Universidade Federal de Goiás Faculdade de Artes Visuais
Expresso Diário Narrativas e percursos cotidianos Thiago Régis da Silva Nunes (Santiago Régis)
Goiânia - 2013 1
Universidade Federal de Goiás Faculdade de Artes Visuais
Expresso Diário Narrativas e percursos cotidianos Thiago Régis da Silva Nunes (Santiago Régis)
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Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais da Faculdade de Artes Visuais da UFG, como exigência para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais com habilitação em Artes Plásticas. Orientadora: Dra. Sainy Coelho Veloso Borges
Goiânia - 2013
Universidade Federal de Goiás Faculdade de Artes Visuais
Expresso Diário Narrativas e percursos cotidianos Thiago Régis da Silva Nunes (Santiago Régis)
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado e aprovada em 27 de Fevereiro de 2013 BANCA EXAMINADORA Dra. Sainy Coelho Borges Veloso Presidente da Banca Dra. Rosa Maria Berardo Membro Interno Me. Wolney Fernandes de Oliveira Membro Externo
Goiânia - 2013
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Ao Rafael, a Vera e a Soninha, grandes incentivadores do meu trabalho. Aos meus queridos professores e melhores amigos, pela força e atenção.
RESUMO
Nunes, T. R. S., EXPRESSO DIÁRIO: Narrativas e percursos cotidianos, Faculdade de Artes Visuais, Campus Samambaia, UFG, Goiânia, Brasil, 2013, 30p.
A presente pesquisa permitiu redescobrir meu cotidiano e a relacioná-lo com minha produção aliando meus interesses de ilustração/literatura, palavra/imagem e a experimentar a internet como suporte narrativo pelo viés artístico. Trabalhei com os conceitos de identidades, massificações e o esvaziamento do ser causado pelas ações repetidas no plano diário. Com relação à poética construída, abordei meu cotidiano através de contos e situações experimentadas pelas vias do transporte coletivo da cidade de Goiânia e o contato com transeuntes. Palavras-chave: Percursos, narrativas, cotidiano, ilustração, cidade. 5
SUMÁRIO
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1. INTRODUÇÃO
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2.
ENCONTRO COM O FAZER ARTÍSTICO
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A CONSTRUÇÃO DE UMA POÉTICA: Experiências no espaço urbano e cotidiano
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3.1.
A redescoberta do cotidiano
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3.2.
Eu na cidade. Eu.
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4.
AS NARRATIVAS
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5.
TRABALHO VISUAL: Percurso metodológico do Expresso Diário
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6.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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7.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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8.
OUTRAS LEITURAS
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APÊNDICES
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1. INTRODUÇÃO O fazer artístico tornou-se um processo atrelado a pesquisas e práticas, sobretudo na temporalidade contemporânea. Experimentações, tentativas, investigação revelarão pistas necessárias para o artista entender/descobrir seus caminhos. Durante muito tempo pensei que este fazer artístico estivesse ligado a grandiosidades. Talvez fosse esta minha dificuldade de entender a arte, pois a achava bastante complicada. Ironicamente, entender os processos artísticos sempre me foi algo prazeroso, por mais difícil que pudesse parecer. Com o tempo fui percebendo, através de estudos, que a arte possui inúmeras questões metalinguísticas. O que mais me tocou foi entender sobre a intimidade como ponto de partida para produção do artista. Isto me permitiu revalorizar meus interesses e a encará-los como potencial artístico. As minhas buscas e interesses me levaram à imagem e à literatura. O gosto pela relação palavra/imagem tornou-me um ilustrador bastante preocupado com o grau decorativo e passivo das minhas imagens em relação ao texto a ilustrar. Esta preocupação trouxe vários questionamentos importantes para minha produção, sobretudo a vontade de narrar. Pensei que fosse mais conveniente criar histórias sobre o meu cotidiano, por ser algo estreitamente ligado a mim. Isso me deixava mais seguro. Conhecer o cotidiano foi importante para entender os processos de alienações, quando estes provocam o esvaziamento do ser e, por seguinte, a perda de sentido da vida. Há aqueles, que mesmo vivendo na cotidianidade, não aceitam passivamente as funções sociais que lhes são impostas. São os errantes urbanos, pessoas que tiveram grande importância para a formalização das minhas narrativas. Como produto prático desta pesquisa, fiz um site que engloba narrativas que falam de cotidiano, de pessoas e de acasos. Experimentei bastante as possíveis relações entre palavra, imagem e outras mídias digitais com o objetivo de propor quebras de cotidianidades por vias fantásticas e imprevisíveis. A importância de narrar, para mim, foi bem maior do que esperava no inicio desta pesquisa. Narrar se tornou uma forma de conseguir me manter acordado. Narro porque tenho medo de me perder no meu cotidiano, perder o sentido da vida.
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2. ENCONTRO COM O FAZER ARTÍSTICO É a experiência que autoriza o artista a ter um ponto de vista teórico diferenciado. Para um artista plástico, é como se as palavras estivessem encarnadas no trabalho e no próprio corpo. Suas análises terão esta vivência suplementar: sua confrontação pessoal com o processo de criação. (REY, 2002, p. 86).
Na arte contemporânea o discurso de um artista tornou-se tão importante quanto sua obra. Este discurso é formulado através de investigações sobre assuntos que incitam a criação de cada artista. O fazer da obra, torna-se processo simultâneo entre pesquisas e práticas. Conceitos extraídos dos procedimentos práticos são investigados pela teoria e novamente experimentados na prática (REY, 2002).
