Histórias da Minha Terra | Por um punhado de terra

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Por um punhado de terra

Severa não acreditava na história de ganhar um pedaço de terra. Uns colegas do marido estavam dizendo que o governo ia distribuir lotes no Sudeste do Pará e ele resolveu tentar a sorte fazendo a inscrição. Descrente, Severa pontuou: “Abílio, meu filho, não vai tirar terra assim,

não”. Mas se passaram alguns dias e Abílio chegou com um papel na mão avisando que era para cuidar de tudo, porque o caminhão velho, o pau-de-arara, como o povo todo chama, já estava lá fora, com o pessoal subindo os pertences.

Na boléia do caminhão iam só o motorista e o filho, mas na traseira, amontoados como dava, estavam os pertences de seis famílias. Parecia muita coisa para o espaço reduzido, mas o moço dizia que tinha lugar até para levar uma casa. Pelejaram, coube o que havia. Por cima de tudo foi o colchão de casal, era ortopédico, e Severa não queria largar para trás. Fome no começo dos tempos, eles não iam passar. Severa e Abílio juntaram dez sacos de mantimentos: era saca de feijão de arranque, de feião trepa pau, de açúcar e de arroz. Lata de gordura e lata de carne de porco frita preparada em casa. O segredo da carne de lata está em tirar toda a água, a carne precisa estar bem sequinha para durar. Pega muito gosto. As famílias foram em um ônibus fretado para a viagem, a deles foi a derradeira

a entrar no veículo, mas tinha lugar reservado para os oito filhos que seguiam viagem com os pais. Só não embarcou a filha mais velha, que já era mãe em Goiás. Severa carregou a máquina de costura da marca Singer, que usava para costurar roupa para os filhos. Abílio improvisou um chiqueiro para botar os três porcos: uma leitoinha, um leitão e o caçulinha, um porquinho preto. Fez outro cercadinho para levar as galinhas.

Quando o motorista anunciou a saída, as amigas de Severa foram se esconder para não ver sua partida. Ela dentro do ônibus sentia que ia morrendo e vivendo, assim tudo junto. Não era coisa de facilidade deixar uma vida para trás.

Nessa hora, apareceu Joana Dourada, a dona de um hotel em Araguaína, e disse “Ei, Severa! Bota a mão aí que eu quero te dar uma coisa”. Severa pôs o braço para fora da janela e Joana Dourada colocou a mão cheia

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de terra na sua. “Isso aí é pra tu lembrar de mim.” Teve gente que riu achando graça, mas as vistas de Severa encheram de lágrimas. Joana também entregou um saco de tudo quanto é semente - coentro, alface, tomate, salsa, cebolinha - e recomendou que Severa fosse no Pará a mesma verdureira que era em Goiás. Depois, o ônibus pegou a estrada. Em Cedere, dez alqueires esperavam por eles, mas nunca que chegava, era muita distância. Os meninos cansados

reclamavam da lonjura. Quando pararam para pegar a balsa na beira do rio aproveitaram para dar água aos bichos. Nessa hora, “avoou” a galizé, a galinha mais bonitinha da turma. Severa não fez reparo, só comentou “Ah, essa já se foi!”. Um dos filhos, o João, tentou mais outros homens pegarem aquela galinha, mas ela foi s´embora, se mandou, pegaram foi nada. Custou horas, mas chegaram. Cada qual foi indicado para um lote. O ônibus

parava e, na frente de cada casa, apeava uma família. Além da galizé, Severa perdeu na mudança também um pé da cama, que chegou no novo lar perneta. No dia seguinte, vida nova. As galinhas foram saindo do cercadinho dando gaitada: “pruuuu”, se alegraram foi muito! Para os porquinhos, Abílio fez um chiqueiro e botou o milho para os três animais. E não tardou em limpar o terreno e cavar um poço. Pena que a água não prestava, parecia Sal Amargo, remédio de sulfato de

magnésio indicado como purgante. Nem para lavar roupa aquela água tinha muita serventia, o excesso de sal não deixava o sabão pegar. Mas logo isso ia se resolver. Trabalhadora, Severa num instante já tinha feito os canteiros. Ela semeou suas sementes e as plantas vingaram. Todo mundo carregava cheiro-verde da sua casa. Era cada pé de alface formoso que só vendo. Dona Joana Dourada tinha razão, era mesmo para ela continuar como verdureira no Pará.

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