Fortalecimento dos povos e das organizações indígenas

Page 1



A SÉRIE PESQUISA DIREITO GV TEM COMO OBJETIVO PUBLICAR PESQUISAS E TEXTOS DEBATIDOS NA ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. A SELEÇÃO DOS TEXTOS É DE RESPONSABILIDADE DA COORDENADORIA DE PUBLICAÇÕES.


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS Paulo Celso de Oliveira Pankararu Organizador


ESTA OBRA ESTÁ LICENCIADA SOB A LICENÇA CREATIVE COMMONS ATRIBUIÇÃO NÃO COMERCIAL 4.0 INTERNACIONAL (CC BY-NC 4.0), EXCETO ONDE ESTIVER EXPRESSO DE OUTRO MODO, PERMITINDO-SE CÓPIAS E REPRODUÇÕES, NO TODO OU EM PARTE, DESDE QUE PARA FINS NÃO COMERCIAIS E COM IDENTIFICAÇÃO DA FONTE.

EDITORA-CHEFE CATARINA HELENA CORTADA BARBIERI EDIÇÃO LYVIA FELIX PREPARAÇÃO ELIANE SIMÕES PEREIRA REVISÃO LYVIA FELIX PROJETO GRÁFICO, EDITORAÇÃO E CAPA ULTRAVIOLETA DESIGN

Fortalecimento dos povos e das organizações indígenas / organizador, Paulo Celso de Oliveira Pankararu ; colaboradora, Aline Gonçalves de Souza. – São Paulo : FGV Direito SP, 2019. 88 p. – (Coleção Pesquisa Direito GV) ISBN 978-85-64678-37-8 1. Índios da América do Sul – Brasil – Sociedades, etc. 2. Índios da América do Sul – Brasil – Autonomia. 3. Índios da América do Sul – Brasil – Política e governo 4. Índios da América do Sul – Brasil – Impostos. I. Pankararu, Paulo Celso de Oliveira. II. Souza, Aline Gonçalves de. III. Fundação Getulio Vargas. IV. Título.

CDU 323.15(81)

Ficha catalográfica elaborada por: Cristiane de Oliveira CRB SP-008061/O Biblioteca Karl A. Boedecker da Fundação Getulio Vargas – SP

FGV DIREITO SP COORDENADORIA DE PUBLICAÇÕES RUA ROCHA, 233, 11º ANDAR BELA VISTA – SÃO PAULO – SP CEP: 01330-000 TEL.: (11) 3799-2172 E-MAIL: PUBLICACOES.DIREITOSP@FGV.BR DIREITOSP.FGV.BR


PREFÁCIO POVOS INDÍGENAS: CONJUNTURAS E DESAFIOS Constituição de 1988 foi fruto do mais amplo processo de pactuação social de nossa história. O resultado foi um documento reativo tanto a um passado imediato de autoritarismo e arbítrio, como a um passado mais longevo de desigualdade, discriminação e violência. A Constituição de 1988 reconheceu uma generosa carta de direitos, assim como inúmeras políticas voltadas ao estabelecimento de uma “sociedade livre, justa e solidária”. No campo indígena, foram inúmeros os avanços. Reconheceram-se não apenas os direitos à organização social e cultural, aos costumes, às línguas e às tradições, mas também os direitos originários às terras que os povos indígenas tradicionalmente ocupam. Nestas três últimas décadas muitos foram os avanços alavancados pela Constituição e levados a cabo pelos governos que se sucederam, ainda que haja um longo caminho a ser percorrido. Vivemos um momento conturbado da história democrática, não apenas no Brasil. Após diversas décadas de expansão da democracia, assim como dos regimes de direitos humanos, temos assistido a um processo de regressão em muitos países. Até mesmo algumas democracias estabilizadas têm adotado medidas que restringem direitos. No Brasil, as eleições de 2018 impuseram um enorme desafio a nossa democracia constitucional. Manifestações de hostilidade a grupos vulneráveis, uma forte polarização política e social, além de uma retórica intransigente e hostil à gramática básica dos direitos, obrigam-nos a assumir uma postura de maior cautela e vigilância. Em contextos semelhantes ao nosso, os direitos dos grupos mais vulneráveis são os primeiros a serem postos em xeque. Os povos indígenas, nesta trilha de erosão de diretos de grupos minoritários, veem-se ainda mais ameaçados. Em outros países que ingressaram em um processo de regressão democrática, como a África do Sul, a Rússia, a Hungria, a Índia, a Venezuela ou a Turquia, a primeira onda regressiva foi a que se manifestou contra as organizações da sociedade civil. Nesses países, as fissuras no edifício democrático começaram a se estabelecer a partir de ataques às instituições e aos direitos que constituem a infraestrutura que habilita a própria existência dos regimes democráticos. No Brasil, embora tenhamos assistido, nas primeiras três décadas, a qualquer ataque direto ou restrição de direitos voltados a reduzir o espaço de

A


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

liberdade das organizações da sociedade civil, também não fomos capazes de remover uma série de barreiras burocráticas e um cipoal jurídico que impôs sérias dificuldades ao fortalecimento de muitas organizações. O comportamento dos atores institucionais, responsáveis pela implementação das leis, é coeficiente comprometedor da sustentabilidade e da autonomia das organizações da sociedade civil. Parte das organizações passou, reflexamente, a funcionar a reboque do Estado. Iniciou-se, nesse sentido, um processo de fragilização da sociedade civil. Hoje, portanto, passamos por um duplo desafio: não apenas necessitamos defender o campo da sociedade civil dos ataques que se aproximam, como seria essencial remover as amarras que reduzem a autonomia das organizações. Se há um caminho a ser trilhado para ampliarmos a resiliência da sociedade civil, esse caminho passa por um debate com os povos indígenas. Se não conseguirmos avançar na reafirmação dos direitos desses povos, não conseguiremos chegar à solução de outras questões estruturantes em nosso país. Temos que incorporar a tecnologia social indígena, que tão habilmente articula múltiplos ordenamentos jurídicos dentro de uma mesma base, em nossa sociedade. Tecnologia esta que não se pode, em nome de uma ideia equivocada de soberania estatal, lateralizar. A inserção do art. 231 na Constituição foi o justo reconhecimento da necessidade de saldar dívidas históricas de nossa sociedade e da existência de direitos originais (prévios à Constituição) dos povos indígenas. Portanto, se houve o reconhecimento constitucional, tudo aquilo que ulteriormente obstaculizou, turbou tais direitos, é notadamente contrário à ordem jurídica. Há grande importância de se reforçar o espaço de autonomia das organizações da sociedade civil, especialmente no campo dos direitos indígenas. Essa constatação soou muito fortemente nas falas dos presentes no “OSC em Pauta: Povos Indígenas – Conjunturas e Desafios”, evento promovido pela Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada da FGV Direito SP, com apoio da União Europeia, e pelo escritório Dora, Azambuja e Oliveira – Advocacia de Direitos Humanos, com apoio da Ford Foundation, cuja memória foi registrada nesta publicação. Os participantes se preocuparam em pensar nas maneiras pelas quais devemos proteger a Constituição, os direitos, a democracia e os compromissos firmados ao longo destas décadas. O debate com lideranças indígenas apresenta-se como uma rica fonte


PESQUISA DIREITO GV

de inspiração para todos aqueles engajados na defesa dos direitos de minorias, assim como na tarefa de impedir o processo de regressão democrática. Desejo a todos uma boa leitura!

Oscar Vilhena Vieira Diretor da Escola de Direito de São Paulo da FGV. Pós-Doutor pelo Centre for Brazilian Studies – St. Antonies College, Universidade de Oxford. Doutor e Mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade de Columbia, Nova York. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.



APRESENTAÇÃO sta publicação reúne artigos elaborados por lideranças indígenas e pesquisadores a partir dos debates de dois encontros realizados em 2017 na FGV Direito SP para aprofundamento da reflexão sobre as questões indígenas relacionadas à conjuntura e ao ambiente jurídico. Esses encontros foram frutos da parceria entre a Dora, Azambuja e Oliveira – Advocacia de Direitos Humanos e a Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da FGV Direito SP. Contaram ainda com o apoio da Fundação Ford, escritório Brasil, e também da União Europeia, Instituto C&A, Instituto Arapyaú e Fundação Lemann no âmbito do Projeto Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil, desenvolvido pela CPJA, em parceria com o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). O primeiro encontro foi o seminário aberto “Povos Indígenas: Conjunturas e Desafios”, realizado no dia 13 de novembro de 2017, que, com transmissão ao vivo, atingiu mais de 2.000 pessoas. Nele, após a abertura institucional, o protagonismo foi de lideranças indígenas de organizações como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB); a União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB); a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sudeste (ARPINSUDESTE); a Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) e o Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI). O segundo foi o workshop denominado “OSC em Pauta: Fortalecimento Institucional de Organizações Indígenas e o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil”, realizado no dia 14 de novembro de 2017. Cerca de 30 participantes, entre lideranças e representantes de organizações indígenas e pesquisadores da FGV e de outras instituições, estiveram reunidos durante um dia para debater temas organizados em três blocos: (i) organizações indígenas e liberdade associativa; (ii) tributação incidente sobre as organizações; e (iii) parcerias com o poder público. Para garantir a integração dos participantes e fomentar a realização de um debate gregário a partir das diferentes experiências, para cada bloco havia uma pessoa responsável pela apresentação inicial e, em seguida, ao menos dois debatedores que compartilhavam experiências concretas sobre o tema, seguidos da participação geral dos demais convidados. Em cada um dos blocos buscou-se a diversidade de falas entre lideranças indígenas,

E


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

representantes de organização indígena e pesquisadores, ressaltando que alguns participantes indígenas possuem formação na área do direito, o que permitiu uma interação bastante rica. Com o aprofundamento da constatação de que o ambiente jurídico ainda não reconhece especificidades dos povos e das organizações indígenas, bem como diante dos aprendizados a partir dos casos concretos compartilhados, as instituições organizadoras dos eventos vislumbraram a importância de registrar o acúmulo dos debates. Foi a partir desse objetivo comum que o coordenador desta publicação, Paulo Celso de Oliveira Pankararu, convidou os participantes a elaborar artigos a partir de suas falas ao longo dos encontros. Organizados nesta publicação, que contou com o apoio da pesquisadora da FGV Direito SP Aline Gonçalves de Souza e da assistente de pesquisa Letícia de Oliveira, os artigos refletem a opinião pessoal de seus autores e buscam contribuir para o avanço na pesquisa e no debate sobre os temas jurídicos e institucionais relacionados aos povos e às organizações indígenas.


PARTICIPANTES DOS ENCONTROS REALIZADOS NA FGV DIREITO SP EM 2017

ALINE GONÇALVES DE SOUZA PESQUISADORA DA FGV DIREITO SP ANGELA AMANAKWA KAXUYANA COORDENADORA TESOUREIRA DA COORDENAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DA AMAZÔNIA BRASILEIRA (COIAB) CACIQUE DARÃ COORDENADOR-GERAL DA ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DA REGIÃO SUDESTE (ARPINSUDESTE) CARLOS BARRETO GESTOR DE PROJETOS DO INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA) CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO PROFESSOR DA PUCPR E ADVOGADO CAROLINA GABAS STUCHI PESQUISADORA DA FGV DIREITO SP E PROFESSORA NA UFABC DENISE DORA ADVOGADA EM DORA, AZAMBUJA E OLIVEIRA – ADVOCACIA DE DIREITOS HUMANOS DIMAS FONSECA PEREIRA ADVOGADO DA COORDENAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DA AMAZÔNIA BRASILEIRA (COIAB) EDER ALCANTARA OLIVEIRA TERENA LIDERANÇA DO CONSELHO TERENA EDUARDO PANNUNZIO PESQUISADOR DA FGV DIREITO SP ÉLIDA LAURIS FÓRUM JUSTIÇA IVAN BRIBIS RODRIGUES KAINGANG BACHAREL EM DIREITO E CONSELHEIRO – TERRA INDÍGENA RIO DAS COBRAS JULIANA BATISTA ADVOGADA DO INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA) LAÍS DE FIGUEIREDO LOPES EX-ASSESSORA ESPECIAL DA SECRETARIA-GERAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA E ADVOGADA NA ÁREA DO TERCEIRO SETOR LETÍCIA CAMPOS ADVOGADA, MESTRE EM DIREITO SOCIOAMBIENTAL


LÚCIA FERNANDA JÓFEJ KAINGANG ADVOGADA DO INSTITUTO INDÍGENA BRASILEIRO PARA PROPRIEDADE INTELECTUAL (INBRAPI) LUIZ HENRIQUE ELOY TERENA ADVOGADO DO CONSELHO TERENA MARCELO AZAMBUJA DORA, AZAMBUJA E OLIVEIRA – ADVOCACIA DE DIREITOS HUMANOS MARIANA LEVY GERENTE DE ADVOCACY DO GRUPO DE INSTITUTOS, FUNDAÇÕES E EMPRESAS (GIFE) NATÁLIA DE AQUINO CESÁRIO PESQUISADORA DA FGV DIREITO SP OSCAR VILHENA VIEIRA DIRETOR DA FGV DIREITO SP PAULA RACCANELLO STORTO ADVOGADA, PROFESSORA E PESQUISADORA NA ÁREA DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL PAULO CELSO DE OLIVEIRA PANKARARU DORA, AZAMBUJA E OLIVEIRA – ADVOCACIA DE DIREITOS HUMANOS PAULO HENRIQUE V. OLIVEIRA TUPINIQUIM COORDENADOR GERAL DA ARTICULAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES E POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE, MINAS GERAIS E ESPÍRITO SANTO (APOINME) ROSIVALDO RODRIGUES TELES DEPARTAMENTO FINANCEIRO DA FEDERAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DO RIO NEGRO (FOIRN) SUSANA ANDRÉA INÁCIO BELFORT KAINGÁNG ADVOGADA DO INSTITUTO INDÍGENA BRASILEIRO PARA PROPRIEDADE INTELECTUAL (INBRAPI) TACIANA GOUVEIA COORDENADORA DE PROJETOS DO FUNDO BRASIL DE DIREITOS HUMANOS TELMA TAUREPANG COORDENADORA-GERAL DA UNIÃO DAS MULHERES INDÍGENAS DA AMAZÔNIA BRASILEIRA (UMIAB)


SUMÁRIO PARTE I – ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS E LIBERDADE ASSOCIATIVA ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

17

CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO

POVOS INDÍGENAS E RECONHECIMENTO DA AUTONOMIA

21

PAULO CELSO DE OLIVEIRA PANKARARU

LIBERDADE DE ORGANIZAÇÃO E DE ASSOCIAÇÃO DE POVOS INDÍGENAS: UMA AGENDA DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

29

ELOÍSA MACHADO DE ALMEIDA

LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO E ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS NO BRASIL

35

PAULA RACCANELLO STORTO

PARTE II – TRIBUTAÇÃO INCIDENTE SOBRE AS ORGANIZAÇÕES A TRIBUTAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL

45

EDUARDO PANNUNZIO

TRIBUTAÇÃO DE ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS: IMUNIDADE OU ISENÇÃO?

55

MARCELO ANDRADE DE AZAMBUJA

PARTE III – PARCERIAS COM O PODER PÚBLICO OS AVANÇOS OBTIDOS NAS PARCERIAS COM O ESTADO PARA AS ORGANIZAÇÕES DE POVOS INDÍGENAS A PARTIR DA NOVA LEI N. 13.019/2014

61

LAÍS DE FIGUEIRÊDO LOPES

CONVÊNIO INBRAPI E IPHAN: PROJETO EG RÁ – NOSSAS MARCAS

69

SUSANA ANDRÉA INÁCIO BELFORT KAINGÁNG

FOIRN: A BUSCA PARA SUPERAR DESAFIOS DE GESTÃO FINANCEIRA ROSIVALDO RODRIGUES TELES

73


AS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS E A LEI N. 13.019/2014 – MARCO REGULATÓRIO DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL: OPORTUNIDADES E DESAFIOS

77

CAROLINA GABAS STUCHI E NATÁLIA DE AQUINO CESÁRIO

CONCLUSÃO DENISE DOURADO DORA

85


PARTE I ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS E LIBERDADE ASSOCIATIVA



ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS Carlos Frederico Marés de Souza Filho*

PRELIMINARES Todos os membros de um povo indígena conhecem sua organização social, naturalmente, sem precisar de papéis. Os intelectuais indígenas mostram como e por que sua organização não precisa de papel nem de contrato para viver em harmonia e poder resolver os conflitos que naturalmente aparecem no convívio social.1 O contrato é característica da sociedade moderna, as sociedades indígenas, os povos indígenas, são povos detalhadamente organizados, desde sempre, sem necessidade de contrato social. Outros povos na América Latina também se organizaram dessa maneira, como os quilombolas e os chamados povos tradicionais. Há muitas diferenças sociais, organizativas e culturais entre esses povos. Cada povo tem sua própria organização com características específicas. Contudo, o que os diferencia em bloco da sociedade envolvente, moderna, hegemônica e capitalista é que têm organização social coletiva e não dependem do mercado e da produção industrial, ainda que possam estabelecer negócios e trocas com ela, mas internamente se regem por regras próprias, por isso não precisam de contrato e de papéis, não têm no individualismo e nos direitos individuais o centro da vida social. Pode-se dizer que as sociedades indígenas têm maior clareza dessas diferenças do que os demais povos tradicionais, porque todos os outros para nascerem tiveram que sair da sociedade hegemônica e negá-la, como os quilombolas que lutavam contra a escravidão. No fim da década de 1970, mas principalmente no começo da década de 1980 do século XX, tempo em que o genocídio era uma ameaça real e diária da ditadura militar que queria resolver o “problema indígena” com o extermínio dos povos, começou um grande movimento unindo povos da América Latina, com forte apoio das universidades, especialmente da Antropologia. Até esse período cada povo na América Latina enfrentava com suas

*

Carlos Frederico Marés de Souza Filho é Professor Titular de Direito Socioambiental da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Doutor em Direito do Estado.

