AS CIDADES E A PANDEMIA: EFEITOS, DESAFIOS E TRANSFORMAÇÕES Ana Paula Medeiros e Soraya Rajs* O impacto da pandemia de coronavírus pode ser melhor apreendido não apenas através do número de infecções e mortes – por si só muito trágicos – mas olhando a forma como tocou as vidas de todos, em suas dimensões coletivas e individuais. Não há virtualmente ninguém no mundo cuja vida não tenha sido afetada, de uma maneira ou de outra, pela doença ou pelas transformações que ela impôs nas nossas vidas, sobretudo nas cidades. Cidades convivem com surtos de doenças, que se aproveitam do adensamento da população para se alastrar, desde sempre. São inúmeros os casos documentados em cidades da Antiguidade, Idade Média e Moderna. A presença ou ausência de anticorpos em dada população também contribui para a extensão do potencial de devastação de uma doença. As populações ameríndias sabem disso bem, considerando que foram dizimadas com a chegada dos europeus e, com eles, da gripe. Nos séculos XIX e XX, grandes reformas urbanas se notabilizaram, buscando manifestamente modernizar os centros urbanos e torná-los mais salubres e higiênicos, atendendo aos preceitos de saúde públicaca, mas também adequando estas cidades às necessidades de circulação e reprodução do capital. Neste contexto, saneamento básico e acesso a água potável se tornaram elementos fundamentais para o estabelecimento de padrões urbanos modernos e adequados. A última grande pandemia que assolou o planeta foi a da Gripe Espanhola (1918-1920), que matou mais de 50 milhões de pessoas, tendo atingido meio bilhão, cerca de um quarto da população mundial na época. Como agora, a Gripe Espanhola foi causada por um vírus respiratório e entre as medidas adotadas, em diversas cidades do mundo, estava o uso de máscaras em locais públicos e a proibição de aglomerações. Também como agora, o impacto na economia foi atroz, agravado pelas consequências da recém terminada Primeira Guerra Mundial. Ainda assim, estudo recente mostra que as cidades que adotaram medidas mais rígidas sofreram menos efeitos econômicos por conta da pandemia.
Como as questões urbanas agravam os efeitos da pandemia de Covid-19 Muito se disse, no início da pandemia, que o novo coronavírus atingiria as pessoas sem distinção de raça, classe social ou localidade de moradia. A realidade tem mostrado que os riscos e os efeitos catastróficos da doença são desproporcionalmente maiores para as populações vulnerabilizadas, em especial as que vivem em assentamentos informais, como favelas, loteamentos e ocupações, bem como a população em situação de rua. De acordo com a ONU-HABITAT, as precárias condições em que essas populações já vivem tendem a se agravar ainda mais com a pandemia, num círculo perverso e vicioso. Estamos diante de um vírus novo, para o qual não temos ainda anticorpos. Dada a forma de transmissão, ambientes urbanos adensados oferecem o maior risco de contágio. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimava que, em 2010, cerca de 11,4 milhões de pessoas viviam em favelas no Brasil. Em Belém (PA), a proporção de população favelada chegava a ser de 54%; em Salvador (BA), 33% e no Rio de Janeiro (RJ), 22%. Este contexto torna ainda mais evidentes as condições de desigualdade social em que vivemos, como país. As principais recomendações para evitar o contágio são o isolamento social e a higienização constante das mãos com água e sabão ou álcool gel. Muitas empresas adotaram parcial ou integralmente o regime de trabalho remoto. Com isso, as moradias se tornaram o epicentro da vida urbana, servindo como lugar de trabalho, de educação (com as aulas online), de lazer e interação social (com a multiplicação de encontros virtuais através de plataformas digitais variadas), de atividade física, além de continuar atendendo a necessidades básicas de proteção, repouso e higiene. Mas como garantir que uma parcela majoritária da população possa atender a essas recomendações se moram em condições precárias, hiperadensadas, sem acesso a direitos básicos de saneamento e segurança, sem infraestrutura adequada e frequentemente enfrentando a diminuição parcial ou total da renda familiar, seja porque muitos empregos foram perdidos, seja porque a natureza informal e precária de seu trabalho exige que a pessoa continue indo às ruas para buscar o sustento? Em geral, os países que conseguiram impor uma quarentena mais rígida aliaram uma comunicação 6|Página