respeito do romance vivido por ambos, do conceito do amor ideal, que ele tanto acalentara... Pelo visto, Lanna considerava tudo aquilo como um simples sonho de dois adolescentes; nada além disso. Sem dar-se conta do que fazia, Janus começou a caminhar no limite exato entre a água do mar e a praia, desenhando com os pés uma linha sinuosa e constante, até chegar às pedras onde a enseada terminava. Transpondo com agilidade a formação rochosa que compunha uma barreira natural, ele chegou a uma pequenina praia, quase inabitada, e sentou-se à sombra de uma árvore frondosa. Seus olhos azuis traziam uma expressão aflita. Sua mente estava em completo turbilhão.


– Como já fizera centenas de vezes, em situações emocionais difíceis, Janus respirou fundo e tentou deter o fluxo agitado dos pensamentos, bloqueando os ruídos interiores, substituindo-os pela imagem do mar a sua frente. Algum tempo depois, uma calma benfazeja o invadiu, e ele chegou a sorrir de uma gaivota que derrubou, em pleno voo, o peixe que tinha acabado de retirar da água. O tempo medido por relógios era apenas uma mera invenção humana, desconectado do viver real, Janus pensou. O que realmente importava era a rotação do planeta, a força das marés, os ventos e o sol, que agora o atingia nos olhos, em seu movimento inexorável rumo ao poente. Nuvens de bases negras, esfarrapadas em seu ponto mais alto por ventos poderosos, formavam uma linha quase ininterrupta no horizonte incendiado pelo poente. Era hora de partir. A tempestade se aproximava. Com passadas longas, Janus voltou à enseada por uma trilha que, cortando um bosque, o conduziu aos fundos da casa de Eveline. Curvando-se sob as redes de pesca, estendidas para reparos em extensos varais, e desviando-se dos barcos suspensos em cavaletes, ele chegou à varanda dos fundos. Deitado ao pé da escada, um velho cachorro de pelo cinzento sonhava com corridas e caçadas, movendo as patas em movimentos ritmados, enquanto dormia. Seguindo por um caminho de pedra, Janus chegou até os fundos da casa, mais precisamente à janela da cozinha, coberta por uma tela verde, que protegia os moradores dos insetos noturnos. Lá dentro, a luz estava acesa. Sentadas à mesa, Lanna e Eveline conversavam. Sobre a toalha branca, havia pratos com pães caseiros, bolinhos polvilhados de açúcar, uma jarra de refresco e um bule de café. Janus chegou a tempo de ouvir um trecho da conversa: — Eu não posso aceitar isso — dizia Eveline. — O que dirão seus tios, quando souberem que você... — Ninguém precisa saber. Fica entre nós. Lanna estendeu a Eveline um gordo envelope de cor parda, mas a velha senhora ainda relutava:


– — Não posso aceitar, querida... Não seria justo. — E se você perder seus bens, aqui na ilha, por falta de pagamento de impostos? — Lanna argumentou. — Acha que isso seria justo? — Mas como vou pagar você? — Quem disse que você precisa me pagar? É um presente... Por favor, aceite. Com a respiração suspensa, Janus viu, através da tela, a mão de Eveline erguer-se, trêmula, e receber o gordo envelope que Lanna lhe oferecia. — Minha menina... — A voz de Eveline soava embargada pela emoção. — Como poderei retribuir... — Como eu poderei retribuir todo o seu carinho e dedicação? — Lanna apartou. — O que você me deu, naqueles anos todos em que cuidou de mim, não tem preço, Eveline. — Eu... — Não diga nada. Apenas me dê um abraço. Há tão poucas pessoas puras como você, neste mundo absurdo e cruel... O vento, vindo do mar em rajadas curtas, sacudia a copa das árvores, e o céu escurecia. — Eveline! Lanna! — Janus chamou, elevando a voz. — Entre, Janus — respondeu a velha senhora. — A porta da frente está aberta. Temos café fresco, e os bolinhos ainda estão quentes. Contornando a casa, ele entrou, atravessou a sala c chegou à cozinha. — Uma xícara de café, apenas, Eveline — disse, depois de cumprimentá-la. Em seguida, voltou-se para Lanna: A tempestade se aproxima. Temos de partir. Amanhecia, em Miami. Uma fina neblina, vinda do mar, cobria toda a cidade. O sol tardava a surgir naquele alvorecer úmido, depois de uma noite tempestuosa, de ventos fortes e chuva intensa.


– Sentada a uma mesa do restaurante do hotel onde havia se hospedado com a mãe, Maria a aguardava para o café da manhã. Em sua memória, pairavam resquícios de um sonho que tivera, durante a madrugada. Alda Wollstone entrou no salão e, com um sorriso no belo rosto, aproximou-se da mesa: — Bom dia, filhinha. Dormiu bem? — Tive pesadelos — ela respondeu, erguendo-se para beijar a mãe em ambas as faces.

—Acho que estava ansiosa, ontem, ao me deitar. — Isso é natural, com tantas novidades acontecendo — Alda opinou, acomodando-se à mesa e servindo-se de um copo de suco de melancia. — Você pretende mesmo viajar hoje? —

Sim, partirei dentro de uma hora. Já estou com as malas prontas.

— Decidida e eficiente — Alda comentou, com uma ponta de ironia. — Pois é, mamãe... Ficar remoendo dúvidas é uma coisa que me consome demais. Quando me sinto insegura, prefiro partir para a ação. — Mesmo que essa ação interrompa nossas férias, tão longamente planejadas? Maria fitou a mãe com um misto de curiosidade e humor, antes de dizer: — Não acredito que você esteja fazendo isso. — Isso, o quê? — Chantagem sentimental! Logo você, que sempre condenou esses artifícios. — Estou dando essa impressão? — perguntou Alda, com um sorriso desarmante. Maria respondeu com um lento gesto afirmativo. — É... Talvez você tenha razão — Alda reconheceu, com um suspiro. — Essa sua decisão de partir assim, de repente, me pegou desprevenida.


– — Preciso de algumas respostas para certas questões interiores — Maria justificou-se. — E tenho de encontrá-las antes que se expire o prazo que Lionel me deu. Entende o que quero dizer, mamãe? — E você acha que quinze dias serão suficientes para que você chegue a uma conclusão importante? — Não sei. Mas espero que sim. O que está em jogo vai um pouco além de trancar a matrícula na faculdade. — Compreendo. — Alda serviu-se de uma torrada com geléia e de um pouco mais de suco. — Você não vai ficar aborrecida comigo, não é, mamãe? — Já estou. Mas isso passa — respondeu Alda, num tom resignado. — Ao que parece, você está gostando mesmo desse rapaz, Janus, não é mesmo? — Estou. Agora, quero me certificar da força e reciprocidade desse sentimento. E preciso fazer isso, antes que o prazo dado por Lionel se esgote... Antes de me decidir por algo que pode mudar radicalmente minha vida. — Em outras palavras, o seu "sim" ou o seu "não" para Lionel dependerá do que acontecer entre você e Janus Alda resumiu. — De certo modo, sim. Mas há também outro fator importante a ser considerado. — Os estudos — Alda completou. —

Isso mesmo. Você me entende tanto, mamãe... Alda sorriu.

— Bem, só me resta desejar-lhe boa sorte. — Obrigada, mamãe. Eu não esperava outra coisa de você. — Maria tocou-lhe a mão, por sobre a toalha, num gesto de gratidão e carinho. — E quanto a você? O que pretende fazer com seu tempo livre? — Ainda não sei. Continuar com as compras, eu suponho. Depois, devo visitar seu pai, em Nova York. — Vamos manter contato, não é mesmo, mamãe? — Claro. Você pode me ligar, sempre que quiser.


– — Combinado. Maria terminou o suco de melancia, mordiscou uma torrada e, por fim, serviu-se de café. Alda afastou o prato, dando seu desjejum por encerrado. O silêncio que pairava entre ambas não era hostil, mas um pouco triste. Por fim, Maria se levantou e, contornando a mesa, abraçou a mãe por trás, beijando-lhe os cabelos. — Cuide-se, mamãe. E quando encontrar papai, dê-lhe um beijo por mim. — Eu farei isso, querida. Agora, vá... Alda voltou-se na cadeira para observar a filha, que se afastava pelo amplo salão. Em seus olhos havia um brilho intenso, como um orvalho de lágrimas contidas. Mas o sorriso que se desenhou em seu rosto trazia a inconfundível marca do orgulho materno. Sua menina crescera. Tornara-se uma jovem mulher independente, atenta aos próprios desejos e oportunidades. — Vá com Deus, filha do meu coração — Alda disse, baixinho, como numa prece. Em Heavenside, Janus observava, na linha da maré, o resultado da noite tempestuosa: algas presas a fragmentos de corais, conchas, pedaços de madeira, boias, pedaços de redes, pequenos crustáceos e peixes mortos pela turbulência das águas. Ondas de médio porte, quebrando com fragor surdo na praia deserta, compunham um fundo sonoro, grave e constante. Apesar do vento frio, pequenas gaivotas sobrevoavam a praia, atentas à comida fácil que o mau tempo lhes trouxera. A experiência de Janus naquelas águas, bem como um golpe de sorte, haviam poupado a Sunrise de graves problemas, durante a viagem de volta ao continente. Agora, na mente de Janus, as imagens do dia anterior ressurgiam, vividas e inquietantes. A tempestade atingira o norte da ilha de Lock Beach no momento em que Janus dera partida à lancha, sem nem mesmo esperar que o contramestre acabasse de fixar o bote inflável no convés. Ignorando o perigo, Lanna negara-se terminantemente a se abrigar na cabine da embarcação. Sentando-se na proa, na cadeira giratória usada pelos pescadores de


– mar profundo, com os cabelos soltos ao vento e os lábios entreabertos, Lanna trazia no rosto uma indescritível sensação de prazer, diante daquela impressionante manifestação da natureza.

Com muito custo, resignara-se a aceitar o cinto de segurança e a vestir o colete salva-vidas que o contramestre lhe entregara, num gesto autoritário. Traçando uma rota improvisada, para manter o vento a popa, Janus rumara para o continente com os motores no limite máximo de aceleração. Tinha de aproveitar o mar relativamente calmo a sua frente para ganhar a maior distância possível da ilha, antes que a tempestade os alcançasse. Aquela corrida louca por sobre as águas fizera a lancha saltar diversas vezes, como um peixe voador. Após cada uni desses vôos desordenados, o casco da Sunrise chocava-se com violência na água. Então Lanna soltava um grito estridente, acompanhado quase sempre de uma gargalhada depura euforia. Aquela inconseqüência, travestida de coragem, fora aos poucos contagiando Janus e o contramestre, que riam, cedendo ao jogo, como se a vida de todos não estivesse em risco. A tempestade os alcançou a meio caminho da costa. Diminuindo a rotação dos motores, Janus passara o leme ao contramestre. Equilibrando-se precariamente sobre o convés varrido pelas águas, fora buscar Lanna, na proa. Pálida, um tanto trêmula, ela ainda tentara resistir quando ele, desprendendo o cinto de segurança, erguera-a pela cintura, arrastando-a com dificuldade para o abrigo da cabine. Aquela altura, Lanna perdera a capacidade de reagir. Janus não pensara duas vezes para livrá-la do colete salva-vidas e das roupas encharcadas. Depois de friccioná-la com uma toalha felpuda e seca, entregara-lhe uma garrafa de conhaque, incentivando-a a ingerir dois grandes goles. Com isso, a cor voltara lentamente ao rosto de Lanna. Janus a cobrira com uma manta e só então retornara à plataforma de comando. A lancha balançava violentamente, apesar da perícia do contramestre. Era impossível manter uma linha reta para o continente, pois fortes rajadas de vento ameaçavam adernar a Sunrise.


– — O que você acha da situação? — Janus perguntara ao contramestre. — Nesse curso, vamos acabar aportando ao sul de Heavenside — o homem respondera. — Quanto ainda teremos de navegar, até lá? — É difícil calcular... De vinte a vinte e cinco milhas, talvez. — Não podemos correr esse risco. A barreira de corais estará submersa. Sem visibilidade, poderemos bater e naufragar. — Já pensei nisso. E então, como vai ser? Em momentos decisivos como aquele, a mente de Janus funcionava com a precisão de uma máquina perfeita, sem nenhum temor, nenhuma dúvida ou indecisão. —

Quanto temos de combustível? — ele perguntara.

— Mais de metade do tanque. — Diminua a marcha e vire a proa para o vento. Com os olhos arregalados numa expressão de espanto, o contramestre retrucara: — Mas estaremos indo para o mar aberto! — Por pouco tempo, apenas. A tempestade desloca-se para o sul. Vamos cortá-la ao meio. Não cabia ao contramestre discutir aquela ordem. E, assim, ele obedecera, executando a manobra com perícia, enquanto Janus contatava a Capitania dos Portos, pelo rádio. Pouco depois, a Sunrise deixara de jogar lateralmente, diminuindo em grande parte o desconforto de seus tripulantes. Em contrapartida, passara a galgar vertiginosamente as ondas, até que os motores disparassem, com as hélices fora da água. Enquanto isso, as ondas se tornavam cada ve/ maiores. — Antes assim — Janus dissera ao contramestre, com uma calma impressionante. — Mantenha o curso, sem pre contra o vento. — E descera à cabine, ao encontro de Lanna.