1

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. São Paulo: Cia das Letras, 2015. 17

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

próprias forças a tirania da sociedade envolvente.2 Ainda que tenham obtido vitórias, sempre eram parciais. Por isso esses povos passaram a se juntar, formando organizações que juntassem vários povos, aumentando assim a sua força. No Brasil, intelectuais indígenas juntaram-se a lideranças tradicionais e formaram a União das Nações Indígenas (UNI).

AÇÕES JUDICIAIS PROPOSTAS PELOS POVOS Então universidades, antropólogos e juristas passaram a oferecer apoio às novas organizações indígenas que surgiam com a ideia de utilizar os direitos já estabelecidos em lei e nos tratados de direitos humanos para garantir os direitos. A essência dos direitos reclamados é dupla: o direito de existir e o de estar em um território determinado, ambos coletivos. O Estado tem muita dificuldade em reconhecer o direito de existir de um povo porque implica reconhecer um direito coletivo e o Estado foi criado sobre e para os direitos individuais, sempre negando os coletivos. Tampouco é fácil reconhecer o direito do estar, que é o direito ao território, isso porque o Direito do Estado só reconhece direitos de terras para produção capitalista, o que chama de propriedade da terra, e a terra indígena é terra de vida, não é propriedade para produção de mercadorias, é uma terra que contém as condições de reprodução cultural e social do povo, com toda a natureza que há em cima dela, inclusive as gentes. É claro que as gentes, os povos, alteram a natureza, mas sempre permitindo que todos os seres vivos se mantenham. Foi definido, então, que os povos deveriam entrar com ações judiciais apoiados pelos advogados e antropólogos com base no Estatuto do Índio e na precária Constituição que havia (Constituição de 1967). Alguns povos resolveram criar associações segundo o modelo do direito moderno, com papéis e contratos, mas elas eram de difícil realização e pouca serventia para o propósito de propor ações. Duas dificuldades eram marcantes: a contratação de advogados para as ações e de contadores para manter a associação e a comprovação do efetivo interesse processual da associação para defender uma terra que não lhe pertencia. Por outro lado, a Fundação Nacional do Índio (Funai) não poderia entrar com as ações, porque em geral as ações eram exatamente contra ela.

2

A propósito, ler o artigo: MARÉS, Carlos. A essência socioambiental do constitucionalismo latino-americano. Revista da Faculdade de Direito da UFG. v. 41, n. 1, 2017. 18

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

A primeira ação foi do povo Gavião com procuração firmada por escritura pública pelo capitão Krohokenoum, grande líder do povo. Como não se podia chamar de povo, quem entrou com a ação foi a comunidade. Mesmo assim a grande dificuldade foi o juiz entender que uma comunidade sem personalidade jurídica, que é como o Direito chama as associações com papéis e contratos, pudesse reivindicar em seu nome em juízo. Foi muito difícil, mas essa parte foi superada. O povo ganhou a ação e até hoje está em fase de execução. A segunda ação foi em defesa do território do povo Ticuna. Foi mais fácil, era uma ação contra a Funai, pela demarcação. Não houve questionamento sobre a legitimidade do povo Ticuna sem papel nem contrato. A Funai foi citada, reconheceu o direito Ticuna e a ação acabou com a terra demarcada. Todo esse movimento era conduzido pela UNI e, depois, pela Aliança dos Povos da Floresta. Esse processo todo preparou os indígenas e suas organizações para a constituinte de 1997 e 1988, que resultou nos arts. 231 e 232 da Constituição Federal do Brasil. O art. 232 afirma que os índios, suas comunidades e organizações têm legitimidade para estar em juízo, resolvendo todo o problema anterior. Isto é, os povos indígenas não precisam ter organizações formais para reivindicar seus direitos coletivos nem para gerir os direitos coletivos.

OS POVOS INDÍGENAS E A ORGANIZAÇÃO FORMAL Quando um povo precisa se relacionar com partes da sociedade capitalista, como bancos, empresas ou agentes específicos do poder público, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ou ainda quando precisa ser consultado sobre atos administrativos e legislativos que afetam seus direitos, necessita de formas de organização diferentes das tradicionais. Isso pode trazer problemas internos, por isso precisa ser muito bem-feito. A forma que a sociedade envolvente exige para esse tipo de relação é o contrato, os papéis, porque se tratam de bens materiais de propriedade. Tratam, em última instância, de dinheiro. A sociedade moderna é a sociedade da acumulação do dinheiro. Para fazer um contrato, portanto, as sociedades indígenas precisam do que se chama personalidade jurídica e, para isso, precisam fazer organizações de papel. Então, para contratos de papel precisam de organizações de papel. 19

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

As sociedades indígenas, para sua própria organização, não precisam de papel, e, se a forma moderna substituir a forma tradicional, a cultura indígena está sendo violentada e, o que é tão ruim quanto, está sendo desorganizada. Lá no início se dizia que as sociedades indígenas são as mais organizadas da América com suas estruturas tradicionais. Se a sociedade perde a tradicionalidade, perde sua organização, corre um grande risco de desmoronar, de deixar de existir enquanto povo tradicional. O risco, portanto, é muito grande. Por isso, essas organizações indígenas de papel devem ser muito bem trabalhadas e o povo tem que ter clara a sua finalidade e o seu alcance, bem como a sua relação de submissão com as estruturas e as autoridades tradicionais. Em geral essas organizações de papel servem para a comercialização de produtos, seja para compra ou para venda, seja para manter patrimônio e propriedade de bens. Quer dizer: servem para assinar contratos. Os contratos feitos em nome de um povo são consentimentos e, portanto, devem passar por um processo de consulta interna ao povo e a suas autoridades tradicionais. Para isso, muitos povos não só indígenas, mas também quilombolas e outros povos tradicionais, têm estabelecidos “protocolos”, chamados em geral de protocolos de consulta prévia, que servem tanto para dar respostas às consultas que o poder público é obrigado a fazer sempre que houver empreendimentos ou leis que afetem os direitos do povo, como para estabelecer consentimento de acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade. Esses mesmos protocolos podem servir para outros consentimentos contratuais. É a forma como cada povo está construindo a relação com o Estado e a sociedade envolvente, utilizando instrumentos que aprenderam com a modernidade de modo eficaz, sem comprometer sua cultura e organização tradicional. É claro que essas organizações podem ter objetivos específicos, como a Organização dos Professores Ticuna, voltada para a educação em língua Ticuna, para ensinar o que o povo quer aprender. Essas organizações específicas podem ser muito úteis, mas a força dos povos está na sua tradição, isto é, organizações que juntem povos para a luta por direitos não precisam estar no papel, porque sua força não deriva de aceites prévios e contratos, mas da determinação e do apoio das lideranças e autoridades tradicionais. Assim foi com a introdução dos direitos indígenas na Constituição de 1988, com o estabelecimento da Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), com o Decreto Quilombola de 2003, etc. Todos foram grandes movimentos de povos sem organização de papel, mas com propostas claras e coerentes de inclusão nos direitos de papel dos direitos coletivos dos povos. 20

:

sumário


POVOS INDÍGENAS E RECONHECIMENTO DA AUTONOMIA Paulo Celso de Oliveira Pankararu*

urante grande parte do século XX, o Brasil adotou a política de integração dos indígenas à sociedade nacional, a qual os considerava culturalmente atrasados e que, para alcançarem o pleno desenvolvimento cultural, dito civilizado, deveriam ser assimilados pela sociedade nacional, ou seja, os conduzia ao desaparecimento.1 A União das Nações Indígenas (UNI) e diversas lideranças dos povos indígenas se articularam com diferentes setores da sociedade civil no período da Constituinte de 1988, com o propósito de abolir a política integracionista, reconhecer a diversidade sociocultural e os direitos territoriais originários. O art. 231 da Constituição Federal rompeu enfim com a política integracionista, reconhecendo aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. A organização social indígena é a estrutura social formada pelos indivíduos que se vinculam pela identidade cultural, costumes, história, ocupação do território e sentimento de pertencimento. O reconhecimento da organização social indígena corresponde ao direito de auto-organização, que é a forma como um povo indígena se organiza para manter a própria identidade cultural, o controle do território e das riquezas naturais e a definição dos poderes internos de representação.2 Assim, ainda que de maneira tímida, a constituição reconhece a autonomia dos povos indígenas.

D

*

Indígena Pankararu, advogado. Mestre em Direito Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e sócio do Dora, Azambuja e Oliveira – Advocacia de Direitos Humanos.

1

“O longo processo de colonização e de construção do Estado Nacional brasileiro teve, no direito moderno positivado, um dos mais eficazes mecanismos de exclusão. Este, fundamentando a Política Indigenista do Estado, legitimou práticas genocidas, etnocidas e epistemicidas, responsáveis pela depopulação e pelo desaparecimento ou descaracterização de numerosas culturas e povos indígena”. DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. Descolonialidade e direitos humanos dos povos indígenas. Revista de Educação Pública, Cuiabá, EdUFMT, v. 23, n. 53/1, p. 362, maio./ago. 2014.

2

“Mais delicado que os demais direitos coletivos dos povos indígenas, este direito de auto-organização diz respeito à forma como o povo mantém viva a sua cultura 21

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

Como instrumento para a realização dos direitos acima mencionados, o art. 232 da Constituição conferiu legitimidade aos índios, a suas comunidades e a suas organizações para ingressarem em juízo em defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas. Carlos Frederico Marés de Souza Filho esclarece que esse dispositivo trata da legitimidade dos índios para a defesa de seus direitos coletivos, enquanto povos indígenas, uma vez que a legitimidade para defender os direitos individuais já faz parte do sistema jurídico; organizações indígenas são constituídas formalmente e atuam de acordo com a legislação civil, e as comunidades indígenas são decorrentes do reconhecimento da organização social indígena.3 Assim, além de estabelecer a liberdade de associação como um direito universal, o que contempla os povos indígenas, a Constituição adotou como categoria específica as organizações indígenas, que são criadas e atuam de acordo com a legislação civil para defender judicial e extrajudicialmente os direitos e interesses dos povos indígenas. Merece ser ressaltado que a organização social indígena a que se refere o art. 231 da Constituição é formada de acordo com o direito costumeiro e compreende as instituições de governança interna dos povos indígenas sobre seus territórios. A organização indígena é constituída de acordo com a legislação do país e atua para defender os direitos dos povos indígenas judicial e extrajudicialmente.4 De fato, as organizações indígenas mantêm relação de complementariedade com as instituições costumeiras dos povos indígenas e desempenham relevante papel no acompanhamento das questões indígenas junto ao poder público. De todo modo, é importante considerar que o Estado não tem a prerrogativa de exigir dos povos indígenas que constituam organizações formais para acessarem políticas públicas, uma vez que se fizesse tal exigência violaria o reconhecimento da organização social indígena.

e preserva o seu território, porque é a garantia do estabelecimento de poderes internos de representação e, inclusive, de definição de legitimidades internas para reivindicação dos direitos [...]”. SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá, 1999, p. 184, passim. 3

Ibidem, p. 155.

4

Ver: MAIA, Luciano Mariz. Comunidades e organizações indígenas, legitimidade processual e outros aspectos jurídicos. In: SANTILLI, Juliana (coord.). Os direitos indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Núcleo de Direitos Indígenas/Sergio Antônio Fabris Editor, 1993, p. 282. 22

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

A Convenção n. 169 sobre povos indígenas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada em 1989,5 reconheceu os direitos territoriais, os modos próprios de vida, o direito costumeiro e as instituições dos povos indígenas. O art. 6º, 1A, da Convenção determina que os governos realizem consultas aos povos indígenas, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente. O direito de ser consultado faz parte do direito de participar na definição e execução das políticas e programas que impactam as terras e os povos indígenas, e também traduz o reconhecimento da autonomia dos povos indígenas.

AUTODETERMINAÇÃO E AUTONOMIA DOS POVOS INDÍGENAS A autodeterminação é um direito de todos os povos estabelecido pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos Sociais e Culturais, ambos promulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1966. O termo autodeterminação tem vários significados. Para a corrente clássica, a autodeterminação relaciona-se à ideia de que um povo que se encontra subjugado por uma relação de colonialismo tem o direito de superar tal relação e tornar-se independente, ou seja, constituir um novo Estado. Essa concepção é decorrente do processo de descolonização dos países africanos, que conquistaram sua independência e formaram novos Estados na década de 1960. Critica-se essa concepção pelo fato de limitar a autodeterminação à situação de um povo subjugado e ao direito de secessão.6 No contexto dos direitos humanos, a autodeterminação refere-se ao direito que os povos têm de viver em um ambiente democrático, exercer os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, não sofrer

5

A Convenção n. 169 foi ratificada pelo Decreto Legislativo n. 143, de 20 de junho de 2002 e promulgada pelo Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004, o que significa que foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro e deve ser aplicada em decorrência do compromisso assumido pelo país perante a OIT e pela obrigatoriedade de implementar as normas que fazem parte da legislação brasileira.

6

ANAYA, S. James. Los pueblos indígenas en el Derecho Internacional. 2. ed. Madrid: Editorial Trotta Universidad Internacional, 2004, p. 142, passim. 23

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

discriminação, manter relação de paz, respeito e cooperação com outros povos, sem necessariamente se constituírem como Estados. Por sua vez, a autonomia é uma dimensão da autodeterminação e consiste no direito de um povo decidir sobre seus assuntos internos e locais de acordo com suas próprias regras e aspirações. A autonomia também compreende o direito de um povo ser governado por seu legítimo governo e decidir sobre o seu desenvolvimento social, econômico e cultural. As mobilizações dos povos indígenas no cenário internacional deram origem ao Projeto de Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e ao Projeto de Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, os quais incluíram dispositivos referentes ao reconhecimento da autodeterminação dos povos indígenas. As primeiras reações dos Estados foram contrárias ao reconhecimento da autodeterminação dos povos indígenas, o que levou esses projetos a tramitarem por mais de 20 anos até serem aprovados.7 Durante os debates que antecederam a promulgação das citadas declarações, os representantes dos governos alegavam que, se aprovassem a autodeterminação dos povos indígenas, estariam possibilitando que tais povos se separassem dos países onde vivem para constituir novos Estados. Os representantes dos povos indígenas discordavam plenamente desse posicionamento dos Estados. Eles argumentavam que os povos indígenas têm sua própria cosmovisão, modos próprios de vida, identidade cultural, instituições de governança, forma de ocupação de territórios e direito costumeiro, e deveriam ter o reconhecimento da autodeterminação para decidirem sobre seus destinos de acordo com suas aspirações. Argumentavam também que a autodeterminação faz parte dos direitos humanos de todos os povos, inclusive dos povos indígenas, que não pretendiam se constituir como Estados, e negar-lhes tal direito seria um tratamento discriminatório. Foram realizadas várias reuniões entre os representantes dos Estados e dos povos indígenas no âmbito da ONU e da Organização dos estados Americanos (OEA). Os Estados passaram a se manifestar favoráveis ao reconhecimento da autodeterminação dos povos indígenas com a ressalva de que o reconhecimento desse direito não incluiria o direito de secessão.

7

Ver: COUBERT, Robert T. The law of self – Determination and the United Nations on the rights of indigenous people. Disponível em: <http://indianlaw.org/ sites/default/files/UCLA%20Self-Det.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2018. 24

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

Seguiram-se as negociações entre os representantes dos Estados e os representantes dos povos indígenas, que permitiram chegar ao consenso para a aprovação das declarações em questão. Assim, em 2007 a Assembleia Geral da ONU promulgou a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que reconheceu os direitos territoriais, as instituições sociais e políticas, o direito costumeiro, os sistemas próprios de educação e saúde e o direito de ser consultado nos casos de políticas e programas que impactam os povos indígenas e seus territórios, todos relacionados ao direito de autodeterminação. Essa declaração reconheceu o direito de autodeterminação dos povos indígenas com a ressalva de que tal reconhecimento não inclui o direito de secessão. Em 2016 a Assembleia Geral da OEA promulgou a Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas que, em linhas gerais, reconheceu os mesmos direitos estabelecidos pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. O direito à autodeterminação encontra redação semelhante em ambas as declarações. Vejamos: Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: Art. 3º Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Art. 4º Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas. [...] Artigo 46.1 Nada do disposto na presente Declaração será interpretado no sentido de conferir a um Estado, povo, grupo ou pessoa qualquer direito de participar de uma atividade ou de realizar um ato contrário à Carta das Nações Unidas ou será entendido no sentido de autorizar ou de fomentar qualquer ação direcionada a desmembrar ou a reduzir, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados soberanos e independentes. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas: Art. 3ª Os povos indígenas têm direito à livre determinação. Em virtude desse direito, definem livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Art. 4º Nenhuma disposição da presente Declaração será interpretada no sentido 25

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

de que se confere a um Estado, povo, grupo ou pessoa direito algum de participar de atividade ou realizar atos contrários à Carta da Organização dos Estados Americanos e à Carta das Nações Unidas, nem se entenderá no sentido de que se autoriza ou promove ação alguma destinada a prejudicar ou depreciar, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados soberanos e independentes. Art. 21 Direito à autonomia ou à autogovernança. Os povos indígenas, no exercício de seu direito à livre determinação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais, bem como a dispor de meios para financiar suas funções autônomas.