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As técnicas tradicionais, anteriormente ensinadas pelos mestres aos seus alunos vão se misturando com o passar do tempo a outras técnicas e experimentações numa tentativa de encontrar formas plásticas (ou não) para ideias e hipóteses. Essas experimentações são tentativas de fazer a obra. A liberdade de associar diferentes técnicas no processo artístico é possível por não existir teorias ou regras que universalizem a conduta que o artista deve traçar. Os caminhos que cada artista escolhe, para fazer sua investigação, dependem de sua própria formação pessoal. Com a pesquisa, o nicho de interesse escolhido pelo artista revelará pistas. O artista deve estar atento a estas pistas, pois através delas serão feitas identificações com práticas e teorias. Nada surge por acaso, as futuras respostas ou futuras indagações são qualificadas por um certo impulso aparentemente caótico. Muitos autores comentam a respeito deste estímulo e, no pensamento de Cecília Almeida Sales (2006, p.106), por exemplo, ele ganha a nomenclatura de “desejo”. Às vezes os resultados obtidos condizem com a ideia inicial, com a dúvida criativa, com o nosso desejo. Outras vezes, o processo nos leva a resultados inesperados, diferentes daquilo que intencionamos. Nesse percurso, erramos. Todavia o erro também pode ser considerado como resultado. Ele faz parte do processo de pesquisa e também gera conhecimento. Para Sandra Rey (REY, 2002, p. 84), melhor que chegar a respostas é saber fazer bons questionamentos durante nosso processo, “o erro no processo de instauração da obra, não é engano: é aproximação. Errar é a dissipação das possibilidades da obra, apontando caminhos para aquela, ou talvez, para outras que virão”.
Erroneamente durante um bom período, pensei que o fazer artístico estivesse ligado a grandiosidades e que, portanto, fosse este o grau de complicação que eu via na arte, sobretudo contemporânea. O tempo me permitiu estudar e perceber que a arte está sempre olhando para o seu passado e possui várias conversas com ela mesma. A arte comenta de assuntos universais a partir de intimidades. Kátia Canton afirma: “o que se passa não é mais a discussão sobre a arte como tônica do trabalho, mas sim o sentido da própria existência humana, com suas idiossincrasias e estranhamentos”. Ou seja, se durante toda a sua história a arte foi intimista através das abordagens dos artistas, o furor contemporâneo deixou-a ainda mais introspectiva a ponto de o próprio artista ser levado em consideração primordial para o entendimento de sua obra. Ao saber e entender da importância destas intimidades, pude revalorizar meus interesses e passei a encará-los como potencial artístico, pois “a arte contemporânea penetra as questões cotidianas, espelhando e refletindo exatamente aquilo que diz respeito à vida” (CANTON, 2009, p.3543). Fui levado à imagem e à literatura por minhas buscas. Ambas impulsionam meu desejo narrativo. Crio um personagem. Sua vida será preenchida com algumas das minhas experiências, do meu cotidiano. Cabelo, nariz, olhos, boca, falas, seus perfis serão traçados por linhas de rascunhos. Logo este personagem será uma expansão de mim. O cotidiano é matéria-prima para minha produção. Procuro encontrar nele as peças dos quebra-cabeças de minhas narrativas, além de ser uma grande fonte de inspiração. Estamos suscetíveis aos mais diversos acontecimentos. As pessoas cruzam o meu caminho. Se desse cruzamento algo me interessar, apropriome dele. O vestido da vitrine ficaria bem para minha mocinha; a velhinha que encontrei no ônibus ficaria bem como vovozinha; a balconista do banco daria uma ótima vilã. E assim, o jogo de conexões que ligam o meu cotidiano a minhas narrativas se estendem mais e mais. Vindo eu das artes e com tanto interesse pelas palavras fui direcionando minha atenção para as possíveis relações entre texto e imagem. Assim tornei-me ilustrador, sem deixar de tentar inserir minha produção no campo expositivo de arte contemporânea. Maria Nikolajeva e Carole Scoptt (2011) analisam as relações entre palavras e imagens partindo de variedades de contraponto. Ora as lacunas do texto são preenchidas por imagens, ora o texto preenche a lacuna das imagens; ora texto e imagem atuam de forma decisiva para o entendimento da história, ora a imagem conta uma história e o texto conta outra etc. É neste balanço de contraposições que procuro formalizar minha produção visual e textual.
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3. A CONSTRUÇÃO DE UMA POÉTICA: experiências no espaço urbano e cotidiano 3.1 a redescoberta do cotidiano A vida cotidiana é a vida de todo homem (HELLER, apud MAFRA, 2010, p.231).
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Quando comecei a trabalhar como ilustrador fui me preocupando, ao longo de minha produção, com o grau decorativo e passivo das imagens em relação ao texto a ilustrar. Mesmo levando em consideração o encantamento que minha imagem poderia causar, eu almejava uma imagem engajada a uma ideia, a um ponto de vista, numa possível leitura subjetiva. Para tanto, fui buscar primeiramente conhecimentos teóricos sobre o assunto da ilustração e sua relação com a literatura, já que meu objetivo era trabalhar no ramo editorial, principalmente com livros infantis. Esta busca aconteceu de forma espontânea, sem nenhuma vinculação direta com o curso de Artes Plásticas, apenas o interesse do aperfeiçoamento de um assunto que, cada vez mais, chamava minha atenção. Pouco depois fui aproximando este interesse pela ilustração/literatura à uma possível produção de arte. Durante algum tempo frequentei a Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás como aluno de disciplinas não obrigatórias. Lá, pude me familiarizar com análises literárias e, de repente, uma infinidade de conexões e referências se faziam visíveis com uma leitura mais atenta. Só depois entendi que isto não era uma característica específica da literatura, mas de qualidade da criação de uma forma geral. Num dado momento, trabalhar apenas com imagens pareceu não ser o bastante. Impossível deixar de lado o desejo de escrever. Aliando as práticas da escrita e da imagem consegui qualificar muito mais o meu trabalho dentro do que propunha inicialmente. Todavia o desejo de criação não parou por aí (ainda bem!) e em seguida fui propondo novos desafios. A criação do personagem, sujeito da história, foi o próximo tópico na lista de preocupações que precisava resolver melhor. Ilustrar um personagem a partir de um texto que me é entregue com certeza é diferente daquele criado por uma história de minha autoria. Indagações de como encontrar personagens, onde buscá-los e de como seriam suas histórias começaram a se fazer frequentes. É difícil dizer como uma história nasce, pois ela pode aparecer de qualquer lugar que inspire sua criação. Apenas o
narrador poderá dizer onde/como/porque colheu sua narrativa. Foi tentando responder tais indagações que pude apurar o meu olhar para o que estava a minha volta. E, como Walter Benjamin colocou (1985, p.201), “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros”. A segurança para narrar só poderia ser encontrada naquilo de mais familiar, naquilo que já havia sido experimentado, pois conforme Elza Dutra: Podemos entender a experiência, (...) ao momento existencial da pessoa, incluindo-se aí todas as vivências que compõem tal momento. Algumas delas não são conscientes, mas certamente fazem parte do, e influenciam o seu estar-no-mundo em determinado momento. (DUTRA, 2002, p.372).