– Enrolada na manta, em posição fetal sobre um pequeno sofá, Lanna dormia profundamente. Tomado por uma forte emoção, Janus sentara-se a seu lado, acariciando-lhe os cabelos úmidos com infinita delicadeza. Com um suspiro, Lanna esticara o corpo e, sem abrir os olhos, acomodara a cabeça no colo próximo e acessível. Por um longo tempo, Janus mantivera-se imóvel, as emoções fervilhando em seu íntimo. Aos poucos, o movimento da lancha fora se tornando mais regular, assim como o ruído dos motores. Esse era um sinal evidente de que a Sunrise havia cruzado o centro da tempestade. Acomodando a cabeça de Lanna sobre uma almofada, Janus subira à plataforma de comando, levando a garrafa de conhaque. Oferecendo-a ao contramestre, dissera com um leve sorriso: — Eu assumirei, agora. Tome um gole e relaxe. Você fez um ótimo trabalho. Ainda pálido e tenso, o contramestre sorrira de volta: — É em momentos assim que a gente vê o valor de uma embarcação. A Sunrise não decepcionou. — Estava nas mãos de um verdadeiro homem do mar — dissera Janus. — Vamos, beba. Isso vai lhe fazer bem. Descrevendo uma ampla curva, Janus reiniciara o trajeto de volta ao continente, com o olhar atento ao nível do combustível. Consultando o GPS, que orientava a lancha via satélite, o contramestre opinara: — Nessa rota, vamos acabar atracando no Marlin, e não em Heavenside. Estamos muito ao norte. Agora, na praia em frente ao chalé, Janus recordava a dupla surpresa de Charlie ao ver a Sunrise atracar no píer, trazendo a bordo três passageiros: ele, o contramestre e a sobrinha de John Sheridan! Como o perfeito cavalheiro que era, Charlie os recebera sem comentários. Embora nunca houvesse feito segredo de sua aversão pela família Sheridan, oferecera seu próprio quarto a Lanna, para que descansasse. Depois, preparara uma sopa de legumes com mariscos. Servira-a, bem quente, com torradas e vinho tinto.


– Enquanto as roupas de Lanna secavam sobre o aquecedor, a conversa fluíra num tom alegre, naquele clima de hospitalidade que era a marca de Charlie. Por determinação de Janus, o contramestre ligara para a Capitania dos Portos, assegurando o bem-estar da tripulação e da passageira. No dia seguinte, o contramestre conduziria a lancha de volta ao cais de Heavenside, já que Janus decidira levar Lanna à cidade naquela mesma noite. Por volta de nove horas, Janus resolvera que era hora de partir. A chuva não diminuíra, nem por um momento. Ao entregar-lhe as chaves do carro, Charlie dissera, com um toque de malícia: — As tempestades trazem coisas surpreendentes à praia. — E o mais interessante é que tudo acaba vindo parar sob o narigão vermelho de um velho lobo do mar — Janus retrucara, com um toque de humor. Charlie sorrira. Mudando o tom de voz, perguntara: — A família dela sabe? — Não faço a menor idéia. Fui contratado para levar uma passageira até a ilha de Lock Beach e trazê-la de volta à terra. E foi exatamente isso que fiz. Charlie assentira com um gesto de cabeça, antes de dizer: — Compreendo. Ninguém, mais do que você, sabe o risco que está correndo. — Fique tranqüilo, velho amigo. Está tudo sob controle. — Espero que sim... Mas Lanna recusara-se a voltar à mansão dos Sheridan, naquela noite, e o inevitável acabara ocorrendo, de maneira espontânea e natural. De algum modo, era como se ambos sempre tivessem esperado por aquele momento. Janus cedera às provocações de Lanna por curiosidade, ternura e excitação. Na larga e sólida cama do pequeno chalé que ele ocupava, os dois haviam se possuído com selvagem determinação, entre risos, provocações e outros jogos sensuais. Num dado momento, Janus se perguntara qual o sentido de tudo aquilo. E a resposta fora muito simples: aquela aparente loucura era o resgate de tantos sonhos e


– desejos, reprimidos no passado, que agora fluíam no prazer que ambos desfrutavam, entre gritos abafados e frases sem nexo, entrecortadas, loucas. Lanna era como um fogo caprichoso, alimentado por seus secretos humores e vontades imprevisíveis. Na cama, era despudorada e completamente despida de conceitos morais. Tudo era possível e permitido, desde que o momento assim determinasse. As unhas bem tratadas e os dentes muito brancos deixavam na pele de Janus o protesto ardente diante de uma investida mais audaz, ou um prazer quase insuportável. Janus deixara-se envolver naquela vertigem mista de fogo e gelo, quase como um espectador de si mesmo. Seu coração enlouquecido parecia querer explodir no peito enquanto sua mente às vezes se surpreendia com as ações que Lanna exigia. Um odor forte e denso, como uma mistura de almíscar e sândalo, pairava no ar. Gemidos, soluços, murmúrios, gritos sufocados mesclavam-se a todo momento. Uma aura ardente envolvia a ambos, na cama, como uma bolha que flutuasse sobre o mundo, ou muito além dele. Então, viera o silêncio, o repouso. Um simulacro de paz, que durara muito pouco. Bastava que uma centelha brilhasse, no vazio absoluto, para que tudo recomeçasse, para que a labareda novamente se acendesse, numa reação química inevitável, esgotando os dois seres perdidos numa sensação de vertigem que já não era compartilhada. Que, na verdade, não fora compartilhada nem mesmo no primeiro momento, pois tudo não passara de um prazer individual. Depois de seguidos gozos, viera aquele vazio de morte, e um frio glacial a separar os corpos suados e trêmulos... Cada um dono e senhor absoluto de sua imensurável solidão. Agora, em frente ao chalé, observando a ressaca das ondas na praia, Janus analisava friamente o que havia acontecido. E pensar que fazia menos de vinte e quatro horas que reencontrara Lanna Sheridan! Perplexo, via-se obrigado a admitir que não se conhecia a fundo, como imaginara. E mais assustador ainda era o fato de não sentir arrependimento ou vergonha por ter agido além de seus próprios princípios. Era como se outro houvesse ocupado seu lugar... Um "outro" que também era ele mesmo, e que ainda controlava o pulsar desordenado do sangue em suas veias, numa ressaca tão poderosa quanto a do mar, depois da tempestade. Lanna dormia, no interior do chalé.


– Ao imaginá-la nua, entre os lençóis, Janus sentiu a força do desejo sacudindo sua estrutura física, num arrepio de pura sensualidade renovada. Voltando sobre os próprios passos, que ainda marcavam a areia da praia, ele subiu lentamente os degraus que levavam ao chalé e entrou, fechando a porta. Dirigindo seu pequeno Opel prateado, Maria diminuiu a velocidade ao sair da estrada, tomando o anel viário que dava acesso a Heavenside. O sol iluminava a pequena cidade praiana a intervalos curtos, voltando a esconder-se atrás de nuvens esparsas que corriam pelo céu. A tempestade, que varrera o litoral na noite anterior, deixara o mar agitado e as praias cobertas de sargaços e outros detritos marinhos. Os poucos turistas que se aventuravam a sair caminhavam pelos calçadões, evitando a areia. Dirigindo sem pressa pela larga avenida costeira, Maria tomava contato com uma Heavenside de poças d'água acumuladas em depressões do asfalto e toldos rasgados sobre varandas repletas de folhas e galhos. Aqui e ali, semáforos e luminárias eram consertados pelos técnicos da prefeitura. O gracioso balneário sofrerá bastante com a tempestade da noite anterior. Agora, seus laboriosos moradores tratavam de restaurá-lo para os turistas, que o desejavam belo e charmoso, como nos cartões-postais e folhetos turísticos. Em meio ao trajeto, Maria deparou com o restaurante Paradiso, em sua localização privilegiada. Uma forte curiosidade levou-a até lá. Depois de estacionar, ela subiu a escada de madeira que conduzia ao estabelecimento. — Não abrimos para o almoço — uma faxineira informou, ao avistá-la. — Só estou dando uma olhada — explicou Maria. — Ouvi falar deste restaurante e fiquei curiosa. — Estamos tentando dar um jeito na bagunça que o temporal de ontem causou — contou a faxineira, num tom simpático. — Mas se quiser dar uma espiada por aí, fique à vontade. Maria agradeceu e entrou no amplo os olhos atentos a cada detalhe do ambiente.

salão

de

arcos abobadados,

A primeira impressão de rusticidade, dada pelos móveis escuros de madeira maciça, cedia aos detalhes caprichosos tia decoração, que revelava um gosto bem apurado.


– Uma senhora de aparência altiva, atrás do balcão, examinava um bloco de notas. Ao vê-la, avisou: — Começamos a atender às sete da noite, senhorita. Com um sorriso, Maria aproximou-se, enquanto dizia: — Você deve ser mamma Lúcia. — É assim que todos me chamam por aqui — a mulher assentiu, sorrindo de volta. — E você é...? — Sou Maria Wollstone. Estudo em Clespreen e moro na mesma república que seu filho. — Ora, mas é claro! Eu deveria ter imaginado! — Contornando o balcão, Lúcia tomou as mãos de Maria entre as suas e beijou-a na face. — Seja bem-vinda. — Obrigada. Espero não estar incomodando. — De maneira alguma. Janus já sabe que você está aqui? — Ainda não. Acabo de chegar de Miami. — Ele vai ter uma grande surpresa. Não esperávamos por você tão cedo. — De fato, adiantei minha vinda em alguns dias. — Ótimo! Mas venha comigo até a cozinha, querida. Assim, conversaremos enquanto preparo um café. Maria a seguiu, impressionada com o carisma que aquela mulher irradiava. Tinha a impressão de que mamma Lúcia poderia acender um sorriso ou provocar lágrimas, apenas com a sugestão de algumas palavras. — Muitas mulheres de minha cultura e geração foram condenadas ao exílio na cozinha, por muito tempo. E também eu, por muito tempo, tive vergonha de confessar que esse era exatamente o meu lugar. — Com um gesto amplo, que parecia abranger toda a cozinha, Lúcia acrescentou: — liste é o meu reino, Maria. Aqui eu me sinto capaz de criar novos pratos, combinar sabores, enfim, exercer minha aru culinária. A simplicidade de Lúcia, ao resumir sua vida, contrastava com a sofisticação do espaço em torno, Maria pensou.


– Muito mais que uma cozinha, o reino da mãe de Janus era um verdadeiro estúdio voltado à criação de sabores, cad.i um mais sutil do que o outro. Os materiais usados na estrutura eram basicamente vidro, alumínio e madeira. Tudo recendia a limpeza e ordem, naquele ambiente profusamente iluminado. — Impressionante — Maria opinou, num tom de profundo respeito. — Gostou? Levei anos para chegar a este resultado. Mas, sente-se, querida. E fique à vontade. Em questão de minutos, Lúcia preparou um saboroso café, servindo-o com delicados biscoitos amanteigados. A conversa entre as duas mulheres transcorreu num clima agradável. Ambas eram diretas em suas perguntas e francas em suas respostas. A simpatia recíproca aplainava as diferenças naturais de idade e cultura. — E quanto a você, Maria... — Lúcia indagou, a certa altura. — Já descobriu o que quer, na vida? Ela respondeu com um gesto afirmativo de cabeça, enquanto um sorriso tímido se insinuava em seus lábios: — Estudo Literatura Americana e Música, em Clespreen. Mas é no violão que encontro o meio de compartilhar meus sentimentos mais íntimos com as pessoas. Lúcia avaliou-a longamente antes de dizer: — Seja o que for, não se esqueça de criar seu próprio reino. Um lugar onde você se sinta, a um só tempo, indispensável e realizada. O restante virá naturalmente. — Mesmo o amor, mamma Lúcia? — Ah, o amor... Um dos grandes mistérios da existência. Só sei dizer que ele está dentro de nós e que tem vontade própria. Quando quer se exercitar e crescer, nos obriga a amar. — Isso me faz lembrar um compositor brasileiro, Chico Buarque de Hollanda, que pergunta na letra de uma de suas músicas: Para onde vai o amor quando o amor acaba? Lúcia riu:


– — A resposta é simples: ele volta para o interior de quem o doou. E ali fica, esperando que outro ser venha um dia provocar o seu vôo... É por isso que sempre digo que o amor é um longo aprendizado. — E como você explica o amor nas longas relações? No casamento, por exemplo? Se é verdade que ele tem vontade própria, seria quase impossível manter-se amando a mesma pessoa por toda a vida — Maria questionou. — Diferente da paixão, que é cega e violenta, o amor se soma ao tempo, alimentando-se das preciosidades que ocorrem num relacionamento, como a solidariedade, a delicadeza, a bondade, a capacidade de perdão, a alegria, os sonhos compartilhados... Por ser o mais nobre sentimento da raça humana, o amor é também o mais sábio. Maria ergueu-se do banco onde estava sentada e, aproximando-se de Lúcia, beijou-a com respeito e carinho: — Agora entendo por que seu filho fala de você com tanta admiração. Sinto-me honrada em conhecê-la, mamma Lúcia. — Obrigada, minha querida. Estou feliz por você ter vindo a Heavenside. Poderíamos prolongar nossa conversa por toda a tarde, mas você deve estar ansiosa para rever Janus... — É verdade.

Pegando um bloco de anotações, Lúcia desenhou um mapa simples, sob o qual escreveu um endereço. — É só seguir estas indicações e você encontrará nossos chalés, na praia — disse, destacando a folha e entregando-a a Maria. — Janus está no terceiro. Caminhando pela praia deserta, Maria rompia o vento, cantarolando uma melodia simples. A expectativa de rever Janus acelerava os batimentos de seu jovem coração. Estava feliz. Pouco depois, ela avistou os chalés e para lá se dirigiu. Segundo Lúcia, Janus ocupava o terceiro chalé. Subindo a escada de madeira com leveza, Maria bateu à porta e, elevando a voz, perguntou:


– — Há alguém em casa? Somente o som do vento respondeu ao seu chamado. Com as chaves do carro, ela bateu na rija madeira da porta. — Há alguém aí dentro? — insistiu. A porta se abriu bruscamente, e uma longa echarpe branca dançou à frente dos olhos de Maria. — Você esqueceu isto. — Janus... — ela balbuciou confusa. — Como? — Ele a fitou, um tanto sonolento. — Maria... o que faz por aqui? — Pensei em lhe fazer uma surpresa... mas posso voltar em outra hora. — Não, de jeito nenhum. Entre e sente-se. Preciso me vestir. Com licença... Maria fechou a porta e acomodou-se no pequeno sofá da sala. Seus olhos percorreram o corpo nu de Janus, que se afastava. A marca da sunga, muito branca, destacava-se na semi-obscuridade do ambiente, em contraste com o resto da pele bronzeada pelo sol de verão. A voz de Janus, sonolenta e entorpecida, veio do quarto: —

Eu não esperava você tão cedo.