Verifica-se, portanto, que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas estabelecem a autodeterminação e a autonomia dos povos indígenas para exercerem a governança sobre assuntos internos e locais, ressalvando que esse reconhecimento não inclui o direito de separação da União Nacional. Nesse sentido é importante observar que as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas no Brasil são bens da União nos termos do art. 20, XI, da Constituição, e a eles são destinados a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nessas terras, conforme estabelece o art. 231, § 2º, da Constituição. Assim, a autonomia dos povos indígenas é semelhante à autonomia dos estados-membros e dos municípios, que exercem a autonomia de acordo com os limites estabelecidos pela Constituição. Ressalta-se que as declarações, por sua natureza, não geram efeito vinculante, ou seja, não geram efeitos legais. Convém observar, que as declarações em questão se coadunam com a Constituição e servem como diretrizes para orientar as políticas e as ações do poder público. Nesse sentido, o Decreto n. 7.747, de 5 de junho de 2012, que institui a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), estabeleceu entre suas diretrizes o “protagonismo e autonomia sociocultural dos povos indígenas, inclusive pelo fortalecimento de suas organizações”. Trata-se, portanto, do reconhecimento da autonomia dos povos indígenas para exercer a governança de suas terras, observando a Constituição e o Decreto n. 7.747. Acrescenta-se que a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas estabelece em seu art. 9º que os Estados reconhecerão plenamente a personalidade jurídica dos povos indígenas, respeitando as formas 26

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

de organização indígenas. O Projeto de Lei n. 2057/1991, que institui o Estatuto das Sociedades Indígenas e foi apresentado para regulamentar a Constituição já tratava do reconhecimento da personalidade jurídica das comunidades ou sociedades indígenas da seguinte forma: “as comunidades indígenas têm personalidade jurídica de direito público interno e sua existência legal independe de registro ou qualquer ato do Poder Público”. Contudo, esse projeto de lei encontra-se paralisado na Câmara dos Deputados desde 1994. O art. 21 da Declaração Americana estabelece expressamente que os povos indígenas têm os direitos de associação, reunião, organização e expressão, e de exercê-los sem interferências e de acordo com sua cosmovisão, seus valores, usos, costumes, tradições ancestrais, crenças, espiritualidade e outras práticas culturais. O direito de associação estabelecido por esse dispositivo se coaduna com o art. 232 da Constituição, que reconhece as organizações indígenas.

DESAFIOS A demarcação e a proteção dos territórios indígenas são fundamentais para o exercício da autonomia. Por isso é necessário garantir a continuidade dos processos de demarcação das terras que se encontram paralisados em decorrência de políticas que pretendem reduzir os direitos territoriais dos povos indígenas e que têm ganhado eco no Congresso Nacional e no Executivo. É importante que os povos indígenas fortaleçam sua organização social interna para o exercício da autonomia ou governança sobre os seus territórios, de modo a superar de fato as políticas colonialistas. Assim como é de competência dos estados e municípios atuarem sobre assuntos locais em cooperação com a União, é plausível que as políticas públicas sejam orientadas por uma relação de cooperação entre o poder público e os povos indígenas, respeitando sua autonomia para decidirem sobre seus assuntos internos e locais. O fortalecimento das organizações indígenas também é necessário para garantir que elas possam atuar em defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas, pautando os temas indígenas na agenda das políticas públicas e o protagonismo indígena nas relações com o poder público e a sociedade civil. É importante que tanto no âmbito da OEA como no âmbito nacional se realize o debate com a participação dos povos indígenas, para tratar do 27

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

reconhecimento da personalidade jurídica das suas organizações tradicionais consuetudinárias, visando fortalecer a governança dos povos indígenas sobre seus próprios territórios. O reconhecimento do direito de associação dos povos indígenas poderia subsidiar a regulamentação da categoria específica de organizações indígenas para superar as barreiras burocráticas que limitam a atuação dessas organizações e ampliar o espectro de sua existência com mais efetividade.

28

:

sumário


LIBERDADE DE ORGANIZAÇÃO E DE ASSOCIAÇÃO DE POVOS INDÍGENAS: UMA AGENDA DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS Eloísa Machado de Almeida*

inda que o Brasil reconheça a liberdade de associação como um direito fundamental (art. 5º, XVII) e seja signatário dos principais tratados internacionais de proteção de direitos humanos em âmbito global e regional, há uma inadequação entre a forma pela qual se busca concretizar essa liberdade frente ao também direito de autodeterminação dos povos indígenas. Esse descompasso ocorre porque, em primeiro lugar, há uma limitação aos tipos de associações que são reconhecidas juridicamente. O Código Civil estabelece que são pessoas jurídicas de direito privado as associações, as sociedades (empresas), as fundações, as organizações religiosas, os partidos políticos e as empresas individuais de responsabilidade limitada (Lei n. 10.406/2002, art. 44). Em relação às organizações da sociedade civil, o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil as define como entidades sem fins lucrativos; sociedades cooperativas e organizações religiosas.1 Não há, assim, nenhuma forma que reconheça os povos indígenas enquanto pessoas jurídicas capazes de se fazer representar e praticar atos da vida civil. Isso faz com que povos indígenas sejam forçados a aderir a uma das formas jurídicas previamente reconhecidas, criando uma notável artificialidade da pessoa jurídica resultante; isto é, uma pessoa jurídica que não necessariamente reflete a forma de organização e de exercício de poder dos povos indígenas.

A

*

Doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), formação em Ciências Sociais pela USP e mestrado em Ciências Sociais pela PUC-SP. Atualmente, é professora de cursos de graduação e pós-graduação da FGV Direito SP e coordenadora do Supremo em Pauta na FGV Direito SP.

1

BRASIL. Lei n. 13.0149, de 31 de julho de 2014. Art. 2º. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13019.htm>. Acesso em: 5 ago. 2018. 29

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

Por exemplo, a limitação do número de associados, a previsão de conselhos deliberativos, a necessidade de cargos diretivos rotativos, são exemplos de como as exigências legais das organizações da sociedade civil podem representar contradições com as práticas dos povos indígenas. Isto, por si só, afeta a autodeterminação dos povos indígenas, conceito fundamental da virada epistemológica que reconhece aos povos indígenas o direito a seus costumes, a suas línguas e aos seus territórios como forma legítima de existência, impedindo aos Estados nacionais a adoção de políticas de assimilação e extermínio, usadas por séculos. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DNUPI) aponta que, em razão do direito à autodeterminação, os povos indígenas podem decidir livremente sobre sua condição política, têm direito à autonomia nas questões relacionadas à sua comunidade, bem como têm o direito às suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais (DNUPI, artigos 3º a 5º). Isso deveria, certamente, abranger a forma de representação, seu status para a prática de negócios jurídicos e demais atos da vida civil.2 Entretanto, a impossibilidade jurídica de reconhecimentos dos povos indígenas como pessoas jurídicas os induz à criação de organizações da sociedade civil para atingir mínimas condições de representação e, por conseguinte, protagonismo em processos pertinentes aos seus interesses. Porém, as limitações à liberdade de associação de povos indígenas não têm origem apenas na forma pela qual o Estado designa a criação de pessoas jurídicas; mesmo os povos indígenas que se submetem à criação de organizações da sociedade civil enfrentam dificuldades de natureza técnico-burocrática. A ausência de critérios claros sobre as exigências de registro – opacidade que pode ser usada para impedir ou retardar a criação de organizações indígenas –, bem como a excessiva burocratização, são constantemente relatadas como barreiras à liberdade de associação. Neste ponto, é importante mencionar a audiência pública realizada em 2016, no 157º período de audiências da Comissão Interamericana de

2

Mesmo a Constituição Federal de 1988, que cria um novo modelo jurídico de reconhecimento dos povos indígenas, vacila entre a disposição de autodeterminação desses povos e sua tutela. Para ingressar em juízo, por exemplo, a Constituição reconhece a capacidade de “índios, suas comunidades e organizações”, mas exige a participação do Ministério Público em todos os atos do processo (Constituição Federal de 1988, art. 232). 30

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

Direitos Humanos. Nele, grandes organizações como a Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE) e a Confederación de Nacionalidades Indígenas de la Amazonía Ecuatoriana (CONFENIAE) denunciaram violações perpetradas pelo Estado equatoriano contra a liberdade de associação de povos indígenas, fragilizando suas reivindicações e expondo suas lideranças.3 A designação de audiências temáticas como esta são um indício relevante de formação de agenda no sistema interamericano. Esta não foi a primeira vez, entretanto, que o sistema interamericano de proteção de direitos

3

A Comissão Interamericana publicou o seguinte extrato da audiência: “Derecho a la libertad de asociación de los pueblos indígenas de Ecuador. Las organizaciones solicitantes informaron a la CIDH de una serie de reformas constitucionales en el Ecuador realizadas a través de decretos ejecutivos y acuerdos institucionales, que han ido vulnerando el derecho constitucionalmente reconocido de los pueblos indígenas en el país de mantener, desarrollar y fortalecer sus formas de organización social. Indican por ejemplo que, a través del Decreto 16, se procedió en diciembre 2013 a la disolución de la Fundación Pachamama. Las organizaciones subrayan la aprobación de la Ley orgánica de los Consejos Nacionales para la Igualdad en el año 2015, que retira el poder de registro y legalización que antes estaba a cargo del Consejo de Desarrollo de Nacionalidades y Pueblos Indígenas del Ecuador (CODENPE), el cual, mediante Decreto ha sido transferido a la Secretaría Nacional de Gestión de la Política, sin que esta modificación sea acompañada de regulaciones u orientaciones sobre la manera de desempeñar dicha responsabilidad. Asimismo, las organizaciones indígenas se encuentran registradas y regidas por el Reglamento que rige el Sistema Unificado de Información de Organizaciones Sociales, el cual ha sido fuertemente criticado por ofrecer un amplio margen de discrecionalidad al Estado en cuanto a la disolución de cualquier organización social sin justificación. Además, esta modificación constitucional inobserva el derecho a la consulta pre-legislativa de las comunidades indígenas vulneradas, y viola la disposición constitucional que establece que las leyes orgánicas deben ser las que regulan el ejercicio de derechos y garantías constitucionales. Las organizaciones participantes arguyen que este cuerpo normativo viola su derecho constitucional de conformar organizaciones que velen por sus intereses, perjudica a su derecho a la resistencia, y les impide actuar en los ámbitos políticos y sociales, menoscabando su derecho a la libre asociación, así como su derecho a la libre determinación. El Estado no participó en esta audiencia y envió una comunicación a la CIDH justificando su no comparecencia. La Comisión lamentó la falta de comparecencia del Estado ecuatoriano en la audiencia, y le pidió a las organizaciones solicitantes que compartieran su experiencia sobre incidentes de criminalización de defensores de derechos humanos en estos contextos” (CIDH. Informe sobre el 157 Período de Sesiones de la CIDH. 2016, p. 7. Disponível em: <https://www.oas.org/es/cidh/prensa/docs/informe-157.pdf>. Acesso em: 5 set. 2018. 31

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

humanos mostrou sua preocupação com a liberdade de associação dos povos indígenas: em vários casos analisados pela Comissão Interamericana e pela Corte Interamericana, o direito à liberdade de associação dos povos indígenas é reconhecido como indissociável da relação que tais povos tem com suas terras, tradições e costumes. A liberdade de associação, assim, é vista como uma garantia institucional aos povos indígenas, para manutenção de sua forma de vida e proteção de sua propriedade coletiva.4 Não é por outro motivo que o projeto de Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas prevê, em seu artigo IV, o direito à personalidade jurídica, nos seguintes termos: “Os povos indígenas têm direito a que os Estados, dentro de seus sistemas legais, lhes reconheçam plena personalidade jurídica”.5 Identificado como decorrente do direito à autodeterminação,6 a possibilidade jurídica de reconhecimento de plena personalidade jurídica permite inferir que o Estado deverá adequar sua legislação interna e sua burocracia para reconhecer os povos indígenas enquanto tais, detentores de personalidade jurídica e criando, talvez, uma nova forma de organização da sociedade civil para além daquelas previstas no Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, uma forma de descolonizar a ação coletiva,7 a representação e a gestão de negócios. Por fim, se é certo que as limitações à liberdade de associação, consistentes na artificialidade das formas juridicamente disponíveis e excessiva burocratização, representam um esvaziamento do conceito de autodeterminação dos povos indígenas, também é preciso reconhecer que constantes

4

Nesse sentido: CIDH. Alegatos ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos en el caso de Awas Tingni v. Nicaragua. In: Corte IDH. Caso de la Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2001, Série C, n. 79, p. 140.

5

Tradução livre, do original: “Artículo IV. Personalidad jurídica. Los pueblos indígenas tienen derecho a que los Estados dentro de sus sistemas legales, les reconozcan plena personalidad jurídica”.

6

Tal como estabelecido no documento: “Fontes no direito internacional e nacional do projeto de Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas”. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/Indigenas/Indigenas.sp.01/Indice.htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

7

MALDONADO TORRES, Nelson. Transdisciplinariedade e deconolidade. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 75-97, jan./abr. 2016. 32

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

ameaças, criminalização, desaparecimentos forçados e assassinatos de lideranças indígenas são usados como política de Estado e estratégias para evitar a demarcação de terras indígenas, atos criminosos facilitados por uma frágil roupagem jurídica de liberdade de associação. O Brasil é o país em que mais se mata defensores de direitos humanos e, entre esses, lideranças indígenas. A agenda de fortalecimento da liberdade de associação dos povos indígenas abrange não só a específica questão da representação, mas da segurança jurídica e institucional que afetará a relação desses povos com suas terras e costumes além de, no limite, afetar sua própria sobrevivência.

33

:

sumário



LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO E ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS NO BRASIL Paula Raccanello Storto*

DIMENSÕES DA LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO NO CONTEXTO DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL (OSC) O direito fundamental de liberdade de associação previsto no art. 5º da Constituição Federal brasileira tem especificidades quando se trata de organizações da sociedade civil. Temos defendido1 que neste campo a liberdade de associação é composta por três dimensões: não interferência estatal, participação e financiamento. A dimensão da não interferência estatal é a garantia do direito subjetivo das organizações e dos indivíduos que as integram se auto-organizar sem a interferência do Estado. Trata-se de exercício de liberdade individual, de direitos civis. A dimensão da participação está ligada à atuação da OSC como uma liberdade pública voltada à ação coletiva, na qual ocorre a representação coletiva dos associados pelas organizações, inclusive para fins judiciais e influência sobre ações públicas, seja de forma direta ou por meio de pessoas jurídicas. Já a dimensão do financiamento diz respeito ao reconhecimento do livre exercício de atividades econômicas e ao acesso a recursos pelas OSC, em relação a qual o Estado pode atuar direta (repassando recursos) ou indiretamente (por meio de uma política tributária que estimule essas atividades). Toda legislação que se proponha a tratar das OSC deve levar em conta essas premissas, em respeito à Constituição Federal de 1988 e às normas de direitos humanos internacionais ratificadas pelo Brasil. A edição de normas

*

Advogada militante da área do Direito das Organizações da Sociedade Civil. Sócia de Szazi Bechara Storto Rosa Figueirêdo Lopes Advogados. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo, pesquisadora do Núcleo de Estudos Avançados em Terceiro Setor NEATS da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e professora em cursos de especialização da Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (COGEAE) da PUC-SP.

1

STORTO, Paula Raccanello. Liberdade de associação e os desafios das organizações da sociedade civil no Brasil. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014. 35

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

que fragilizem as OSC em qualquer uma dessas suas dimensões essenciais será uma barreira ao desenvolvimento da pluralidade, da diversidade e de outros valores essenciais à democracia.2

UM BREVE OLHAR SOBRE AS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS Ao voltar nosso olhar para o universo das organizações ou associações indígenas, a classificação das três dimensões da liberdade de associação das OSC também se demonstra útil e aplicável à discussão. O tema das organizações indígenas, sem dúvida, é um território muito interessante para jogar luz sobre as questões e os desafios das OSC, pois se revela um ambiente cujas características que o conformam acentuam ainda mais os desafios do marco regulatório das organizações da sociedade civil em geral. Neste breve artigo, selecionamos dois temas diretamente relacionados à agenda ampla do marco relatório das organizações da sociedade civil.3 Nesses temas, sob a lente das especificidades das organizações indígenas, fica evidente a necessidade de rever normas e práticas a fim de estimular o desenvolvimento das organizações. Vamos a eles.

NÃO INTERFERÊNCIA ESTATAL – É

FUNDAMENTAL GARANTIR LIBERDADE DE

AUTO-ORGANIZAÇÃO ÀS ASSOCIAÇÕES E ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

A Constituição Federal brasileira garante a liberdade de associação para fins lícitos e a liberdade de auto-organização das associações, proibindo a interferência estatal em seu funcionamento. Essas garantias, previstas nos incisos XVII e XVIII do art. 5º da Constituição como direito individual de

2

STORTO, Paula Raccanello. Informe sobre o marco jurídico de las organizaciones de la sociedad civil en América Latina y Caribe. Proyecto Regional de la Mesa de Articulación de Plataformas de OSC de América Latina y el Caribe. São Paulo, 2014. Disponível em: <http://mesadearticulacion.org/wp-content/uploads/2015/02/EstudioMarcos-Regulatorios-de-las-OSC.pdf>. Acesso em: 5 set. 2018.

