COVID(A) NO CAPACITISMO NOSSO DE CADA DIA Francine de Souza Dias* A pandemia de COVID-19 parece lupa: aquele instrumento municiado com uma lente, por meio do qual imagens podem ser ampliadas. Ela oportunizou-nos olhar com mais facilidade e amplitude o modo como as pessoas com deficiências são percebidas numa sociedade desigual, discriminatória e balizada em certos parâmetros corporais definidos como normais, mais capazes, mais úteis. Essa lupa ofereceu nitidez à compreensão da valoração humana com base nas estruturas corporais que, sob um ponto de vista quase eugênico, determina quem merece mais ou menos investimentos na sua proteção e no seu cuidado. Quando uma lupa é utilizada, o que se vê é a imagem virtual do objeto. Neste caso, a imagem de corpos menos validos. Por essa razão, afirmo que a pandemia radicalizou o Capacitismo4,12,13 nosso de cada dia. Essa palavra nova na cena brasileira veio abordar uma problemática antiga: o modo como a produção de padrões de normalidade ignora as diferenças humanas e as inumeráveis maneiras pelas quais os corpos existem, se relacionam, bem como são habitados. O Capacitismo, portanto, expressa as diversas manifestações de discriminação contra pessoas com deficiências, a partir da desqualificação de seus corpos e modos de fazer e existir, sob a referência de uma corponormatividade12,13 que lhe ampara. O prenúncio dessa radicalidade capacitista surgiu sob a forma de notícias nos meios de comunicação. Observamos, no primeiro trimestre de pandemia, conteúdos sinalizando que as formas mais graves de adoecimento por COVID-19 tem ocorrido em corpos velhos, informação esta que, no decorrer do tempo, estimula a ideia de que não se trata de um problema tão generalizável assim. As narrativas seguintes foram constituídas sob a ótica do risco para pessoas com doenças crônicas preexistentes, o que corrobora para a manutenção de certa despreocupação de grande
parte da sociedade. Afinal de contas, essas pessoas já estavam doentes. Corpos gordos também foram alavancados como importante justificativa para letalidade de sujeitos mais jovens20. Terreno sob o qual mensagens gordofóbicas15 podem encontrar solo fértil. Outros debates11, 20 têm abordado a letalidade da doença entre a população negra. É o racismo, distanciando de diferentes formas o povo preto de seus direitos, dentre os quais o acesso à saúde, numa perspectiva multidimensional. O Capacitismo dialoga com todas essas categorias e também pode ser identificado como modo fino de operá-las. Deste modo, seja pela deterioração do corpo velho, pelos contornos dos corpos gordos, pelas limitações funcionais diversas, ou pelo racismo que produz abismos sociais, percebemos a emergência de discussões sobre orientações, normas e protocolos de atendimento em situações de urgência5, 6, 7, 9, 17 e, porque não, práticas cotidianas que também agudizam a perene “crise” do sistema de saúde em muitas regiões do país. A deficiência, tal como raça, gênero, classe, faixaetária, é um marcador social. Ela possibilita compreender como as relações sociais são construídas, as sociedades se estruturam, como disputas de poder-saber são forjadas, formas de governo e gestão da vida são constituídas. Neste sentido, importa ressaltar que marcadores sociais não operam isoladamente, sendo indispensável uma abordagem sensível aos efeitos de suas intersecções8,10. O Capacitismo é de longa data e opera de variadas maneiras, apesar de se consolidar recentemente no vocabulário acadêmico e político. Ele se manifesta quando um espaço é estruturado a partir de elementos que desconsideram as diferentes formas e características humanas; quando recursos de acessibilidade são negados; quando a deficiência é o que torna o sujeito visível, a despeito de sua existência como pessoa constituída por outras características e identidades; quando discursos heroicos e de superação são ovacionados; quando a deficiência é concebida como tragédia pessoal; quando se ignora as formas diversas de se viver com uma determinada deficiência, 51 | P á g i n a