— Agi por impulso... Mas acho que fiz uma bobagem — ela respondeu, contrariada. — Não, de modo algum. Dê-me alguns minutos para tomar um banho e logo estarei completamente acordado. Cerca de quinze minutos se passaram, antes que Janus voltasse à sala, usando chinelos, uma calça de moletom azul e uma camisa pólo azul e branca. Parecia incrivelmente jovem e desprotegido.


– — Vou preparar um café — ele anunciou, de passagem, caminhando em direção à cozinha. Com um gesto, convidou Maria a acompanhá-lo. Então, perguntou: — Mas, conte-me... Quais são as novidades? O fato de tê-lo encontrado nu, dormindo até tarde, não a havia chocado tanto quanto agora, pois Janus a tratava num tom educado e formal, como se ela fosse uma estranha. Controlando-se para não revelar a grande decepção que sentia, Maria respondeu: — Muita coisa se passou, desde que você saiu de Clespreen. Apresentei-me no Festival de Verão e resolvi aquela pendência com Hector, meu professor de violão. Lembra-se? — Hector? Sim... Agora me lembro — ele comentou, com ar distraído. — Conheci um empresário do meio artístico que me fez uma proposta de trabalho interessante — ela prosseguiu. — Não dei grande importância ao fato, porque teria de trancar a matrícula e deixar Clespreen por, no mínimo, seis meses. — Onde será que pus o açúcar? — cismou Janus, como se pensasse em voz alta. — Então, fui a Miami encontrar minha mãe e acabei revendo o tal empresário, por puro acaso. Ele renovou o convite e me fez uma oferta praticamente irrecusável. Por isso, resolvi adiantar minha vinda a Heavenside, para conversar com você. Fiz mal? — Não, não. Você é muito bem-vinda. Só estou um pouco confuso... O silêncio que se instalou no ambiente era rompido apenas pelos movimentos de Janus e o tilintar de xícaras c pires. Do lado de fora, o murmúrio contínuo do vento e das ondas continuava. — Aqui está o café — disse Janus, colocando a cafeteira sobre a mesa. — Posso servi-la? — Eu não quero café — respondeu Maria, num tom neutro. Surpreso, Janus ergueu os olhos para ela, enquanto uni sorriso tímido se desenhava em seu rosto. — Não?


– — Na verdade, já tomei café em Miami, com minha mãe. Depois tomei outro, com a sua, no Paradiso. — Vejo que você está aborrecida... Ignorando o comentário, Maria prosseguiu: — Mesmo sendo cinqüenta por cento brasileira, um terceiro café na hora do almoço seria demais para mim. — Fitando-o com a expressão mais neutra que conseguiu, anunciou: — Vou procurar uma pousada para me hospedar. Conversaremos depois, está bem? — Caminhando em direção à sala, acrescentou: — Desculpe-me por ter chegado sem avisar. — Não faça isso — Janus pediu, interpondo-se em seu caminho. — Diga-me, onde está seu carro? — No estacionamento da prefeitura. Por quê? — Traga-o para cá. — Por quê? — Porque faço questão que você se hospede aqui. Afinal, você é minha convidada. — Uma convidada meio atrapalhada, que chega uma semana antes do combinado, sem avisar. — Isso não é motivo para você procurar outro local Por favor, Maria... Janus havia assumido aquela postura íntima e um tom de voz carinhoso e quente, do qual Maria se lembrava muito bem. Ainda assim, ela relutava. — Por favor, eu lhe peço — ele insistiu. — Está bem — ela cedeu, por fim. — Vou buscar o carro. Ele sorriu, satisfeito. — Estarei a sua espera — avisou, acompanhando-a até a porta. Perturbada, Maria desceu os degraus de madeira e caminhou em direção ao estacionamento, sem olhar para trás. No momento exato em que se sentou ao volante, teve um impulso quase incontrolável de manobrar o carro em direção à


– cidade e partir. Afinal, era uma pessoa livre... Nada poderia impedi-la de colocar, assim, um ponto-final naquele relacionamento, que era mais uma esperança do que uma verdadeira história de amor. Mas algo dentro dela reagia. Talvez as doces lembranças daquela noite inesquecível, depois da festa na Neandertal, tivessem pesado em sua decisão. O fato é que ela acionou o motor e voltou... Janus a aguardava um pouco além do terceiro chalé, mas Maria não prestou muita atenção a esse detalhe. Afinal, os chalés eram todos iguais. Foi somente ao entrar na sala que ela se deu conta de que estava em outro chalé, sutilmente diferente daquele onde estivera poucos momentos atrás. Em segundos, sua mente absorveu a informação de que Janus a havia instalado em outro ambiente, que não o dele. lira evidente que não queria compartilhar seu espaço com ela. Um sorriso irônico insinuou-se no rosto de Maria. E, mais uma vez, ela considerou a possibilidade de partir. Mas o orgulho a impediu de voltar atrás. Afinal, tivera sua oportunidade no estacionamento e a deixara passar. Agora, nada restava a fazer, senão deixar que os acontecimentos seguissem seu curso. — Espero que você fique bem acomodada, aqui — disse Janus, colocando sua bagagem sobre o sofá. — Agora, preciso ir. Tenho trabalho na oficina e outros afazeres, no porto. — Não se preocupe comigo — ela respondeu. — Ficara bem. — Virei à noite, para vê-la. Maria pensou em dizer "não se dê o trabalho" ou "que Disse que quero vê-lo à noite?". Mas apenas sorriu e deu lhe as costas, enquanto ele partia. Quando a noite chegou, Maria já se encontrava em ou tro estado de espírito. Depois de um banho longo e relaxante, fora até o centro comercial de Heavenside e, na volta, abastecera a geladeira e a despensa com o essencial para três ou quatro dias de estada. Sem mais o que fazer, estendera-se na cama confortável do chalé silencioso e dormira por mais de três horas.


– Assim, quando Janus chegou, por volta das oito e meia da noite, encontrou Maria bem-disposta, na varanda dos fundos, tomando vinho e tocando violão. Ele também tivera tempo de se recuperar dos últimos acontecimentos e se > mostrava gentil e atencioso, como sempre. — Vejo que você se adaptou bem ao ambiente — disse, depois de beijá-la carinhosamente. — O chalé é muito confortável — ela comentou, com um sorriso encantador. — Estou tomando vinho. Você me acompanha? — Sim. Vou buscar um copo. Com licença. — Enquanto caminhava até a cozinha, perguntou: — Como foi o seu dia? — Saí para fazer umas compras e depois dormi por várias horas. E você? — Terminei de consertar o motor de um barco e fui à Capitania dos Portos, fazer uma vistoria na lancha na qual viajei, ontem. — Ontem? — Maria repetiu, com estranheza. — Pelo que pude observar, na cidade, vocês tiveram uma tempestade muito forte, por aqui. — De fato — ele confirmou, voltando à varanda. — Passamos um mau pedaço, em mar aberto. Mas tudo terminou bem — acrescentou, como se quisesse encerrar o assunto. Maria não insistiu. Não se sentia no direito de fazê-lo. Mas, também, não era tola. Sabia que algo importante havia ocorrido no mundo emocional de Janus. Não era preciso ser muito esperta para chegar a essa conclusão; os sinais eram evidentes. A echarpe, sacudida diante de seu rosto, certamente pertencia à mulher que estivera com ele durante a noite. O comportamento de Janus apontava para esse fato. Por outro lado, Maria havia tido tempo para refletir, durante o dia. E chegara à conclusão de que não haviam prometido, um ao outro, fidelidade ou abstinência sexual. O relacionamento entre ambos, recém-começado, não permitia esse tipo de exigência. Afinal, eram livres. Essa era a pura verdade.


– Mesmo assim, Maria não conseguia evitar um sentimento de decepção e tristeza. E uma pergunta a atormentava: teria se enganado com Janus, ao imaginá-lo sensível, seletivo ao extremo e, principalmente, fiel aos próprios sentimentos? E, se assim fosse, ela aceitaria uma nova versão daquele homem, por quem se apaixonara? Maria não tinha respostas para tais perguntas. Por isso resolvera ficar em Heavenside por alguns dias. — O que você estava tocando, quando cheguei? — perguntou Janus, acomodando-se ao lado dela. — Um blues da Banda Deep Purple, chamado When a Blind Man Cries. Você conhece? — Conheço a gravação da banda. Mas, do jeito que você toca, parece algo novo... Diferente. — Não sei se tomo isso como um elogio, ou não. Mas sempre interfiro nas músicas que gosto, dando um toque pessoal à interpretação. — Isso se chama estilo, Maria. Seu modo de tocar é inconfundível. — E você gosta? — O resultado é muito bom. Tem leveza, fluidez e uma estética requintada. — Mas você gosta? — ela insistiu, observando-o com atenção. — Muito — ele respondeu, com simplicidade. Maria sorriu, satisfeita, não só pela aprovação de Janus, mas pela sinceridade que voltava a encontrar nos olhos dele. Não suportaria a falta desse atributo no homem que falara tão de perto a seu coração. — Toque mais — ele pediu, servindo-se de vinho. Maria aquiesceu. E foi como se o som do violão viajasse no vento, por sobre o caminho gramado que levava à praia, e ainda mais além, até as dunas de areia que separavam os chalés da estrada asfaltada. Ambos ficaram na varanda até bem tarde da noite, conversando, numa deliciosa intimidade, que os aproximava daquilo que os unira em Clespreen. Quando por fim Maria resolveu se recolher, o vento havia cessado e a maré já estava baixa.


– — Teremos sol, pela manhã — Janus anunciou, já de saída. — Posso vir chamá-la, às sete, para um mergulho e um café? — Pode, sim. Ele a beijou nos lábios, com ternura e reconhecimento. Maria correspondeu na mesma intensidade. Ambos cuidavam, com extrema delicadeza, da situação frágil em que se encontravam. — Boa noite, Janus — ela murmurou, afastando o corpo com naturalidade. — Boa noite, Maria... E seja bem-vinda a Heavenside. — Obrigada. — E ela observou-o caminhar pela areia, até o chalé número 3.

Capítulo IV

A primeira claridade da manhã encontrou Maria sentada na areia da praia, os olhos fixos no horizonte, onde a cada minuto o azul se tornava mais claro, anunciando a chegada do sol. Vestígios da noite mal dormida marcavam-lhe o rosto delicado. A boca contraída, o cenho franzido, tudo denunciava um misto de ansiedade e cansaço. O ar frio da manhã que se anunciava foi penetrando, aos poucos, em seus pulmões aquecidos, trazendo o aroma de iodo que se desprendia das algas lançadas à praia pelo mar. Respirando pausada e profundamente, Maria buscava um silêncio interior, que a levasse à paz benfazeja e à clareza de pensamentos. O murmúrio contínuo do mar, as batidas do coração e a respiração cadenciada foram aos poucos a ajudando a ordenar a mente. O sol se erguia no céu como um balão de fogo, vermelho e ardente. Através das pálpebras semicerradas, Maria percebeu um movimento a sua direita, e intuiu a presença de Janus, antes mesmo de vê-lo de fato. Ele se aproximava, descalço e sem camisa. Parecia ter saído da cama diretamente para a praia. Maria levantou-se para recebê-lo.


– — Bom dia, Janus. — Bom dia, Maria. Você acordou cedo. Dormiu bem? — O suficiente. E você? — Acho que ainda estou dormindo. Esticando os braços, Janus espreguiçou-se lentamente, de frente para o mar. Num gesto simples e preciso, livrou-se da calça de algodão, que se amontoou a seus pés. De sunga, caminhou para o mar, convidando: — Venha... Vamos nadar um pouco. Maria soltou a presilha da saia, abandonando-a sobre a areia. De biquíni, ela o seguiu, saltando por sobre as pequenas ondas. O mar estava liso como um espelho e, a água, muito fria. As ondas lentas que se formavam ao longe vinham espaçadas, em seqüências de quatro, bem formadas e não muito altas. Maria transpôs as primeiras, saltando sobre elas, cada vez mais para o fundo. Então mergulhou seguidas vezes, a ponto de quase tocar o fundo arenoso, enquanto as ondas passavam, rugindo... Janus ia na frente, e já rompia a linha de arrebentação, ganhando o mar aberto, além do ponto onde as ondas se formavam. Em braçadas rápidas e enérgicas, Maria o alcançou. Estavam a poucos metros um do outro, quando resolveram fazer uma parada. O balanço contínuo do mar os envolvia. A alta densidade da água ajudava-os a flutuar sem dificuldade. Com movimentos quase imperceptíveis das mãos e dos pés, ambos mantinham-se na superfície. O sol erguera-se do mar e iluminava a encantadora Heavenside, lançando sobre a cidade uma espécie de patina alaranjada.


– — Você deve se orgulhar do lugar onde nasceu — Maria comentou, encantada com aquela visão da cidade, que mais parecia um quadro antigo, móvel, incrivelmente belo. — Tudo, por aqui, é muito harmonioso e bonito. — Sem dúvida — Janus concordou, sorrindo. — Mas, como diz a sabedoria popular, "viver no paraíso tem seu preço". — Imagino que sim. — Muitas vezes, voltando do mar, ao avistar a cidade de linhas tão puras e harmoniosas, eu me perguntava como era possível que nela existisse tanta maldade, cobiça, ódio e desamor. — A terra é um paraíso imerecido pelo homem — Maria sentenciou, muito séria. — Isso acontece em toda parte. — Ter conhecimento da triste condição humana não torna os fatos mais suportáveis, Maria. — Concordo. Mas podemos extrair lições desse conhecimento, para não agirmos como os inconscientes. Você não acha? — Não é tão simples assim. Às vezes, a vida nos coloca em situações inesperadas. Assim, acabamos por ofender as pessoas a quem mais amamos. E o que podemos fazer, para que isso não aconteça? Ela sorriu, antes de responder: — Não sei. Talvez seja mesmo impossível evitar. — Agora você está sendo irônica... — De modo algum. Se estamos falando de amor, Janus, temos de dar a esse sentimento o valor e o poder que ele realmente tem. — Não estou acompanhando seu raciocínio — ele confessou. — Para mim, amor significa, entre outras coisas, compreensão, flexibilidade e um desejo sincero de ser honesto com a pessoa amada. — O perdão também existe em sua concepção de amor, Maria?


