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EDITORIAL
Conservadorismo e alteridade
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ara o acadêmico Rodrigo dos Santos Manzano, autor de artigo destacado na capa de Filosofia este mês, nossa sociedade vive, hoje, sob uma condição que remonta ao Estado hobbesiano por definição. Para Thomas Hobbes, “o homem é o lobo do homem”. E somente uma grande força repressora (o Estado) pode apaziguá-lo. Em tempos de conservadorismo, o egoísmo tal como o define Hobbes, seria imperativo, facilitando a negação do outro e influenciando nosso modelo de democracia. O pacto egoísta entre representado e representante eleito garantiria o privilégio de classes e em outras áreas, acentuando diferenças sociais, culturais e econômicas, alargando a distância entre grupos, dissolvendo a coletividade, aumentando a intolerância. Estaríamos, segundo Manzano, vivendo uma verdadeira crise de alteridade. A pauta crítica ao conservadorismo não se esgota nesse conteúdo da edição, expondo a discussão sobre gênero (à qual, na visão conservadora, vincula-se uma ideologia de gênero) em diferentes momentos da publicação. Um artigo, escrito por Adriana Silvestrini, trata dos saberes que podem tratar a questão do gênero, a partir da perspectiva de Michel Foucault e outros pensadores modernos. Outro texto, de Victor Santana de Araújo, recorre à Escola Sem Partido, mostrando como esse tema foi central para a construção de um projeto que fosse contra, na verdade, uma suposta doutrinação marxista no ensino, exigindo neutralidade (e, por outro lado, promovendo a parcialidade conservadora) em um espaço que é político e plural por excelência. No que diz respeito à existência humana (e também – por que não? – de nossa alteridade), artigo de Daniel Lopes traz o intelectual Peter Sloterdjik à cena para discutir sua ira apaixonada, influenciada pelo clássico O Morro dos Ventos Uivantes, romance de Emily Brontë. Ele, meio Heathcliff, vê-se vivenciando o amor e humilhação como o personagem, no entendimento de que uma das maiores histórias de amor já escritas no mundo seria, na verdade, um tratado sobre vingança. Desejamos a você, leitora ou leitor, excelentes momentos de reflexão e leitura. Da Redação
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SUMÁRIO
ANO X No 146 145 – www.portalespacodosaber.com.br
A NEGAÇÃO DO
OUTRO
A crise atual da alteridade na crítica do conceito de Estado hobbesiano
número 146 MÚSICA E FILOSOFIA
Uma intimidade para além da estética musical
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A CONVERGÊNCIA ENTRE JUSTIÇA E DEMOCRACIA, POR RENATO JANINE RIBEIRO
GÊNERO, EM FOUCAULT
Relações de poder em xeque CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO
CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO: DESIGUALDADE EM SALA DE AULA •
DESIGUALDADE
ESCOLA SEM PARTIDO (PARTE 2) • UMA NOVA ORGANIZAÇÃO DA ESQUERDA
ESCOLA UMA NOVA
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ENTREVISTA
Pesquisador em Filosofia da Mente e Ciência Cognitiva, autor de livros infantis e gestor de uma startup, Gustavo Luiz Gava coloca o conhecimento a serviço da prática
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EM SALA DE AULA SEM PARTIDO (PARTE 2)
ORGANIZAÇÃO
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DA ESQUERDA
DE CIÊNCIAS
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FILO CLÍNICA Homero, Molloy e Molière: Similitudes na coluna de Lúcio Packter
SOCIEDADE/CAPA
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GÊNERO
Diante das possibilidades de estudo sobre o assunto, o filósofo Michel Foucault descontrói as convenções e questiona: “que saberes têm poderes para falar sobre sexualidade?”
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No Estado hobbesiano, egoísta por definição, a negação do outro seria imperativa. Estaríamos vivendo uma verdadeira crise de alteridade?
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FILO ORIENTAL Buda Amitabha, na coluna de André Bueno
ESTÉTICA
Educação e processo de construção da autonomia ético-estética com a música
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EXISTÊNCIA
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL
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O complexo de Bacamarte do governo brasileiro, na coluna de Rodrigo Petronio
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CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO
CO M P RO P O STA D IDÁT IC A
OLHO GREGO Democracia e justiça convergem? Na coluna de Renato Janine Ribeiro
CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • Desigualdade em sala de aula
DESIGUALDADE EM SALA DE AULA ESCOLA SEM PARTIDO (PARTE 2) UMA NOVA ORGANIZAÇÃO DA ESQUERDA
• Escola Sem Partido (parte 2) • Uma nova organização da esquerda CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS •
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MESOLOGIA
Literatura e Filosofia na compreensão da vingança, a partir de O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë
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ENTREVISTA
Gustavo Luiz Gava
Filosofia em ação Pesquisador em Filosofia da Mente e Ciência Cognitiva, autor de livros infantis e gestor de uma startup, Gustavo Luiz Gava coloca conteúdos e conceitos à serviço da prática em prol do conhecimento e da sociedade
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ustavo Luiz Gava é Doutor, Mestre e graduado em Filosofia. Sua área de atuação é a Filosofia da Mente com ênfase em Ciência Cognitiva. Professor e pesquisador universitário nos modelos de ensino presencial e à distância. Atualmente é sócio-pesquisador da startup Whilt. Nesta entrevista ele comunica sobre suas pesquisas, sobretudo no âmbito de seu doutorado defendido na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Transformar a Filosofia em motor de ações em prol da sociedade e pesquisa interdisciplinar sobre a problemática mente-cérebro parece ser um objetivo perseguido por Gava, o que ele demonstra a seguir.
FILOSOFIA • Para iniciarmos, conte-nos quais caminhos sua pesquisa de doutorado trilhou? GUSTAVO LUIZ GAVA • A minha tese foi sobre o problema do conhecimento humano. Para discutir esta problemática optei por dissertar a denominada tríade mundo, corpo e mente. Ou seja, como as informações dispostas no mundo são transduzidas pelo corpo e subsequentemente traduzida pela mente. Trata-se de um problema que permeia a física de Aristóteles, a antropologia Doutorando em educação com bolsa de doutorado concedida no âmbito CAPES/Fundação Araucária, organizador de diversos livros na área de filosofia & educação: www.fabioantoniogabriel.com 6 •
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de Kant, entre tantas outras abordagens filosóficas – McDowell, Putnam, Quine etc. Contudo, escolhi fazer uma pesquisa interdisciplinar à Filosofia. Para isso, articulei e trilhei autores da Neurociência, da Biologia e da Semiótica, a fim de enriquecer o escopo de minhas investigações de caráter cognitivo. Considerei que o problema do conhecimento humano, especificamente o alcance representacional da mente, é um encefálico esforço evolutivo/cognitivo altamente ecológico. Isto é, um processo ecocognitivo. E, de modo igual, a cada dia – por influência das novas tecnologias –, estamos tendo que lidar com um fluxo informacional físico e virtual cada vez mais complexo. Como consequência, o cérebro humano está a criar novos padrões cognitivos. Outros padrões de outputs (comportamento) devido, às vezes, ao “excesso” de inputs (fluxo informacional). O conhecimento humano pode ser ampliado quando há uma espécie de homeostase além da biológica, do organismo, mas por meio de uma homeostase socioperceptiva. Ou seja, a representação mental de novas entradas informacionais que perpassam
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Por Fábio Antonio Gabriel
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O conhecimento humano pode ser ampliado quando há uma espécie de homeostase além da biológica, do organismo, mas por meio de uma homeostase socioperceptiva
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o corpo até alcançarem o nível mental. Assim, gerando como consequência um determinado comportamento.
FILOSOFIA • Poderia nos falar um pouco mais sobre o significado de homeostase no contexto de sua pesquisa? GAVA • Bom, gostaria de explicar as vertentes conceituais que usei na minha pesquisa. Acredito que com isso facilitarei o entendimento e o contexto geral sobre este conceito. O termo geral que usei começa por explicar o primeiro nível da homeostase, ou seja, a constante manutenção primária da vida feita pelo organismo animal: o esforço organísmico para manter os processos fisiológicos regulares como equilíbrio térmico, circulação sanguínea, respiração, sentir fome, entre outros. O segundo nível da homeostase que uso é o da homeostase perceptiva, ou seja, trata-se do segundo momento de equilíbrio da vida humana. É a partir dos estados primários que regulam fisiologicamente toda a ordem mínima do organismo que se torna possível outro momento de esforço vital: o da percepção. De igual modo, trata-se de um nível moral responsável em manter estabilidade das ações físico-representacionais. Habilitando o sujeito a se distanciar e controlar impulsos que possam fazer com que ele corra riscos, afrontando a sua própria vida: a percepção das próprias ações no mundo. Esta noção conceitual é relacionada aos exercícios espirituais dos gregos antigos; a sabedoria grega. Estudiosos da filosofia antiga como, por exemplo, Hadot e Nussbaum compartilham desta mes-
ma referência conceitual. O terceiro nível da homeostase que relaciono na pesquisa é o da homeostase social, ou seja, equivale-se ao equilíbrio geral da vida do animal humano. É o alcance perceptivo de alto desempenho que afasta o sujeito da vida acrática. Ou seja, um alcance de nível teorético. Com a análise destas versões homeostáticas, cheguei a conclusão – e é o que apresento como parte de minha tese me baseando a partir da filosofia de Aristóteles até a biossemiótica – de que o ciclo se fecha com uma homeostase socioperceptiva, isto é, um equilíbrio global (representacional e comportamental) entre todas as ações que retornam por meio da interação humana ao ambiente, possibilitando ampliar o mundo próprio.