Levando em consideração que a experiência pode acontecer nas mais infinitas situações possíveis da vida de uma pessoa, o foco da minha atenção voltou-se para a situação mais comum e inerente de minha vida: o meu redor, ou o cotidiano (ações repetitivas, programáticas e percursos diários). A princípio, achei que falando pelo meu olhar, minhas histórias poderiam ter um demasiado teor memorialístico e individual. Mas a busca teórica sobre cotidiano me revelou que “em toda sociedade, existe uma vida cotidiana e todo ser humano, independente de sua posição na divisão social do trabalho, possui uma cotidianidade”. Sendo assim, como “a vida cotidiana é a vida de todo homem” (HELLER, apud MAFRA, 2010, p.231-232). Mesmo falando de coisas tão íntimas eu conseguiria alcançar uma dimensão mais ampla, conseguiria histórias familiares não só para mim. Pois, como coloca Agnes Heller: As grandes ações não cotidianas que são contadas nos livros de história partem da vida cotidiana e a ela retornam. Portanto, não se pode compreender o desenvolvimento histórico e econômico da sociedade sem se considerar a heterogeneidade das ações e reações humanas na esfera cotidiana. (HELLER, apud MAFRA, 2010, p.231).
O cotidiano é caracterizado pela repetição sequencial de ações. Que ações seriam estas? A resposta vai depender de cada indivíduo, pois cada um possui um cotidiano diferente com características próprias do contexto ao qual estão inseridos. No geral, são “atitudes espontâneas, portanto, desprovidas de reflexões rigorosas”, mas que por meio delas os indivíduos conseguem se orientar na sociedade e responder às suas “necessidades”. Em outras palavras, “sendo diferentes umas das outras, as pessoas, em qualquer contexto, têm suas demandas individuais. É, portanto, na vida cotidiana que aparecem as necessidades” (HELLER, apud, MAFRA, 2010, p. 233-237). Particularmente, penso no cotidiano como um tempo repetido
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com dias e ações infindáveis enfileirados no cordão da vida. Busco de alguma forma lutar contra ele, pois não gostaria de ver minha vida presa a estagnações. Por isso, sempre que posso me proponho novos desafios. A propriedade pragmática do tempo cotidiano está relacionada, segundo Heller (apud, MAFRA, 2010, p. 126), a unidade imediata do “útil” quando este é tomado como “verdadeiro”. Para Olgária Chaim Féres Matos (2007, p.18), o pragmatismo do tempo cotidiano é visto de forma “patológica” causada pela “monotonia” (tempo estagnado) ou “tédio crônico” visto como um tempo que está alienado pela perda de sentido das ações. A carga negativa para este tempo doentio produzido pela sociedade contemporânea está numa temporalidade à qual o homem não possui domínio sobre o tempo de sua própria vida. Ou seja, “predomina aqui uma percepção do tempo na qual não mais se tem tempo” (BÜRGE, apud, MATOS, 2007, p.14). Contudo, é no cotidiano, como aponta Heller (apud, MAFRA, 2010, p.232), que o ser humano consegue capacidades fundamentais de comportamento que o fazem transcender o ambiente imediato. Sendo assim, o ser humano, partindo das “objetivações ambientais” ou “necessidades”, se forma ao mesmo tempo em que forma o mundo. 12
Mesmo que as ações cotidianas sejam necessárias para a sobrevivência na sociedade (Heller, apud PATTO, 1993, p.125), o perigo aparece quando as ações da vida cotidiana “se cristalizam em absolutos, não deixando ao indivíduo margem de movimento e de possibilidade de explicitação, estamos diante da alienação da vida cotidiana”. O indivíduo torna-se preso a um “fragmento do real”: O homem vai-se fragmentando em seus papéis, pode ser devorado neles e por eles e viver a estereotipia dos papéis de uma forma limitadora da individualidade. Quando isso ocorre, orienta-se na cotidianidade mediante o simples cumprimento adequado desses papéis, assimilando mudamente as normas dominantes e vivendo de uma maneira que caracteriza o conformismo. Nesses casos, a particularidade suplanta a individualidade. Engolido pelos papéis e pela imitação, o indivíduo vive de estereotipias. (Heller, apud, PATTO, 1993, p.129).