— Sim... Mas como resultado de um entendimento profundo das razões que levaram uma pessoa a magoar a outra. Enquanto Janus refletia sobre aquelas palavras, ela recomeçou a nadar. — Ei, espere... — ele ainda tentou chamá-la de volta. Mas Maria se afastava, velozmente, e a ele não restava outra opção, a não ser segui-la. Quando ele pisou na cálida areia da praia, Maria o aguardava, já vestida. Em vão, ele buscou em seu rosto traços de aborrecimento ou mágoa. Mas ela se mostrava calma, receptiva, bela como uma flor que se abrisse ao sol. — Estou com fome — anunciou, atirando a calça de algodão para Janus. — Aquele oferecimento de ontem, para um café da manhã, ainda está em pé? — Claro — ele respondeu, pegando a calça no ar e jogando-a sobre o ombro, num gesto displicente. — Vamos? Ambos caminharam pela areia, em direção ao chalé de Janus. Não pareciam alegres nem tristes, apenas pensativos. Maria falou da impressão que tivera sobre Lúcia, de sua força interior e sua beleza madura. Janus contou-lhe fatos engraçados e significativos, que ilustravam o caráter extraordinário de sua mãe. Conversando, nesse clima agradável, chegaram ao chalé. A porta estava aberta, e um cheiro penetrante de café, recém-coado, chegou até ambos. — Agora você vai conhecer meu pai — Janus anunciou, dando-lhe passagem. De fato, parado ao lado da mesa, Pablo Gassete os aguardava, e recebeu Maria com uma expressão amável. Imediatamente, ela simpatizou com aquele homem alto, magro, de olhos castanhos, que aparentava ter pouco mais de cinqüenta anos. — Você deve ser Maria — disse ele. — Já me falaram a seu respeito. Só não disseram que era tão bonita. — Obrigada. Também ouvi falar muito do senhor. — Ela estendeu a mão. — Prazer em conhecê-lo, sr. Gassete.


– — Pode me chamar de Pablo, como fazem meus amigos. — Ignorando a mão estendida, ele a abraçou. — Seja bem-vinda, Maria. Agora, sentem-se. Fiz ovos com bacon, suco de melão e café fresco. Os três se acomodaram à mesa, e Maria serviu-se generosamente. A conversa entre pai e filho girou em torno da última tempestade e dos estragos causados nas embarcações. Para não isolar a convidada do assunto, os dois se revezavam para explicar a ela os detalhes técnicos. Só com muito esforço, Maria mantinha a atenção no que diziam. Seus olhos buscavam a semelhança física entre pai e filho, sem sucesso. Apenas os gestos, expressões faciais e ritmos da fala eram comuns aos dois. Isso se devia, certamente, à longa convivência entre ambos, e não a um fator genético, ela concluiu. Em Lúcia, Maria enxergara de imediato o arco das sobrancelhas, o formato dos olhos, os cabelos negros espessos, a curvatura e coloração dos lábios, que conhecera anteriormente em Janus. Mas o azul profundo dos olhos, a perfeição e alvura dos dentes, o formato alongado dos pés e das mãos... De onde viriam essas e outras tantas características que ela esperava reconhecer em Pablo e não encontrara? — Creio que estamos aborrecendo Maria com nossa conversa, filho — disse Pablo, num dado momento, afastando a cadeira e erguendo-se. — De modo algum — ela protestou, abandonando aquela linha de pensamento. — Continuem, por favor. — Já falamos o suficiente, por esta manhã. Agora, preciso trabalhar. Curvando-se, Pablo beijou os cabelos de Maria e, acenando para o filho, caminhou em direção à porta. — Nós nos veremos à tarde, na oficina, pai — disse Janus, em despedida. Pablo saiu, e um silêncio constrangido pairou no ambiente. Mas aquele era o momento aguardado por Janus, e ele não pretendia desperdiçá-lo. Assim, começou o relato que tanto precisava fazer: — Gostaria de lhe contar uma história, Maria. — É mesmo? — ela indagou, um tanto surpresa.


– — Sim. Uma história de amor acontecida há muitos anos, aqui em Heavenside, entre duas crianças. Mas temo que o final não seja feliz. — Vá em frente — ela disse, servindo-se de um pouco mais de suco. — Eu gosto de histórias. E quanto ao final ser feliz, ou não, depende muito da interpretação de quem a ouve. Janus sorriu, concordando com um gesto de cabeça, e deu início à narrativa: — Cerca de vinte anos atrás, Heavenside era bem diferente do que é hoje. O turismo, sempre presente, acontecia de modo natural. Não era dirigido por empresas, como ocorre nos dias de hoje. Havia menos gente nas praias e, na baixa temporada, era possível desfrutar a natureza exuberante em completa solidão. A voz de Janus soava clara e fluente. O timbre, grave e agradável ao ouvido, encantava Maria. — Foi nesse cenário paradisíaco que um garoto, criado em estreito contato com a natureza, descobriu o amor, no sorriso de uma menina de olhos negros, longos cabelos loiros e um porte de princesa. Dela emanava o mistério de um mundo totalmente desconhecido pelo garoto. Atraído pelo que considerava a perfeição de toda a beleza, ele a cortejava de longe, pois era muito tímido... Mas, um dia, a menina tomou a iniciativa de se aproximar do garoto. E a grande história de amor teve seu início. Os dois se tornaram companheiros inseparáveis, e os pais do garoto acabaram por conhecer a menina. A partir daí, não foram raras as vezes em que os dois lancharam juntos, na casa dele. Um dia, a menina convidou o garoto para acompanhá-la até a mansão onde ela morava, e foi com espanto que ele percebeu, pela primeira vez, a existência de algo que, mais tarde, aprenderia a chamar de "diferença social". Janus fez uma pausa e serviu-se de uma xícara de café. Maria, que o escutava atentamente, fez questão de se manter em silêncio, enquanto ele sorvia a bebida fumegante, pois não queria interromper o fluxo da narrativa. — A família da menina era muito rica — ele prosseguiu, após alguns instantes. — Sua mãe fora atriz de cinema e se casara com um ator bastante famoso, na época. Eles moravam em Golden Oak, o bairro chique de Heavenside. Em sua simplicidade e inocência, o garoto os achou simpáticos e acessíveis. Naquele bairro havia várias mansões. Uma delas era a mansão central, habitada pelo chefe da família, que a menina chamava de tio John. Mas nem todos os moradores daquelas construções imponentes eram simpáticos. Foi isso que o menino não tardou a descobrir.


– Janus interrompeu a narrativa, uma vez mais, para beber o resto do café. Estava muito sério e compenetrado. Dessa vez, Maria aproveitou o silêncio momentâneo para perguntar, quase afirmando:

— Você está contando a história da sua vida, não é ? —

Sim — ele respondeu um tanto contrariado.

— E por que não dá nome às crianças? Seria mais natural, você não acha? — Talvez eu precise de um certo distanciamento, para recordar essa história. É a primeira vez que faço isso, e acredite, não é nada fácil. — Compreendo. Então, prossiga, por favor. Ele meneou a cabeça. — O tempo passou. As crianças cresceram e entraram na adolescência. O menino se manteve fiel e apaixonado. Quanto à menina, eu não sei... Mas o fato é que continuavam a se ver, todos os dias. E a intimidade da convivência de tantos anos permitia, a ambos, certas liberdades que começaram a ser notadas pelas pessoas. A mãe do garoto, agora adolescente, mostrava preocupação com aquele relacionamento. Por muitas vezes, tentava prevenir o filho sobre os comentários que começavam a circular na cidade, mas ele os ignorava, mergulhado naquele sonho dourado, quase perfeito. Assim, os dois eram vistos ao anoitecer, sentados nas pedras à beira-mar, abraçados, tecendo planos para o futuro. Foi nessa época que eles experimentaram os primeiros beijos ardentes, as primeiras carícias mais ousadas. Janus levantou-se e, caminhando até a janela, observou a paisagem lá fora, antes de retomar o relato. — Numa noite chuvosa, na varanda da casa da menina, os dois se entregavam a cadeias cada vez mais ousadas, com a urgência característica daquela idade, quando a porta que dava para a sala se abriu e a luz se acendeu. Atônito, o garoto mal teve tempo de esconder a poderosa reação de seu corpo aos estímulos sexuais que experimentava, quando um tapa estalou em sua face. Através das lágrimas que lhe turvavam a visão, o garoto reconheceu o tio de sua amada, o temido e poderoso John Sheridan, que o agarrava pelo colarinho, enquanto proferia palavrões e ameaças numa voz carregada de ódio. "Rato de esgoto", "pervertido", "escória"... Essas ofensas ainda reverberavam nos ouvidos do garoto, quando um poderoso pontapé o fez rolar pela


– escadaria de mármore, atirando-o no gramado, em meio à chuva e aos latidos dos cães. A ameaça de morte para ele e sua família, se voltasse a se aproximar daquela casa, acompanharam a retirada do garoto, em sua intensa mágoa e vergonha. Na semana seguinte a menina partiu, com a mãe, para a Europa. E os dois nunca mais voltaram a se encontrar.

Intensamente emocionada, Maria levantou-se e tentou abraçar Janus que, emocionalmente exausto, mantinha-se ereto e muito pálido. — Meu Deus... Que absurdo — ela murmurou, contendo as lágrimas. Afastando-a com firme delicadeza, ele finalizou: — A menina chamava-se Lanna. Aliás, chama-se Lanna. Foi com ela que passei a noite anterior a sua chegada a Heavenside, Maria. — Diga alguma coisa. Mesmo que suas palavras venham a pôr um fim ao nosso relacionamento, diga o que está pensando — Janus pediu. Em pé, junto à janela, Maria contemplava o mar, tentando absorver a nova realidade. Desde o instante em que Janus balançara a echarpe branca diante de seus olhos, ela vinha se preparando para aquele momento. Mas a realidade superara sua imaginação. Por outro lado, sentia um certo alívio por saber que Janus não traíra os valores fundamentais que ela tanto prezava, entregando-se a uma aventura ordinária com uma mulher qualquer, por desejo, carência ou tédio. Não, Maria pensou. Não havia se enganado tanto a respeito dele. O que o levara a deitar-se com Lanna era justamente o fato de ela ter sido o grande amor de sua infância e adolescência. Mas, e agora, o que fazer? Como agir? — Estou confusa — confessou por fim. — Só me ocorre perguntar se você ainda ama essa moça. — Não — ele declarou, sem hesitação. — Lanna não é mais a pessoa que eu amei. Ou então, eu é que já não sou o que fui um dia. De qualquer forma, a resposta é "não". Eu não amo Lanna Sheridan. Maria suspirou, aliviada.


– — Você pretende voltar a se encontrar com ela? — Não pretendo procurá-la, se isso responde a sua pergunta. — Responde, mas não satisfaz. — O que você quer, então?

Maria esboçou um leve sorriso. Tomando-lhe as mãos, fitou-o dentro dos olhos e exigiu: — Quero que você prometa que, sob nenhuma circunstância, ficará a sós com essa mulher, enquanto estivermos juntos. — Eu juro — ele disse, com firmeza. — Mais alguma coisa? — Não. Acredito em sua palavra. Para mim é o suficiente. — Maria, querida... Se você soubesse o quanto a sua compreensão é fundamental, neste momento... — Ouça, Janus... — Ela retirou as mãos, dando um passo para trás. — Nosso relacionamento é muito recente e podemos estar enganados quanto ao sentimento que julgamos ter um pelo outro. — Da minha parte, não existe essa possibilidade. Eu sei o que quero. E eu quero você, Maria. — Então, preste atenção: você pode voltar atrás, pode ser livre, no momento em que desejar. Pode dormir com quantas mulheres lhe apetecer, inclusive com Lanna. Mas, antes, você terá de agir como um homem de caráter e terminar com o nosso relacionamento. Basta dizer uma simples palavra como "adeus", ou "acabou". Não lhe farei perguntas e não lhe trarei problemas. Simplesmente, desaparecerei da sua vida. — Mas por que você está me dizendo tudo isso? Será que não percebe... — Por favor, escute-me — ela o interrompeu, com veemência. — Tenho o direito de dizer o que estou sentindo. —

Sim... é claro.


– — Gosto de pensar que, junto com meu corpo, estou entregando a alguém meu coração e minha integridade. Se vamos acreditar na possibilidade de seguirmos juntos, terá de ser na base da confiança e da sinceridade. Sem isso, tudo seria um doloroso equívoco, entende? — Não só entendo, como concordo. Aproximando-se novamente, Maria ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o com carinho e paixão.

— Agora, vou para o meu chalé, Janus. Preciso ficar só. — Quando nos veremos? — ele perguntou, ansioso. — Talvez à noite. — Na varanda dos fundos? — Ele sorriu, encantado. —

Só se estiver ventando.

— Não creio. Mas nunca se sabe. — Ah, acabo de me lembrar de um detalhe importante... — A voz de Maria soava mais branda. — Sim? — Meu vinho acabou. — Deixe comigo. Vou providenciar. Janus supervisionava a reinstalação do leme de um barco, quando foi chamado ao telefone, no escritório da oficina. Era seu primo, Rocco, anunciando novidades: — Houve um almoço, aqui na mansão, com o pessoal "importante" da cidade. Vieram o prefeito e seus assessores, o juiz, o promotor e mais quatro figurões de fora. Depois, houve uma reunião no escritório de John Sheridan, que durou mais de uma hora. Estou com o material gravado e quero entregá-lo a você. — Estou muito ocupado, aqui na oficina. E terei um compromisso importante, à noite.


– — Compromisso? Sei! — O riso de Rocco soou no receptor do aparelho. — Você deve estar falando de uma morena de olhos verdes que chegou à cidade, por esses dias. Como ela se chama, mesmo? — Maria, seu intrometido. Como você ficou sabendo? — Encontrei tio Pablo na cidade. Ele ficou impressionado com a sua namorada. Quando vai apresentá-la aos amigos? — Qualquer dia desses — Janus desconversou.