FILOSOFIA • Você é membro pesquisador do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, Portugal, pelo Mind, Language, and Action Group (MLAG). Poderia nos falar sobre as pesquisas desenvolvidas pelo grupo? GAVA • Sim. Foi com muita satisfação que recebi este convite da Profa. e ex-orientadora Dra. Sofia Miguens Travis para desenvolver minhas pesquisas de intercâmbio em Porto. No atual momento, o núcleo de pesquisas têm como cerne de suas investigação a pauta da Filosofia da Ação. Grande parte de seus pesquisadores são especialistas em filósofos como McDowell, Travis, etc. Outro eixo investigativo do grupo de estudos que funciona como braço da filosofia da ação e a própria filosofia moral. Autores como Aristóteles, Anscombe, Rawls etc., são conjugados no intuito de discutir acerca da acrasia. Gostaria de aproveitar o ensejo e compartilhar uma das últimas produções (vídeo) do MLAG intitulada Sofia Miguens / Tempo e Filosofia: https://youtu.be/52pqyZaQLbc Como o termo de acrasia é uma das peças chaves de minha tese, este aprofundamento conceitual que obtive no grupo de estudos do MLAG foi fundamental. De modo geral, acrasia significa a má ação, uma conduta moral prejudicial, que leva ao vício, ao exagero, ao desequilíbrio. Por exemplo, embriagar-se de vinho até passar mal. Na minha pesquisa, ao resgatar o termo grego “akrasia”, podemos entender que se trata significativamente da busca pelo equilíbrio das ações no mundo, e que estas ocorrem por meio perceptivo, ou seja, para haver este equilíbrio, é necessário se afastar do homem acrático, de ações que podem levar ao desequilíbrio da própria vida. Para Aristóteles, o homem seria o princípio motor das suas ações no mundo, sendo ele o próprio ciência&vida • 7
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ENTREVISTA
Gustavo Luiz Gava
agente que delibera perceptivamente suas ações com os objetos que compõem a realidade. Como expliquei anteriormente, o equilíbrio geral que fecha este ciclo seria a homeostase socioperceptiva.
FILOSOFIA • Poderia nos falar sobre as contribuições que foram agregadas na sua formação como filósofo ao ter vivenciado esta experiência no exterior? GAVA • Com certeza posso lhes garantir que foi uma de minhas melhores experiências acadêmicas até então. Evoluí muito como pesquisador na área de filosofia. Recomendo a todos que tiverem esta oportunidade de sair do país para uma vivência de intercambio de estudos, que a aproveitem ao máximo. No meu caso, tive experiências e oportunidade únicas. Como por exemplo, ser orientado pela professora e pesquisadora Sofia Migunes do MLAG da U.Porto, coorientado pelo professor e pesquisador Pedro Borges de Araújo do AutoFocus da U.Porto e, ter participado dos seminários ministrados pelo filósofo Charles Travis do King’s College London. Ao final de minha estadia de intercâmbio fui convidado a ser membro pesquisador do grupo de investigação AutoFocus: MLAG [af] on Architecture, Philosophy, Neuroscienses. Trata-se de um grupo multidisciplinar que reúne pesquisadores do mundo todo dedicados aos estudos da cognição aplicados nas diversas produções humanas. FILOSOFIA • Como você percebe que estão estruturados os grupos de estudos no Brasil sobre filosofia e ciências cognitivas? GAVA • Com a ascensão e organização da ANPOF acredito que muitos grupos foram motivados em suas pesquisas, bem como na organização de comunidades de estudos. Vejo isso nitidamente quando o assunto é o ensino de filosofia. Essa pauta passou a ser considerada uma preocupação filosófica no Brasil - uma vez que até então era vista como uma problemática “meramente” pedagógica. Entretanto, em relação aos temas que envolvem a filosofia da mente e a ciência cognitiva, percebo que houve um tímido avanço e aceitação. Claro, isso só foi possível graças aos esforços pioneiros dos professores Bento Prado Jr. e João de Fernandes Teixeira. Pois, é sabido que tais linhas de pesquisas chegaram a ser (e ainda são em alguns casos) consideradas como uma não-filosofia. Vejo até hoje colegas que buscam essa interdisciplinaridade 8 •
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A coleção “O Pequeno Filósofo” é uma proposta de levar a filosofia ao universo infantil de forma lúdica, provocativa e livre. A ideia surgiu inspirada na infância do autor e em suas indagações quando tinha entre 7 e 9 anos de idade à filosofia por meio dos eixos da filosofia da mente e da ciência cognitiva encontrarem inúmeras barreiras. Seja pelos pares, pelos órgãos competentes, entre outros. Por exemplo, o trabalho interdisciplinar realizado pelo pesquisador brasileiro Alfredo Pereira Jr. é louvável. Todavia, já ouvi algumas pessoas afirmando que o que ele faz não é filosofia. Ora, me parece que reduzir a filosofia unicamente a história da filosofia ou filosofia analítica é um engessar desnecessário. Acredito que por meio dessas situações ainda serem corriqueiras aos estudos interdisciplinares, a Filosofia da Mente e a Ciência Cognitiva ainda não ganharam o seu lugar de importância e destaque. Às vezes, chego a pensar se Daniel Dennett seria considerado filósofo em nosso meio. Ou melhor, seria possível surgir um Daniel Dennett?
FILOSOFIA • Você possui um livro intitulado A Mente Holística: fenômenos globais no cérebro segundo Jerry Fodor. Poderia nos falar em linhas gerais sobre o conteúdo deste livro? GAVA • O livro aborda como a mente holística poderia funcionar a partir de movimentos atemporais no cérebro humano. São resgatadas as duas principais teorias de Jerry Fodor entre os anos de 1970 e 1980 e a atual problemática em evidência na Ciência Cognitiva – as teorias da ‘linguagem do pensamento’ e da ‘modularidade da mente’, bem como a problemática de processos
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cognitivos holísticos no cérebro humano. Como pano de fundo, mostra-se que Fodor resgata a importância da Psicologia como uma ciência especial e apresenta sua filosofia. De maneira interdisciplinar, a discussão dessa obra transita por meio dos atuais setores científicos que investigam o problema mente-cérebro. Mas, principalmente, o que mais instiga cientistas e filósofos de plantão – os processos holísticos da mente humana.
FILOSOFIA • Pela Editora Multifoco você organizou um livro intitulado Ensaios filosóficos, poderia nos falar sobre este projeto editorial realizado? GAVA • Esse projeto foi fruto da parceria com o colega Fábio A. Gabriel e a proposta comum de enaltecer o caráter interdisciplinar da Filosofia. Por exemplo, abordar temas (como ensaios) que tivessem como pano de fundo a Filosofia, bem como o seu caráter interdisciplinar. Temas envolvendo Educação e Filosofia, Neurociência e Lilosofia, linguagem e Filosofia etc. Queríamos um projeto que pudesse reconhecer essa proposta interdisciplinar entre Filosofia e outras áreas do conhecimento. A proposta do projeto deu tão certo que, como resultado, a obra recebeu o segundo lugar no Prêmio Anual (2013) da ABRAFP (Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise). FILOSOFIA • Para quem quer conhecer a Filosofia da Mente qual seria o caminho inicial? GAVA • Bom, a fim de reconhecer os esforços dos professores Bento Prado Jr., João de Fernandes Teixeira e Alfredo Pereira Jr, inicialmente recomendo uma breve tour em seus currículos: artigos, livros, vídeo-aulas etc. FILOSOFIA • Você também possui um livro de Filosofia para crianças. Poderia nos falar sobre este projeto de escrita e como você vê a importância da Filosofia para crianças? GAVA • Essa obra é parte de uma coleção de Filosofia ao universo infantil. A coleção “O Pequeno Filósofo” é uma proposta de levar a filosofia ao universo infantil de forma lúdica, provocativa e livre. A ideia surgiu inspirada na infância do autor e em suas indagações quando tinha entre 7 e 9 anos de idade. Com o passar dos anos e a posterior formação filosófica, eu transformei em livro a brincadeira que queria passar adiante. O primeiro título da coleção se chama E se não existisse?. Nesse, a brincadeira tem a ver com a teoria do
filósofo George Berkeley e continuará, em outros volumes, com outros pensadores e suas filosofias. Sempre motivando e possibilitando as crianças a alcançarem estruturas imagéticas e racionais.