3

SECRETARIA-GERAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Marco regulatório das organizações da sociedade civil: a construção da agenda no Governo Federal – 2011 a 2014. Brasília: Governo Federal, 2014. Disponível em: <http://www.participa.br/articles/public/0016/8824/04.12.15_MROSC_ArquivoCompleto_Cap a_Miolo.pdf>. Acesso em: 5 set. 2018. 36

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

todo cidadão, estão alinhadas com tratados internacionais de que o Brasil é signatário, notadamente no art. 22 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e no art. 16 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Além da diretriz geral sobre liberdade de associação, ao tratar da ordem econômica e financeira, o texto constitucional prevê, no § 2º do art. 174, a obrigação de que a produção legislativa nacional apoie e estimule o cooperativismo e outras formas de associativismo.4 Com base nesses dispositivos constitucionais, a legislação civil deve abster-se de criar parâmetros obrigatórios para a organização das associações, interferindo em seu funcionamento. A redação original do Código Civil de 2002 interferia muito claramente na liberdade das associações, prevendo a obrigatoriedade da existência de uma Assembleia Geral com competências privativas de eleger e destituir administradores, aprovar as contas e alterar o Estatuto Social, além de quórum específico para a tomada de determinadas decisões e outras alterações pontuais. A alteração do texto pela Lei n. 11.127/2005 reduziu a esfera de interferência legal na liberdade de auto-organização das associações, ao reconhecer a prevalência das regras próprias dessas entidades privadas, estabelecendo a soberania da Assembleia Geral para aprovar o estatuto social que melhor convier, de maneira concreta, à administração da entidade, para que esta estabeleça, de modo autônomo, a sua própria forma de funcionamento. Na época tive oportunidade de publicar artigo em coautoria sobre as alterações trazidas pela Lei de 2005.5 Apesar de ter sido aperfeiçoada, a redação do Código Civil ainda apresenta uma excessiva limitação com relação às OSC. O art. 44 do Código

4

“Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado [...] § 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo [...]”. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

5

LOPES, Laís Vanessa C. de Figueirêdo; STORTO, Paula Raccanello. Alterações no Código Civil flexibilizam regras para instituições do Terceiro Setor. GIFE, São Paulo, 18 jul. 2005. Disponível em: <https://gife.org.br/alteracoes-no-codigo-civil-flexibilizam-regras-para-instituicoes-do-terceiro-setor/>. Acesso em: 5 set. 2018. 37

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

Civil6 enumera as espécies de pessoas jurídicas de direito privado, restringindo os tipos jurídicos que se caracterizam pela finalidade não empresarial às associações e fundações, além das figuras específicas de “organizações religiosas” e “partidos políticos”, que foram inseridas em uma reforma no ano de 2003, uma vez que essas espécies de pessoas jurídicas têm características próprias que as distinguem claramente de “associações” e “fundações”. Ao estabelecer essa limitação numerus clausus, a lei acabou com a antiga figura da “sociedade civil sem fins lucrativos”, formato muito utilizado pelas OSC, cujos grupos de instituidores de OSC não tinham um caráter assemblear, a justificar sua constituição como “associação”. A atual redação limita as formas de organização e impõe o modelo da associação como a única possibilidade para as OSC, revelando uma visão rígida e predeterminada de sociedade por parte do legislador do Código Civil, cuja proposta de texto data do auge do regime militar. Para garantir a liberdade religiosa, o § 1º do art. 44 foi acrescentado para especificar que “são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento”. E aqui é onde a questão das organizações indígenas se coloca. Ora, se, para além da liberdade de associação, a Constituição Federal garante a autodeterminação dos povos (art. 4º, III), o respeito aos valores culturais e artísticos dos povos indígenas (art. 210, § 2º) e o pleno exercício dos direitos

6

“Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: I - as associações; II - as sociedades; III - as fundações; IV - as organizações religiosas; V - os partidos políticos. VI - as empresas individuais de responsabilidade limitada. § 1º São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. § 2º As disposições concernentes às associações aplicam-se subsidiariamente às sociedades que são objeto do Livro II da Parte Especial deste Código. § 3º Os partidos políticos serão organizados e funcionarão conforme o disposto em lei específica”. BRASIL. Lei n. 11.127, de 18 de julho de 2005. Altera os arts. 54, 57, 59, 60 e 2.031 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil, e o art. 192 da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2005/lei-11127-28-junho-2005537650-publicacaooriginal-30246-pl.html>. Acesso em: 5 set. 2018. 38

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

culturais, com especial proteção às manifestações das culturas indígenas (art. 210, § 1º), a lei deve assegurar mecanismos para a efetivação desses comandos constitucionais. Em que pese que saibamos da ampla possibilidade de representação dos povos indígenas por suas lideranças independentemente da criação de pessoas jurídicas, é indiscutível a importância do papel e do trabalho desenvolvido pelas organizações indígenas formais, notadamente na representação dos interesses das nações indígenas perante a sociedade nacional e global, especialmente a partir da Constituição Federal de 1988, que reconheceu a capacidade civil dos índios e de suas organizações sociais e políticas.7 Impor que as organizações indígenas se encaixem no modelo das associações do Código Civil representa uma violência aos padrões históricos e culturais desses povos, cujo processo de escolha de suas estruturas e lideranças seguem padrões tradicionais, que não passam necessariamente pelo crivo assemblear previsto na lei civil. Significa retirar-lhes a essência, a origem, condenando-a serem organizações menos conectadas com as comunidades que representam, instituições com menor capacidade de se desenvolver adequadamente. Essa realidade torna-se ainda mais grave quando consideramos que grande parte (se não a maior parte) das organizações indígenas representam não apenas o grupo de associados que assinam os papéis e as atas de sua criação formal, mas todo um povo, uma nação, e nesse sentido, a forma de sua constituição deve ser de livre escolha da própria comunidade, que é soberana. Assim, é necessário criar alternativas, novas formas para conseguir efetivar essa garantia. Uma solução normativa proposta nos debates realizados é justamente a mesma que foi aplicada às organizações religiosas: alterar a redação do art. 44 do Código Civil, para inserir um novo inciso que reconheça como espécie de pessoa jurídica as “organizações indígenas”, a fim de afastar a aplicação das exigências cabíveis para as associações em geral a organizações. Esse novo inciso poderia ser também complementado com um parágrafo que estabelecesse que

7

LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/SECAD; LACED/Museu Nacional, 2006. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/ 154565por.pdf>. Acesso em: 5 set. 2018. 39

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações indígenas, sendo vedado ao poder público interferir na sua forma de auto-organização ou negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.

FINANCIAMENTO DE ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS – É

PRECISO CONHECER E

RESPEITAR AS COMUNIDADES

No que concerne ao financiamento das OSC, as especificidades das organizações indígenas fazem aflorar questões muito interessantes que esbarram diretamente nas características de liberdade de associação e de características da autodeterminação dos povos. Seria legítimo estabelecer às organizações indígenas as mesmas regras de financiamento que para as OSC em geral? Faz sentido que um financiador estabeleça uma série de condições para uma organização indígena acessar um recurso, mesmo sabendo que, ao fazê-lo, essa organização teria que se descaracterizar, se afastar da tradição cultural do povo cuja afirmação foi a razão de sua existência? Em um território onde as regras de financiamento interferem na liberdade das OSC de se auto-organizarem, existe ainda o agravante do preconceito, que se revela tanto com relação à agenda das questões indígenas propriamente ditas como também em decorrência da desigualdade econômica, que acaba por determinar um aumento das desigualdades, na medida em que as organizações mais ricas têm muito mais capacidade de enfrentar as resistências do que as mais pobres. Poucas expressões definem tão bem esse tipo de situação quanto “criminalização burocrática” e “violência institucional”. Se os padrões de parceria, financiamento e atuação econômica com as comunidades indígenas forem estruturados apenas com base na visão dos donos do dinheiro, da chamada “lei dos brancos”, sem que se considere também a perspectiva própria das comunidades, as iniciativas propostas fatalmente não atingirão os resultados esperados. Esta é a reflexão que Gersem Luciano dos Santos, índio Baniwa e Professor Adjunto da Faculdade de Educação e Diretor de Políticas Afirmativas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), convida-nos a fazer: É fundamental também destacar que a luta pelos direitos e a execução de projetos exigem um mínimo de formação e de qualificação técnica dos dirigentes 40

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

indígenas para o êxito dos trabalhos, fato quase sempre esquecido. Quando isso não acontece, o projeto não é bem executado, não atinge os resultados, e a comunidade fica decepcionada, os parceiros financiadores desanimam e não dão continuidade ao apoio, enfraquecendo a organização e a comunidade. Mas é importante também que as organizações indígenas articulem e exijam que os técnicos não indígenas, que atuam junto aos povos indígenas, estejam capacitados para essa complexa tarefa. Dito de outra forma, não são somente as 70 lideranças indígenas que precisam estar capacitadas para trabalhar com o mundo dos brancos, os brancos também devem estar aptos a trabalhar com os povos indígenas. Só assim a ideia da interculturalidade será praticada e vivida, o que é essencial para que o Brasil seja verdadeiramente democrático e pluriétnico. (grifo nosso)8

Ao criar espaços públicos, semipúblicos ou privados de apoio às comunidades indígenas, buscar essa aproximação de práticas, esse diálogo intercultural, é condição essencial de respeito à liberdade de auto-organização e autodeterminação dos povos, de reconhecimento de sua forma de existir, agir e de se manifestar de acordo com sua própria identidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, busquei trazer exemplos práticos sobre questões problemáticas da agenda legal das OSC em geral que, no universo das organizações indígenas, ficam ainda mais acentuadas. Nessa mesma toada, os estudiosos do marco legal das OSC e do direito das organizações indígenas devem também dialogar mais entre si, em um intercâmbio de práticas e conhecimento que fortaleça as agendas comuns, que certamente são muitas. A superação dos desafios das OSC em geral contribui para uma sociedade mais democrática e plural. O reconhecimento, o respeito e a valorização das organizações indígenas promovem a garantia da autonomia dessas organizações e contribuem para a implementação dos direitos sociais das comunidades e para a melhoria das políticas públicas de proteção aos territórios, ao meio ambiente, à cultura, à diversidade biológica e aos conhecimentos tradicionais.

8

Ibidem, p. 69-70. 41

:

sumário



PARTE II TRIBUTAÇÃO INCIDENTE SOBRE AS ORGANIZAÇÕES



A TRIBUTAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL Eduardo Pannunzio*

INTRODUÇÃO Embora a Constituição valorize a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos índios,1 a legislação brasileira em geral não confere tratamento diferenciado às associações por eles formadas – algo que é naturalmente problemático. As organizações indígenas estão sujeitas, portanto, às mesmas normas aplicáveis às demais organizações da sociedade civil (OSC), inclusive do ponto de vista tributário. Por essa razão, é importante que as organizações indígenas conheçam os contornos do sistema tributário aplicável às OSC. Este pequeno artigo busca contribuir para esse objetivo.

REGIME GERAL DA TRIBUTAÇÃO DAS OSC Para fins didáticos, podemos separar os tributos mais relevantes para as OSC em quatro grupos: (1) tributos relacionados a receitas típicas desse perfil de organização (doações, patrocínios e contribuições associativas); (2) tributos relacionados à contratação de empregados; (3) tributos relacionados à propriedade de imóveis ou veículos; e (4) tributos relacionados à realização de atividades econômicas (venda de mercadorias ou serviços). Em relação às receitas típicas, as OSC são dispensadas do recolhimento do Imposto de Renda (IR),2 da Contribuição Social sobre o Lucro

*

Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Pesquisador-líder do projeto Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil pela FGV Direito SP.

1

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 231. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

2

É importante notar que a isenção do IR não alcança os rendimentos e ganhos de capital auferidos em aplicações financeiras de renda fixa ou de renda variável. BRASIL. Lei n. 9.532, de 10 de dezembro de 1997. Altera a legislação tributária federal e dá outras providências. Art. 15, § 2º. Disponível em: <http://www2. 45

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

Líquido (CSLL)3 e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS).4 Além disso, a contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) é calculada com base na folha de salários,5 e não sobre as receitas, como ocorre nas empresas. No entanto, uma fundamental fonte de receitas para a sociedade civil organizada – as doações – está sujeita ao Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), um tributo normalmente devido pela OSC6 ao estado no qual o doador tem domicílio. A alíquota do ITCMD varia de 2% a 8% do valor da doação,7 conforme o estado. Os tributos mais onerosos para as OSC correspondem aos do segundo grupo, relacionados à contratação de empregados. Aqui, sobressai-se a contribuição previdenciária para o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS (a chamada “quota patronal”), correspondente a 20% da folha de salários.8

camara.leg.br/legin/fed/lei/1997/lei-9532-10-dezembro-1997-372088-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 5 set. 2018. 3

Ibidem, art. 15.

4

BRASIL. Medida Provisória n. 2.158-35, de 24 de agosto de 2001. Altera a legislação das Contribuições para a Seguridade Social - COFINS, para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP e do Imposto sobre a Renda, e dá outras providências. Art. 14, X, c/c art. 13. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2158-35.htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

5

Ibidem, art. 13.

6

Com exceção do Rio Grande do Sul, todos os estados e o Distrito Federal consideram o donatário (a OSC) o contribuinte do ITCMD. Cabe observar, porém, que 10 estados (AC, AL, AM, CE, ES, GO, MG, RS, SC e SP) têm regra de inversão do contribuinte quando o donatário não tiver domicílio local; nessas hipóteses, o contribuinte passa a ser o doador.

7

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 155, § 1º, IV. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 5 set. 2018. BRASIL. Câmara dos Deputados. Resolução do Senado Federal n. 9/1992. Disponível em <http://www2.camara.leg. br/legin/fed/ressen/1992/resolucao-9-5-maio-1992-451294-publicacaooriginal1-pl.html>. Acesso em: 5 set. 2018.

8

Ibidem, art. 231 da Constituição Federal. 46

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

Adicionalmente, as OSC devem pagar PIS (1%),9 a contribuição devida pelo Risco de Acidente de Trabalho (RAT, que varia de 1% a 3%)10 e Salário Educação (2,5%).11 Quando se recorda que a esses quatro tributos somam-se os demais encargos e benefícios aplicáveis (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, 13º salário, férias, etc.), fica fácil entender por que mais de 80% das OSC não têm nem um único empregado.12 O terceiro grupo engloba os tributos sobre eventuais imóveis ou veículos de propriedade da OSC. Quando o imóvel se situa em zona urbana, está sujeito ao Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), um imposto municipal que pode chegar a 15%.13 Caso se localize em área rural, incide o Imposto sobre Propriedade Territorial Rural (ITR), de competência federal, com alíquotas que oscilam de 0,03% a 20% do valor do imóvel.14 No que se refere aos automóveis, é devido aos estados o

9

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário, ADIN n. 2.028/DF, rel. Teori Zavazcki, 2 mar. 2017.

10

BRASIL. Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Art. 22, I. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8212cons.htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

11

BRASIL. Medida Provisória n. 2.158-35, de 24 de agosto de 2001. Altera a legislação das Contribuições para a Seguridade Social - COFINS, para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público PIS/PASEP e do Imposto sobre a Renda, e dá outras providências. Art. 13. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2158-35.htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

12

BRASIL. Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Art. 22, II. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8212cons.htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

13

BRASIL. Lei n. 9.424, de 24 de dezembro de 1996. Dispõe sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, na forma prevista no art. 60, § 7º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e dá outras providências. Art. 15. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9424.htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

14

De acordo com o Mapa das OSC, gerenciado pelo Ipea, das 524.630 OSC brasileiras 437.842 (83,46%) não tinham pessoal empregado em 2015. Disponível em: <https://mapaosc.ipea.gov.br/dados-indicadores.html>. Acesso em: 5 set. 2018. 47

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), de até 4%.15 Finalmente, há um quarto grupo de tributos aplicável apenas às organizações que desenvolvem atividades econômicas, normalmente como maneira de gerar recursos para a manutenção e o desenvolvimento de suas atividades sociais. Em se tratando de venda de mercadorias, o tributo aplicável é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de competência dos estados e do Distrito Federal, que geralmente é da ordem de 17% a 18%.16 Já na venda de serviços o tributo – Imposto sobre Serviços (ISS) – é devido aos municípios, em alíquotas limitadas a 5%.17 Em qualquer hipótese, sobre as receitas obtidas com a venda há ainda incidência de até 7,6% de COFINS,18 já que esta não é considerada uma receita típica das OSC.

REGIME ESPECIAL: OSC IMUNES A IMPOSTOS Há um conjunto de OSC que desfruta de imunidade a impostos: as OSC de educação e de assistência social (incluindo as de saúde). Isso significa que União, estados, Distrito Federal e municípios estão, a priori, impedidos de lhes cobrar impostos, ainda que intentem fazê-lo mediante a edição de lei. Afinal, é a Constituição – texto que guarda supremacia sobre todas as demais espécies de atos normativos (leis, decretos, instruções normativas, etc.) – que assim determina.19

15

BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Art. 7º, § 1º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

16

BRASIL. Lei n. 9.393, de 19 de dezembro de 1996. Dispõe sobre o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR, sobre pagamento da dívida representada por Títulos da Dívida Agrária e dá outras providências. Art. 11. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9393.htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

17

É o caso do estado de São Paulo, conforme Lei Estadual n. 13.296/2008, art. 9º.