— Escute, Rocco, preciso examinar esse material com urgência, mas estou sem tempo para me encontrar com você. Não poderia deixá-lo no meu chalé? — Não sei, primo. É muito arriscado. Alguém pode estar de olho... — Você parece desconfiado — Janus concluiu. — Notou algum movimento suspeito? — Bem... Nos últimos dias, tive a impressão de que um Toyota preto me seguia. Foi uma impressão forte mas, depois, ele desapareceu. Nunca mais o vi. Acho que estou ficando paranóico. — Bem, de qualquer forma é melhor tomar cuidado. Faça o seguinte: vá até o centro, compre alguns chocolates finos e duas garrafas de vinho, de boa qualidade. Um Porto encorpado e um branco, bem leve, de preferência, francês. Acrescente o material da escuta às compras e peça que embrulhem para presente. Depois envie tudo aqui para a oficina, pelo serviço de entregas rápidas. Estarei aguardando. Rocco não pôde deixar de rir da engenhosidade de Janus. — Só você, primo, para aliar negócios e prazeres num mesmo pacote! Vai haver festa, essa noite? — perguntou, malicioso. — Festa, não. Vou me encontrar com Maria. — Hum... sei. E quando nos veremos?


– — Daqui a dois dias, no Marlin. Ligarei para confirmar, está bem? — Combinado. Um abraço, primo... Não vá exagerar nas comemorações noturnas! — Fique tranqüilo. Estou sossegado. — Vou fingir que acredito — Rocco retrucou, num tom maroto, antes de desligar. O sol já havia se escondido atrás das colinas de Golden Oak, o bairro nobre de Heavenside, que um dia pertencera aos avós de Janus.

Contemplando o perfil daquelas elevações contra o tom de ouro e púrpura do céu, ele não pôde se furtar a um leve arrepio de excitação, ao lembrar-se de Lanna Sheridan. Ainda podia sentir, no corpo, o veneno sensual que ela lhe transmitira. Um veneno que circulava em suas veias, desde aquela noite de loucura, quando descobrira-se capaz de ações jamais pensadas. Fosse outra a situação, e ele talvez não resistisse à tentação de mergulhar, uma vez mais, naquelas sensações proibidas, naquele sexo perverso que o intoxicara. Certa vez, um filósofo alertara o mundo sobre a forte atração que o homem sente pelo abismo. Agora, Janus reconhecia, com espanto e repulsa, que era exatamente isso o que estava lhe acontecendo. A chegada intempestiva de Maria o livrara de um grave perigo. Opor-se aos interesses dos Sheridan, espioná-los, conjurar contra aquele poder arrasador, já era um risco enorme. Agravar esse risco, mantendo relações com Lanna, seria pura loucura. E havia Maria, por quem ele não trocaria todos os prazeres que pudesse obter com outras mulheres. Maria era a terra fértil, à espera da semente que daria início a uma nova geração: a geração do futuro. Em Maria, ele constatava os valores éticos e morais, necessários à criação de um mundo melhor, livre de intolerâncias, preconceitos, abuso de poder, ódios e guerras. Ela mesma era fruto do combinação de duas culturas totalmente distintas, e trazia, em si, o que havia de melhor em cada uma delas.


– Por tudo isso, Janus sabia o privilégio que a vida lhe concedera, ao fazer seu caminho cruzar com o de Maria. E não estava disposto a abrir mão desse tesouro por coisa alguma, muito menos por um simples capricho. Caminhando em direção ao Mustang, estacionado em frente à oficina, Janus colocou o pacote enviado por Rocco no banco do passageiro. Em seguida sentou-se ao volante. Teria tempo de estudar o material gravado, antes de se encontrar com Maria. A noite estava clara, com a lua crescente iluminando o céu de verão. A leve brisa que soprava do mar tocava a pele como uma cadeia. Para surpresa de Janus, Maria o aguardava sentada nos degraus do chalé, e levantou-se para recebê-lo. Estava linda, num vestido branco, solto, que contrastava com sua pele morena. A claridade lunar refletia-se na alvura de seus dentes e no verde

dos olhos brilhantes. A luz que vinha de dentro do chalé iluminava seus cabelos, que se moviam ao sabor da brisa. — Você parece mais jovem, à luz da lua — ela comentou, antes de beijá-lo nos lábios. —

Sinto-me bem, esta noite.

— Deve ser a lua crescente... — Ela acariciou-lhe o rosto com a ponta dos dedos. — O que você tem aí, nessa cesta? — Vinho e chocolate. — Ele mostrou. — Perfeito. Também tenho uma surpresa para você. Preparei um jantar para nós dois. — Não sabia que você cozinhava. — Raramente. Mas, às vezes, gosto de me arriscar na arte culinária. — E o que foi que você fez?


– — Iscas de pescada ao molho de ervas finas. E, como acompanhamento, batatas sauté. O que acha? — Excelente. — Então, vamos entrar. Estou com fome. Abraçados, subiram a escada, conversando. A mesa estava posta com simplicidade e bom gosto. Apenas o castiçal, com duas velas amarelas e um vaso de pequenas flores nativas, dava um toque especial ao arranjo. — Você poderia abrir o vinho e colocá-lo no gelo, enquanto as iscas aquecem no forno — ela sugeriu. — Claro. Maria colocou um CD no aparelho de som, e uma música agradável invadiu o ambiente. Ambos moviam-se no pequeno espaço conjugado, sem atrapalhar um ao outro, numa harmonia natural de gestos, pontuada de sorrisos e olhares significativos.

Estavam unidos naquela espécie de coreografia não ensaiada, onde cada um parecia adivinhar a intenção que precedia a ação do outro. Por fim, observando a mesa já posta, Janus perguntou: — Acendo as velas? — Por favor. Maria aproximou-se do interruptor. Quando as duas pequeninas chamas se ergueram, timidamente, ela apagou as luzes. Serviu os pratos enquanto Janus servia o vinho branco. Ambos brindaram, antes de se sentarem à mesa, um em frente ao outro. Começaram conversando sobre música, e depois o assunto derivou para a literatura. Janus confessou sua admiração por Ernest Hemingway e sua obra mais conhecida, O Velho e o Mar. — Também li esse livro — disse Maria. — Mas confesso que nada entendo dessa imensidão de água salgada, a não ser o que estudei no colégio, ou vi no canal National Geographic.


– Ele riu, tornando a encher os copos de vinho. — Penso que, para entender o mar, é preciso mofar perto dele — disse, num tom reflexivo. — Mas tudo começa com a compreensão das marés e dos ventos. A voz de Janus tinha uma cadência peculiar, agradável e elucidativa. Era impressionante seu conhecimento sobre o assunto. Fascinada, Maria absorvia com facilidade os conceitos básicos de navegação e pesca que todo homem do mar conhecia, pela observação e prática. Num dado momento, ela não pôde deixar de dizer: — Você faz tudo parecer tão simples... — Na verdade, é simples. Mas vale lembrar que nem sempre o que é "simples" é "fácil". — Compreendo o conceito. Na música ocorre o mesmo. O tempo avançava, sem que ambos percebessem. As velas amarelas, que lançavam uma luz agradável em torno, estavam quase se apagando. O vinho branco havia se esgotado na garrafa.

— O jantar estava delicioso, Maria. Você cozinha muito bem. — Vindo do filho de mamma Lúcia, esse é um elogio e tanto! — Minha mãe é um fenômeno da arte culinária. Eu não estava falando em termos comparativos. — Mesmo assim, sua opinião tem peso. Você tem obrigação de saber o que é uma boa comida. — Tem razão. — Janus sorriu, e foi como se todo o ambiente ao redor se iluminasse. — E agora... o que vai ser? Um cálice de vinho do Porto ou chocolate? Erguendo-se, com os olhos verdes brilhando intensamente, Maria o fitou por um longo momento, antes de dizer: — Quero outra coisa, agora... Algo que venho esperando há muito tempo. Tentando controlar a emoção que o dominava, Janus se pôs em pé e disse, com um toque de humor:


– —

Será que eu tenho algo a ver com isso que você deseja?

— Ah, sim... Sem a menor sombra de dúvida! Só você, em todo o planeta, pode me dar o que desejo neste momento. Contornando a mesa, trocaram um beijo longo e profundo. Depois, de mãos dadas, foram para o quarto de Maria. Depois do terceiro clímax, Janus teve a nítida impressão de que não poderia mais continuar com aquilo. Com o rosto apoiado entre os seios de Maria, experimentava a estranha impressão de ter voltado à mais tenra infância. Sentia-se flutuar, numa região qualquer do cérebro, onde as primeiras sensações haviam sido gravadas. Era extraordinário e um pouco assustador. Os comandos do corpo haviam se desligado, e ele nem sequer ousava tentar falar. Aquilo que sentia... era paz? Plenitude? Janus não saberia responder. Não naquele momento. Um som, que parecia vir de muito longe, penetrou aos poucos em seus sentidos entorpecidos. Alguém chorava baixinho, e esse alguém era Maria.

Um fluxo de vontade própria sacudiu o mundo sensorial onde ele havia penetrado. Como se falasse pela primeira vez, esboçou a pergunta: — O que houve, Maria? Sua voz soou, a seus próprios ouvidos, como um trovão num vale profundo. Ele correu os dedos pelos cabelos dela, enquanto, com a outra mão, erguia-lhe o rosto. Maria o fitou, por entre as lágrimas. — Eu não sei — disse, baixinho. — Nunca me senti assim. Janus rolou para o lado, a cabeça apoiada no braço de Maria. — Posso fazer algo por você? Deslizando o corpo para a frente, por sobre o lençol, ela encostou o rosto úmido em seu peito, beijando a penugem fina e negra que circundava seus mamilos.


– Depois, retirando o braço sobre o qual ele descansava a cabeça, deixou que sua língua rósea acompanhasse a trilha negra de pelos, que descia até o ventre liso e musculoso. O que parecera impossível, apenas alguns segundos atrás, aconteceu com rapidez espantosa. A virilidade de Janus manifestou-se poderosamente, reacendendo todos os seus sentidos vitais. O corpo agia por vontade própria, independentemente do que seu dono pudesse pensar a respeito.

Quando Maria acolheu, entre os lábios, o membro pulsante, macio e rijo como seda sobre aço, ele gemeu baixinho e fechou os olhos, tentando voltar para aquele espaço que, pouco antes, descobrira dentro de si... Em vão. Labaredas de fogo líquido e átomos dourados, chocando-se por trás de suas pálpebras fechadas, o incitavam à ação. E Janus começou a mover os quadris. Ruídos líquidos, excitantes, arrepios incontroláveis... O deslizar dos lábios de Maria por toda a extensão de seu poderoso instrumento de prazer, arrancavam de Janus sons guturais e palavras desconexas de carinho e desejo. Na insanidade maravilhosa daquele momento, ele sentou-se na cama e, tomando o rosto de Maria entre as mãos, beijou-a com toda a força da paixão, antes de ajoelhar-se e dirigir-lhe os lábios túrgidos de volta ao centro de se prazer.

Com as mãos em torno dos finos quadris de Janus, ele agora comandava o ritmo de seus movimentos, enquanto continuava a acariciá-lo. O prazer era quase insuportável, mas ele não queria terminar assim. Livrando-se das mãos macias presas às suas nádegas, Janus, ainda de joelhos, fez com que Maria se virasse, ficando de costas para ele... Depois, forçou-lhe o corpo levemente para a frente. Diante de seus olhos ávidos, descortinou-se a flor molhada do sexo intumescido, abaixado arredondado dos glúteos firmes. Então, ele a penetrou milimetricamente, como se quisesse reconhecer o interior daquela mulher em seus detalhes mais sutis. Num impulso, Maria forçou os quadris para trás, até sentir a mata densa dos pelos de Janus em contato com sua pele arrepiada.


– O ritmo se acelerava, e palavras impensáveis eram murmuradas, no código permitido do sexo sem barreiras. N balanço natural de quadris, o sexo fremente de Janus toco o botão de uma outra flor, ainda não visitada. Se ele percebeu de imediato, ou não, pouco importava. O fato era que Maria aceitava aquela intromissão vibrante, movendo os quadris lentamente, enquanto a penetração se fazia inevitável. — Você quer? — ele perguntou, baixinho. A resposta de Maria foi um abrir-se, sem limites, e Janus mergulhou no túnel escuro, apertado e quente, sentindo as próprias vibrações reverberarem no corpo subjugado pelo seu. Dobrando-se sobre Maria, ele deslizou a mão direita pelo ventre liso até encontrar a umidade quente do sexo túrgido. Seus dedos iniciaram, então, um movimento leve e rápido, que arrancava suspiros profundos da mulher em êxtase. As contrações do corpo de Maria, a cada fluxo de prazer, paralisaram os movimentos de Janus que, assim, estático, ultrapassou todos os limites, explodindo sua lava farta e incandescente no interior daquele corpo que se contorcia em torno do eixo fálico, no auge do êxtase. Num súbito falhar de forças, ambos se deixaram cair, unidos, sobre os lençóis amarrotados. E assim, abraçados um ao outro, adormeceram. O tempo permanecia firme, com o sol brilhando, soberano, sobre uma Heavenside repleta de turistas. Era o auge da temporada, e a economia local ia de

vento em popa, com o dinheiro fluindo, lubrificando as engrenagens da indústria do lazer. Janus e Maria viviam, enfim, a grande história de amor de suas vidas, naquele cenário paradisíaco que parecia conspirar para a felicidade dos dois. O nascer do sol os encontrava na praia, nadando ou caminhando pela areia, sorridentes, leves, cúmplices dos segredos partilhados nas noites de intenso prazer e renovadas descobertas. Quando Janus ia trabalhar, na oficina de barcos do pai, Maria se dedicava à leitura, ao estudo do violão, ou a escrever intermináveis cartas para os pais e amigos.