FILOSOFIA • Recentemente você acabou de lançar outro um livro infantil, desta vez, sobre neurodiversidade. Poderia nos contar um pouco mais sobre este projeto? GAVA • O livro, da Série Neurodiversidade, é intitulado O Outro Mundo de Pipo e foi recentemente lançado pela Editora Inverso. Na história é apresentada a realidade de Pipo, um menino diferente, incrível, mas cuja forma de agir e pensar é diferente das outras crianças. Em todo o enredo, dei ênfase à forma explicativa e lúdica, a fim de aumentar o entendimento por parte de familiares e profissionais sobre a realidade de crianças e jovens com autismo, Síndrome de Asperger, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), entre outros – todos ligados direta e indiretamente ao universo da neurodiversidade. A proposta desse projeto não é clínica, mas, sim, filosófica. Esta Série Neurodiversidade tem como proposta desenvolver materiais literários diversificados visando à literatura infantojuvenil e seu encontro ao mundo adulto. O objetivo é trabalhar com os fenômenos que atinjam o público, direta e indiretamente, envolvido no universo da neurodiversidade. Tais como psiquiatras, psicólogos, filósofos, pedagogos, sociólogos, psicopedagogos, neurocientistas, estudiosos da mente humana, médicos sociais, mas, principalmente, os familiares, as crianças e os jovens que compõem este cenário. Em neurodiversidade são estudados fenômenos diversos que teoricamente são denominados e mais conhecidos www.portalespacodosaber.com.br •
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ENTREVISTA
Gustavo Luiz Gava
por autismo, síndrome de Asperger, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), entre outros. A teoria da neurodiversidade surgiu em meados de 1999. O termo ficou conhecido a partir da australiana Judy Singer, socióloga diagnosticada com síndrome de Aspard. Segundo o cientista e pesquisador, na área de medicina social, Francisco Ortega “[...] é um termo que tenta salientar que uma ‘conexão neurológica’ (neurological wiring) atípica (ou neurodivergente) não é uma doença a ser tratada e, se for possível, curada. Trata-se antes de uma diferença humana que deve ser respeitada como outras diferenças”. Os envolvidos neste universo devem receber um direcionamento, um alento – pais, profissionais, crianças e jovens – na compreensão de tais fenômenos à luz da neurodiversidade. Por isso mesmo, a proposta do material não é clínica e, sim, filosófica. As temáticas abordarão vários elementos. Os livros desta coleção são destinados tanto para crianças e jovens, como também para pais, profissionais e demais interessados no tema. A ideia geral é um aprendizado mútuo.
FILOSOFIA • Você é um dos mentores da startup Whilt. Geralmente os filósofos tem uma atuação mais teórica do que prática, poderia nos falar sobre sua atuação como filósofo numa startup e quais são suas atividades como empreendedor? GAVA • Sim. Desde a minha graduação tinha em mente transformar o conhecimento filosófico em ações práticas. Palestras, treinamentos e livros foram empreendimentos iniciais que consegui desenvolver logo após a graduação. Sentia essa necessidade e visualizava que era possível ir além. Oferecer algo palpável à sociedade, que ia além do ensino conteudístico da disciplina de filosofia. Em 2015, junto com um grupo de colegas, participei do evento Startup Weekend Education Curitiba. Nesse evento fomos finalistas com a ideia do Whilt. Atualmente estou responsável em P&D (pesquisa e desenvolvimento) pela plataforma Whilt. O projeto do Whilt é oferecer uma plataforma a fim de formar uma rede colaborativa de aprendizagem que, de uma forma simples, ajude professores e alunos a resolverem o problema de baixa retenção de conteúdo após a aula e/ou disciplina, os participantes gravam um vídeo respondendo a seguinte pergunta: O que eu aprendi hoje? A plataforma já foi testada em instituições nacionais e internacionais. Seus resultados estão dando um amplo material para pesquisas envolvendo metodologias ativas. Ainda em 2015 participei do evento 10 •
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denominado PUC Jovens Ideias. Concorri com a ideia de projeto de uma nova haste flexível, o conhecido cotonete. Fui finalista do evento e, como resultado, consegui o registro de patente no INPI em parceria com a Agência PUC - Ciência, Tecnologia e Inovação: Novas Hastes Flexíveis. Em 2014 e 2016, fui também finalista do evento interno do Grupo Positivo denominado FIP (Fábrica de Ideias Positivo). Em 2014, com o projeto Crianças Que Filosofam e em 2016 ,com o projeto Tutoria Híbrida. Fazer da Filosofia ações prático-empreendedoras tornou-se uma realidade cada vez mais palpável.
FILOSOFIA • Você também tem pesquisas sobre educação a distância EaD. Como você percebe as contribuições dessa modalidade de ensino na formação das futuras gerações? Há proposições de se colocar o ensino à distância também no ensino fundamental e médio, você acredita que isso seria viável? GAVA • Permita-me fazer uma breve explanação sobre a EaD antes de responder as questões específicas. Acredito que há duas realidades ao se pensar a educação a distância no Brasil: os processos de ensino podem garantir e/ou comprometer a aprendizagem em ambiente virtual. Diante de algumas pesquisas desenvolvidas frente ao grande boom que a EaD teve em nosso país nos últimos anos, podemos constatar que o processo de ensino em EaD está relacionado em como o conceito de educação é percebido pelos setores responsáveis: gestores, professores-tutores e equipe pedagógica de produção. Acredito que para a EaD dar certo efetivamente em nosso país, é primordial que os responsáveis diretos e indiretos envolvidos no processo desta modalidade tenham em mente – a fim de se evitar possíveis transtornos – três fatores que podem comprometer a qualidade das instituições e dos cursos por elas ofertados. São eles: 1º) quando há a ausência de uma comunicação assertiva, de forma horizontal, clara, aberta e objetiva entre os setores envolvidos, uma vez que as decisões da alta gestão devem ser compartilhadas com a mínima antecedência entre todos os pares que fazem parte da equipe EaD, ou seja, todos devem saber claramente qual é o norte que a instituição almeja chegar; 2°) quando não há no trabalho de tutoria o sentimento de autonomia comprometendo, assim, a motivação criativa entre os professores, tornando-se uma função de tutoria excessivamente monológica, reativa, transmissiva e vertical, ou
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Desde a minha graduação tinha em mente transformar o conhecimento filosófico em ações práticas. Palestras, treinamentos e livros foram empreendimentos iniciais que consegui desenvolver logo após a formação seja, quando há o excesso de controle nas atividades do professores-tutores, estilo linha de produção mecânica, e; 3°) quando os discentes, os docentes e os demais colaboradores (editorial, design, analistas, equipe pedagógica, TI, etc.) não conseguem incorporar na cultura organizacional o sentimento de pertencimento dentro da própria instituição, ou seja, tornam-se ilhas que por mais próximas que estejam em um mesmo ambiente, agem como setores isolados, e, a missão da instituição em EaD é demasiadamente obtusa. Diante de tudo isso, percebo que se for possível alinharmos estes três pontos em uma missão comum, acredito que, aí sim, estaremos oferecendo uma EaD de qualidade. E, que as futuras gerações poderão usufruir cada vez mais de um ensino responsável e comprometido com a formação de cidadãos capacitados ao desenvolvimento do nosso país. A EaD já possui o futuro da educação: o ensino híbrido. Isto é, uma parte do ensino permanece presencial e, a outra parte pode ser realizada virtualmente à distância. Penso que a fusão entre o ensino presencial e o ensino a distância, ou seja, o modelo híbrido, está se encaminhando para o modelo ideal às novas necessidades da educação deste novo século. O encontro físico, a socialização e a troca de vivências entre os pares é de extrema importância no processo de formação cidadã. Porém, o usufruto das metodologias ativas e das novas
tecnologias tornam-se potenciais de ensino no processo de aprendizagem virtual, online. Por fim, acredito que o modelo híbrido no ensino médio seja um potencial a ser testado, por que não? Claro, com suas devidas ressalvas, como por exemplo, levar em consideração as comunidades e atores sociais envolvidos. Principalmente, quando pensamos nos matizes sociais, uma vez que sabemos que o problema da inclusão digital no Brasil ainda é um sério problema, fato. Talvez poderíamos começar com alguns setores privados e, que os mesmos, fizessem parcerias com os atores públicos. Parcerias entre escolas privadas e públicas. Há inúmeras ideias e projetos que podem ser pensados de maneira responsável. Agora, acredito que oferecer a EaD como um sistema de ensino nacional obrigatório, desconsiderando as diferenças socioeconômicas de cada região, entre tantos outros fatores possivelmente ainda nem levantados, seja, aí sim, um fator limítrofe. Com relação ao ensino fundamental, acredito que não seja uma proposta inteligente, uma vez que vai na contramão de qualquer prática e fundamentação filosófico-pedagógica em tão tenra idade. Como por exemplo a importância do acompanhamento dos estímulos para o desenvolvimento motor, psicológico, entre outros, das crianças. Quem sabe uma disciplina exclusiva pudesse ser ofertada em EaD, como sendo algo extracurricular, e, ainda, com o indispensável acompanhamento dos responsáveis. Enfim, realmente, é um assunto que merece maiores detalhes e explicações. Inclusive, eu poderia ceder uma entrevista apenas sobre essa temática (risos). www.portalespacodosaber.com.br •
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DESCONSTRUIR para entender Diante das possibilidades de estudo sobre o assunto, o filósofo Michel Foucault descontrói as convenções e questiona: “que saberes têm poderes para falar sobre sexualidade?”