18

BRASIL, Ministério da Fazenda, Conselho Nacional de Política Fazendária. Alíquotas e reduções de base de cálculo nas operações internas dos Estados e do Distrito Federal [on-line]. Disponível em: <http://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/aliquotasicms-estaduais>. Acesso em: 05 set. 2018.

19

BRASIL. Lei Complementar n. 116, de 31 de julho de 2003. Dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do 48

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

Nota-se que essa imunidade é restrita a impostos, espécie do gênero tributo, não alcançando outros tipos tributários (contribuições para a seguridade social, contribuições de melhoria, taxas, etc.). Nesse âmbito, no entanto, ela é bastante ampla, abrangendo praticamente qualquer imposto que impacte a sustentabilidade das OSC de educação e de assistência social, a exemplo dos mencionados IR, ITCMD, IPTU, ITR, IPVA, ICMS e ISS. Cabe atentar que a imunidade a impostos é condicionada, pela própria Constituição, aos “requisitos da lei”. Que “lei” é essa? Ora, pudesse uma garantia constitucional ficar à mercê da legislação ordinária, de pouco valeria. Tendo isso em conta, a Constituição cuidou de esclarecer que limitações do poder de tributar – e a imunidade sob exame é expressamente classificada como tal – somente podem ser reguladas por lei complementar, cuja aprovação exige quórum mais elevado (maioria absoluta) em relação à lei ordinária (maioria simples). Os requisitos para o exercício da imunidade a impostos hão de ser buscados, portanto, no Código Tributário Nacional (CTN), que, embora seja originalmente uma lei ordinária, foi recepcionado como lei complementar pelo texto constitucional.20 Nesse sentido, o art. 14 do CTN estabelece três requisitos para as OSC: (1) não distribuir qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; (2) aplicar integralmente, no país, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais; e (3) manter escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão. Em dezembro de 1997, porém, sobreveio a Lei n. 9.532. Apesar de ser lei ordinária, e não complementar, entendeu por bem fixar adicionais requisitos para a imunidade a impostos em seu art. 12. O assunto foi levado ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, em uma decisão provisória de 1998,21 firmou interpretação no sentido de que lei ordinária pode, validamente,

Distrito Federal, e dá outras providências. Art. 8º, II. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp116.htm>. Acesso em: 5 set. 2018. 20

BRASIL. Lei n. 10.833, de 29 de dezembro de 2003. Altera a Legislação Tributária Federal e dá outras providências. Art. 2º. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.833.htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

21

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 150,VI, “c”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituição.htm>. Acesso em: 5 set. 2018. 49

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

regular os requisitos de constituição e funcionamento das OSC de educação e de assistência social, contanto que não infrinja o “objeto material” da imunidade, ou seja, os próprios conceitos que a conformam (patrimônio, renda, serviços e finalidade essenciais) – algo, aí sim, privativo de lei complementar. Com esse fundamento, o STF suspendeu a vigência do § 1º e da alínea “f ” do § 2º do art. 12, mantendo a vigência dos demais dispositivos da Lei n. 9.532/1997. Dessa maneira, para o gozo da imunidade a impostos, as OSC de educação e de assistência social precisam atender, além dos requisitos do art. 14 do CTN, também aqueles constantes do art. 12 da Lei n. 9.532/1997, em especial de seu § 2º: “(1) não remunerar seus dirigentes estatutários pelos serviços prestados, exceto no caso daqueles que atuem na gestão executiva;22 (2) conservar, por cinco anos, os documentos que comprovem a origem de suas receitas e a efetivação de suas despesas; (3) apresentar anualmente à Receita Federal a Escrituração Contábil Fiscal (sucedânea da Declaração de Informações Econômico-Fiscais da Pessoa Jurídica; e (4) assegurar a destinação de seu patrimônio a órgão público ou a outra OSC que atenda às condições para gozo da imunidade, no caso de incorporação, fusão, cisão ou de encerramento de suas atividades”.23 Não raramente, governos estaduais e municipais ampliam esse leque, condicionando a imunidade a impostos a outros requisitos ou procedimentos (como a necessidade de reconhecimento administrativo prévio). Essa postura conflita com a sistemática constitucional e pode, portanto, ser combatida no Judiciário.

REGIME ESPECIAL: IMUNIDADE A CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURIDADE SOCIAL As OSC de educação e de assistência social desfrutam, também, de imunidade às contribuições para a seguridade social. 24 Desse modo, estão

22

SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 72-73.

23

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 1.802-MC, Pleno, rel. min. Sepúlveda Pertence, 27 ago. 1998.

24

Na prática, isso implica a vedação de remuneração a conselheiros (que em geral atuam no nível de orientação estratégica) mas não a diretores (que normalmente são responsáveis pela gestão executiva). 50

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

dispensadas de recolher quota patronal para o INSS, PIS, RAT e, quando aplicável, COFINS. Nesse caso, os requisitos – bem mais rigorosos do que aqueles previstos para a imunidade a impostos – são estabelecidos na Lei n. 12.101/2009. Entre eles, destaca-se a exigência da Certificação de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), um certificado concedido pelo Ministério da Educação, da Saúde e do Desenvolvimento Social. Para tanto, as OSC de educação precisam oferecer um percentual mínimo de bolsas de estudo; as OSC de assistência social que atuam na área de saúde precisam dedicar pelo menos 60% do atendimento ao Sistema Único de Saúde (SUS); e as demais OSC de assistência social precisam prestar atendimento integralmente gratuito. Como a Lei n. 12.101/2009 é lei ordinária, questiona-se sua validade com base em considerações semelhantes às feitas à regulamentação da imunidade constitucional a impostos. Embora o STF não tenha tido a oportunidade de se debruçar sobre essa lei, ao analisar recurso movido à luz da legislação anterior sobre imunidade a contribuições, em fevereiro de 2017, fixou tese geral no sentido que “os requisitos para o gozo de imunidade hão de estar previstos em lei complementar”.25 Colocou, assim, em xeque a sobrevivência da Lei n. 12.101/2009. Entretanto, não apenas essa decisão ainda não é definitiva (pois aguarda o julgamento de embargos de declaração), como ela contradiz parcialmente outra decisão do STF, adotada no mesmo julgamento (sic). De fato, conforme o voto vencedor do ministro Teori Zavascki em um conjunto de ações diretas de inconstitucionalidade, a reserva de lei complementar estaria limitada “à definição de contrapartidas a serem observadas para garantir a finalidade beneficente dos serviços prestados pelas entidades de assistência social, o que não impede [...] o procedimento de habilitação dessas entidades positivado em lei ordinária”.26 Por ora, portanto, a imunidade às contribuições para a seguridade social segue atrelada às exigências da Lei n. 12.101/2009.

25

Esses três primeiros requisitos aplicam-se também às OSC isentas do IR e CSLL, por força do disposto no art. 15, § 3º, da Lei n. 9.532/1997.

26

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 195, § 7º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituição.htm>. Acesso em: 5 set. 2018. 51

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

REGIME ESPECIAL: ISENÇÕES As OSC não contempladas com imunidade estão, a princípio, sujeitas ao regime geral delineado na seção 2 deste artigo. Ocasionalmente, porém, elas podem ser beneficiadas por isenções previstas nas diversas legislações tributárias (federais, estaduais e municipais). Trata-se de uma espécie de “favor legal”: OSC que, a princípio, eram alvo da tributação deixam de sê-lo em função de uma dispensa prevista em lei. É o que ocorre, por exemplo, com o ITCMD no estado de São Paulo. De acordo com a Lei Estadual n. 10.705/2000, são isentas do imposto as OSC cujos objetivos sociais sejam vinculados à promoção dos direitos humanos, da cultura ou à preservação do meio ambiente.27 Da mesma forma que a lei concede determinada isenção, porém, pode extingui-la. As imunidades, por sua vez, não estão sujeitas ao vai e vem ou oscilações legislativas, petrificando-se na Constituição.

CONCLUSÃO Após este breve recorrido, fica claro que o sistema tributário brasileiro é, para as OSC, internamente desigual, pois concede tratamento mais favorável (imunidade) a organizações que atuam em áreas tradicionais (educação e assistência social), sobretudo àquelas que atuam alinhadas com as políticas governamentais (que têm o CEBAS e, portanto, desfrutam inclusive de imunidade às contribuições para a seguridade social). Além disso, é um sistema marcado pela insegurança jurídica. Emblemático a esse respeito é o fato de seguidos governos seguirem restringindo o alcance da imunidade por meio de leis ordinárias ou até mesmo atos administrativos. O Judiciário, que poderia contribuir para reduzir essa insegurança, muitas vezes acaba agindo no sentido oposto, como exemplificam as decisões contraditórias recentemente tomadas pelo STF em matéria de imunidade às contribuições para a seguridade social. Uma terceira característica de nosso sistema tributário é o seu desalinhamento com o estágio de evolução da sociedade civil brasileira. O indicador possivelmente mais evidente desse anacronismo é a circunstância de convivermos com um imposto sobre doações (ITCMD), mesmo quando feitas a

27

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário, Recurso Extraordinário n. 566.622/RS, rel. Marco Aurélio, 23 fev. 2017. 52

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

organizações de interesse público. Aquilo que na maior parte do mundo é incentivado – a filantropia –, aqui é desestimulado. Uma reforma modernizante do sistema tributário precisará levar em conta esses aspectos, criando condições para um ambiente mais favorável às organizações indígenas e, mais amplamente, à sociedade civil brasileira.

53

:

sumário



TRIBUTAÇÃO DE ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS: IMUNIDADE OU ISENÇÃO? Marcelo Andrade de Azambuja*

lgumas organizações indígenas brasileiras são juridicamente personificadas como associações, união de pessoas que se organizam para fins não econômicos.1 É assim com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), com a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) e com a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Sul (ARPINSUL), apenas para citar algumas das maiores e mais relevantes no Brasil. Como associações, essas organizações são reguladas em diferentes temas por diferentes normas constitucionais e infraconstitucionais do ordenamento jurídico brasileiro. Neste brevíssimo ensaio, abordaremos a regulação tributária das associações. A tributação de associações não é um tema pacífico entre juristas e doutrinadores brasileiros, mas estamos perto de sair desse impasse por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). O STF foi instado a se manifestar sobre a constitucionalidade de Lei Federal que regula a concessão de certificados de beneficência e, com isso, a isenção à contribuição para a Seguridade Social, primeiramente, a Lei n. 8.212/1991 e, posteriormente, a Lei n. 12.101/2009. O Recurso Extraordinário n. 566.622 foi escolhido como representativo da controvérsia e ao seu julgamento foram reunidas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 2.028, n. 2.036 e n. 2.621, todas do Distrito Federal.2

A

*

Sócio-fundador da Dora, Azambuja e Oliveira – Advocacia de Direitos Humanos. Graduado em Direito pela UFRGS, especialista em Direito Civil e Processual Civil pela UNIRITTER, mestrando em Direito pela UNISINOS. Advogado, integra a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP) e possui experiência na assessoria a organizações e movimentos sociais populares.

1

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 05 set. 2018.

2

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 566.622. Min. Marco Aurélio, Brasília, DJe, 23 ago. 2017. 55

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

Os recorrentes indicam que a Constituição Federal prevê em seu art. 150, inciso VI, alínea “c”, a vedação, à União Federal, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, à instituição de impostos sobre patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei.3 Os recorrentes indicam também que a Constituição Federal prevê, em seu art. 195, parágrafo 7º, a isenção de contribuições de entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.4 Neste ponto específico, é importante ressaltar que, apesar de o constituinte ter utilizado o termo “isenção”, se trata de “imunidade”. Esta condiciona o exercício da tributação, enquanto aquela é mero benefício fiscal concedido e revogado conforme interesse do legislador ordinário, conforme pacificado pelo STF em decisão à Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.028 do Distrito Federal. Outra indicação dos recorrentes é que a Constituição Federal prevê, em seu artigo 146, inciso II, a competência exclusiva da lei complementar para regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.5 Por fim, indicam que a única lei complementar em matéria tributária é o Código Tributário Nacional, que prevê, na leitura combinada de seu artigo 9, inciso IV, alínea “c”, e seu art. 14, a vedação, à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, à cobrança de impostos sobre o patrimônio, a renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores e das instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos que atendam aos seguintes requisitos: não distribuir qualquer parcela de seu patrimônio ou suas rendas, a quaisquer títulos; aplicar integralmente no país os seus recursos na manutenção de seus objetivos institucionais; e manter escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.6

3

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao. htm>. Acesso em: 5 set. 2018.

4

Ibidem.

5

Ibidem.

6

BRASIL. Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados 56

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

Pelo exposto, os recorrentes concluem que, conforme a Constituição, é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios brasileiros cobrarem imposto sobre o patrimônio, a renda ou serviços ou contribuição social à previdência das instituições de educação e de assistência social que atenderem aos requisitos elencados pela única lei complementar em matéria tributária, o Código Tributário, em seu art. 14. Dessa maneira, seriam inconstitucionais quaisquer requisitos impostos por lei ordinária, como declarações ou certificações, uma verdadeira confusão na definição de imunidades e isenções. O STF acolheu a tese, confirmando que é reservado à lei complementar instituir requisitos à concessão de imunidade tributária às entidades beneficentes de assistência social.7 Ainda pendente de trânsito em julgado, a ementa do acórdão refere, literalmente: IMUNIDADE – DISCIPLINA – LEI COMPLEMENTAR. Ante a Constituição Federal, que a todos indistintamente submete, a regência de imunidade faz-se mediante lei complementar. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário n. 566.622, rel. min. Marco Aurélio, Plenário, j. em 23 fev. 2017)

Conforme o ministro Marco Aurélio, Relator, a Constituição Federal, em seu art. 195, §7º, aponta dois requisitos para o gozo da imunidade: ser pessoa jurídica que desempenhe atividades beneficentes de assistência social e atender os parâmetros legais.8 Ainda segundo o ministro: “entidade beneficente de assistência social é aquela que não visa o interesse próprio, mas alheio, trabalhando em benefício dos outros”, “auxiliando o Estado na busca pela melhoria de vida da população e realização de necessidades básicas em favor dos hipossuficientes”.9 Por fim, para o ministro identificar os parâmetros legais para o gozo da imunidade pelas organizações, o STF deve utilizar a interpretação teleológica das imunidades. Se as organizações beneficentes

e Municípios. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/ L10406.htm>. Acesso em: 5 set. 2018. 7

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, op. cit.

8

Ibidem.

9

Ibidem. 57

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

de assistência social desempenham suas atividades de maneira coadjuvante e análoga ao Estado em sua missão, e se é vedada a cobrança de tributos reciprocamente pelos entes estatais, também deve ser garantida a imunidade a essas organizações.10 A declaração de inconstitucionalidade de requisitos não previstos na Constituição Federal e no Código Tributário Nacional pelo STF pode beneficiar enormemente as organizações indígenas. Elas podem ser enquadradas como entidades beneficentes de assistência social, visto que no desempenho de suas atividades auxiliam o Estado na busca da melhoria de vida da população e da realização de necessidades básicas em favor dos hipossuficientes. As lideranças dessas organizações devem atentar-se aos requisitos legais e não distribuir qualquer parcela de seu patrimônio ou suas rendas, a qualquer título; aplicar integralmente no país os seus recursos na manutenção de seus objetivos institucionais; e manter escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão. De resto, a decisão do STF é de ser comemorada: trata-se de um alento ao apertado orçamento da maioria das organizações indígenas brasileiras, que fazem tanto com tão poucos recursos.

10

Ibidem. 58

:

sumário


PARTE III PARCERIAS COM O PODER PÚBLICO



OS AVANÇOS OBTIDOS NAS PARCERIAS COM O ESTADO PARA AS ORGANIZAÇÕES DE POVOS INDÍGENAS A PARTIR DA NOVA LEI N. 13.019/2014 Laís de Figueirêdo Lopes*

Lei n. 13.019/2014 foi construída sob o alicerce da gestão pública democrática que pressupõe a participação social no ciclo de políticas públicas e o reconhecimento de que as organizações da sociedade civil (OSC) atuam desde a formulação da agenda até o momento de avaliação da própria política pública, passando pelo processo de implementação ou execução da política. Nesse sentido, entende as parcerias como mecanismo de participação social da gestão pública que operacionaliza, em harmonia com as políticas setoriais, para a execução de políticas por meio da relação de colaboração ou projetos de interesse público próprios que são desenvolvidos, concebidos pela sociedade civil por meio da relação de fomento. Aprovada como resultado de 10 anos de tramitação no Congresso Nacional e um extenso debate impulsionado pela Secretaria-Geral da Presidência da República no bojo da agenda do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC)1 a partir de 2011, a lei traz as principais teses que foram consolidadas na discussão. A missão do MROSC, provocada pela própria sociedade civil, quando as organizações se constituíram em uma Plataforma por um Novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Plataforma) em 2010, e reivindicaram do

A

*

Advogada. Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra, em Portugal. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), tem mestrado em Direito das Relações Econômicas e Sociais pela mesma instituição. Atua com organizações da sociedade civil desde 1996, em processos de formulação e pactuação de normas, políticas e projetos. Foi assessora especial na Presidência da República (2011-2016) na coordenação da agenda do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil.