– Muitas vezes, jantavam com mamma Lúcia, com quem Maria estreitava a amizade. Com Pablo, saíam para pescar oú simplesmente para passear de barco, em locais onde a natureza ainda imperava, intocada pelas mãos do homem. A vida mostrava sua face mais bela, a qual Maria e Janus desfrutavam, sem questionamentos. Por três vezes, Lanna ligara para a oficina e deixara recado, mas Janus não retornara. Para ele, o caso entre ambos estava definitivamente encerrado. A excitação que a lembrança daquela noite estranha lhe trouxera, por algum tempo, ia empalidecendo e se esvaindo diante do amor compartilhado com Maria. Para Janus, Lanna era como um espetáculo de fogos de artifício, num céu noturno e gelado. Mas Maria era o sol, a fonte da vida, que tudo iluminava e bendizia. Às vezes, Janus se ausentava durante a noite, para encontrar-se com Rocco, no Marlin. O material sobre as atividades dos Sheridan e seus aliados formava agora um impressionante dossiê de corrupção e falcatruas, que Janus catalogava e gravava em CDs. Faltava apenas uma prova definitiva, incontestável, para que ele lançasse toda aquela sujeira nas mãos da Lei, esperando que a justiça enfim fosse feita. Maria observava os movimentos inexplicáveis de Janus, sem nada dizer. Em seus olhos verdes pairava, às vezes, uma interrogação muda, que turvava a beleza daqueles dias perfeitos. Janus notava, quando isso ocorria, mas preferia resistir. Afinal, decidira não envolver a mulher a quem tanto amava, naquele assunto sórdido. Numa tarde em que trabalhava na oficina, Janus recebeu um telefonema de Rocco, que parecia extremamente agitado:

— Fomos descobertos, primo! Alguém mexeu nos microfones que coloquei no escritório de John. — Tem certeza? — Absoluta. — Onde você está? — Na garagem da mansão dos Sheridan. —

Saia daí, imediatamente. Você está correndo perigo.


– — É o que pretendo fazer. Mas, ouça, primo... — Rocco baixou a voz a um tom quase inaudível: — Há alguma coisa estranha acontecendo... Algo que não faz o menor sentido. — Do que você está falando? — O equipamento de escuta foi encontrado ontem à noite. Os ruídos gravados mostram isso claramente. — Rocco fez uma pausa. — E aí é que está o mistério. — Como assim? — Bem, se fossem os homens de John que o tivessem encontrado, a esta altura já teriam vindo para cima de mim... Você não acha? — Certamente. Mas, de qualquer modo, este não é o momento para conjecturas. Caia fora, o mais rápido possível. Vá para o Marlin e me ligue assim que chegar. — Certo. Esperarei por você lá. — E Rocco desligou. Tentando aparentar uma calma que estava longe de sentir, Janus foi até o escritório e retirou do cofre algumas cópias do material sobre os Sheridan, que ali vinha guardando. Se Rocco não ligasse em meia hora, teria de acionar a polícia. Nos CDs, a Lei encontraria os motivos pelos quais deveria protegê-lo, e também a Rocco e Charlie. O jogo se antecipara aos próprios jogadores. Dirigindo seu Mustang, Janus rodou lentamente pela cidade, a mente funcionando em alta freqüência. Nenhum vestígio de medo atrapalhava seu raciocínio lógico. Somente Charlie, Rocco e ele próprio estavam diretamente envolvidos naquela trama perigosa. Mas haviam assumido, plenamente, os riscos de tal

empreitada. Agora, tudo seria uma questão de saber usar as oportunidades e contar com a boa sorte. Estacionando o carro em frente ao correio, Janus postou as cópias dos CDs para si mesmo, enviando-as para vários endereços da família. Assim, garantia que o material estaria a salvo, caso algo de mal lhe sucedesse. O celular vibrou, no bolso de sua camisa. Era Rocco. — Já cheguei ao Marlin. E não fui seguido.


– — Ótimo. Estou a caminho daí. Sentando-se ao volante, Janus partiu. Ao deixar a linha costeira, tomando a estrada vicinal que seguia pelas montanhas, Janus percebeu, pelo retrovisor, um carro preto que acabava de fazer uma manobra perigosa mesma pista.

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Diminuindo a velocidade, constatou que o carro que o seguia era um Toyota. Retesando o corpo contra o banco, pisou fundo no acelerador, no longo trecho reto que levava à primeira colina. Usando toda a habilidade de que era capaz, acionou o freio no último instante, antes de entrar na curva. O carro protestou, erguendo-se levemente sobre duas rodas. Quando os pneus voltaram a tocar o asfalto, Janus acelerou novamente, saindo da curva. Agora, já não podia avistar o Toyota. Diminuindo a marcha, esperou o momento exato para cruzar a pista e enveredar por uma trilha que cortava a mata. Avançou alguns metros mata adentro, o suficiente para ocultar o carro. Depois desligou o motor, saltou do veículo e voltou correndo pela trilha, até a beira da pista. Abaixado entre os arbustos, aguardou. Não tardou a avistar o Toyota preto, com quatro homens em seu interior. Os dois da frente, de terno e gravata, tinham uma aparência severa, algo entre distinta e ameaçadora. Quanto aos de trás, Janus não conseguiu ver muito bem. Naquele momento, duas coisas ficaram bem claras para ele: os quatro homens não eram turistas, mas também não se pareciam com os homens dos Sheridan. Afinal, os encarregados da segurança daquela família usavam roupas esportivas e, invariavelmente, potentes caminhonetes. Deviam ser pessoas vindas de outra parte, mais refinadas e, talvez, mais perigosas, Janus concluiu, voltando para o carro. Havia despistado seus seguidores, e agora teria de prosseguir pela trilha. Voltar à pista seria arriscado demais.

Conhecendo aquela região desde a infância, Janus não teve dificuldade para dirigir pelos caminhos de terra que cortavam a mata, até o Marlin. Cuidadoso, deixou o carro entre as árvores e se aproximou a pé. Não havia sinal do Toyota preto entre os veículos ali estacionados. Com um suspiro de alívio, Janus entrou na ampla varanda do bar. E então, uma voz desconhecida soou a sua direita:


– — Você demorou um bocado, rapaz. A estrada da mata estava muito ruim? Voltando-se com rapidez, Janus reconheceu o homem de terno, parado junto a um dos esteios da varanda. Era o motorista do Toyota, que o encarava com a tranqüilidade de quem sabia estar numa posição de total vantagem. Trazia o paletó aberto e, na cintura, um revólver de grosso calibre. — Quem é o senhor? — Janus indagou. — O que quer de mim? Antes que o estranho respondesse, dois outros homens se aproximaram e imobilizaram Janus. — Está limpo — disse um deles, depois de revistá-lo. — Vou vistoriar o carro — avisou o outro, se afastando. — Meu nome é Wilson — informou o primeiro, dando um passo na direção de Janus. — Somos agentes do Tesouro dos Estados Unidos... E você, meu rapaz, está bem encrencado. — O que houve com Rocco e Charlie? — ele perguntou, após alguns instantes. — Seus cúmplices vão bem — Wilson informou. — O agente Stanley está conversando com eles, ali dentro. — E apontou, com um gesto de cabeça, o interior do bar. — Por que estão nos prendendo? Wilson deu um sorriso torto, antes de responder: — Conspiração, espionagem, invasão de domicílio... Por onde quer começar? Vocês violaram um punhado de leis e, o que é ainda pior: interferiram numa ação conjunta do Tesouro com o FBI.

Não vão sair dessa sem uns bons anos de cadeia. Uma luz acendeu-se nos olhos de Janus que, enfim, começava a entender o que se passava: — Quer dizer que vocês estão investigando o clã dos Sheridan... — O esquema comandado pelos Sheridan — o agente o corrigiu.


– — E por pouco vocês não destroem o nosso trabalho. — Como nos acharam? — Vocês, amadores, se acham muito espertos. Era uma questão de dias para que os seguranças da mansão descobrissem a escuta implantada no escritório de John Sheridan. Tivemos sorte de chegar primeiro. Janus respirou fundo e riu, baixinho, meneando a cabeça. — Você está achando graça? — perguntou Wilson, mudando de expressão. — Sim... — E Janus explicou: — É irônico pensar que se não tivéssemos feito nada, o resultado seria o mesmo para os Sheridan. — Como assim?— o agente o olhou, intrigado. Antes que Janus respondesse, acrescentou: — O que temos de efetivo, contra o esquema dos Sheridan, é a sonegação de impostos. Mas ainda nos falta algum material... — Pois o que venho coletando sobre esse esquema poderia ser de grande utilidade para vocês — Janus afirmou. — Escuta clandestina, sem autorização de um juiz, não vale grande coisa. — Mas John Sheridan desconhece a origem da gravação. Não sabe se ela foi autorizada, nem quem estava por trás. Wilson sorriu, significativamente, antes de dizer: —

Continue com seu raciocínio, rapaz.

— Bem, vamos supor que os Sheridan recebessem, num momento oportuno, uma cópia das gravações que possuo O senhor não acha que tentariam se apossar do material original?


– — É possível. Mas esse assunto terá de ser tratado com o pessoal do FBI. Estaria disposto a colaborar? — Sem dúvida... Com a condição de que o trabalho de minha equipe fosse legalmente reconhecido, desde o início. O agente Wilson fitou Janus nos olhos e novamente sorriu, ao indagar: — Você está propondo um acordo? — Sim. Mas quero garantias de que não sofreremos nenhuma penalidade pelo que tentamos fazer. Se vocês concordarem, terão nossa inteira colaboração. — Não sei se posso prometer isso. Preciso consultar meus colegas. — Tenho certeza de que eles aceitarão. — Você parece muito confiante. — De fato, estou, pois sei o quanto poderemos ser úteis — respondeu Janus, num tom sereno. — Ao contrário de vocês, somos de Heavenside e conhecemos muito bem as pessoas investigadas. O agente Wilson ergueu as sobrancelhas, com ar de dúvida. Em seguida retirou o celular do bolso e começou a digitar um número. — Enquanto o senhor telefona, posso falar com meus amigos, lá dentro? — Janus perguntou. Com um gesto de cabeça, o agente Wilson ordenou a um subordinado que acompanhasse Janus ao interior do bar. Cerca de duas horas depois, um acordo foi estabelecido: Charlie não seria incomodado pela lei. Sua participação no caso fora mínima e não o comprometera, de fato. Quanto a Janus e Rocco, permaneceriam livres, desde que colaborassem nas investigações e, no momento propício, testemunhassem contra o esquema Sheridan. Assim, depois de se despedirem de Charlie e dos policiais, ambos partiram, em seus respectivos carros: Rocco, de volta à mansão dos Sheridan; e Janus, diretamente para os braços de Maria.


– Os dias que se seguiram ao encontro de Janus com os agentes do Tesouro foram bastante tensos e atribulados. Telefonemas em horários imprevistos o interrompiam em pleno trabalho, ou em momentos de intimidade com Maria. O tom autoritário usado pelos homens do governo o irritava profundamente. Encontros eram marcados no meio da noite, sem aviso prévio, e por várias vezes ele tivera de sair da cama para atendê-los. Maria era naturalmente discreta e de boa índole, mas começava a demonstrar seu aborrecimento com aquela situação inconveniente. Janus decidira continuar mantendo segredo sobre o caso. Não queria envolvê-la numa aventura que poderia prejudicá-la seriamente. Essa decisão, unilateral, trouxe ao relacionamento de ambos uma incerteza que minava aos poucos a doce harmonia que haviam desfrutado até então. Numa gloriosa manhã ensolarada, ambos estavam na praia, jogando frescobol, quando um dos agentes do governo se aproximou. Ignorando a presença de Maria, abordou Janus diretamente: — Wilson quer falar com você. O tom empregado era o de sempre: curto e grosso. A atitude do agente era rude, quase ofensiva. Janus sentiu-se empalidecer. Teve de se controlar para não responder com um palavrão. Medindo as palavras, respondeu: — Diga a Wilson que ligarei em meia hora. — Ele disse agora. De onde se encontrava, Maria teve a nítida impressão de que Janus ia agredir o homem. Mas, para seu espanto, ele atirou a raquete na areia, com raiva, e voltou-se para ela. — Desculpe, querida, mas preciso ir. Voltarei em poucos minutos. Perplexa, Maria o observou enquanto se afastava. Maus pressentimentos, e uma sensação de perigo iminente, toldaram seu belo rosto, como um véu sombrio. Juntando as raquetes, ela caminhou de volta ao chalé. Enquanto isso, Janus encarava Wilson, fazendo questão de demonstrar o quanto estava aborrecido:


– — O que você quer de mim? — Ei, calma, rapaz. Que nervosismo é esse? — o agente do Tesouro era todo sorrisos e bom humor. — Não havíamos combinado um encontro para as duas da tarde? — As coisas mudaram, e eu precisava vê-lo — Wilson explicou, sem se alterar. Depois, num tom quase paternal, acrescentou: — Essas mudanças fazem parte do jogo, garoto. Vamos, trate de se acalmar. Janus encostou-se no Toyota preto, cruzando os braços. Seus olhos faiscavam por entre as pálpebras semicerradas. — Estou avisando, Wilson... — falou, por entre os dentes. — Não pressione demais. Vocês estão passando dos limites. A mudança na fisionomia do agente foi quase imperceptível. Mas, quando ele voltou a falar, sua voz soou como uma lâmina penetrando na carne: — Quem determina os limites somos nós, e não você. Quer pensar sobre isso numa cela de cadeia? — Antes que Janus respondesse, acrescentou: — Ouça, rapaz, estamos perto de alcançar o nosso objetivo, e não vamos perder tempo com discussões. Onde está seu celular? — No meu chalé — ele respondeu, a contragosto. — E como poderíamos estar falando, agora, se o agente Stanley não tivesse ido procurá-lo por toda parte, até encontrá-lo, na praia? Janus não tinha como se defender daquele argumento. — Vamos, entre no carro — Wilson ordenou. — Estamos perdendo tempo. Sem outra alternativa, Janus obedeceu, sentando-se no banco traseiro. O agente Wilson acomodou-se a seu lado, e o Toyota arrancou da faixa de areia em direção à estrada. — Chegou seu momento de entrar em ação — disse Wilson, após alguns instantes. — Conseguimos provocar uma fissura na estrutura dos Sheridan. Agora, temos gente da família do nosso lado.