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Adriana Silvestrini é jornalista e filósofa.
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AS FEMINISTAS ANGLO-SAXÃS FORAM AS PRIMEIRAS, NOS ANOS 1970 A USAR O TERMO GENDER (GÊNERO) COMO DISTINTO DE SEX (SEXO). AQUI NO BRASIL, GÊNERO COMEÇOU A SER TIMIDAMENTE UTILIZADO PELAS FEMINISTAS NO FINAL DOS ANOS 1980
que é desconhecido gera sensações e reações diferentes para cada indivíduo. A predisposição de querer desvendá-lo é o que move muitas pessoas, porém, o desprezo por aquilo que não se conhece e muito menos se quer conhecer também movimenta muitas outras. Entre um tipo e outro, ainda há aquelas que ficam na coluna do meio absorvendo passivamente o significado estabelecido e posto para explicar sobre algo que se apresenta. Um exemplo: as palavras. Quando não se sabe o que determinada palavra quer dizer, algumas providências são tomadas, a depender de quem as toma. Os interessados vão buscá-la em dicionários, nos livros, debater com o professor, conversar com pais, trocar ideias com amigos ou aguardar as mensagens transmitidas pelos meios de comunicação. Os desinteressados vão simplesmente apagá-la do cére-
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OF
CALIFORNIA, BERKELEY [CC0],
VIA
WIKIMEDIA COMMONS
Judit Butler, filósofa norte-americana hostilizada no Brasil
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bro mesmo sem antes ter sabido o conceito daquela junção de sílabas. E o pessoal da coluna do meio ficará exatamente ali onde sempre esteve, aguardando de qualquer emissor – de preferência, aquele que for mais ligeiro – uma sopa pronta de letrinhas com temperos de significados. O que todo isso quer dizer? Que a desconstrução do muito ou pouco do que se sabe do desconhecido pode ser um bom caminho para conhecê-lo de fato. Nos últimos anos no Brasil – e principalmente nos dias de hoje – não nos faltam palavras imbuídas de seus significados e ressignificados produzindo “verdades”. A lista é grande, mas neste artigo o foco estará em uma delas: gênero. Ela merece destaque, afinal, para milhares de brasileiros só de imaginar uma possível discussão sobre gênero, o caos instala-se. Em novembro de 2017, vimos o episódio da filósofa norte-americana Judith Butler sendo hostilizada por grupos de manifestantes, em São Paulo, na porta do local onde foi convidada a palestrar. Nas redes sociais, Butler já estava queimando na fogueira da Inquisição online. Esses manifestantes não pouparam Buttler nem mesmo no aeroporto, quan-
do se preparava para voltar para casa, e a estudiosa sofreu mais alguns ataques verbais raivosos. Detalhe um: Butler foi convidada para ministrar uma palestra sobre democracia, e não sobre gênero. Detalhe dois: a intolerância ao assunto já se mostrava no Brasil muito antes de Butler. Portanto, quando algo que está no imaginário provoca tamanha confusão e, pior, fere a existência do próximo, é hora de dar um passo para trás para desconstruir tudo aquilo que até então era uma verdade irrefutável. Paradoxalmente, é na desconstrução que pode surgir uma construção, trocando as velhas crenças por novos saberes diante de muita análise. Como muito bem aborda e debate incansavelmente o filósofo francês Michel Foucault, a produção discursiva deve ser praticamente dissecada. Quem produz? O que é produzido? Para quem é produzido? E por que é produzido? Este artigo não propõe uma receita pronta sobre a questão, muito menos esgotar as possibilidades de reflexão sobre o assunto, mas é um convite a uma reflexão sobre o tema gênero. Historiadores (as), filósofos (as), educadores (as) e escritores (as)
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Todas/os nós sabemos que, em gramática, quando perguntamos pelo gênero de uma palavra, a resposta, invariavelmente em português, é: masculino ou feminino. Em português não temos o neutro como no latim, por exemplo. Como exemplo, vamos analisar gramaticalmente a palavra cadeira: ela é substantivo, singular e feminino, não é? E a palavra mar: em português é masculino, mas em francês – la mer – é feminina. Em português, como na maioria das línguas, todos os seres animados e inanimados têm gênero. Entretanto, somente alguns seres vivos têm sexo. Nem todas as espécies se reproduzem de forma sexuada; mesmo assim, as palavras que as designam, na nossa língua, lhes atribuem um gênero. E era justamente pelo fato de que as palavras na maioria das línguas têm gênero mas não têm sexo, que os movimentos feministas e de mulheres, nos anos oitenta, passaram a usar esta palavra “gênero” no lugar de “sexo”. Buscavam, desta forma, reforçar a ideia de que as diferenças que se constatavam nos comportamentos de homens e mulheres não eram dependentes do “sexo” como
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nos auxiliam nessa jornada. Desta forma, vamos aqui estabelecer um recorte, pois, discutir gênero é algo inesgotável. Iniciamos nosso percurso com a historiadora Joana Maria Pedro, partindo do básico: a gramática.
questão biológica, mas sim eram definidos pelo “gênero” e, portanto, ligadas à cultura1. As feministas anglo-saxãs foram as primeiras, nos anos 1970 a usar o termo gender (gênero) como distinto de sex (sexo). Aqui no Brasil, gênero começou a ser timidamente utilizado pelas feministas no final dos anos 1980. Em todo mundo, a palavra ecoou e expandiu por meio de diferentes movimentos sociais como das feministas, gays, lésbicas, trans e etc. O termo gênero compõe a trajetória que acompanha a luta por direitos civis e direitos humanos de todas essas pessoas. Gênero será um conceito fundamental neste novo debate porque, como aponta
Guacira Lopes Louro, é necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico 2. Guacira Lopes Louro completa: Ao dirigir o foco para o caráter “fundamentalmente social”, não há, contudo, a pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja, não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas3. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação – Uma perspectiva pós estruturalista. Rio de Janeiro: Editora Vozes, P. 21, 2003.
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PEDRO, Joana Maria – artigo Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. HISTÓRIA, SÃO PAULO, v.24, N.1, P. 77-98, 2005. 1
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idem, págs. 21 e 22.
GUACIRA LOURO LOPES RESSALTA QUE “O CONCEITO DE GÊNERO PASSA A EXIGIR QUE SE PENSE DE MODO PLURAL, (...) OS PROJETOS E AS REPRESENTAÇÕES SOBRE MULHERES E HOMENS SÃO DIVERSOS” www.portalespacodosaber.com.br •
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Para a educadora, gênero é construção social e cultural do feminino e masculino a partir do aspecto biológico. Não é binário (mulher e homem), é relacional. Linda Nicholson, pesquisadora que também tem sido uma grande referência para as discussões sobre o gênero, acompanha o raciocínio mas vai além. Ela simplesmente rompe com o discurso do biológico porque em suas pesquisas – baseadas em leituras de Foucault, Laquer4 e Butler – ela expõe que o próprio biológico é uma produção discursiva. Para Linda, o biológico pode ser “um” discurso e não “o” discurso. Em seu denso artigo Interpretando Gênero, a historiadora aponta que separar sexo de gênero e considerar o primeiro como essencial para elaboração do segundo pode ser uma forma de fugir do determinismo biológico, mas constitui-se, por sua vez, num fundacionalismo biológico. Linda explica: O que estou chamando de fundacionalismo biológico, mais do que uma posição única, pode ser entendido como representante de um leque de posições unidas de um lado por um determinismo biológico estrito, de outro por um construcionismo social total.5 4
Thomas Laquer é historiador, sexólogo e escritor norte-americano.