1

Durante o trabalho da agenda do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, para o qual foi designado o ministro Gilberto Carvalho da Secretaria-Geral da Presidência da República para construir e liderar, o diálogo constante fez parte do método participativo adotado. Coube à autora deste artigo, à época assessora especial dedicada ao tema de 2011 a 2016, promover as articulações intersetoriais necessárias e coordenar as produções técnico-normativas que houve no período. 61

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

governo um espaço de diálogo, era a de aperfeiçoar o ambiente jurídico e institucional quanto às organizações da sociedade civil e suas relações de parceria com o Estado. O desafio foi realizado. O Decreto n. 7.568/2011 criou um Grupo de Trabalho, com coordenação da Secretaria-Geral e a participação dos ministérios da Justiça, do Planejamento, da Fazenda, da Controladoria-Geral da União, da Advocacia-Geral da União e da Casa Civil, além de 14 organizações nacionais indicadas pela Plataforma. A primeira reunião do grupo de trabalho foi durante o I Seminário Internacional do MROSC em 2011, que criou um plano de ação para a agenda do marco regulatório para a organização da sociedade civil. Havia duas pautas, igualmente importantes, e que precisavam ser reunidas em um único debate: discutir a relação da sociedade civil e do Estado e o fortalecimento da sociedade civil em si. O trabalho trouxe esse enfoque e organizou também as outras demandas trazidas, termômetro do acúmulo que precisava ser discutido com o Estado e com a própria sociedade civil. O grupo apresentou diagnóstico conhecido por quem já operava nessa área: insegurança jurídica pela utilização dos convênios para a sociedade civil e insegurança institucional pela ausência de conhecimentos na área. Uma nova lei era necessária para suprir a lacuna que estava colocada, assim como uma nova agenda de produção de dados e informações. Para garantir a escuta dos órgãos de governo setoriais, foram realizadas reuniões bilaterais, buscando aprofundar a identificação dos obstáculos para as parcerias. O diálogo em fóruns participativos, que envolveu instâncias de governo e a sociedade civil organizada, ministérios setoriais, de regulação, planejamento e controle e a diversidade das OSC, possibilitou a elaboração da norma de maneira transversal, para que não criasse obstáculos à implementação de políticas públicas com a sociedade civil e autorizasse soluções inovadoras no desenho das parcerias.

QUEM SÃO AS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL? A nomenclatura organização da sociedade civil é uma opção política e hoje está positivada na Lei n. 13.019/2014. A expressão reforça caráter afirmativo, autônomo e protagonista da sociedade civil, que não se constitui necessariamente como um contraponto ao Estado. O termo tem sido utilizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), pelo Banco Mundial e pela União Europeia. 62

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

E quem é esse ator OSC? Quem é o sujeito de direito que pode firmar parceria com o Estado pela nova Lei n. 13.019/2014? A lei reconhece como organização da sociedade civil as entidades privadas sem fins lucrativos, sob a forma de associações, fundações, organizações religiosas ou cooperativas, incluindo as cooperativas sociais. Requer que as organizações da sociedade civil sejam previamente constituídas, registradas em cartório com suas peculiaridades. OSC não é uma titulação. Não se exige certificação para parceirizar com o Estado nos termos do MROSC. Após o registro no cartório correspondente dos atos constitutivos com respectivo estatuto social, inscrição na Receita Federal no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), a organização existe juridicamente perante terceiros e perante a autoridade fiscal federal. O Estado não precisa adicionalmente reconhecer que as organizações existem por meio de um processo burocrático de concessão de titulação ou certificação. Fazer um cadastro ou uma pré-habilitação em nada garante que a organização tenha legitimidade e histórico na área para atuar na parceria concretamente. A lógica da nova lei de abrangência nacional é que as organizações, nos seus mais diferentes tipos societários – associações, fundações, cooperativas e organizações religiosas – podem cooperar com o Estado, desde que preenchidos os requisitos de existência anterior, experiência prévia e capacidade técnica-operacional, que não se confunde com capacidade técnica instalada. É importante frisar que o Estado não deve procurar as organizações para resolver questões interna corporis. As organizações não servem, por exemplo, para resolver o problema de falta de pessoal dentro da administração pública. Deve, sim, o Estado convocar as organizações para atuar em questões externa corporis, conectadas com as políticas públicas, seja na formulação, na execução, no monitoramento ou na avaliação. Essa ideia ajuda a explicar por que para realizar uma boa gestão das parcerias é preciso enxergar as organizações como parceiros da administração pública, reconhecendo o direito à liberdade de associação e à realização de finalidades e atividades de relevância pública e social para as quais foram criadas. Em geral, não se exige a constituição de organização jurídica para politicamente dar voz às organizações e às lideranças indígenas. A própria Constituição Federal protege os índios individualmente considerados, suas comunidades e organizações como partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses. No entanto, para as parcerias com o poder público no MROSC, entendeu-se necessária a constituição de pessoa 63

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

jurídica há mais de três anos na União, dois anos nos estados e no Distrito Federal (DF), e um ano nos municípios.

NOVOS PRINCÍPIOS E REGRAS TRAZIDOS PELO MROSC Uma das características principais da nova lei é que ela reconhece novas formas de relação entre estado e sociedade: a colaboração, na execução de atividades que operacionalizam políticas públicas; o fomento de projetos criados ou desenvolvidos pelas organizações; e a cooperação, para parcerias sem repasse de recursos financeiros, podendo haver compartilhamento patrimonial, como comodato de espaço ou bens. Os recursos disponíveis devem ser reunidos em editais para convocar a sociedade civil à apresentação de propostas. Os governos de municípios, estados, DF e União poderão fazer tanto os editais de chamamento público para colaboração na implementação de suas políticas e programas, como também os editais de fomento, para incentivar as diferentes iniciativas de interesse público da sociedade civil. É uma possibilidade real hoje que os editais de fomento representem uma alternativa a fundos que apoiam projetos de interesse público para a criação de novas tecnologias sociais e que possam depois ser replicados em maior escala em relações de colaboração. A Lei n. 13.019/2014 é processual: ela estabelece planejamento e gestão administrativa, seleção e celebração, execução, monitoramento e avaliação, e prestação de contas. A administração pública precisa ter capacidade de operar a lei, e em diversas ocasiões são percebidas fragilidades institucionais na sua aplicação. É uma boa oportunidade para melhorar a gestão pública. As organizações também precisam aprimorar seus mecanismos de transparência na execução de recursos e na obtenção de resultados. A vantagem é que agora a nova lei oferece tratamento jurídico adequado às peculiaridades da organização da sociedade civil. Para democratizar o acesso aos recursos públicos, o chamamento público é obrigatório, existindo alguns casos de dispensa, inexigibilidade, emenda parlamentar e cooperação sem compartilhamento patrimonial. Deve haver uma Comissão de Seleção para aprovação das propostas. Acessibilidade também é um tema que faz parte do processo de parcerias. A aplicação de recursos públicos não pode obstaculizar a inclusão de pessoas com deficiência. Nos editais e nos planos de trabalho deverão haver dispositivos que tratem do assunto, sempre que for o caso. 64

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

Entre as mudanças positivas destaca-se a atuação em rede. Duas ou mais organizações podem unir-se e apresentar um projeto ou uma atividade que tenha a execução por meio da atuação em rede. Notoriamente, a sociedade civil se junta em rede para alcançar outras esferas de incidência e amplificar sua atuação. Ter reconhecimento legal de que a atuação em rede é uma possibilidade como método de trabalho da sociedade civil é importante, pois estimula a criação de novas redes e reconhece as existentes. No caso concreto, a organização proponente deve ter cinco anos de existência, experiência prévia com redes e ser robusta em gestão, uma vez que responde pelas demais organizações que estão atuando em rede. A equipe de trabalho pode ser paga com recursos públicos, com os encargos sociais envolvidos, desde que tenha função técnica no plano de trabalho, qualificação necessária e proporcionalidade de tempo dedicado. Os custos indiretos devem ser previstos no plano e podem incluir despesas de consumo e apoio à gestão, como contabilidade, assessoria jurídica e afins. A contratação de bens e serviços deve seguir os métodos usados no setor privado, com publicização de atos na medida do possível, anunciando vagas e ofertas de prestação de serviços, bem como compra de bens, em suas redes. O preço deverá ser o de mercado, não superior ao previsto no plano de trabalho. Caso haja mudança no valor, nova orçamentação do item deve ser feita. A exigência de contrapartida financeira foi proibida, e a contrapartida facultativa de bens e serviços é autorizada em caráter excepcional. A atuação em rede, o reconhecimento do custeio da equipe de trabalho e das despesas indiretas, além da ausência de contrapartida financeira são medidas de democratização do acesso previstas no MROSC. O planejamento do que deverá ser feito para operacionalizar a atividade ou o projeto que constitui o objeto da parceria e quanto será despendido para atingir esse objeto em grupos de despesas deve estar descrito no plano de trabalho, que fará parte da celebração e virá anexo aos termos ou acordos para orientar a execução, o monitoramento e a prestação de contas. O plano de trabalho tem a função de coração do MROSC. Tudo que nele estiver previsto é o que deve ser feito e poderá ser cobrado, podendo ser alterado no caminho caso haja necessidade de ajustes. Por isso deve-se ter cuidado no momento de sua elaboração, prevendo metas e indicadores para aferição de resultados esperados. A lei inclui uma etapa de monitoramento e avaliação para diálogo do poder público e da organização, com vistas a sanear a gestão das parcerias durante a sua execução, em substituição à lógica de prestação de contas 65

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

mensal. A lógica do controle de resultados na prestação de contas do MROSC desloca para a pactuação prévia o momento de alocação de controles, usa o sistema de monitoramento para acompanhar e fiscalizar as parcerias e na prestação de contas avalia o cumprimento do objeto por meio dos indicadores das metas e resultados esperados. Registra-se a inovação das ações compensatórias, de ressarcimento ao erário em ações de interesse público quando for o caso. Quando autorizadas, em vez de devolver recursos financeiros, e desde que não seja caso de devolução integral de recursos, fraude ou crime, devolve-se em mais interesse público. Há possibilidade de aplicação subsidiária da nova lei às parcerias existentes anteriormente, incluindo as que estejam em fase de análise de prestação de contas. O Decreto n. 8.726/2016 traz autorização expressa para utilizar os dispositivos da lei na análise de aferição de resultados em convênios e de utilização de ações compensatórias se na apuração existir necessidade de devolução de recursos. Esses ganhos institucionais podem ser utilizados nos casos concretos que estiverem sob essas condições. É muito importante que a administração pública busque zerar passivos existentes para que nesse início de implementação do novo regime possamos identificar adequados processos de gestão das parcerias com as OSC. Em termos de governança do modelo, a lei dispôs sobre o novo Conselho de Fomento e de Colaboração como ponto focal para continuar esse debate da agenda regulatória das OSC e ajudar na implementação da Lei n. 13.019/2014 no ente federado. O Conselho acelera o processo de articulação entre sociedade civil e governos, funcionando muito bem hoje no Estado da Bahia e no município de Belo Horizonte. Além disso, a constituição do Conselho obriga o poder público a definir um lócus dentro do Poder Executivo para tratar do tema, possibilitando uma arquitetura institucional para a implementação do novo modelo de parcerias. Há também o procedimento de manifestação de interesse social, processo semelhante aos de orçamento participativo, que permite demandar da administração pública recursos específicos para determinada área a partir de um diagnóstico específico. Não é uma forma de acesso ao recurso, mas é uma forma de participar da decisão de acesso ao recurso, por isso se diz que é também um mecanismo de participação social. Em Belo Horizonte, o Procedimento de Manifestação de Interesse Social (PMIS) é de responsabilidade do Conselho Estadual de Fomento e Colaboração de Belo Horizonte (CONFOCO-BH). 66

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

A capacitação também é tema que ganhou um artigo específico também dentro da lei e que pode estar acoplado à existência do Conselho como iniciativas da gestão pública central para garantir a implementação com êxito. A Lei n. 13.019/2014 proíbe novos convênios com organizações da sociedade civil, à exceção da saúde, e afasta expressamente a Lei n. 8.666/ 1993. Tem como diretrizes a participação social, a gestão pública democrática, o fortalecimento da sociedade civil, entre outros elementos que podem ser invocados para embasar as ações com a sociedade civil e que alcançaram status de norma legal.

É SEMPRE POSSÍVEL AVANÇAR MAIS A lei é um ponto de partida relevante para planejar ações da sociedade civil com o Estado. Ela pode ser entendida como o mínimo a ser seguido. Adicionalmente, outros arranjos inovadores podem ser pensados para os casos concretos e a partir dos públicos setoriais. Solução interessante para garantir a oralidade do campo indígena foi construída no Ministério da Cultura, em 2015. Os termos do edital permitiam a apresentação de ideias de forma oral. Utilizando-se de vídeos, puderam os candidatos inscrever-se na própria língua indígena, com tradução simultânea. Os resultados obtidos foram excelentes. A prestação de contas foi feita por um simples relatório de atividades. A maneira como foi organizado o prêmio pode inspirar outras iniciativas na gestão pública para as comunidades indígenas. A regulamentação federal da Lei n. 13.019/2014 – Decreto n. 8.726/ 2016 – trouxe dispositivos expressos que dialogam com a realidade indígena no país e buscam garantir que os recursos cheguem para os públicos específicos no caso de políticas, programas ou ações direcionadas para os povos indígenas. Autoriza que os editais possam estabelecer execução por um público determinado, realizar delimitação territorial, pontuação diferenciada, cotas, etc.2 visando a redução nas desigualdades sociais e regionais,

2

“Art. 9º. [...] § 6º O edital poderá incluir cláusulas e condições específicas da execução da política, do plano, do programa ou da ação em que se insere a parceria e poderá estabelecer execução por público determinado, delimitação territorial, pontuação diferenciada, cotas, entre outros, visando, especialmente, aos seguintes objetivos: 67

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

bem como a promoção de direitos de indígenas, de quilombolas e de povos e comunidades tradicionais. Também obriga ampla divulgação, com meios adicionais àqueles previstos em lei, para garantir acesso à informação a quem não está conectado aos meios tradicionais de comunicação.3 Estados, DF e municípios podem se inspirar nessas ideias para suas regulamentações locais. Ainda temos que avançar nesse diálogo sobre as inovações para atender às especificidades das comunidades indígenas como possibilidades de avanço. O roteiro deve debruçar-se sobre cada uma das fases das parcerias – planejamento, seleção e celebração, execução, monitoramento e avaliação, e prestação de contas – e pensar o que deve ser considerado em relação às particularidades de cada comunidade. Temos muito a aprender com as culturas e tradições indígenas, e incorporá-las nas práticas da gestão pública democrática é um desafio necessário. É dever da administração pública, pela nova lei, garantir simplificação e desburocratização para seus administrados e parceiros na implementação e proposição de ações, incluindo as voltadas aos povos indígenas.

I - redução nas desigualdades sociais e regionais; II - promoção da igualdade de gênero, racial, de direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT ou de direitos das pessoas com deficiência; III - promoção de direitos de indígenas, de quilombolas e de povos e comunidades tradicionais; ou IV - promoção de direitos de quaisquer populações em situação de vulnerabilidade social. [...]”. 3

“Art. 10. O chamamento público será amplamente divulgado no sítio eletrônico oficial do órgão ou da entidade pública federal e na plataforma eletrônica. Parágrafo único. A administração pública federal disponibilizará, sempre que possível, meios adicionais de divulgação dos editais de chamamento público, especialmente nos casos de parcerias que envolvam indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais e outros grupos sociais sujeitos a restrições de acesso à informação pelos meios tradicionais de comunicação”. 68

:

sumário


CONVÊNIO INBRAPI E IPHAN: PROJETO EG RÁ – NOSSAS MARCAS Susana Andréa Inácio Belfort Kaingáng*

rabalho com duas organizações indígenas: o Instituto Kaingáng (INKA), uma organização indígena com uma atuação mais local no Rio Grande do Sul (RS), mais voltada à cultura e à educação junto aos índios Kaingáng, e o Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI), no qual trabalhamos com o patrimônio cultural indígena no Brasil, com a proteção e a promoção do patrimônio cultural indígena, seja material ou imaterial. Vou apresentar a experiência, enquanto INBRAPI, ao desenvolver e executar o convênio do projeto Eg Rá – Nossas Marcas. Eg Rá, em Kaingáng, significa “nossas marcas”. Com a atuação voltada à proteção e promoção de conhecimentos tradicionais, procurou-se realizar um projeto que visibilizasse mais a cultura Kaingáng, sua arte e grafismos, ou marcas. O projeto Eg Rá – Nossas Marcas foi um convênio que estabelecemos com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) ao final de 2010. Fomos selecionados em um edital público de mapeamento, documentação, apoio e fomento ao patrimônio cultural imaterial. O projeto Eg Rá – Nossas Marcas teve por objeto a pesquisa, documentação e tratamento de informação relativa aos grafismos do povo indígena Kaingáng, com o objetivo de preservar, valorizar e divulgar amplamente, junto às terras indígenas, o conjunto de marcas e desenhos tradicionais1 por meio de oficinas culturais e, ao final, a realização de uma publicação bilíngue (Kaingáng e português) e material audiovisual a ser distribuídos, em especial, junto às escolas indígenas Kaingáng, no intuito de informar e estimular a formação de novas pesquisas nessa temática.

T

*

Graduada em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Educação pela Universidade Federal da Fronteira Sul. Presta assessoria jurídica em caráter voluntário à Organização Indígena Instituto Kaingáng (INKA). Tem experiência na área de direitos indígenas, educação escolar indígena e patrimônio cultural indígena.