Para Paola Berenstein Jacques (2012) a alienação da vida cotidiana é considerada como “massificação” e acontece através da homogeneização da cultura por meio de interesses hegemônicos. O capital financeiro e midiático procura criar subjetividades e desejos padronizados, objetivando uma pacificação. O resultado é a esterilização da experiência urbana com o outro, ou seja, rompe os processos de alteridade que poderiam ocorrer na
cidade (consciência do eu através do espaço e do outro): A pacificação do espaço público, através da fabricação de falsos consensos, busca esconder as tensões que são inerentes a esses espaços e, assim, procura esterilizar a própria esfera pública, o que, evidentemente, esterilizaria qualquer experiência e, em particular, a experiência da alteridade nas cidades. (JACQUES, 2012, p.13)
O processo de “pacificação”, “massificação” ou “alienação cotidiana” não atua de forma decisiva na vida das pessoas. Podemos acreditar numa possível esperança quando Heller afirma não existir “perfeita submissão”, pois o indivíduo pode recusar o papel social que lhe foi imposto. Sendo assim, “a recusa do papel é característica daqueles que não se sentem à vontade na alienação”. Nas palavras de Heller, é “inimaginável que não haja, mesmo no interior dos estereótipos, nenhuma qualidade particular, nenhum matiz individual”. Além de não haver submissão total, há, também, “um ponto limite, um limes no qual deixam de ser objetos e se transformam em sujeitos. Esse ponto varia de pessoa para pessoa, de lugar para lugar, de época para época, de classe social para classe social” (HELLER, apud PATTO, 1993, p.130-131). Jacques (2012, p. 15-29) chama de “errante urbano” o indivíduo que é contra a manipulação e que não aceita de forma passiva seu papel social. Este conceito, segundo a autora, está relacionado à alteridade do indivíduo no espaço urbano, já que errar pela cidade pode se tornar crítica à disciplina urbana, intervenção nas cidades. Desta forma, o errante urbano é aquele “que resiste à pacificação e desafia a construção desses pseudoconsensos publicitários. São esses vários outros que, por sua simples presença e prática cotidiana, explicitam conflitos e provocam dissensos”; àquele que “inventa sua própria cartografia a partir de sua experiência itinerante”. Na prática, Jacques (2012, p. 29) diz que entre os errantes urbanos encontramos vários artistas, músicos, escritores ou pensadores, pessoas que praticam a errância de forma voluntária e intencional. Já, na visão helleriana, “em todas as épocas, existiram personalidades representativas que viveram na cotidianidade não-alienada e, considerando que a ciência contribui para o fim da alienação, essa possibilidade encontrariase aberta a qualquer ser humano” (HELLER, apud PATTO, 1993, p. 235). Sou partidário da opinião de Heller quanto a perceber a oportunidade da errância urbana de forma mais democrática. Contudo, mesmo considerando a importância da ciência para formulação de opiniões críticas, errar, para mim, é criticar, contrariar comportamentos padronizados e estabelecidos. Nesta perspectiva, compreendo o errante como aqueles que vivem suas
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vontades íntimas mesmo enfrentando possíveis preconceitos de uma opinião massificada; àqueles que desenvolvem consciência de si e dos outros, praticantes da alteridade.
3.2. eu na cidade. eu. Uma outra cidade, opaca, intensa e viva se insinua assim nas brechas, margens e desvios do espetáculo urbano pacificado. O Outro urbano é o homem ordinário que escapa – resiste e sobrevive – no cotidiano, da anestesia pacificadora. (JACQUES, 2012, p.15).
Outro dia, em Belo Horizonte, peguei um ônibus achando que conhecia seu percurso. A insegurança foi brotando, as mãos geladas e as ruas desconhecidas. Conheço pouco de BH. De ímpeto, por insegurança, dei sinal e rapidamente saltei do ônibus. Busquei informações ao redor e logo entrei noutro ônibus numa direção familiar. Estive perdido, por poucos minutos, o bastante para sentir medo, o bastante para quebrar minha rápida cotidianidade de turista naquela cidade. 14
Em Goiânia, onde moro há quase oito anos, a sensação de estar perdido acontece poucas vezes. Não que conheça toda a cidade, quisera eu. Mas no curto tempo que tenho só me desloco para lugares já programados. Tenho menos tempo do que necessito para cuidar de minhas obrigações diárias. Rápido, saio de casa correndo, meu dia amanhece em maratona. Corro para não perder o ônibus. Perdendo ele ou não, praguejo o atraso. No ônibus me perco em multidões, esbarro em solavancos. Sou desconhecido no meio de tantos outros desconhecidos. À tarde, quando já é hora de voltar, o Terminal Praça A é um dos meus percursos obrigatórios. No horário de pico, isto é, às 18:00 horas, o Praça A é uma verdadeira lata de sardinha. Gente saindo de ônibus, gente entrando no ônibus, gente prá lá, gente pra cá, gente parada, gente empurrando, gente conversando, gente calada, gente brigando, gente gritando, gente distraída, gente, gente, gente. Como se sentir só no meio de tantos ao lado? É difícil dizer e mais ainda de acreditar, mas toda aquela multidão de pessoas que está no Terminal possui relações muito próximas entre si. Estas relações podem acontecer, tanto pela familiaridade quanto pela estranheza, numa receita básica que produzirá o conceito de identidade. É através da identidade que tentamos, de forma simplificada e organizada, dizer quem somos e assim chegar a uma definição do eu e nos diferenciar dos demais. Todavia, Tomaz Tadeu da Silva nos mostra que é uma tentativa
enganosa, pois: A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder (SILVA, 2000, p.96 – grifo meu).
Todas aquelas pessoas que estão no Terminal e que se encontraram ali por motivos diversos ajudam a construir umas às outras de forma imperceptível. Pessoas que familiarizam com umas; pessoas que discordam de outras. Neste balando entre familiarização e diferenciação cada um tenta mostrar quem é, ou quem acha que é. Faço minhas as palavras de Todorov: Pode-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. (TODOROV, 1983, p.3).
Eu não sou mineiro, tampouco goiano. Nasci no interior do Maranhão numa pequena cidade de nome Davinópolis. Lá, infância que tive, não importava o ônibus, eu era sempre eu: o menino filho da sobrinha do Chico Custódio, aquele do terreno depois da ponte, que vende farinha de mandioca, que tem uma vendinha, irmão do Doca, irmão da Dona Antônia que é a avó do menino. Conhecido me fazia por meio de tantas ligações possíveis. Em Goiânia, cidade grande, não a maior que já conheci, sou um a mais no meio de tantos aqueles que precisavam estar às 8:00 horas da manhã no compromisso marcado que, no meu caso, era a aula da faculdade. Hora do ônibus, para mim, é hora morta. Moro longe do centro da cidade e dos outros lugares que necessito comparecer. Sinto preguiça de sair de casa, invento desculpas para tanto. Se saio, tenho preguiça de voltar. Por isso guardo os dias oportunos e quando saio tento resolver o maior número de coisas possíveis e aproveitar uma única viagem. Quando me perguntam onde moro a vontade de responder que moro no fim do mundo, é grande. Claro, sei que fisicamente falando tudo depende da referência no espaço. Mas não vivo fisicamente falando, vivo a penúria de quatro
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longas horas que enfrento quando saio de casa, contanto ida e vinda. Quatro é um número simbólico, pois não estou levando em consideração o tempo da espera nos pontos de ônibus. Desta forma, ao sair de casa procuro estar preparado para aproveitar as horas de percurso: papel, caneta, pasta e outras coisas a mais para ir resolvendo quando tenho sorte de sentar num banco (o que na maioria das vezes não acontece, dependendo do horário). Não esqueço na bolsa, porém, um livro. Ler distrai o tempo, encurta as horas. Ler, segundo Alberto Manguel (MANGUEL, 2008, p.19), “é uma operação da memória por meio da qual as histórias nos permitem desfrutar da experiência passada e alheia como se fosse a nossa própria”. Assim, experimento ser outro durante aquele tempo chato de espera, durante o percurso do ônibus. E por alguns minutos o tempo é outro. Ali no ônibus, meu corpo, obediente às rodas, segue o caminho que o motorista dirige. Já, minha consciência, longe anda pelo “País das Maravilhas”, “País dos Espelhos”, “País dos Brinquedos”, “Terra de Oz”, “Sítio do Pica Pau Amarelo”, “Cidades Invisíveis”1.