NICHOLSON Linda. Interpretando o gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 2, p. 9, jan. 2000. ISSN 1806-9584
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Se gênero é relacional como aponta Guacira, se ele rompe com o biológico como diz Linda, para Joan Scott – especialista na história do movimento operário no século XIX e do feminismo na França – ele aborda relações de poder. Em seu instigante artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica, a professora e historiadora Scott retoma a diferença entre sexo e gênero e a articula com a noção de poder. Ela define gênero em duas partes: a primeira aponta que “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e a segunda de que o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder.”6 Neste ponto, o conceito gênero serve como uma ferramenta analítica e também política. Em seus ensaios, a professora de Ciências Sociais no Instituto de Estudos Avançados na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, informa que “gênero significa o saber a respeito das diferenças sexuais”. Scott pontua que usa a palavra saber de acordo com o sentido dado por Michel Foucault. Scott explica: “Tal saber não é absoluto ou verdadeiro, mas sempre relativo. Seus usos e significados nascem de uma disputa política e são os meios pelos quais as relações de poder - de dominação e de subordinação - são construídas. O saber não se refere apenas a ideias, mas a instituições e estruturas, práticas cotidianas e rituais 6 SCOTT, Joan Wallach. Artigo: Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Disponível em <https://edisciplinas.usp.br/pluginfi le.php/185058/ mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf>. Acesso em: outubro/2018.
LINDA NICHOLSON, REFERÊNCIA PARA AS DISCUSSÕES SOBRE O GÊNERO, ROMPE COM O DISCURSO DO BIOLÓGICO, EM SUAS PESQUISAS, ELA EXPÕE QUE O PRÓPRIO BIOLÓGICO É UMA PRODUÇÃO DISCURSIVA.
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SEGUNDO FOUCAULT, “O PODER ESTÁ EM TODA A PARTE; NÃO PORQUE ENGLOBA TUDO E SIM PORQUE PROVÉM DE TODOS OS LUGARES” específicos, já que todos constituem relações sociais. O saber é um modo de ordenar o mundo e, como tal, não antecede a organização social mas é inseparável dela. Daí se segue que gênero é a organização social da diferença sexual. O que não significa que gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres mas sim que gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais” 7.
NICHOLSON Linda. Prefácio do Artigo: Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Cadernos Pagu 1994: pp. 11-27.
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É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de 8 FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade I – a vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Paz & Terra, P. 101, 2018.
resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas, também, afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras.9 Um pouco antes de sair de cena nesta vida, em 1984, Foucault começa a investigar um tema que ele dá o nome de biopoder, o que também traz luz para entender o conceito de gênero. Foucault escreve: 9
idem, pág. 110.
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Ao interligar gênero com relações de poder, inevitavelmente Foucault é chamado para essa conversa. Scott vê sentido quando o filósofo relativiza a verdade justamente porque ele já descobriu que não existe discurso gratuito. Para o filósofo, o poder produz saber e, consequentemente, os discursos são teorias que dizem o que é verdade sobre o sujeito. Ao escrever os três volumes de A História da Sexualidade, na década de 1980, Foucault questiona o tempo todo: que saberes têm poderes para falar sobre sexualidade? De fato, Foucault vira de ponta cabeça as concepções convencionais, que geralmente tendem a centralizar o poder. O filósofo desmistifica e diz que “o poder está em toda a parte; não porque
engloba tudo e sim porque provém de todos os lugares” 8. Posto isso já é possível entender porque a palavra gênero tem causado tanto alvoroço só pelo fato que ela pode começar a ser discutida, por exemplo, dentro de uma sala de aula. Seus significados e ressignificados vêm de toda parte onde haja poder. Foucault continua:
Laerte, cartunista trans. Sua trajetória sugere tanto complexidade quanto leveza no tratamento das questões de gênero www.portalespacodosaber.com.br •
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Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico se refletiu no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e da sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e de intervenção do poder. Este não estará mais somente a voltas com sujeitos de direito sobre os quais seu último acesso é a morte, porém com seres vivos, e o império que poderá exercer sobre eles deverá situar-se no nível da própria vida; é o fato do poder encarregar-se da vida, mais do que a ameaça da morte, que lhe dá acesso ao corpo.10
idem, pág. 154. MEIJER, Irene; PRINS, Baukj. “Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler”. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, 2002.
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corpos tenham vidas mais vivíveis. No final de 1989 ela publicou o livro intitulado Gender Trouble, lançado em português em 2003 como Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Na obra, ela propõe descrever o caráter performativo do gênero. Butler explica: A cada um de nós é atribuído um gênero no nascimento, o que significa que somos nomeados por nossos pais ou pelas instituições sociais de certas maneiras. No entanto, muitas pessoas sofrem dificuldades com sua atribuição - são pessoas que não querem atender aquelas expectativas, e a percepção que têm de si próprias difere da atribuição social que lhes foi dada. Algumas pessoas vivem em
paz com o gênero que lhes foi atribuído, mas outras sofrem quando são obrigadas a se conformar com normas sociais que anulam o senso mais profundo de quem são e quem desejam ser. Para essas pessoas é uma necessidade urgente criar as condições para uma vida possível de viver.12 O texto Como os corpos se tornam matéria: entrevista Judith Butler aprofunda sobre o que a filósofa quer dizer com corpos abjetos que, nas palavras de BuBUTLER, Judith. Artigo: Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no Brasil. Jornal Folha de São Paulo, 2017. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ ilustrissima/2017/11/1936103-judith-butler-escrevesobre-o-fantasma-do-genero-e-o-ataque-sofridono-brasil.shtml>. Acesso em outubro/ 2018.
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UM POUCO ANTES DE MORRER EM 1984, FOUCAULT COMEÇA A INVESTIGAR UM TEMA QUE ELE DÁ O NOME DE BIOPODER, O QUE TAMBÉM TRAZ LUZ PARA ENTENDER O CONCEITO DE GÊNERO 18 •
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“O poder encarregar-se da vida, que lhe dá acesso aos corpos”, é uma fala de Foucault que certamente faz muito sentido para Judith Butler que “acha que discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso. Então, não quero afirmar que haja uma construção discursiva de um lado e um corpo vivido de outro”11. Daí a luta de Butler para a possibilidade de que as pessoas e seus
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AS IDENTIDADES ESTÃO SEMPRE SE CONSTITUINDO. ELAS SÃO INSTÁVEIS E, PORTANTO, TAMBÉM SÃO PASSÍVEIS DE TRANSFORMAÇÃO
MEIJER, Irene; PRINS, Baukj. “Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler”. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, 2002. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação – Uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de Janeiro: Editora Vozes, P. 23, 2003.
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LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação – Uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de Janeiro: Editora Vozes, P. 26 e 27, 2003.
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REFERÊNCIAS
tler, estão relacionados a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas vidas. A entrevista foi realizada por Irene Meijer e Baukje Prins, do Departamento de Estudos da Mulher, do Instituto de Artes da Universidade de Utrecht, na Holanda. Butler diz que “a abjeção de certos tipos de corpos, sua inaceitabilidade por códigos de inteligibilidade, manifesta-se em políticas e na política, e viver com um tal corpo no mundo é viver nas regiões sombrias da ontologia”.13 Para que realmente as pessoas possam ter vidas mais vivíveis e saírem de fato das sombras, Guacira Louro Lopes ressalta que “o conceito de gênero passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as representações sobre mulheres e homens são diversos. Observa-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem”. 14
O que importa aqui considerar é que – tanto na dinâmica do gênero como na dinâmica da sexualidade – as identidades são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento. Não é possível fixar um momento – seja esse o nascimento, a adolescência, ou a maturidade – que possa ser tomado como aquele em que a identidade sexual e/ou a identidade de gênero seja assentada ou estabelecida. As identidades estão sempre se constituindo, elas são instáveis e, portanto, passíveis de transformação. 15
PEDRO, Joana Maria – artigo Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. HISTÓRIA, SÃO PAULO, v.24, N.1, 2005. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação – Uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2003. NICHOLSON Linda. Interpretando o gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 2, jan. 2000. ISSN 18069584. SCOTT, Joan Wallach. Artigo: Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Disponível em <https:// edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/ content/2/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf>. Acesso em: outubro/2018 ___________ Prefácio do Artigo: Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Cadernos Pagu 1994. FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade I – a vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Paz & Terra, 2018. MEIJER, Irene; PRINS, Baukj. “Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler”. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, 2002. BUTLER, Judith. Artigo: Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no Brasil. Jornal Folha de São Paulo, 2017. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ ilustrissima/2017/11/1936103-judith-butler-escreve-sobreo-fantasma-do-genero-e-o-ataque-sofrido-no-brasil.shtml>. Acesso em outubro/ 2018.
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Marcia Victorio é autora do livro Música e Filosofia – Por uma educação ética-estética (WAK Editora). Doutora em Ciências da Educação/ Música. Mestre em Música. Psicóloga. www.portalespacodosaber.com.br •
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abe-nos inicialmente, distinguir a expressão ética/estética aqui utilizado. O termo estética deriva do grego aisthesis, aistheton (sensação, sensível) e significa sensação, sensibilidade, percepção pelos sentidos ou conhecimento sensível-sensorial. Ética vem do grego ethiké [epistéme], “a ciência relativa aos costumes universais”, pelo latim ethica, de igual significado. Moral origina-se no latim morale, relativo aos costumes regionais (mores). Dado que o latim já possuía a palavra mos, moris, não precisou, de fato, grandemente do helenismo, pois o seu adjetivo moralis, e já queria dizer o mesmo (“relativo aos costumes”). Acolheu, no entanto, o termo ethica como substantivo, para designar a parte da filosofia denominada por ética ou moral em português. (NASCENTE, 2010) Optamos por utilizar a expressão ética/estética partindo do pressuposto de que, ética e estética formam uma amálgama na qual o indivíduo se forma enquanto ser em relação, uma vez que, em linhas gerais, a ética se relaciona com a boa qualidade das relações humanas, e a estética, à beleza e à harmonia dessas relações.