– — Quem? — quis saber Janus. — Isso você não precisa saber agora. O fato é que hoje haverá uma festa no reduto dos Sheridan, e você será convidado. John estará presente. Um frio intenso, que não vinha do ar-condicionado do carro em movimento, tomou conta do corpo de Janus. Quantas vezes imaginara uma cena de confronto com o patriarca daquele clã! E, agora, isso se tornava realidade. Wilson prosseguiu: — Vamos planejar, detalhadamente, o que você deverá fazer hoje à noite. Nossas chances são as melhores, mas um simples deslize poderá comprometer todo o plano. — E que plano é esse? — Bem, para começar, você usará um aparelho de escuta. Só que, agora, terá a autorização da Lei para fazê-lo. — Wilson riu da própria piada e continuou a explicar: — Três agentes estarão entre os garçons... — Você quer me falar sobre o que está acontecendo? — Maria perguntou. Estava ajoelhada no sofá, acariciando os cabelos de Janus, sentado a seu lado. — Trata-se de um assunto complicado, no qual não quero envolvê-la — ele respondeu, vago. — Acontece que já estou envolvida, desde o momento em que me apaixonei. Tudo o que diz respeito a você me interessa. — Eu sei. Mas, mesmo assim, prefiro deixar as coisas como estão. — E o que isso significa? — Que não quero não falar do assunto. Maria levantou-se e caminhou pela sala, com uma expressão séria no rosto. — Pensei que estivéssemos construindo um mundo novo, juntos. Mas, pelo que vejo, você continua sendo o mesmo Janus da Universidade de Clespreen, solitário e inacessível em seus mistérios. — Você está enganada.


– — Estou? Então, por que você não se abre? Não confia em mim? — Não se trata disso, Maria. Olhe, prometo que nos próximos dias contarei tudo o que você quer saber. Mas agora, preciso de calma e concentração. — Você está vestido para uma festa. Diga-me que não vai se encontrar com Lanna Sheridan — ela o desafiou. — Não é esse o meu objetivo. — E o que isso quer dizer? — A voz de Maria se elevava a um tom perigoso. — Não posso explicar. Apenas lhe peço um voto de confiança. — Então devo confiar em você... Cegamente? Não acredito no que estou ouvindo! Janus pôs-se em pé, o rosto muito pálido, os olhos azuis marcados por uma expressão obstinada: — Agora, tenho que ir. — Está bem. Vá, então — ela murmurou, contendo as lágrimas. — Mas quero avisá-lo de que algo está se quebrando entre nós, neste exato momento. — Haja o que houver, não se esqueça de que amo você. Janus saiu do chalé de Maria, sem um beijo de despedida. Temia fraquejar, se ela o abraçasse. Emocionalmente abalado, só conseguia encontrar forças na determinação que o sustentara ao longo dos anos. A conclusão do plano, tão longamente acalentado, estava próxima. John Sheridan e seu império de mentiras rui-riam naquela noite, Janus pensou. Depois disso, ele poderia, enfim, descansar. Teria o resto da vida para compensar Maria por aquele sofrimento inevitável. Quando Janus estacionou seu Mustang em Golden Oak, Lanna já o aguardava. Dando-lhe o braço, ela o conduziu diretamente para a casa de sua mãe, evitando a multidão de convidados que se aglomerava na entrada da mansão de John Sheridan. — Você está muito bonito — ela comentou, num tom amável, mas distante. — O smoking lhe cai bem.


– — Obrigado — ele agradeceu, polidamente. — Você também está muito elegante. Agora, se puder, satisfaça uma curiosidade minha... —

Sim?

— O que a levou a trair seu próprio tio? Os olhos negros de Latina se estreitaram, enquanto seu corpo se retesava. Soltando o braço de Janus, ela suspirou, enquanto respondia numa voz afetada: — Tio John sempre nos ensinou que a sobrevivência econômica e social de uma família depende, muitas vezes, da coragem de julgar claramente e de tomar duras decisões. Creio estar seguindo esse preceito... Você não acha? — Em outras palavras, você quer dizer: na hora do aperto, salve-se quem puder — Janus concluiu, com uma ponta de sarcasmo. — É isso? Lanna não respondeu, e ele prosseguiu: — Há também um outro provérbio, muito popular entre as pessoas simples de Heavenside: "Quem planta, colhe". — Após alguns instantes, acrescentou: — Sem dúvida, seu tio merece tudo o que irá lhe acontecer. Lanna concordou com um gesto de cabeça. Em seguida, disse: — Além do mais, mamãe nunca perdoou tio John por ter se apossado da herança de vovó, e arruinado seu casamento com papai. Como você vê, ela e eu temos motivos de sobra para agir assim. — Some-se a isso o fato de que é melhor pôr-se a salvo, quando a embarcação começa a se encher de água — Janus completou, num tom ferino. — Nisso você tem razão — ela aquiesceu, sem se abalar. — Tio John nunca nos perguntou o que pensávamos ou queríamos, quando empregava o dinheiro da família. Seria injusto que pagássemos, agora, pelos erros que ele cometeu. — Sem dúvida — Janus concordou, com um sorriso irônico.


– — Agora, por favor, Janus, comporte-se como um cavalheiro. E pare de agir como se tivesse o direito de nos julgar. Minha mãe nos aguarda, e ela não está acostumada, como eu, a sua deliberada falta de classe. — Touche! — ele exclamou. — Mil perdões. Creio que estou exaltado com a perspectiva de ver, pela primeira vez, a justiça sendo aplicada a escroques da alta sociedade. — Não sou sua inimiga, Janus, lembre-se disso. Nunca fui — ela afirmou, num tom severo, quase solene. Ele não respondeu. Acabavam de chegar à mansão de Linda Sheridan, ex-atriz de cinema e mãe de Lanna, que os aguardava na varanda. Intensamente emocionado, Janus reconheceu cada palmo daquele local, onde sofrerá a mais grave ofensa de sua vida. E foi ali que ele esperou a chegada de John Sheridan, depois de aceitar um drinque e trocar algumas palavras amáveis com Linda. John chegou cerca de meia hora depois, conduzido por Lanna. — Este é Janus, tio John... Um amigo de infância — ela apresentou. — Ele tem um assunto importante a tratar com você. John fitou Janus com uma expressão cordial, embora ostentasse um olhar de superioridade. Era óbvio que não o havia reconhecido, Janus concluiu. Aliás, era óbvio que já tinha se esquecido de que o enxotara daquela mesma varanda, de forma cruel, muitos anos atrás. — Vamos lá, meu jovem — disse John. — Seja breve, sim? Tenho muitos convidados a receber e não posso perder tempo. Lanna se retirou discretamente, deixando-os a sós. Era impressionante o carisma pessoal que o chefe do clã dos Sheridan ainda irradiava. Janus não pôde deixar de admirar a vontade férrea que governava aquele corpo esguio, já quase vencido pelo tempo. — Gostaria que o senhor ouvisse esta gravação — disse ele, entregando a John um cd player portátil, que havia trazido no bolso. — Não levará mais do que alguns minutos, eu prometo. — Você deve estar me confundindo com algum crítico de música — John comentou, de bom humor, apertando a tecla play do aparelho.


– No instante seguinte, a própria voz de John Sheridan soou, na varanda, em frases arrasadoras dirigidas ao prefeito da cidade: — Assim não é possível, Bill. O que você está pedindo já não é mais suborno, e sim patrocínio. Vinte por cento do valor da obra dá para você calar a boca dessa camarilha de sanguessugas, e ainda sobra o suficiente para comprar outros políticos que queiram se interpor em nosso caminho... A expressão do patriarca dos Sheridan tornou-se rígida e fria. Desligando o aparelho, ele perguntou: — Onde você conseguiu isso? Quem é você... O que quer? — Esta é uma simples amostra das gravações que eu e minha equipe fizemos, nas últimas semanas, em seu escritório. Eu sou Janus, filho de Pablo Gassete e Lúcia Danunzzio, a mamma Lúcia, de cujos pais o senhor roubou estas terras. — O que você quer? — ele repetiu, num tom gélido. — Quinhentos mil dólares pelos originais e cópias... Todas as cópias, exceto uma, que será apresentada à Lei se eu vier a falecer de morte súbita ou de acidente, como é de praxe, nesses casos. — Quinhentos mil dólares? — John repetiu, sarcástico. — Por que não um milhão, ou dois? — É um raciocínio simples, na verdade — respondeu Janus, muito calmo. — "Sumir" com uma pessoa, por quinhentos mil dólares, arriscando-se a ver todo esse material chegar às mãos da Lei, seria uma grande besteira da parte de vocês. Nós dois sabemos que a propina paga ao prefeito, na semana passada, somava bem mais que isso. — Supondo-se que eu acreditasse nessa sua conversa... Quais as garantias que você me daria? Quem o obrigaria a cumprir o trato? — Eu mesmo. Para entregar o esquema comandado por você, eu teria de estar disposto a ir para a prisão, por invasão de domicílio, chantagem e extorsão. —Após uma pausa de efeito, Janus continuou: — Farei isso, se for necessário. Mas prefiro a liberdade e o dinheiro. — Preciso pensar sobre o assunto.


– — Você tem pouco tempo para providenciar essa quantia, John Sheridan. — A voz de Janus havia endurecido, assim como suas feições. — Dentro de exatamente uma hora, estarei no meu carro, um Mustang vermelho, estacionado em frente ao portão de sua mansão. Venha pessoalmente, com o dinheiro, ou arque com as conseqüências. A festa na mansão de John Sheridan atingia seu auge. O som da orquestra chegava até a rua, mesclado ao som de risos e ao burburinho geral. Sentado ao volante do Mustang, Janus percebeu, pelo retrovisor, quando John chegou à calçada. Trazia uma bolsa esportiva de marca famosa e estava acompanhado por dois seguranças. Janus deu partida no motor e preparou-se para arrancar, acelerando fundo em ponto morto. Imediatamente, John fez sinal para que os seguranças se afastassem e veio caminhando, rápido, em direção a ele. — O que pensa que está fazendo? — perguntou, num tom brusco. — Desligue essa porcaria. — Eu lhe disse para vir sozinho. Será que não fui claro? — Janus respondeu, no mesmo tom. — Desligue, vamos! Ele obedeceu. — Onde está o material? — Primeiro, deixe-me ver o que você tem aí na bolsa — exigiu Janus. John abriu o zíper. A bolsa estava repleta de pacotes de dinheiro. —

Quero o material — ele ordenou. — Agora!

Janus pegou o grosso envelope que estava sobre o banco do passageiro e entregou-o a John. O momento era de extrema tensão. A mão livre de Janus alcançou a alça da bolsa, enquanto John recolhia o envelope. No mesmo instante, flashes espocaram na semi-obscuridade da rua. Três agentes vestidos de garçons dobraram a esquina, correndo em direção ao carro.


– Com uma força descomunal para a sua idade, John arrancou o envelope da mão de Janus e, sem soltar a bolsa, correu em direção à entrada da mansão. Pacotes de dinheiro voaram pela calçada, e a confusão se generalizou. Os dois seguranças chegaram antes dos agentes e tentaram escoltar John para dentro, numa velocidade espantosa. A essa altura, Janus havia saltado do carro e perseguia os fugitivos. Quando estava para alcançá-los foi atingido no peito por um golpe desferido com uma barra de ferro, que um. dos seguranças trazia nas mãos.Janus rodopiou sobre si mesmo e caiu de bruços na calçada. Tentava respirar, mas a dor era insuportável, e ele acabou por perder os sentidos. Quando abriu os olhos, Janus estava deitado num leito de hospital, enfaixado e um tanto confuso. Lanna estava a seu lado. —

O que você está fazendo aqui? — ele perguntou, com dificuldade.

— Nada de mais. A festa ficou chata, depois que tio John foi preso. Como a ambulância estava demorando, o tal Wilson me ajudou a colocar você no Mustang, e eu o trouxe para cá — ela respondeu, como se nada do que havia acontecido, naquela noite, tivesse grande importância. — Quero ir para casa — disse Janus, com voz fraca. — Onde está o médico que me atendeu? — Cuidando de outros pacientes, suponho. Fizeram radiografias do seu tórax. Felizmente, você não sofreu nenhuma fratura. Está apenas com duas costelas trincadas, mas não é grave. — Tire-me daqui, Lanna... Por favor. — Vou ver o que posso fazer. Pouco depois, ela voltava com um uniforme de enfermeiro, que Janus vestiu sobre a roupa hospitalar, com grande dificuldade. Apoiado em Lanna, conseguiu se esgueirar pelos corredores até chegar ao estacionamento, onde ela havia deixado o Mustang. — Você dirige? — ele pediu, com um gemido de dor, acomodando-se no banco do passageiro. — Não precisa insistir. Seu carro é o máximo! O Mustang cortou a noite de Heavenside em velocidade moderada. Pouco depois, Lana estacionava atrás do chalé de Janus.


– Estreitamente enlaçados, ambos entraram pelos fundos. Com grande dificuldade, transpuseram os espaços intermediários até chegar ao quarto, onde, enfim, Janus pôde se deitar na própria cama. — Agora estou bem — murmurou, baixinho. — Quer que eu fique aqui? — Não, obrigado. Pode ir. — Com o seu carro? — Claro. — Então, mandarei alguém trazê-lo de volta, amanhã. — Está bem, Lanna. — Agora, procure dormir. — Certo... Obrigado, Lanna. — Ora, não há o que agradecer. Apesar de tudo, acho que você faria o mesmo por mim. Foi a última coisa que Janus ouviu, antes de adormecer. Maria estava na varanda dos fundos, pois um vento forte soprava do mar. Havia jantado sopa de lentilha com pedaços de queijo fresco, e agora tomava um cálice de vinho do Porto, enquanto estudava uma partitura. Havia passado por momentos difíceis, no início da noite, mas aos poucos conseguira readquirir o equilíbrio emocional. Sabia que seu relacionamento com Janus atravessava uma fase difícil, mas confiava no amor que os unia. Ele havia lhe pedido um prazo, apenas alguns dias, para explicar o que estava acontecendo, e ela estava disposta a conceder. Por que não, se o amava perdidamente? Já era bem tarde, quando Maria resolveu se recolher. A temperatura caíra um pouco. O ruído de um carro se aproximando chamou-lhe a atenção, justamente no momento em que ela apagava a luz da varanda dos fundos. Havia uma grande possibilidade de ser Janus quem chegava, assim tão tarde. Mantendo a porta aberta, Maria esperou para confirmar essa intuição.