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Não leio sempre. Também gosto de observar. Observo as ruas, o espaço, os letreiros, as vitrines e principalmente as pessoas. Observo com a mesma facilidade com que sou observado. Mas faço de conta que não percebo olhares, não querendo atrapalhar os poucos minutos que alguém possa ter de atenção a um outro alguém. Quero quebrar rotinas, não só as minhas. Observando o outro me pergunto coisas a seu respeito. Histórias fabulosas podem ser construídas com as tentativas de respostas.
1 Obra de Lewis Carol (2009), Carlo Collodi (2002), Lyman Frank Baum (2001), Monteiro Lobato (1959) e Ítalo Calvino (2003) consecutivamente.
4. AS NARRATIVAS As histórias continuam a oferecer a seus leitores outras cidades imaginárias. (MANGUEL, 2008, p.34).
A aproximação com a escrita literária e a minha redescoberta do cotidiano aconteceu por meio de preocupações com a criação de personagens e processos narrativos. Entretanto, estas preocupações resultariam num ganho maior do que esperava, num amadurecimento do meu trabalho a respeito da relação palavra/imagem. As mais diversas e inusitadas situações rotineiras dos ônibus dos meus percursos chamaram bastante atenção. Comecei a encarar o ônibus como fonte de pesquisa, usando-o como fio condutor de narrativas, numa tentativa de encontrar uma organização para ideias que pareciam bastante embaralhadas. Sendo assim, o ônibus foi escolhido como lugar de partida para a escrita dos contos do meu projeto. Minha preferência pelo ônibus deve-se a dois motivos: o primeiro por ser o lugar onde mais tenho contato com estranhos; e o segundo por ser um lugar em movimento pela cidade. Como diria Jacques (JACQUES, 2012, p.16), “o próprio exercício de narração já está associado também a uma prática espacial, ao movimento, à viagem ou, ainda, ao andar pela cidade”. Devo confessar que a princípio foi difícil prestar atenção no cotidiano e buscar faíscas para uma história. Por mais que tentasse prestar atenção aos casos e acasos que poderiam cruzar o caminho, meu olhar ainda estava muito condicionado às práticas cotidianas, pensamentos e preocupações. Meu corpo obediente e automático às ordens de uma cabeça viajante. Foi com o tempo e exercitando-me que consegui, aos poucos, prestar atenção no que eu mesmo fazia. Depois, no que os outros faziam. Claro, isto não acontecia sempre. Mas pude perceber tantas inúmeras pessoas no mesmo estado: corpos obedientes às cabeças viajantes de preocupações e pensamentos diversos. E assim, prestando atenção nesses detalhes diários e inesperados, conseguia faíscas narrativas que seriam trabalhadas mais tarde. Criei algumas formalizações abrangentes para escrever os contos. Essas formalizações eram: falar de cotidiano, de pessoas e de acasos. Mesmo assim, na hora de escrever não fiquei tão preso. Bom mesmo era conseguir uma dessas faíscas narrativas e resolvê-la por ela mesma, como se cada história tivesse vontades e necessidades próprias. Quando conseguia resolver uma história, a impressão que tinha era a de ter transformado
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faísca em fogueira. Depois de escrever os primeiros contos, notei que mesmo não seguindo à risca minhas formalizações, todos os contos possuíam uma aproximação contextual. Os contos, em sua maioria, falam de personagens presos às suas cotidianidades. Tento quebrar esta cotidianidade com a presença de algo inesperado, a inserção do acaso como fator fantástico que modificará de alguma forma o personagem, ou o expectador. Esta mudança é ocasionada por meio de um desejo reprimido do personagem e que, através do acaso, transforma sua consciência. Desta forma, creio conversar de algum modo com o conceito de errante urbano: Na verdade, a principal potência em questão está na construção e na (contra)produção de subjetividades, de sonhos e de desejos. Assim, as narrativas urbanas resultantes dessas experiências realizadas pelos errantes, sua forma de transmissão e compartilhamento, podem operar como potente desestabilizador de algumas das partilhas hegemônicas do sensível e, sobretudo, das atuais configurações anestesiadas dos desejos. (JACQUES, 2012, p. 11).
