FEMINISMO E MULHERES COM DEFICIÊNCIA Coletivo Feminista Helen Keller* O feminismo foi um importante aliado para o entendimento da deficiência, principalmente, por trazer a perspectiva do cuidado como pauta política. Mesmo que essa discussão tenha partido das mulheres que exerciam o papel de cuidadoras, foi possível estabelecer o entendimento do cuidado como direito, algo essencial para a compreensão da autonomia da pessoa com deficiência. Ainda hoje o lugar da mulher no debate sobre deficiência é o de cuidadora, centralizando a discussão nas mulheres que, devido à desvalorização/negação econômica da reprodução social, abdicam de seu desenvolvimento pessoal e profissional em prol de seus filhos. Reconhecemos isso, mas o debate precisa ser expandido. Pessoas com deficiência se constituem a partir de marcadores sociais como gênero, classe, raça, idade e sexualidade. Não somos apenas “filhos”, socialmente objetificados, também somos mulheres. Estimativas apontam que de 40% a 68% das mulheres com deficiência irão sofrer violência sexual antes dos 18 anos de idade (UNFPA, 2018). De acordo com o Atlas da Violência (2018), cerca de 10% das vítimas de estupro e 12,2% das vítimas de estupros coletivos são pessoas com deficiência. Além de pautar essa realidade, precisamos romper com a individualização dessas violências. E a perspectiva feminista é fundamental para isso. Se nós, mulheres com deficiência, representamos ¼ das mulheres brasileiras, por que permanecemos invisibilizadas dentro do próprio movimento feminista? Se as mulheres com deficiência são a maioria da população com deficiência, por que os homens monopolizam microfones e espaços no movimento? Ao considerarmos que, de acordo com o IBGE (2010), 56,57% da população com deficiência é composta por mulheres; 49,7% das pessoas com deficiência se encontram na Região Nordeste (26,3%) e Norte (23,4%), regiões economicamente mais pobres do Brasil, e 30,9% das mulheres negras são mulheres com deficiência, entenderemos a relação entre gênero, raça, classe e deficiência.
Precisamos saber de quem são esses corpos e o impacto do sistema capitalista sobre eles. A consciência de nossa subalternidade como resultado direto da lógica de mercado nos leva à luta anticapitalista, pois não há igualdade possível enquanto não houver a ruptura com um sistema sustentado no patriarcado, no capacitismo, no racismo e nas demais opressões. Ao sermos entendidas como não rentáveis/exploráveis, a negação a nossa existência enquanto mulheres com deficiência segue aceitável, inclusive aos progressistas. A esse governo e aos demais neoliberais, reforçamos que a “meritocracia” abre um tsunami para a perpetuação da miséria das pessoas com deficiência, sobretudo a nós, mulheres. O exercício da nossa cidadania não é negociável. Como se sabe, deficiência não é apenas a presença de uma lesão, doença ou alterações genéticas, mas o resultado dessas condições individuais em interação com as barreirasconstruídas e impostas socialmente. Não somos objetos. Nossa existência não pode seguir sendo pautada por dualismos perversos, que nos resumem como estorvo ou inspiração, pecadores ou anjos. Muito menos seguirmos com nossos discursos validados apenas pela lógica de superação, onde falamos sobre o quanto nossas vidas são horríveis para que vocês se sintam melhores. Por que ainda hoje, quando a deficiência é lembrada, nosso protagonismo é entendido como menos importante ou, até mesmo, dispensável? Deficiência não é tragédia pessoal, é construção social e escolha política. A ausência de acessibilidade é o ápice da manifestação do capacitismo, que é a ideia de que pessoas sem deficiência são superiores às pessoas com deficiência, em qualquer aspecto, e reforçamos que a construção de barreiras à nossa participação, ao longo da história, vem sendo uma forma de nos manter distantes dos espaços de decisão. Partindo disso, acessibilidade não pode seguir como algo facultativo, mas sim como um direito humano e um instrumento indispensável e inegociável não apenas a nós, mulheres com deficiência, mas a todas e todos que não admitem esse apartheid velado (ou seria escancarado?) imposto aos nossos corpos. Nossas questões, enquanto mulheres com deficiência, não são separadas das lutas feministas. Lutamos pela autonomia nas decisões sobre nossos corpos, tendo 37 | P á g i n a