– De fato, era o Mustang de Janus que acabava de estacionar atrás do chalé número 3. A fraca luminosidade do local não impediu Maria de distinguir uma mulher saindo do veículo, pelo lado do motorista. Estática, observou a ajuda que a mulher prestava ao passageiro que, cambaleando, apoiava-se totalmente nela. Sem pensar duas vezes, Maria caminhou naquela direção, para ver de perto aquilo que, agora, lhe parecia óbvio. As luzes se acenderam no interior do chalé, e foi fácil, para Maria, constatar, através da tela da janela, que realmente se tratava de Janus... e que ele estava acompanhado de uma mulher. — Lanna Sheridan — ela pronunciou, num fio de voz, sem nenhuma sombra de dúvida. Aquela beleza clássica, de mulher sofisticada e rica, os longos cabelos loiros que agora se misturavam aos de Janus, enquanto ela o conduzia para o quarto, atingiram Maria como um duro golpe. — Por quê? — ela murmurou, antes de voltar sobre os próprios passos e entrar em seu chalé, onde fora tão feliz. Levou um pouco mais de duas horas para arrumar seus pertences e transportá-los para o Opel. Antes de partir, deixou escrito numa folha pautada: Tentamos. Seja feliz. Maria. E desenhou, com a caneta que usava para escrever suas partituras, uma lua crescente sobre o mar, um violão abandonado na areia, e passos que se afastavam até desaparecer, ao longe...

Epílogo

Na Universidade de Clespreen, Janus se reintegrara à vida estudantil sem grandes dificuldades. Os acontecimentos em Heavenside agora pareciam distantes, borrados pelo tempo. A prisão de John Sheridan, bem como o desmantelamento de seu esquema corrupto, arrastara dezenas de nomes conhecidos aos tribunais. A Justiça, sonolenta e


– cega, acordara faminta diante das numerosas evidências colhidas pelos agentes do governo. Denúncias choviam de toda parte. O agente Wilson e seus colegas do FBI haviam cumprido a promessa feita a Janus. Agora, ele estava livre para seguir sua vida, assim como Rocco e Charlie. Eventualmente, os três seriam chamados para depor, mas isso não os perturbava. Em lugar da paz que deveria sentir, por ter enfim conseguido realizar seu intento, Janus caíra em uma indiferença crônica, que muitos tomaram como mais uma de suas esquisitices. A verdade era que a ausência de Maria roubara todo o significado de sua vitória. Agora, quase nada fazia sentido em seus dias e noites sempre iguais. Os amigos da república Angels' Home, que talvez pudessem confortá-lo, haviam desertado. Irving alugara um apartamento na cidade, onde morava com uma estudante de arte que conhecera na Neandertal. Daniel, com quem ele também simpatizava, pedira transferência para uma universidade na Califórnia, para onde sua família havia se mudado. Somente Debra e Lia mantinham um relacionamento mais próximo com ele. Mesmo assim, eram raras as vezes em que conseguiam arrastá-lo para algum evento ou festa. Por meio de ambas, Janus conseguia obter notícias de Maria, que prosseguia em sua longa turnê pelo país. Os meses iam passando, e o outono cedia lugar aos primeiros rigores do inverno. As férias se aproximavam, e os estudantes de Clespreen agitavam-se, frenéticos, para encerrar o ano letivo com as melhores notas possíveis. Como sempre, Janus havia mantido um índice elevado de aproveitamento, e foi um dos primeiros a deixar a universidade. Lúcia tivera alguns problemas de saúde e estava se tratando, em Miami. Foi para lá que Janus se deslocou, sempre em seu velho Mustang. O encontro entre ambos foi comovente. A temporada de inverno era pouco movimentada em Heavenside, e Lúcia precisava de companhia. Janus resolveu, então, hospedar-se no mesmo hotel e desfrutar a presença querida da mãe. Depois, daria um pulo até Heavenside, para ver o pai. Certa noite, após o jantar, Lúcia comentou, num tom casual: —

Sabe que Maria e eu temos nos correspondido com freqüência?


– — É mesmo? — Sim. Ela gosta de escrever à moda antiga, com papel, caneta, envelope e correio. É tão mais pessoal e humano que os e-mails de hoje em dia... — É também mais lento e menos prático, mamma. Ignorando o argumento, Lúcia declarou: — Gosto muito de Maria e não entendi muito bem por que vocês terminaram. Pareciam tão apaixonados... — O que sinto por Maria, nem o tempo vai apagar. Mas o fato é que não podemos viver juntos. — Por que não? Pelo que sei, ela ainda sente o mesmo por você. — Sou uma pessoa difícil, mamma... Incapaz de abrir mão do que penso. — Não o vejo dessa maneira. — E como você me vê? — Como um homem de caráter, que precisa de muito amor para se entender e se aprimorar. — Um caráter inflexível não é uma virtude. Maria me implorou que lhe contasse o que estava acontecendo, em Heavenside, e eu me neguei a dizer. — Você estava tentando protegê-la. — Contra a vontade dela. E o que mais me assusta, mamma, é saber que eu faria a mesma coisa, hoje, apesar do resultado ter sido catastrófico. É instintivo... Faz parte da minha natureza. — Mesmo sabendo, pelos jornais, de tudo o que se passou em Heavenside, até hoje Maria pensa que você dormiu com Lanna naquela noite. Por que você não desfez esse mal-entendido, meu filho? — Porque o princípio é o mesmo, mamma. Se houve um erro, da minha parte, foi não ter confiado em Maria. Foi não ter contado a encrenca em que eu estava metido. A situação posterior, com Lanna, derivou dessa minha decisão. Lúcia recostou-se na cadeira. Um sorriso terno estampou-se em seu rosto nobre, enquanto ela falava:


– — Começo a entender por que você se julga uma pessoa difícil. Você não percebe que, para uma mulher que perdoou uma primeira traição, ser traída pela segunda vez é o fim. — Mas eu não dormi com Lanna naquela noite! — ele exclamou, exasperado. — Eu sei. Mas nossa querida Maria não sabe. — E o que posso fazer? — Vá procurar sua amada. Conte-lhe tudo o que acaba de me dizer. — Não creio que Maria esteja interessada no assunto, a esta altura dos acontecimentos. — Não seria mais justo que ela decidisse por si mesma? Janus fechou os olhos por um instante, com um misto de tristeza e cansaço. Por fim, disse: — Nós nos perdemos um do outro... Maria tem uma carreira brilhante, com sua música. É possível até que já tenha encontrado um novo amor. — Pode ser... ou não. Por que não pergunta a ela? — Maria está numa turnê pelo país. Chicago, Nova York, San Antonio... Sabe Deus onde ela se encontra, neste exato momento. — Em Miami, talvez? As sobrancelhas de Janus se ergueram, numa expressão de expectativa, enquanto em seus olhos se acendia uma vaga esperança. — Mamma... o que está tentando me dizer? — Nada, filho. — Ela sorriu, significativamente. — É que recebi dois convites para assistir a um espetáculo musical no Latin Hearth, esta noite. — E quem vai se apresentar lá? — Janus indagou, fitando-a nos olhos. — O grupo de Maria. Você gostaria de ir comigo? O amplo auditório do clube Latin Hearth fora decorado especialmente para as festas de fim de ano. Seus organizadores eram, na maioria, latino-americanos


– preocupados em difundir a cultura de seus países de origem, naquela cidade norte-americana que os acolhera de braços abertos. O grupo com o qual Maria excursionava pelo país seria o quarto a se apresentar. Fora escolhido para participar daquele evento devido a seu vasto repertório de músicas latino-americanas. Sentado ao lado da mãe, Janus identificou Maria entre o octeto de violonistas que abriram a apresentação do grupo. Ela parecia mais madura, e não tão sorridente como sempre fora. Sua beleza exótica ganhara uma gravidade que lhe conferia um encanto irresistível. Depois de quatro músicas, os outros violonistas se retiraram, deixando Maria sozinha no palco. Então iniciou, no violão, uma série de músicas de Cuba, Jamaica e Brasil. O público reagia entusiasmado, aplaudindo calorosamente depois de cada número, e veio ao delírio quando Maria encerrou com Aquarela do Brasil. — Maria é uma estrela — disse Lúcia, comovida. — Eu sei — Janus concordou, sério. — Por que não vamos ao camarim para cumprimentá-la? — É uma boa idéia. Ambos se levantaram e percorreram o corredor, até os bastidores. Maria estava conversando com seu empresário, perto dos camarins. Ainda tinha o violão nas mãos, e parecia feliz com o resultado da apresentação. Não foi difícil, para Janus e Lúcia, encontrar um técnico simpático, que se prontificasse a chamá-la. Janus sentiu o pulso acelerar na expectativa do primeiro olhar que trocariam, depois de tanto tempo. Naquele olhar estariam os verdadeiros sentimentos que ela trazia em seu coração. O técnico se aproximou de Maria e transmitiu o recado, apontando na direção onde Janus e Lúcia aguardavam. O gesto do rapaz conduziu o olhar de Maria até Janus, que sorriu, intensamente emocionado. Não havia hesitação, barreiras ou mágoa nos olhos verdes e cristalinos da


– mulher que tanto amava... Somente a alegria de revê-lo e um infinito bem-querer. O mundo voltava a girar e a ter sentido, para Janus. Nada se perdera com o passar do tempo. O amor ainda existia. Na saída do Latin Hearth, Lúcia esquivou-se do jantar a três que Janus propunha, com o pretexto de estar cansada, o que não era mentira. Assim, só restou ao filho deixá-la no hotel, antes de seguir com Maria para um restaurante mexicano. Ouvindo os mariachis, deliciando-se com tortillas e guacamole, ambos pareciam felizes naquele ambiente descontraído. No entanto, vez por outra, Maria surpreendia um olhar interrogativo nos olhos de Janus. Quanto a ele, não podia ignorar um certo ar de alheamento que passava como uma sombra pelo rosto de Maria. Mas aquilo não poderia durar indefinidamente. E foi Janus quem, num dado momento, resolveu abrir o assunto doloroso que ambos evitavam, desde o princípio: — Em Heavenside, eu lhe contei a história de amor de um menino que, na adolescência, descobriu a brutalidade e a dor da primeira desilusão. Só não falei do ódio que brotou naquele coração jovem, que exigia vingança. Muitos anos se passaram para que ele transformasse todo aquele ódio em determinação e, a vingança, em desejo de justiça. — Janus, você não precisa... — Por favor, ouça o que tenho a dizer. — Está bem. Mas fale na primeira pessoa. Não se distancie da criança e do adolescente que você foi — ela pediu. Janus permaneceu em silêncio por um longo momento, antes de prosseguir: — Eu tinha um coração manso e só via o bem nas pessoas. Não havia espaço, em nenhuma parte do meu ser, para absorver a agressão física e moral que sofri daquele infeliz. Não sei como sobrevivi. — A vida é maior e mais forte do que qualquer dor — Maria sentenciou, baixinho. — Mas tive que endurecer e manter meu mundo interior em segredo, isolado de outros seres não marcados pela violência e injustiça. Meu único objetivo era


– destruir John Sheridan, e eu consegui. Ele e seu esquema podre desabaram fragorosamente. Pensei, então: por que não estou feliz? E a resposta, Maria, é que sem você não faz sentido prosseguir. — Janus, querido... — Sem o seu amor, sou apenas aquela criança perplexa, no corpo de um adulto. — Eu nunca deixei de amar você, Janus. Compreendo a necessidade que teve de fazer justiça, compreendo sua luta insana contra os Sheridan. Mas não posso perdoá-lo por ter faltado com sua palavra e traído minha confiança, deitando-se com Lanna pela segunda vez. — Isso não aconteceu — ele afirmou, sereno. — O quê? — Estou lhe dizendo que não faltei com minha palavra. — Isso é ridículo! — ela exclamou, indignada. — Eu vi quando você e Lanna chegaram. E era ela quem estava dirigindo. Vi quando vocês entraram no chalé, pelos fundos, abraçados. Vi também quando vocês foram para o quarto. Por que está negando essa evidência? — Naquela noite, eu fui ferido num confronto com os seguranças de John Sheridan. Acordei no hospital, com Lanna a meu lado. Estava com duas costelas trincadas e não podia dirigir, nem me movimentar direito. Ela me levou de volta para o chalé. — Então... você estava ferido? — Maria balbuciou. — Mas eu pensei que... Então quer dizer... Oh, Janus! — Depois de me ajudar a chegar até a cama, Lanna foi embora, com o meu carro. No dia seguinte, ela mandou um criado devolvê-lo. Em resumo, Maria, não houve traição alguma. Um silêncio pleno de significados caiu entre ambos A música alegre dos mariachis tornou-se repentinamente estridente e agressiva à sensibilidade de Maria, que se levantou, dizendo: — Vamos embora, por favor. Já perdemos tempo demais.


– Naquelas férias, Heavenside não viu o filho de Pablo e Lúcia em seu velho Mustang vermelho, passeando pelas ruas e avenidas bem cuidadas. O chalé número 3, que ele costumava ocupar nas visitas à cidade natal, permaneceu vazio. No Marlin, Rocco e Charlie sentiam a ausência do amigo querido. Mas, sempre que compartilhavam um bom vinho ou uma cerveja, faziam um brinde a sua coragem, seguidos de votos de plena felicidade. No restaurante Paradiso, Lúcia acabava de receber a correspondência diária quando, em meio a panfletos e jornais, encontrou um cartão-postal de Janus. A foto era de um pôr do sol sobre o mar, nos trópicos, com coqueiros esguios e redes de pesca espalhadas pela praia. As informações impressas no alto, em inglês e português, diziam: Praia dos Coqueiros, Povoado de Trancoso, Porto Seguro - Paraíso Tropical, Extremo Sul do Estado da Bahia - Brasil A letra inconfundível do filho desenhara, no verso do cartão, estas simples, mas significativas palavras: Acabamos de nos casar na pequena igreja deste povoado encantador. Daqui seguiremos para a fazenda dos pais de Maria. Estamos em pleno verão. A água do mar é límpida e cálida. Maria manda beijos a todos. Com amor, Janus PS: A felicidade existe!


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