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Esta questão fica bem clara nos contos Sonho Americano e Vejo o seu futuro (vide apêndice). No primeiro a protagonista transforma sua consciência a partir da queima de foguetes no dia de seu aniversário. Infelizmente a queima dos fogos não era em sua comemoração, mas sim o aviso de que as drogas haviam chegado ao bairro onde ela morava. Contrariada, ela dorme sem receber nenhuma felicitação, apenas reclamações de seus familiares. No dia seguinte, cansada de todos e de tudo, resolve cruzar sua fronteira, ou seja, mudar o rumo de sua vida; Já, no segundo conto, a personagem principal, empregada doméstica, tem sua cotidianidade alterada depois de ver uma bola de cristal numa loja de quinquilharias. Instigada pela bola de cristal, a personagem busca todas as suas economias para a comprála, pois o objeto era caro. Ao final do conto não fica claro se a personagem desaparece porque entra na loja ou na bola de cristal. E se desaparece, também não sabemos o motivo. A bola acaba atuando como uma máquina do tempo desajeitada. O fato de trabalhar com minicontos ajuda a deixar o texto em aberto, sem perder a coerência da história. Isto porque esta classificação literária não precisa de explicações para inícios ou finais. No conto, ou miniconto, o que importa é o miolo e a situação da história. Sendo assim, posso focar num breve meio da história, tal qual ela chegou a mim. Outra característica em comum aos contos é a falta de nomes próprios nos personagens. Talvez com isto, possa manter uma carga de anonimato nos personagens e aproximá-los de uma multidão. Ou seja, eles poderiam ser qualquer um daqueles que cruzam todos os dias
meu caminho, que poderiam sentar ao meu lado no ônibus. Além disso, é também uma tentativa de relacionar ficção e realidade. O conto Lava roupa todo dia (veja apêndice) conta rapidamente a história de um marido e sua esposa que vão e voltam do trabalho juntos no ônibus. Com o tempo a relação dos dois é fragilizada pelo estresse cotidiano. Neste conto o fantástico é conseguido por meio de uma relação com um ditado popular como mostra o trecho: “O marido, cansado de lavar roupa suja em público e objetivando melhoras na relação, juntou o décimo terceiro e comprou uma máquina de lavar de última geração”. Veja bem que lavar roupa suja refere-se às várias discussões que o casal enfrenta em público. A situação inesperada acontece quando o marido procura resolver a desestabilidade do casamento comprando uma máquina de lavar. Isto provoca espanto e riso no expectador. Acredito que o texto escrito foi primordial para a construção deste efeito. Depois de escrever estes e outros contos me perguntei se o meu motivo era apenas uma questão profissional. A resposta foi sim, era de fato uma questão profissional. Era o desejo de amadurecer um assunto que me incutia. Mas também era algo a mais. Narrar, seja pela escrita, seja pela imagem, seja por ambos, é para mim uma forma de conseguir me manter acordado. Narro porque tenho medo de me perder em pacificações, medo de me perder no meu cotidiano, perder o sentido da vida. Narro como forma de afirmar minha existência para mim e para os outros. Assim, acredito que as histórias são maneiras “de registrar nossa experiência do mundo, de nós mesmos, dos outros” (DÖBLIN, apud MANGUEL, 2008, p.18). Por meio de minhas histórias, e de tantas outras que tive contato, consegui conhecimentos sobre muitos assuntos e inclusive sobre mim mesmo. É como Manguel escreveu, “As histórias podem alimentar nossa mente, levando-nos talvez não ao conhecimento de quem somos, mas ao menos à consciência de que existimos – uma consciência essencial, que se desenvolve pelo confronto com a voz alheia”. Sendo assim, existir “supõe o conhecimento dos outros que percebemos e que nos percebem. Poucos métodos são mais adequados a essa tarefa de percepção mútua do que a narração de histórias” (MANGUEL, 2008, p.19).
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5. TRABALHO VISUAL: percurso metodológico do Expresso Diário Algumas experiências na Internet apontam revolucionários para a criação. (LAGO, Angela. S.d.).
caminhos
Como mostrei ao longo do meu discurso, a relação palavra/ imagem sempre permeou minha produção. E sempre fiquei atento para perceber como esta relação poderia ocasionar a realização de trabalhos práticos, o que na maioria das vezes acontecia de ser algum projeto de livro ilustrado. Entretanto, para o projeto Expresso Diário gostaria de propor um novo formato que servisse de invólucro para estes contos cotidianos nos ônibus ou espaço urbano. Assim, envolvi a este projeto outro grande gostar, a minha relação com blogs na internet.
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Meu interesse mais recente é o de experimentar as possibilidades narrativas e de ver como palavra e imagem se comportam no meio digital numa proposta narrativa. De que maneira outras mídias como o vídeo, áudio, imagem em movimento, páginas e efeitos da internet podem incentivar determinado modo de leitura? Penso em juntar o maior número de recursos digitais que estiverem ao meu alcance, se forem convenientes, para usar em uma história em rede digital. Este questionamento e interesse direcionou minha produção prática para realização física do Expresso Diário. Durante o processo redesenhei incontáveis vezes como seria este espaço na web. Por fim, depois de muitos testes, criei um blog numa dessas empresas gratuitas de blogagem e fiz um modelo próprio para o Expresso Diário. Em seguida fui colocando meus contos, ilustrações e uma série de efeitos e mídias diversas, que adicionassem sentido narrativo ao do assunto que estava tratando. Uma dessas mídias, por exemplo, foi configurar o mapa de Goiânia como background (fundo) do meu site Expresso Diário através de um aplicativo disponibilizado pelo GoogleMaps. A função original do mapa criado pela empresa Google e de seu respectivo aplicativo com certeza não foi para beneficio do meu site. Mas quando faço uso dele posso resignificar seu sentido e sua função. Lá no Expresso Diário, o mapa pontuará por meio de latitudes de longitudes todos os contos e situações narrativas que irei criar atuando como uma espécie de índice. É comum, na arte, a tecnologia ser subvertida ideologicamente e/ou funcionalmente pelo artista, pois “ele busca interferir na própria lógica das máquinas e dos processos tecnológicos, subvertendo as ‘possibilidades’ prometidas pelos aparatos e colocando a nu os seus pressupostos, funções e finalidades” (MACHADO, 2007, p.22).