ÉTICA/ESTÉTICA NA FILOSOFIA E NA EDUCAÇÃO
Entendemos não de forma leviana, mas expondo suscintamente devido à exiguidade necessária ao texto, que os gregos Sócrates, Platão e Aristóteles pensaram a ética da racionalida22 •
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MÚSICA É UM ELEMENTO DE FUNDAMENTAL IMPORTÂNCIA, POIS MOVIMENTA, MOBILIZA E, POR ISSO, CONTRIBUI PARA A TRANSFORMAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO, ATINGINDO A MOTRICIDADE E A SENSORIALIDADE POR MEIO DO RITMO E DO SOM, E POR MEIO DA MELODIA, A AFETIVIDADE de e atribuíram beleza ao que é bom; Tomás de Aquino, a ética da santidade, onde o bem é belo; Kant, a ética da liberdade e a noção do juízo estético oriundo dos sentimentos a ele atribuído; Baumgarten, a estética dos sentidos e do seu entendimento racional; Hegel, dialética entre o conhecer e o sentir e do belo como expressão máxima do ideal; Schiller, a educação do gosto estético. Pela historicidade, dialogamos com o passado e projetamos um futuro onde uma ética de reciprocidade e de justiça nos conecte com o outro, com a natureza e com o cosmos, num movimento de plena integração, restaurando o sentido da paz e da harmonia (VICTORIO, 2018) Apreendendo educação, como uma das formas de construção ética e estética, pautada em valores de liberdade e responsabilidade, onde o diálogo se apresenta como condição essencial para a sua existência, é que destacamos Martin Buber, Paulo Freire e Edgar Morin, por apresentarem, a nosso ver, um sentido de educação global/holística como a base para uma educação compromissada com o sentido da vida.
Para Martin Buber, a condição para que haja uma educação democrática, justa e que possibilite o desenvolvimento das capacidades múltiplas dos seres humanos, é: cognitiva, afetiva, estética, política, ética, e tem o diálogo como valor fundamental. Um dos eixos fundamentais do pensamento de Paulo Freire (2011; 2017) no que concerne à educação para a liberdade e a transformação da sociedade é o diálogo. No diálogo, há um encontro dos homens e uma mediação do mundo, por meio da qual, os homens podem “pronunciá-lo”. É pelo diálogo que os homens transformam o mundo e ganham significação enquanto pertencentes à raça humana. Na concepção de Edgar Morin (2001; 2008), pensar dialogicamente é compreender que a realidade se constitui, modifica, destrói e regenera a partir de princípios e forças contrárias que não podem ser pensados separados, mas como um par que na sua relação dialógica produz as infinitas configurações e modificações do real, um dos objetivos da educação. Como é possível observar,
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Paulo Freire, Martin Buber e Edgar Morin consideram o diálogo como base do pensamento tanto filosófico quanto pedagógico, abordando-o de maneira central em suas teorias, na perspectiva educacional. Embora o diálogo, em cada uma das teorias, tenha significados diferenciados, intrinsecamente relacionados com os princípios pedagógicos que os norteiam, o sentido é único: toda forma de educação se constitui no e pelo diálogo. E, ainda, a educação por estar estabelecida nas relações, tem compromisso com o bem e com o belo.
UMA ABORDAGEM PIAGETIANA ACERCA DA ÉTICA/ESTÉTICA
Jean Piaget estudou a evolução do pensamento, procurando entender os mecanismos mentais que o indivíduo utiliza para captar o mundo. Como epistemólogo, investigou o processo de construção do conhecimento, considerando que existe uma flexibilidade inata (primeiramente neurônica, e depois, motora e semiótica) que conduz, através dos estágios de desenvolvimento da inteligência, a uma dinâmica reflexiva responsável por uma construção de conhecimento.
Afirmou Piaget que todos os indivíduos possuem uma gênese da razão, da afetividade e da moral, que se constroem de maneira progressiva, do nascimento à adolescência, a partir de um esquema mental de desenvolvimento a que chamou de estruturas mentais responsáveis pela construção do conhecimento. Distinguiu as estruturas em estágios de desenvolvimento nos quais a aprendizagem se constrói de forma progressiva e espiralada: Cada estágio é caracterizado pela aparição de estruturas originais, cuja construção o dis-
É PELO DIÁLOGO (FUNDAMENTAL À FILOSOFIA E À PEDAGOGIA) QUE OS HOMENS TRANSFORMAM O MUNDO. COM BASE NESSA COMUNICAÇÃO, A EDUCAÇÃO ASSUME COMPROMISSO COM O BEM E COM O BELO www.portalespacodosaber.com.br •
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tingue dos estágios anteriores. O essencial dessas construções sucessivas permanece no decorrer dos estágios ulteriores, como subestruturas sobre as quais se edificam as novas características. (PIAGET, 2012, p.13) Para o epistemólogo, os estágios e períodos do desenvolvimento caracterizam as diferentes maneiras do indivíduo interagir com a realidade, ou seja, de organizar seus conhecimentos visando sua equilibração, constituindo-se na modificação progressiva dos esquemas de assimilação. Os estágios evoluem como uma espiral, de modo que cada estágio engloba o anterior e
o amplia. Piaget não define idades rígidas para os estágios, mas sim que estes se apresentam em uma sequência constante. Piaget não só defende a ideia da existência de um paralelismo entre o desenvolvimento da lógica e da moral no ser humano como também estende esse paralelismo ao mostrar que as construções cognitivas caminham pari passu com a constituição dos sentimentos que por sua vez estão na origem da ação moral: “... a condição primeira da vida moral (...) é a necessidade de afeição recíproca” (PIAGET, 1992, p. 138). A construção da moral desenvolve-se, portanto, em relação ao desenvol-
vimento cognitivo e ao desenvolvimento afetivo. O processo educativo deve conduzir a criança a sair de seu egocentrismo, natural nos primeiros anos, caracterizado pela anomia, e entrar gradualmente na heteronomia, encaminhando-se naturalmente para a sua própria autonomia moral e intelectual que é o objetivo final da educação moral. Esse processo de descentração conduz do egocentrismo (natural na criança pequena) caracterizado pela anomia, à autonomia moral e intelectual. Desta forma, buscou fortalecer a ideia de que a aprendizagem se efetiva à medida que
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“A MÚSICA É, PARA AS PESSOAS, ALÉM DO OBJETO SONORO, CONCRETO, ESPECÍFICO E AUTÔNOMO,TAMBÉM AQUILO QUE SIMBOLIZA, REPRESENTA OU EVOCA” (GAINZA, 1988, P. 34) 24 •
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PARA MARTIN BUBER, A CONDIÇÃO PARA QUE HAJA UMA EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA, JUSTA E QUE POSSIBILITE O DESENVOLVIMENTO DAS CAPACIDADES MÚLTIPLAS DOS SERES HUMANOS, É: COGNITIVA, AFETIVA, ESTÉTICA, POLÍTICA, ÉTICA, E TEM O DIÁLOGO COMO VALOR FUNDAMENTAL o aluno desenvolve a sua autonomia para gerir seu próprio processo, refletindo, analisando e tomando suas próprias decisões de vida (autonomia moral), de modo a torná-la mais feliz.