1

Rá, na língua Kaingáng. 69

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

O projeto também teve um enfoque voltado ao fortalecimento do desenvolvimento sustentável pela agregação de valor à arte Kaingáng tradicionalmente praticada na sua cestaria, a qual constitui uma das fontes de geração de renda para as famílias Kaingáng no sul do Brasil. O projeto Eg Rá – Nossas Marcas foi desenvolvido nos anos 2011 e 2012 e, quando começamos a pesquisar, a mapear e a documentar os grafismos ou marcas tradicionais Kaingáng, deparamo-nos com os seguintes questionamentos: como incentivar protagonismo entre um povo indígena invisibilizado no cenário nacional, apesar de constituir o 3º maior povo em população no Brasil? Como resgatar a autoestima abalada por séculos de genocídio e etnocídio? Que iniciativas promover para revitalizar uma cultura unindo tradição e inovação? Como nos apropriar da escola indígena para transformar a educação escolar formal em um instrumento a serviço do fortalecimento da cultura e das expressões culturais tradicionais? Como motivar educadores indígenas para atuar como mobilizadores culturais no contexto e no cotidiano das terras indígenas Kaingáng e pensar uma educação escolar específica e diferenciada, referenciada na base e nos valores da nossa cultura? Esses questionamentos nos motivaram e nos mobilizaram no decorrer da execução do projeto, durante a qual realizamos oficinas culturais abrangendo representantes de 10 terras indígenas no Rio Grande do Sul (RS), entre professores indígenas, profissionais indígenas, artesãos da comunidade, nossos anciãos (porque, quando falamos em pesquisa e em documentação relacionadas aos grafismos, não adianta buscar apenas a bibliografia existente: é preciso voltar às nossas raízes). E quem são as nossas raízes? Nossos velhos, nossos anciãos. Eles são a grande fonte da sabedoria viva dos nossos povos. Assim desenvolvemos todo esse trabalho junto com os nossos velhos, nossos anciãos, nossos kujás, que são os nossos pajés e líderes espirituais, todos aqueles que, pela tradição oral, remetem às nossas raízes. Nosso esforço e dedicação tiveram por intuito contribuir com a visibilização da cultura Kaingáng. Como comentado anteriormente, apesar de constituir o 3º maior povo indígena no Brasil e habitar as regiões Sul e Sudeste do país (há aldeias também em São Paulo), na realidade nós nos tornamos um povo invisibilizado tanto pela sociedade não indígena como muitas vezes até pelos próprios parentes indígenas, em razão do preconceito e da discriminação. Quando se afirma que no sul do Brasil não existem mais povos indígenas, então se torna urgente olhar a nossa história e ver por que não somos mais considerados indígenas. É em razão do processo 70

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

de miscigenação? O que aconteceu para que tivesse havido a miscigenação? Houve consentimento pelos povos indígenas? Enfim, essa foi a essência do projeto Eg Rá – Nossas Marcas, desenvolvido pelo INBRAPI, em parceria com o Instituto Kaingáng e Ponto de Cultura Kanhgág Jãre. Agora, vou relatar a situação que enfrentamos pós-execução do projeto. Elaboramos todo o relatório de prestação de contas e levamos ao IPHAN. Entregamos a prestação de contas impressa. Foram impressos 1.000 exemplares da obra Eg Rá – Nossas Marcas, e foram produzidos 1.000 DVDs. Avaliamos que os resultados alcançados pelo projeto vão muito além do que podemos apresentar neste momento (DVD e publicação), que contribuíram, sobretudo, para o incentivo e para a motivação das nossas comunidades. Desenvolvemos esse projeto com profissionais indígenas tanto da área da saúde como da educação. As escolas (principalmente da terra indígena Guarita, localizada nos municípios de Miraguaí, Redentora e Tenente Portela, que constitui a segunda maior terra Kaingáng do RS) apropriaram-se muito do uso das marcas ou grafismos Kaingáng (Rá Téj e Rá Ror); essa apropriação não ocorreu apenas no artesanato. Em geral vemos as marcas ou grafismos Kaingáng expressas onde? Na cestaria! Quem mora na região Sul do Brasil sabe que nossas comunidades geralmente estão comercializando ou saem para comercializar muita cestaria, e as marcas Kaingáng estão expressas nessa cestaria. Atualmente, na cultura Kaingáng, as marcas têm sido mais utilizadas no artesanato, isto é, o saber, o conhecimento, a simbologia das marcas ou grafismos Kaingáng, os conhecimentos tradicionais milenares que representam seu patrimônio cultural imaterial ganham sua materialidade na cestaria produzida. Desse modo, o uso dessas marcas ou grafismos em um suporte diferente, que não a cestaria, caracteriza uma inovação: inovação em termos do suporte utilizado, pois a marca e o desenho continuam os mesmos. Por exemplo, o uso de telas de tecido e de MDF para representar os desenhos Kaingáng configura uma inovação. À medida que nossas comunidades fortaleceram e aprimoraram o uso das marcas na cestaria na pintura corporal e foram se apropriando de novos suportes além da cestaria, elas começaram se autovalorizar, melhorar sua autoestima, fortalecer sua identidade cultural. Enfim, quando apresentamos a prestação de contas ao IPHAN, esse instituto começou a nos questionar sobre sua inserção no Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse (SICONV), porque não era suficiente a entrega da nossa prestação de contas física de todo esse material (temos um material fotográfico belíssimo que está fora desse DVD, comprovando 71

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

todas as nossas oficinas, mas para o instituto isso não caracterizava a nossa prestação de contas). Esta é uma situação que o INBRAPI enfrenta até hoje: inserir toda a prestação de contas no SICONV, a fim de não sofrer uma tomada de contas especial. Entretanto, por que isso aconteceu com o INBRAPI? No final de 2013, a instituição perdeu o apoio institucional da Embaixada da Noruega e, com isso, não foi possível continuar assumindo as despesas com o escritório em Brasília, com a equipe de trabalho, situação que acabou refletindo no processo de prestação de contas ao IPHAN, que ficou pendente. Agora, com o apoio do escritório Dora, Azambuja e Oliveira – Advocacia de Direitos Humanos, retomou-se esse processo. A partir da cópia do processo/convênio junto ao IPHAN em Brasília, foi possível resgatar todas as informações solicitadas e inseri-las no portal do SICONV. Também contamos com a orientação do IPHAN nesse procedimento e, no momento da escrita deste artigo, aguardamos sua posição quanto à prestação de contas inserida no SICONV. Esperamos o mais brevemente possível encerrar e aprovar essa prestação de contas, pois o INBRAPI pretende desenvolver novos projetos e firmar parcerias, inclusive com a administração pública. Nesse sentido, esperamos que as disposições do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil venham facilitar a atuação das organizações indígenas nas relações de parcerias com os diversos órgãos e entidades da administração pública. Por outro lado, nós, organizações indígenas, precisamos fortalecer nossas instituições e nos qualificar como profissionais a fim de disputar espaços que possibilitem a realização de projetos que reflitam o fortalecimento dos nossos povos e referenciem nossa atuação.

72

:

sumário


FOIRN: A BUSCA PARA SUPERAR DESAFIOS DE GESTÃO FINANCEIRA Rosivaldo Rodrigues Teles*

ou início a minha fala comentando um pouco sobre a instituição/organização a qual represento, que é a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). A FOIRN foi fundada em 30 de abril de 1987, portanto antes da Constituinte de 1988, tem como objetivo principal a demarcação das terras indígenas e a luta em defesa dos direitos indígenas, e atuação que abrange os municípios de São Gabriel da Cachoeira,1 Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. A atuação da FOIRN ao longo de 30 anos é de muita luta que, para muitos, já está marcada na história da resistência dos povos indígenas da região do Alto Rio Negro e até mesmo do Brasil. Como tudo deve estar escrito e registrado em cartório de forma legal, foi então realizada a assembleia de fundação, e os organizadores tiveram essa atenção junto aos órgãos competentes para que de fato a organização fosse pelo menos reconhecida no papel, assim como o Governo sempre recomenda e gosta. A FOIRN está organizada de modo que sua instância maior é a Assembleia Geral, na qual as lideranças discutem todas as ações executadas e a prestação de contas durante o período de quatro anos. Outras instâncias de organização são o Conselho Diretor e a Comissão Fiscal, nos quais são tratados, discutidos e avaliados os assuntos e as atividades do ano de execução pela Diretoria da FOIRN. A estrutura da FOIRN foi reorganizada para melhor atuação do movimento indígena em cinco coordenadorias regionais estrategicamente distribuídas: Coordenadorias das Associações Indígenas Baniwa e Coripaco (CABC), Coordenadoria das Organizações Indígenas do Tiquié e Baixo Uaupés (COITUA), Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê (COIDI), Coordenadoria das Associações Indígenas do Alto

D

*

Rosivaldo Rodrigues Teles (nome indígena Diãmi) é do povo Arapaço, da região do Alto Rio Negro, município de São Gabriel da Cachoeira, situado no noroeste do estado do Amazonas. Atua no Departamento Financeiro da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN).

1

Município-sede da FOIRN. 73

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

Rio Negro e Xié (CAIRNX) e Coordenadoria do Médio e Baixo Rio Negro (CAIMBRN). A Diretoria Executiva que é composta pelos cinco diretores eleitos para representar junto à FOIRN suas regionais e entre os cinco diretores são eleitos o presidente e o vice-presidente. Na atual gestão, o Diretor-presidente é o Sr. Marivelton Rodrigues Barroso, do povo Baré, da região da CAIMBRN. Uma das instâncias da FOIRN, que é de suma importância, é o trabalho da Comissão Fiscal, composta por cinco lideranças indígenas eleitas em assembleia e que tem como competência averiguar toda a prestação de contas da organização, apresentar um parecer, decidir questões de orientação e recomendações para que todos os trabalhos sejam executados da melhor maneira possível. A FOIRN, como organização que exerce o controle social sobre as políticas públicas do governo municipal, estadual e federal, executou em alguns momentos algumas ações de políticas públicas, em razão do fato de o poder público não mostrar eficiência e responsabilidades na execução de ações desse tipo. Diante disso, a FOIRN, em convênio com a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), executou ações na área da saúde indígenas por meio do Distrito Sanitário Especial do Rio Negro (DSEI Alto Rio Negro). Em decorrência da atuação da FOIRN, o DSEI do Alto Rio Negro foi considerado o melhor do Brasil em atenção básica à saúde indígena, e serviu de modelo para os demais. Porém, nos dias atuais, dispondo ainda de mais recursos, o DSEI Alto Rio Negro não consegue atender o mínimo da saúde indígena. Outro convênio que a FOIRN executou foi com o Ministério da Cultura, referente ao Projeto Ponto de Cultura do Rio Negro, que conseguiu atender várias regiões de abrangência da FOIRN. A FOIRN também executou outros pequenos projetos apoiados pelo Projeto Demonstrativo de Povos Indígenas (PDPI) e Subprograma Projetos Demonstrativos (PDA).2

2

Em 1991, foi criado o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7) em cooperação entre o Governo brasileiro, a União Europeia, o Banco Mundial e o G-7 (grupo que reúne os sete países mais ricos do mundo: Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, França, Itália e Japão). Em 1996, o PPG7, considerando que as terras indígenas colaboram para a proteção do meio ambiente, apoiou a criação do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL), coordenado e executado pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e pelo Ministério da Justiça. Com o avanço das demarcações, as comunidades indígenas passaram a reivindicar apoio 74

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

Assim como em tudo existem dificuldades, a FOIRN teve bastante trabalho para poder prestar contas e atender o que estabelecem as leis brasileiras. Exemplo disso é que o SICONV foi aquele com o qual mais tivemos problemas, pois dependíamos desse sistema para prestar contas e só podíamos inserir dados se estivéssemos conectados na internet, o que, para nós, do Alto Rio Negro, ainda é um grande dilema. Em relação aos documentos de prestação de contas, podemos dizer que, embora conseguíssemos realizar consultas, cotações, carta-convite, compras, pagamentos e relatórios financeiros, acompanhar e entender o orçamento, ordenamento de despesas e organizar todos os documentos para a prestação de contas, esta ainda é uma das maiores dificuldades, principalmente porque muitos que estavam com essa responsabilidade não tinham o conhecimento necessário, tampouco tinham compromisso e eficiência. Diante dessas situações, a FOIRN capacitou alguns de seus funcionários para que, assim, pudéssemos suprir essas necessidades e, inclusive, por meio dessa equipe e do apoio de assessoria de parceiros, muitas pendências foram sanadas, principalmente em projetos em que a FOIRN era proponente e algumas associações filiadas à FOIRN eram executoras. Quais seriam os nossos desafios hoje? Ainda seria a execução dos projetos em parceria com o Governo. Não basta somente as nossas organizações tentarem executar os projetos sozinhas. A experiência do Rio Negro, por meio da FOIRN, demonstra que é muito difícil executar projetos que de fato possam alcançar a população indígena conforme o que está estabelecido no convênio, contrato ou termos do projeto. E, acima de tudo, a população fica desacreditada por tudo que já conseguimos executar e, mesmo assim, os indígenas da região não se sentem contemplados, beneficiados pelas ações dos projetos, e muito menos os órgãos públicos, como o poder municipal, estadual e federal, querem assumir suas responsabilidades. Outra questão

para projetos de etnodesenvolvimento. Assim, os povos indígenas passaram a participar do PDA, que recebeu apoio do PPG7 e foi executado pelo Ministério do Meio Ambiente. Os povos indígenas argumentaram a necessidade de criar um programa específico para apoiar o etnodesenvolvimento das comunidades indígenas, o que deu origem ao PDPI, um programa que também teve apoio do PPG7 e foi executado pelo Ministério do Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/apoio-a-projetos/povos-ind%C3%ADgenas>. Acesso em: 14 jun. 2018. 75

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

é que poderíamos melhorar a gestão financeira e saber utilizar de modo responsável e eficaz as novas ferramentas e tecnologias que surgem ao nosso favor, para que tenhamos melhores resultados. Em relação a editais, somos nós que temos que nos adequar ao que está estabelecido, e isso dificilmente é executado na maioria das vezes, pois cada localidade ou região de execução tem suas especificidades. Ter pessoas preparadas para poder ter uma administração financeira eficiente e eficaz pode ser uma das alternativas para poder gerir projetos que possam atender a demanda dos povos indígenas do Rio Negro, porém, ter um profissional em nossas organizações hoje ainda é um grande desafio, embora tenhamos vários indígenas formados na área. Outra questão é em relação aos fornecedores que não atendem aos critérios preestabelecidos dentro dos projetos. Isso afeta diretamente as execuções das atividades, sem falar que não podemos realizar cotação, licitação e compras em outros estados, pois há a questão dos impostos, como é o caso do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Assim, evitamos realizar essas compras e temos que trabalhar com que está ao nosso alcance e da melhor maneira possível. Diante de tantas dificuldades, a nossa organização vem, ao longo de sua trajetória, buscando meios para que possa levar melhoria na qualidade de vida da população indígena da região. E vem sempre tentado desempenhar um papel no qual possa mostrar ao poder público que é possível desenvolver atividades que possam beneficiar a todos. Exemplo disso é a FOIRN, que tem projetos executados na área de educação escolar indígena, venda e comercialização de produtos indígenas do Rio Negro por meio da loja Wariró, uma forma de valorizar os artesãos indígenas da região, projetos de valorização cultural (dança, pinturas, cantos, etc.), projetos de turismo de base comunitária e pesca esportiva. Assim, nós, indígenas do Rio Negro, fazemos uma pergunta: até que ponto, até quando nós, povos indígenas, através da FOIRN, vamos fazer esse papel do Estado? Não é nosso papel executar políticas públicas, e, sim, dos órgãos competentes, como a prefeitura, o governo do estado e o Governo Federal, tendo em vista que somos cidadãos de direitos e exigimos nossos direitos.

76

:

sumário


AS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS E A LEI N. 13.019/2014 – MARCO REGULATÓRIO DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL: OPORTUNIDADES E DESAFIOS Carolina Gabas Stuchi* Natália de Aquino Cesário**

Lei n. 13.019/2014 estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil (OSC), em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação. Antes de tratar das oportunidades e dos desafios para as organizações indígenas diante desse novo marco legal, é importante lembrarmos que se trata de uma lei nacional, e sempre que falamos de uma lei nacional se deve ter clareza de que ela tem que ter respaldo na Constituição Federal. É uma obviedade, mas é importante principalmente quando vamos estudar regulamentos, decretos, portarias e atos administrativos que implementam essa lei, porque, algumas vezes, vemos o direito administrativo sendo aplicado no Brasil como se ele não estivesse submetido a regras e princípios maiores da Constituição. E, algumas vezes, para os nossos gestores públicos, são os outros que têm que se adaptar às regras da burocracia e dos procedimentos administrativos e não eles que têm como dever cumprir os direitos garantidos na própria Constituição. Então é essencial interpretar essa lei lembrando que a Constituição está sempre no topo dessa pirâmide e que a gestão pública deve atuar para garantir os direitos assegurados na Constituição. E a Constituição Federal de 1988 deixa claro que são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,

A

*

Bacharela em Direito e Doutora em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Professora Adjunta do Bacharelado de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC desde 2017.

** Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Univer-

sidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Advogada em São Paulo. 77

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.1 Feita essa consideração, selecionamos algumas regras que podem ser oportunidades ou desafios para as organizações indígenas. As oportunidades a serem analisadas são as regras atuais que consideram as organizações indígenas e permitem o fomento estatal de alguma forma. A Lei n. 13.019/2014 prevê que seu regime jurídico deve assegurar a valorização dos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais (artigo 5°, inciso IX). A mesma lei teve o artigo 2-A adicionado em 2015 (pela Lei n. 13.204) e prevê que as parcerias com OSC devem respeitar normas específicas das políticas públicas setoriais relativas ao objeto da parceria e as respectivas instâncias de pactuação e deliberação. Isso traz um enorme desafio do ponto de vista de teoria do direito. Por quê? Porque é necessário compatibilizar leis nacionais e leis locais, leis gerais e leis específicas, bem como leis no tempo. Além disso, considerando a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho, incorporada no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n. 5051/2004, há um amplo direito à participação das organizações indígenas, como o direito dos povos indígenas de serem consultados, por meio de procedimentos adequados, e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; o direito de definir suas próprias prioridades no processo de desenvolvimento na medida em que afete suas vidas, crenças, instituições, bem-estar espiritual e as terras que ocupam ou usam para outros fins, e de controlar, na maior medida possível, seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural; e o direito de participar na formulação, implementação e avaliação de planos e programas de desenvolvimento nacional e regional que possam afetá-los diretamente. Ademais, é importante que as organizações indígenas participem previamente à regulamentação local da Lei n. 13.019/2014 por meio dos mecanismos de grupos de trabalho, audiências e consultas públicas, quando houver. Caso o ente federativo não preveja tais instrumentos participativos,

1

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 231. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituição.htm>. Acesso: 5 set. 2018. 78

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

cabem às OSC reivindicarem a sua participação, pois a Lei n. 13.019/2014 prevê que deverá haver “fortalecimento da participação social e da divulgação das ações”. Também há a possibilidade de integrar as instâncias participativas, como o Conselho de Fomento e Colaboração (previsto no art. 15 da Lei n. 13.019/2014), além de conselhos específicos que tenham relação com o objeto da parceria (§ 3º, art. 15). Outro mecanismo interessante é o Procedimento de Manifestação de Interesse Social (PMIS), previsto nos art. 18 a 21 da Lei, instrumento por meio do qual as OSC, movimentos sociais e cidadãos poderão apresentar propostas ao poder público para que este avalie a possibilidade de realização de um chamamento público objetivando a celebração de parceria. Assim, é possível apresentar projetos para atender as demandas indígenas utilizando-se do PMIS. A Lei n. 13.019/2014 também permite a atuação em rede (art. 35-A), por duas ou mais organizações da sociedade civil, mantida a integral responsabilidade da organização celebrante do termo de fomento ou de colaboração, desde que a organização da sociedade civil signatária do termo de fomento ou de colaboração tenha mais de cinco anos de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) e capacidade técnica e operacional para supervisionar e orientar diretamente a atuação da organização que com ela estiver atuando em rede. A atuação em rede poderá ser um importante instrumento para que as organizações indígenas menores ou mais recentes participem de parcerias com outras existentes há mais tempo, fortalecendo as demandas. Outra possibilidade é a diferenciação de regras e procedimentos para alcançar a isonomia nas parcerias com as demais OSC. Os decretos regulamentadores poderão prever disposições diferenciadas para as organizações indígenas em cumprimento ao fundamento do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) de valorizar as organizações indígenas. Alguns exemplos da possibilidade desse tratamento diferenciado já são encontrados em alguns decretos regulamentadores atuais.2

2

Art. 9º: “§6° O edital poderá incluir cláusulas e condições específicas da execução da política, do plano, do programa ou da ação em que se insere a parceria e poderá estabelecer execução por público determinado, delimitação territorial, pontuação diferenciada, cotas, entre outros, visando, especialmente, aos seguintes objetivos: [...] 79

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

Outrossim, permite-se que haja instrumentos diferenciados de seleção e formalização das parcerias, com a possibilidade de critérios diferenciados

III - promoção de direitos de indígenas, de quilombolas e de povos e comunidades tradicionais; […] Art. 10. O chamamento público será amplamente divulgado no sítio eletrônico oficial do órgão ou da entidade pública federal e na plataforma eletrônica. Parágrafo único. A administração pública federal disponibilizará, sempre que possível, meios adicionais de divulgação dos editais de chamamento público, especialmente nos casos de parcerias que envolvam indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais e outros grupos sociais sujeitos a restrições de acesso à informação pelos meios tradicionais de comunicação”. (Decreto Federal n. 8.726, de 27 de abril de 2016. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8726.htm>. Acesso em: 5 set. 2018). Art. 9°: “§ 2º - O edital de chamamento público poderá incluir cláusulas e condições que sejam amparadas em circunstância específica relativa aos programas e às políticas públicas setoriais, desde que considerada pertinente e relevante, podendo abranger critérios de pontuação diferenciada, cotas, delimitação territorial ou da abrangência da prestação de atividades ou da execução de projetos, editais exclusivos ou estratégias voltadas para públicos determinados, visando, dentre outros, aos seguintes objetivos: [...] III - promoção de direitos de indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais; […]”. (Decreto Estadual da Bahia n. 17.091, de 5 de outubro de 2016. Disponível em: <https://www.sefaz.ba.gov.br/administracao/controle_interno/ DECRETO_N_1709_2016.pdf>. Acesso em: 5 set. 2018). “Art. 12. O edital não preverá cláusulas que impliquem direcionamento, ressalvadas as exigências necessárias para o específico objeto da parceria e as seguintes situações excepcionais: [...] III - o estabelecimento de cláusula que, visando à implementação de política afirmativa de direitos, preveja execução por público determinado, pontuação diferenciada, cotas, entre outros mecanismos voltados à redução nas desigualdades sociais e regionais, promoção da igualdade de gênero, da igualdade racial, da diversidade ou de direitos de pessoas com deficiência, indígenas, povos e comunidades tradicionais ou quaisquer populações em situação de vulnerabilidade social”. (Decreto Distrital n. 37.843, de 13 de dezembro de 2016. Disponível em: <http://www. sinj.df.gov.br/sinj/Norma/dafaadb15ff3452f82afc4390b5ee432/exec_dec_37843 _2016.html>. Acesso em: 5 set. 2018). 80

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

de seleção, novas formas de comunicação entre o poder público e as organizações indígenas em todas as fases do processo de parceria (planejamento,

“Art. 22. O Edital não preverá cláusulas que comprometam o caráter competitivo da seleção, ressalvadas as exigências necessárias ao específico objeto da parceria e as seguintes situações excepcionais: [...] III - o estabelecimento de cláusula que, visando a implementação de política afirmativa de direitos, preveja execução por público determinado, pontuação diferenciada, cotas, entre outros mecanismos voltados à redução nas desigualdades sociais e regionais, promoção da igualdade de gênero, da igualdade racial, diversidade ou direitos de pessoas com deficiência, indígenas, povos e comunidades tradicionais ou quaisquer populações em situação de vulnerabilidade social”. (Decreto Rondônia n. 21.431, de 29 de novembro de 2016. Disponível em: <ditel.casacivil.ro.gov.br/ cotel/Livros/Files/D21431.pdf>. Acesso em: 5 set. 2018). Art. 9°: “§ 5º - O edital poderá incluir cláusulas e condições específicas da execução da política, do plano, do programa ou da ação em que se insere a parceria e poderá estabelecer execução por público determinado, delimitação territorial, pontuação diferenciada, cotas, entre outros, visando, especialmente, aos seguintes objetivos: [...] III – promoção de direitos de indígenas, de quilombolas e de povos e comunidades tradicionais [...]” (Decreto Municipal de Belo Horizonte n. 16.746, de 10 de outubro de 2017. Disponível em: <https://prefeitura.pbh.gov.br/sites/default/ files/estrutura-de-governo/procuradoria/portaldasparcerias/Decreto%2016.7462017.pdf>. Acesso em: 5 set. 2018). “Art. 9º - O chamamento público será amplamente divulgado no sítio eletrônico oficial do órgão ou da entidade pública municipal. Parágrafo único - A administração pública municipal disponibilizará, sempre que possível, meios adicionais de divulgação dos editais de chamamento público, especialmente nos casos de parcerias que envolvam indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais e outros grupos sociais sujeitos a restrições de acesso à informação pelos meios tradicionais de comunicação”. (Decreto Municipal de Belo Horizonte n. 16.519, de 26 de dezembro de 2016. Disponível em: <http:// portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1173421>. Acesso em: 5 set. 2018). “Art. 20. O chamamento público deverá ser amplamente divulgado no sítio oficial do órgão ou entidade da Administração Pública Municipal e preferencialmente na plataforma eletrônica do Sistema de Gestão de Parceria. 81

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

seleção, execução, monitoramento e avaliação, prestação de contas – vide experiência dos pontos de cultura em que a oralidade foi permitida) e modelos de instrumentos adaptados à realidade das organizações indígenas. Por fim, no que se refere às oportunidades, a lei permite, no art. 63, §3º, que seja regulamentado o procedimento simplificado de prestação de contas. A prestação de contas apresentada pela organização da sociedade civil deverá conter elementos que permitam ao gestor da parceria avaliar o andamento ou concluir que o seu objeto foi executado conforme pactuado, com a descrição pormenorizada das atividades realizadas e a comprovação do alcance das metas e dos resultados esperados, até o período de que trata a prestação de contas. O benefício é que a análise da prestação de contas deverá considerar a verdade real e os resultados alcançados, sem necessidade de documentos financeiros. O novo marco regulatório traz também desafios para as organizações indígenas, especialmente algumas regras gerais que não consideram as especificidades dessas organizações. O primeiro desafio é o próprio enquadramento das organizações indígenas como OSC. A Lei n. 13.019/2014 prevê amplamente o que pode ser considerado como OSC, mas não prevê expressamente as organizações indígenas. A despeito disso, com uma análise sistêmica e teleológica da lei, o entendimento deste artigo é que cabe o enquadramento das organizações indígenas como OSC, tendo em vista que a valorização dos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais é um dos objetivos da lei. No entanto, não há clareza de como isso será interpretado na sua aplicação. Outro desafio é o cumprimento dos requisitos3 para a celebração dos termos de colaboração e termo de fomento. Há dispensa de requisitos para

[...] § 2º A Administração Pública Municipal disponibilizará, sempre que possível, meios adicionais de divulgação dos editais de chamamento público, especialmente nos casos de parcerias que envolvam indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais e outros grupos sociais sujeitos a restrições de acesso à informação pelos meios tradicionais de comunicação”. (Decreto Municipal de Teresina n. 16.802, de 24 de abril de 2017. Disponível em: <http://dom.teresina.pi.gov.br/ admin/upload/DOM2050-05052017.pdf>. Acesso em: 5 set. 2018). 3

Art. 33: “V - possuir: a) no mínimo, um, dois ou três anos de existência, com cadastro ativo, comprovados por meio de documentação emitida pela Secretaria da 82

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

as organizações religiosas e cooperativas (§§ 2° e 3°, art. 33), mas não para as organizações indígenas. A regra que obriga a OSC a divulgar na internet e em locais visíveis de suas sedes sociais e dos estabelecimentos em que exerça suas ações todas as parcerias celebradas com a administração pública também poderá ser um desafio para organizações indígenas que não tenham acesso à internet. A mesma dificuldade poderá ser encontrada para acessar os editais ou para a prestação de contas. Ainda sobre a prestação de contas, cabe lembrar do desafio de muitas organizações indígenas de finalizar as prestações de contas pendentes em convênios sob a vigência da legislação anterior. As parcerias existentes no momento da entrada da Lei n. 13.019/2014 permanecerão regidas pela legislação vigente ao tempo de sua celebração, sem prejuízo da aplicação subsidiária da Lei n. 13.019/2014 naquilo em que for cabível, desde que em benefício do alcance do objeto da parceria. Ainda não há informação sobre uma regra de prestação de contas simplificada para essas contas pendentes, mas a lei parece deixar espaço para isso. Por fim, fica o desafio de acompanhar o processo de implementação da Lei n. 13.019/2014 no âmbito da União, dos estados e dos municípios nos próximos anos.

Receita Federal do Brasil, com base no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica CNPJ, conforme, respectivamente, a parceria seja celebrada no âmbito dos Municípios, do Distrito Federal ou dos Estados e da União, admitida a redução desses prazos por ato específico de cada ente na hipótese de nenhuma organização atingi-los; b) experiência prévia na realização, com efetividade, do objeto da parceria ou de natureza semelhante; c) instalações, condições materiais e capacidade técnica e operacional para o desenvolvimento das atividades ou projetos previstos na parceria e o cumprimento das metas estabelecidas”. (BRASIL. Lei n. 13.019, de 31 de julho de 2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ _ato2011-2014/2014/lei/l13019.htm>. Acesso em: 5 set. 2018). 83

:

sumário



CONCLUSÃO COMO E POR QUE DEBATER O DIREITO DE LIVRE ASSOCIAÇÃO PARA POVOS INDÍGENAS Denise Dourado Dora1

s debates realizados nos dias 13 e 14 de novembro de 2017, relatados nesta publicação, possibilitaram um inédito encontro de lideranças das principais associações e redes indígenas do país com advogados(as) especialistas em direito das organizações da sociedade civil. De um lado, o encontro contou com a larga experiência dos últimos 40 anos de organização dos povos indígenas no Brasil, na reivindicação de seus direitos fundamentais como povos originários, da garantia de suas terras e de sua vida cultural, que começou antes da Constituição Federal de 1988, mas tem, nesse documento, seu marco legal definitivo. De outro lado, contou com um grupo de juristas que vem trabalhando para consolidar o direito à liberdade de associação neste país, exatamente a partir de direitos constitucionais consagrados e da adesão do Brasil aos pactos internacionais de direitos humanos. Essa reflexão era, e permanece sendo, muita necessária. O processo de construção de uma agenda da sociedade civil brasileira para nova regulação de seus modelos associativos, desenvolvida nas últimas duas décadas, ainda não atingiu seu ponto de qualidade esperado. Foram conquistadas algumas mudanças importantes no marco regulatório, em especial no que se refere à transparência na relação do Estado com as organizações da sociedade civil, e esses avanços começam a mostrar seus efeitos positivos. Entretanto, há ainda um passivo de demandas das organizações que diz respeito à sua autonomia política e jurídica, à sua sustentabilidade e à proteção contra criminalização de seus(suas) dirigentes que permanece relevante e em debate para ampliação e aprofundamento. Em relação às organizações de povos indígenas, esta é uma questão ainda mais necessária e urgente. Como foi ressaltado por vários debatedores, os povos indígenas têm formas de organização próprias que representam as

O

1

Advogada, integrante do Conselho Deliberativo da Conectas Direitos Humanos, e sócia da Dora, Azambuja e Oliveira – Advocacia de Direitos Humanos. 85

:

sumário


FORTALECIMENTO DOS POVOS E DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS

dinâmicas culturais de cada povo, e não precisam estar tutelados pelo Estado brasileiro para representar e defender seus interesses e seu patrimônio cultural. Especialmente com a nova ordem constitucional de 1988, em seus artigos 231 e 232, há a garantia do reconhecimento aos índios de sua organização social, de seus costumes, línguas, crenças e tradições, bem como de sua representação como parte legítima em processos judiciais. No entanto, na vida real, os povos indígenas são instados a constituir associações civis, no modelo determinado pelo Código Civil vigente, para poder realizar parcerias com instituições públicas e privadas, gerir projetos e garantir alguma sustentabilidade para ações de curto, médio e longo prazo. Um dos objetivos do encontro era, então, levantar esse debate, problematizar essas opções jurídicas de associação, que parecem inevitáveis no atual contexto. Será que são mesmo inevitáveis? Poderia haver outras opções? Alguns dos artigos aqui apresentados ponderaram questões muito relevantes a serem analisadas e respondidas em novos encontros, em que se discutam as dimensões jurídicas das liberdades associativas, como foi feito aqui. Também as lideranças indígenas, além de trazer as suas considerações e experiências, tiveram a oportunidade de refletir sobre os marcos normativos que compõem a atuação política das organizações, conselhos e associações de povos indígenas atualmente. Em um momento em que se exige pensar criativa e propositivamente sobre a liberdade de expressão, reunião, associação e protesto, este é um conhecimento muito importante. O encontro, realizado em novembro de 2017, aconteceu em um contexto já não favorável à defesa dos povos indígenas, que demandam seu reconhecimento como sujeitos da defesa de seus territórios, de seus bens culturais e do meio ambiente sustentável. Desde lá, infelizmente, o cenário político vive uma regressão democrática, como apontado pelo professor Oscar Vilhena Vieira em seu prefácio a esta obra. As últimas eleições mostraram um país dividido e confuso quanto aos princípios e valores fundamentais que devem reger nossa sociedade e nação. Essa regressão democrática afeta a liberdade de associação? E afeta especialmente a liberdade de associação dos povos indígenas? Esse debate continua urgente e necessário, e esta publicação é, de fato, uma provocação para que mais juristas, antropólogos(as), indigenistas, dirigentes de organizações da sociedade civil, lideranças indígenas e pensadores(as) sobre direitos humanos, democracia e liberdades de manifestação e associação se dediquem a refletir, pesquisar, debater e responder às muitas questões trazidas pelos autores e autoras aqui publicados. 86

:

sumário


PESQUISA DIREITO GV

Por último, agradecemos a Aurélio Vianna, da Ford Foundation, pelo seu inestimável apoio e curiosidade intelectual, com a qual estimulou a realização desse encontro. Agradecemos também à disponibilidade de todas as pessoas que participaram do debate e produziram este livro, que contou com o trabalho dedicado de Paulo Celso de Oliveira Pankararu e Aline Gonçalves de Souza.

87

:

sumário




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.