Mesmo propondo um novo formato, ainda imagino que o resultado final está muito próximo do que conheço como livro. Acho este um resultado natural se nos valermos de minha vivência e trabalho com livros impressos. O Expresso Diário pode ser visto como um livro digital ou um site de web-art com objetivos narrativos. E pensando como um livro, podemos classificá-lo como “literatura hipertextual”, gênero que explora a não linearidade e uma leitura transitória por meios de links eletrônicos, permitindo “ao leitor navegador inúmeros caminhos para a leitura de um texto inicial que se torna múltiplo, pois os leitores não se veem diante de um único trajeto de leitura”. Ou ainda como “literatura hipermidiática” considerando o conjunto de hipertextos e “recursos multimidiáticos (sons, imagens, e movimentos)” (CARVALHO, 2010, p.154-169). Pensar em livro+digital resulta no conceito de e-book. O e-book não foi um caminho direcionando como conclusão a cumprir, mas foi algo que atravessou meu percurso. Confesso ter bastante interesse neste assunto, mas infelizmente sei pouquíssimo sobre o universo tecnológico do ramo e-book e suas relações com os e-readers (aparelhos leitores de e-books). Todavia, vejo este esquema de leitura um pouco limitadora, já que determinados e-books só funcionam em e-readers específicos. Na verdade não gostaria de limitar meu livro a um só aparelho de leitura, gostaria que ele fosse um pouco mais livre. Também não desconsidero os limites do meu projeto, pois para acessá-lo devemos usar um computador que tenha acesso à internet. De toda forma, vejo seu acesso mais democrático. Pensar no projeto gráfico do livro foi um assunto bastante delicado, pois será ele o agrupador entre texto e imagem. Eu possuía mais fatores do que o comum para agravar minha situação: resolver estético e funcionalmente texto, imagem, áudios, slides, entre outros. O projeto gráfico, aqui o modelo do site, conduz uma leitura e auxilia na organização do conteúdo. Achei bastante pertinente o comentário que o ilustrador Odilon Moraes fez acerca do projeto gráfico de livros: Da mesma maneira que um projeto de uma casa não se limita a uma ideia de casa, mas sim à ideia de morar dentro de uma forma particular de disposição de espaços e ambientes, assim também o projeto gráfico de um livro propõe seus espaços, compostos por textos e imagens, e constrói um ambiente a ser percorrido. No passar das páginas o projeto gráfico nos indica uma ideia de ler, isto é, uma ideia de um tempo para se olhar cada página, de um ritmo de leitura por meio do conjunto de páginas, de um balanço entre texto e a imagem, para que juntos, componham e conduzam a narrativa. (MORAES, 2008, p.49).
Dividi a estrutura do site Expresso Diário em três grandes áreas
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pensando no compasso da leitura que o visitante poderia ter: a área inicial, a área central, e a área direcionada. Enquanto formulava o modelo do site, fui levando em consideração a poética do assunto sobre o qual estava falando e de como isto poderia me ajudar de alguma forma. Vejamos na Figura.1 um esquema de como estas áreas se relacionam e seus principais fluxos:
Figura.1 Esquema fluxométrico das grandes áreas do Expresso Diário
a) área inicial 22
A área inicial corresponde a homepage do site Expresso Diário, e pode ser acessada pelo seguinte endereço eletrônico: http:// expressodiario.santiagoregis.com. Nela temos uma imagem animada no formato gif com vários personagens num ônibus. Ao passar o mouse sobre a imagem, o ônibus estaciona e abre suas portas como convite para o visitante entrar no site (Figura.2).
Figura.2 Santiago Régis: Expresso Diário, 2013. Homepage do site.
No topo, o título do site é mostrado com características próprias dos letreiros dos transportes coletivos de Goiânia. Nesta área quis explorar uma relação da tipografia que tivesse um estreito contato pictórico com a imagem do ônibus. O recurso do mouse sobre os elementos de web (mouse over), também é bastante pertinente ao meio digital.
b) área central A área central funciona como o menu do site. Chega-se nesta área logo depois de clicar no ônibus da homepage. Fica concentrado aqui o maior número de rotatividade do site, pois cada vez que chegamos a esta página os personagens mudam de forma aleatória criando inúmeros jogos narrativos.
Nesta sessão a tipografia possui uma simbiose ainda maior com a imagem, veja Figura.3. Cada rota mostrada na placa de ônibus é um link para uma pequena história, que a principio estava chamando de conto, mas que agora considero de situação devido à brevidade de muitas micro-narrativas. Estas rotas também são mostradas de forma aleatória dentro da placa de ônibus sempre que chegamos à página.
c) área direcionada Ao escolher uma das rotas na placa de ônibus da página anterior (a área central), o visitante será encaminhado para uma situação narrativa que tem haver com a rota escolhida. Por isso, busquei os números das linhas que geralmente utilizo quando saio de ônibus em Goiânia. Ao todo serão cerca de 80 rotas. Ou seja, 80 situações narrativas (micro-narrativas) que serão apontadas pelas rotas. Este número foi escolhido pela capacidade máxima de lotação dos ônibus populares do transporte coletivo de Goiânia, 79 pessoas. Acrescentei 1 a mais porque sempre tenho a impressão de que os ônibus carregam um volume superior do que suportam. Também será 80, o número de ilustrações rotativas da área central. Todos os personagens principais das situações narrativas estarão presentes na imagem do ponto de ônibus. Mas como nem todas
Figura 3 Santiago Régis: Expresso Diário, 2013. Página de menu com rotas e personagens rotativos.
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Figura 4 Santiago Régis: Expresso Diário, 2013. Área direcionada
as situações possuem personagens protagonistas, então farei ilustrações figurantes até chegar ao número pré-estabelecido. Acho importante conseguir 80 situações em ambas as áreas. Seguindo o sistema de fluxo de navegação pelo site, após o visitante passar por uma das situações escolhidas ele pode voltar para a página de, menu na área central, através do link “volta” ao final da página selecionada. Desta forma, o navegante entra num estado cíclico de navegação entre as duas áreas.