RELACIONANDO ÉTICA/ ESTÉTICA COM A PROPOSTA PSICOPEDAGÓGICA DE VIOLETA DE GAINZA
Para Gainza (1988), a música é um elemento de fundamental importância, pois movimenta, mobiliza e, por isso, contribui para a transformação e o desenvolvimento, atingindo a motricidade e a sensorialidade por meio do ritmo e do som, e por meio da melodia, a afetividade. Gainza (1988) afirma ainda, que a música mobiliza uma gama ampla e difusa de sentimentos e tendências pessoais: “A música é, para as pessoas, além do objeto sonoro, concreto, específico e autônomo, também aquilo que simboliza, representa ou evoca” (GAINZA, 1988, p. 34), pois envolve aspectos afetivos e cognitivos e é exatamente a alquimia da concepção afetiva/subjetiva e cognitiva/objetiva que proporciona ao homem a possibilidade da criação, transcendendo a física do Som. A tomada de consciência racional da linguagem musical é decorrente de um primeiro contato, descompromissado, através do canto e do instru-
mento, por experimentação e imitação, num envolvimento sensível. Esta é condição sine qua non para que posteriormente possa haver a delimitação dos elementos musicais, ou seja, reconhecimento, análise e nomeação do som e dos seus diversos parâmetros, da melodia e dos seus elementos, do ritmo e dos seus elementos, do fraseado. “O manejo empírico desta linguagem é decorrente de natural e progressivo delineamento dos aspectos melódicos, rítmicos, harmônicos e formais da música.” (GAINZA, 2003, p.12) A fluência na interpretação ocorre como consequência da experimentação e da vivência de liberdade criativa – as noções teóricas são introduzidas a partir do contexto de reconstrução da experiência sonora, considerando que mesmo a experimentação trazendo em si a possibilidade de um resultado desagradável, o risco intrínseco é engrandecedor. Violeta de Gainza (2003) classifica o processo musical em três fases: sincrética, analítica e sintética. A última fase (sintética) surgiria da necessidade histórica do homem de criar a música de sua cultura e dependeria das fases anteriores. Na fase sincrética, a música seria tratada de forma integral, como experiência prazerosa, lúdica, que pressupõe a criação, livre de qualquer preconceito musical, para que na fase analítica seja desmembrada e observada criticamente. Experimentação e criação são, portanto, as bases das três fases. A síntese musical, construída a partir da experimentação e da análise, seria o resultado da apropriação de uma linguagem cognitiva e sutil, com propriedades de promover harmonia ética e estética em níveis internos e externos e, por consequência, promotora da paz. Toda essa construção estaria relacionada aos estágios do desenvolvimento a que se referiu Piaget e às esferas das relações em Buber. A interface entre filosofia, psicologia e educação musical se fortalece.
CONCLUSÃO
Ao se correlacionar os princípios da autonomia moral e os processos em educação musical, concluímos que a construção da autonomia moral segue etapas semelhantes às da construção de uma composição musical, pois, ambas pressupõem a liberdade de experimentar, o conhecimento da teoria e o resultado prático. Na autonomia moral, evidencia-se uma forma de www.portalespacodosaber.com.br •
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AO SE CORRELACIONAR OS PRINCÍPIOS DA AUTONOMIA MORAL E OS PROCESSOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL, CONCLUÍMOS QUE A CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA MORAL SEGUE ETAPAS SEMELHANTES ÀS DA CONSTRUÇÃO DE UMA COMPOSIÇÃO MUSICAL relacionar-se em comunhão consigo mesmo, com os outros e com a Natureza em seu sentido mais amplo, de forma responsável e solidária, construindo formas facilitadoras do bem-estar, e, na composição musical, a construção de uma linguagem facilitadora do diálogo intra e interrelacional. Criatividade e reflexão crítica compõem as relações estabelecidas entre as duas propostas evidenciadas e apontam para uma modalidade de educação que contempla a construção ética-estética do Ser. Acreditamos ser dessa forma que a educação deve se processar: aguçando sentidos e sensações para que o Homem (re)conheça 26 •
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pelos sentidos e pelo cognitivo, novas maneiras de pensar, novos conhecimentos e comportamentos para que viva melhor, transcendendo o que já existe e criando/inventando suas tramas sonoras em harmonia consigo mesmo, com o outro e com o mundo que o cerca. Pelo que foi apresentado, a Educação Musical, apoiada numa metodologia que envolva a estética do som, participa do desenvolvimento da autonomia do indivíduo enquanto sujeito reflexivo e solidário. Na música, ética e estética concorrem para a autonomia do Ser. Concluímos que, pela Educação Musical, o aluno aprende a conhecer os elementos musicais,
aprende a fazer música, aprende a tocar junto e aprende a ser cidadão e a viver em felicidade. Confirma-se, portanto, a hipótese de que a educação musical apoiada em uma metodologia que envolva a estética do som, participa do desenvolvimento da autonomia do indivíduo e favorece o diálogo intra e interpessoal, de modo a contribuir para que ele seja capaz de promover transformações significativas em direção à paz. Por fim, diante das relações estabelecidas entre ética e estética afirmamos que elas são suficientes para que se estabeleça uma inovadora metodologia em educação musical, pautada nas três etapas de construção do conhecimento musical, considerados os três níveis de desenvolvimento da autonomia e tendo como fundamentos a essência do Som e a transcendência do Ser.
UMA EPIFANIA
A educação musical, privilegiando a cooperação numa relação de respeito mútuo entre educador e educando, envolvendo a investigação e o sentido da experiência, a necessidade de coerência lógica dos elementos musicais, bem como espírito crítico para apreciar e julgar a forma final de suas composições, dentre outros fatores, apresenta-se como uma das formas de educar com e para a autonomia. Essa dinâmica contribui para a estruturação de um indivíduo autônomo, capaz de manter em equilíbrio inteligência e afetividade, transcendendo o Som em busca do Ser em sua totalidade harmônica.
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Autonomia, negociação, recrutamento, seleção, conflito de gerações e os principais erros que os líderes precisam conhecer e evitar estão presentes na série LA CASA DE PAPEL e explicados nesta obra. Tome seu lugar, a aula já vai começar.
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MESOLOGIA
por rodrigo petronio
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imão Bacamarte é um insigne doutor formado na Europa, nas mais cristalinas teorias positivistas. Chegando ao Brasil, cria a Casa Verde, um hospital psiquiátrico destinado a sanar a sociedade da loucura. O que Bacamarte não esperava é que seu método científico o levaria a encarcerar a cidade inteira. Para fazer jus à razão, Bacamarte liberta toda cidade e se trancafia sozinho no asilo que ele mesmo criara. Machado de Assis imortalizou as agruras e o patetismo da vida intelectual do Brasil como poucos. A novela O Alienista é uma dessas obras-primas de diagnose psicocultural. E assusta pela atualidade, pois descreve de modo brilhante o movimento recente da nova direita brasileira. Foi-se o tempo em que, por mais questionável que seja essa divisão, podíamos alinhar ideologicamente à direita alguns gênios brasileiros como Vicente Ferreira da Silva, Gilberto Freyre, José Guilherme Merquior, Mario Ferreira dos Santos, Nelson Rodrigues, Vilém Flusser, Gustavo Corção, Otto Maria Carpeaux. Hoje em dia a direita chegou ao nível mais abissal da estupidez, do barbaris-
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mo, da imbecilidade. Deixou de ser uma questão ideológica. Passou a ser um caso de vigilância sanitária. A ascensão do olavismo cultural, de Bolsonaro e dos defensores abertos de um golpe militar demonstra que o recrudescimento da extrema-direita se torna cada vez mais preocupante. Uma demência hospitalar e cheia de miasmas impregnam a atmosfera. Além disso, virou moda ser de direita. Mal surgem os primeiros pelos pubianos, o rapaz corre para contar à família que se converteu ao catolicismo. Alegra-se com as suas primeiras ereções ao ver a bandeira do Brasil. Sente-se no recôndito de sua alma um novo Chesterton, um novo Maritain, um novo Voegelin. Tem espasmos hormonais. Pensa que é a presença do Espírito Santo. Observa-se no espelho. Em sua cara cheia de espinhas, vê a face de Orígenes, de Tomás de Aquino, de Agostinho. O novo direitista não consegue escrever uma redação escolar a partir de uma linha de Benjamin ou Adorno. Mas é capaz de demolir todo materialismo ocidental desde Epicuro. Acabar com toda dialética histórica desde Marx. Tudo isso em seu blog ou em alguma revista obscura
mantida pela Opus Dei. Entre calafrios, compreende que os rumos da civilização, sua palavra predileta, depende de suas decisões espirituais. Em algum escritório mofado, onde é explorado por algum pagão analfabeto, sente-se no âmago da realização anagógica da História. Devaneia. O mundo muda a cada uma de suas postagens edificantes no Facebook. Beija a imagem de Cristo. Concentra-se de volta em seu comentador predileto de Platão e Aristóteles, algum jesuíta alemão de nome impronunciável. Qual é a agenda da nova direita? Na verdade, se a observarmos, ela é velha até cair de podre. No século XIII, os nominalistas separaram linguagem e mundo. E a teoria averroísta da dupla verdade cindiu religião e ciência. Mais tarde, Maquiavel sacralizou a ruptura entre moral e política. A nova direita, em seus surtos de integrismo católico ou de fundamentalismo evangélico, reconecta em uma mesma massa conceitual religião, natureza, ciência, política e moral. É, portanto, pré-nominalista e pré-maquiavélica. No século XVIII, Kant fez a crítica do realismo metafísico, pois tudo o
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O complexo de Bacamarte
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que existe, existe na mente. A nova direita afirma Deus, o mundo e as religiões como realidades. É portanto pré-kantiana. Antes do criticismo kantiano, Descartes fizera a crítica da autoridade e da tradição, pois nenhuma delas pode fornecer fundamento aos nossos juízos. O que a nova direita mais ama além de tradição e autoridade? A nova direita é, portanto, pré-cartesiana e pré-racionalista. Nos séculos XIX e XX, a psicanálise inseriu a sexualidade no âmago da atividade simbólica. Separou, radicalmente, sexo e gênero, anatomia e desejo. À medida que é sexista e naturalista, a nova direita é pré-freudiana. Quando fala em raças, a nova direita também é pré-darwinista, pois não compreendeu ainda a teoria da evolução das espécies feita pelo acaso e não por qualidades inerentes aos seres vivos. Por fim, quando defende valores universais, a nova direita demonstra que luta contra Marx sem ter compreendido sequer uma linha de Marx. Luta contra um fantasma. Ignora que todo valor universal é um valor particular universalizado. Diante disso tudo, ao falar em Deus, tradição, autoridade, sexismo, realidade, verdade, natureza, moral, universalidade, os novos direitistas não estão produzindo sequer uma crítica válida às ideias modernas que eles julgam criticar. São títeres repetin-
do crenças e conceitos anteriores ao século XIII em pleno século XXI. Essas ideias fora do lugar e essa situação na qual a história se repete como farsa demonstram ao menos uma grande verdade: uma nova chave de leitura psicoantropológica para a compreensão do Brasil. Por quê? Porque todo direitista é um Simão Bacamarte. Não tem capacidade cognitiva e nem competência moral para livrar os prisioneiros e se trancar sozinho da Casa Verde, como fez o arguto e resignado personagem de Machado de Assis. O complexo de vira-lata, tão bem diagnosticado por Nelson Rodrigues, chegou ao fim. O brasileiro finalmente se tornou um ufanista. Um entusiasta de si mesmo. Um fascista do bem. Adentramos agora uma nova era. Um novo umbral da civilização tropical. Essa nova forma mental brasileira pode ser descrita pelo Complexo de Bacamarte. Por esses e outros motivos, o valor científico e filosófico da nova direita é zero. Mas como fenômeno que atesta o atraso cultural e intelectual brasileiro, ela tem ao menos uma graça folclórica. Caso alguma escola de samba o queira, seus representantes poderiam sair em um carro alegórico, no próximo Carnaval. E como porta-estandarte vocês sabem quem.