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Até o momento, a área direcionada conta com 5 situações já publicadas e outras em processo. Já a área central possui 10 ilustrações randômicas. As outras postagens e ilustrações serão realizadas com o tempo, pois este projeto tem a finalidade de ser um espaço aberto para minhas experimentações na internet e ilustrando digitalmente (eu que só fazia ilustrações analogicamente). As situações narrativas publicadas nesta área serão bastante sortidas tanto em termos imagéticos quanto midiáticos. Algumas, por exemplo, contam com gifs animadas, com os contos escritos durante o processo do projeto, com áudio de músicas que costumo ouvir por aparelhos celulares de muitos passageiros dos ônibus e etc. Ainda quero fazer vídeos e bolar um material narrativo com gravações que realizei durante meus percursos cotidianos. A realização deste projeto abrirá novos horizontes quanto ao desenvolvimento do meu trabalho artístico como também em possíveis desdobramentos. A saber: mestrado, especializações, doutorado.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Não estou preocupado em tornar/ser um artista contemporâneo, ou estar nos embates da arte em museus e galerias. Estou preocupado com meus interesses e de como eles me levam para questões e assuntos de como lidar e trabalhar com eles narrativamente, imageticamente, etc. Em primeira instância preocupei-me em ser verdadeiro comigo mesmo, pois só assim acredito conseguir qualidade no meu trabalho. A utilidade desta pesquisa não é incomum: pretendo aproximar cada vez mais do meu objeto de estudo. E acredito que esta aproximação trará subsídios para abordar de forma mais efetiva a narratividade das minhas histórias, das minhas ilustrações, compartilhando experiências e conhecimentos. A prática permitiu-me rever meus conceitos sobre livro como objeto narrativo, pensar em novos suportes, outros meios narrativos. Estudar de forma mais consciente a construção do personagem. Pude entender um pouco mais sobre o cotidiano, seu pragmatismo temporal e como ele pode desestabilizar nosso sentido de vida e causar o esvaziamento do ser. Com esta pesquisa pude treinar ainda mais meu olhar para o cotidiano. Perceber em minha volta, os elementos de todo-dia, enfim, novas realidades a serem conferidas. Fazer do Outro, peças dos quebra-cabeças que preencherão minhas personagens. Com certeza, ao final desta primeira jornada adquiri bastantes conhecimentos teóricos a respeito de assuntos que serão novamente abordados na minha produção artística.
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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUM, Lyman Frank. O mágico de Oz. Trad. William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2001. BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de NKatiai Leskov. In:_____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. CALVINO, Italo. As cidades Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003. CANTON, Kátia. Narrativas enviesadas. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. CARROL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do espelho e o Alice encontrou por lá. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
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APÊNDICES Sonho Americano Os dias eram tão cansativos que já desconhecia o descanso. Esperava encostada no muro próximo do ponto, olhando o ônibus ao longe cruzar a esquina e aproximar devagar. Ficava chocada com a rapidez violenta que algumas entravam no ônibus em busca de cadeiras vazias. Se a palavra acento fosse acentuada, com certeza seria por tapas. Contudo, não era dessas. Mesmo as pernas trêmulas, aguentaria em pé e com honra. Que dia era aquele? Dois passageiros seguravam o jornal e falavam sobre a independência dos Estados Unidos, deu notícia. Se não fosse escutar a conversa alheia, certamente não se lembraria do próprio aniversário. Era triste, ela sabia, ter como referência de sua data a independência de um país que nunca conheceu. Logo ela tão dependente do muito trabalho e do pouco dinheiro. Já não sonhava mais. As noites todas iguais: desligava as luzes da casa e apagava-se. Automática acordava para o trabalho, rotina de engrenagem. Mas ainda era 4 de julho e desejava ao menos uma fatia de bolo para confortar o ganho de uma ruga a mais. Em casa, ao invés de congratulações recebeu reclamações pela janta que sairia atrasada. Lançou o conhecido jargão, “quem descansa carrega pedra”. Como galinha que empoleira foi para cama ainda cedo da noite. Antes, porém, olhou o céu escuro e sitiado de luzes. Raramente contemplativa. Lá fora uma estrela explodiu. E outra. Mais outra e depois várias. O céu fervilhou de foguetes. Ela aceitou calada, só para si, os vivas sinalizados. Não sabia a coitada que aquilo era campainha do morro, a droga já estava disponível. O Sol amanhecia e ela partia. Como de costume, todos pensariam que tivesse ido para mais um dia de labuta. Mas desta vez, se perguntassem para onde iria, a resposta decidida na língua diria, “vou cruzar a fronteira”.
Vejo seu futuro Sempre passou por aquela rua. O centro da cidade é feito gueixa, companhia que esconde o sorriso detrás do leque. Algumas ruas dali pareciam desconhecidas até mesmo para os próprios moradores.
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Há quase 60 anos vida de trabalhadora: arrumava, lavava e passava. Um dia, estranhou um estabelecimento. De longe assemelhava bugiganga de 1,99. Iria mais perto para assegurarse. Não, não era. À venda estavam livros, tapetes, mantas, arqueologia, cultura e brilho. Tudo com cara de caro. Olhou o relógio e correu para o ponto, se perdesse o ônibus do horário esperaria muito mais pelo próximo. Dia seguinte tentou disfarçar a vontade pelo fim do expediente. Atravessou a rua assim que saiu do prédio e com passos largos chegou à vitrina. Eram muitos os detalhes para serem olhados, mas entre tantos um lhe prendeu atenção: a bola. Se de vidro ou de cristal não sabia. Sabia, porém, da história que a bola lhe entregou em flashes de nebulosa. O relógio no pulso, o ônibus... No terceiro dia esqueceu até o “boa tarde” para patroa. Do prédio para a vitrina da loja foram dois passos. A bola. O olhar escorreu para ver o preço e assustou. Era salgado como todos os demais produtos. Pagaria, estava decidida. Em casa quebrou o porco gordo por anos de economia.
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Esperar até amanhã seria muito tempo. Voltou para loja correndo e temendo encontrá-la fechada. Ainda no ônibus aguardava ansiosa pela bola. Sabia que depois que entrasse nunca mais retornaria.
Lava roupa todo dia Juntos, iam de casa para o serviço. Juntos, voltavam para casa. As condições de classe média não lhes permitiam carro próprio. Com o tempo, o desgaste e estresse cotidiano puía a relação. Os problemas diários eram lavados a bordo e acompanhados pelos passageiros, como novela. Era a bebida dele, era o secador de cabelo dela, era o leite da caçula, era o namorado da mais velha, era a sogra intrometida, era o cunhado folgado, era a cunhada bisbilhoteira, era a sobrinha fofoqueira, era a chatice do sogro, era a avó que não morria nunca e era a falta de grana. De casa ao serviço brigavam um assunto. Do serviço para casa discutiam outro. O marido, cansado de lavar roupa suja em público e objetivando melhoras na relação, juntou o décimo terceiro e comprou uma máquina de lavar de última geração. Promessa de que os problemas diminuiriam.
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