Rodrigo Petronio nasceu em 1975, em São Paulo. Escritor e filósofo, atua na fronteira entre literatura, semiologia, narratividade e Filosofia. Professor titular da Faap. Desenvolve pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital [TIDD/PUC-SP] sobre a obra de Alfred North Whitehead e as ontologias e cosmologias contemporâneas. Autor, organizador e editor de diversas obras. Publicou mais de duas centenas de artigos, resenhas e ensaios em alguns dos principais veículos da imprensa brasileira. Recebeu prêmios nacionais e internacionais nas categorias poesia, prosa de ficção e ensaio.
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FILOSOFIA CLÍNICA
por lúcio packter
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lain Badiou escreveu: “É uma anedota muito conhecida, a da morte de Molière. Como vocês todos sabem, Molière morreu enquanto estava representando O doente imaginário. Vocês logo veem apontar aí uma fábula, pois ele, Molière, morre de uma doença bem real. Essa doença real, que causou a morte de Molière, se descobre no interior, ou a propósito, ou nas condições de uma doença que não apenas é representada, como também, mesmo no interior da representação, é apresentada como imaginária. Temos aqui – e notem que se trata mais uma vez de teatro e de teatralização – uma espé-
cie muito particular de roçar entre o real e o semblante. A doença mortal que vai levar Molière se manifesta no próprio coração do semblante, ou seja, no momento em que Molière está representando realmente – porque a representação enquanto representação toma parte do real – o semblante da doença.” O senhor Gorran era alguém propício ao drama de Molière; simulava achaques, faniquitos, era propenso a diversos modos de chiliques, desde que houvesse plateia. Seus fricotes eram representações adequadas aos contextos, dificilmente destoavam, de modo que pareciam estar de acordo com algum estímulo como ofensas e
O SENHOR GORRAN ERA ALGUÉM PROPÍCIO AO DRAMA DE MOLIÈRE; SIMULAVA ACHAQUES, FANIQUITOS, ERA PROPENSO A DIVERSOS MODOS DE CHILIQUES, DESDE QUE HOUVESSE PLATEIA. 30 •
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divergências mais graves. As similitudes do senhor Gorran tinham o tom e a temperatura adequados. Porém houve um dia em que o Dr. Daucí, um homem que equilibrava a excitação e a contenção no mesmo lado da balança, examinou o senhor Gorran, este devidamente desmaiado para a plateia de duas vitrinistas e uma faxineira. – É gravíssimo! – exclamou o Dr. Daucí – segurando o pulso do senhor Gorran. – Este homem pode morrer a qualquer momento! – proferiu solene e grave, entre contido e ansioso. Não existiu tempo para outros eventos, pois o senhor Gorran morreu enquanto representava para as vitrinistas e a faxineira, esta que chegou depois e não soube do que se tratava aquele homem desmaiado aparentemente. Dr. Daucí colocou no papel: “Este tal Gorran é mais um daqueles doentes imaginários”. Enquanto carregavam o corpo na maca, loja afora, Dr. Daucí arrumava uns papéis na maleta, soltava uns arrotinhos, e falava para ele mesmo: - Teatralização. Ficam brincan-
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Homero, Molloy e Molière. Similitudes
do de doença e as doenças vão aparecendo de verdade. Dr. Daucí tinha uma reunião, precisava de um táxi, esquecera de comprar a camisa que o levou à loja, e em nenhum momento lhe ocorreu de pensar sobre o modo como atendeu o pobre senhor Gorran, uma vez que sabia estar diante de uma encenação. O fato é que a encenação do Dr. Daucí se mesclou de tal jeito à paparrotice do senhor Gorran que tudo se tornou verdadeiro. Dr. Daucí também fora um doente imaginário, assim pensava; mas de fato ainda era. Desde que os aspectos se tornaram crônicos ele não sabia mais disso. Vivia confuso e convicto sobre inúmeras coisas, misturava tudo, a diferença não importava mais.
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Mal de Molloy Junita me contou que morreria do mal de Molloy, coisa que até então eu não fazia ideia. Ela tomou a obra de Samuel Beckett nas mãos e me mostrou o trecho que segue: “Entre as suas perguntas e as minhas respostas, falo das merecedoras de atenção, havia intervalos mais ou menos longos e barulhentos. Sou tão pouco acostumado a que me perguntem
alguma coisa que quando me perguntam alguma coisa levo tempo para saber o quê. E o defeito que tenho é que em vez de refletir tranquilamente sobre o que acabo de ouvir, e que ouço perfeitamente bem, tendo o ouvido bastante apurado, apesar de vetusto, me apresso em responder não importa o quê, provavelmente de medo que meu silêncio leve ao paroxismo a cólera do meu interlocutor. Sou um medroso, vivi a vida toda com medo, medo de apanhar. Os insultos, as invectivas, eu os aguento sem dificuldade, mas aos golpes nunca consegui me acostumar”. Quem golpeava Junita? As páginas de um antigo diário que lia e relia, seus pensamentos sobre sua mocidade, e uma vizinha imaginária que ela dizia existir no andar de cima. Esta vizinha nunca foi vista, foi deduzida. No último verão encontrei Junita comprando frutas na quitanda. Ela estava bonita. Observei a ela que havia pintado o cabelo de um tom mais amistoso para a pele clara de seu rosto. Mas ela tomou logo a palavra e anunciou que sua vizinha havia falecido, antes dela, por conta do Mal de Molloy, e tudo graças a um espelho que lhe foi
Lúcio Packter é sistematizador da Filosofia Clínica no Brasil. Graduado em Filosofia pela PUC-Fafimc, Porto Alegre. Coordenador do Instituto Packter. E-mail: luciopackter@uol.com.br
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entregue por engano. Eu penso que entendi vagamente o que Junita me dizia, mas achei por bem não perguntar, pois havia o risco de construir algum inapropriado espelho com as palavras. Dei três botões de rosas para Junita, estavam em um vasinho com água junto à janela da quitanda. Ela ficou muito contente. Deu-me um abraço, agradeceu, e antes de ir embora devolveu-me os botões de rosas.
Homero é hoje “Os gregos de Homero estavam abertos ao mundo de uma maneira que nós, que somos peritos em introspecção e pensamos nos estados de espírito como experiências privadas, dificilmente podemos perceber. Em vez de se compreenderem em si mesmos com base nas suas experiências interiores e nas suas crenças, encaravam-se como seres 32 •
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SUA INDIVIDUALIDADE É COLETIVA. PARA ENCONTRÁ-LA É IMPORTANTE IR AOS OUTROS, ÀS SUAS EXPECTATIVAS, À FACE OUTRA DAS MÍDIAS SOCIAIS. É UMA QUESTÃO DE NÚMERO DE LIKES arrastados por estados de espírito ou sentimentos públicos e partilháveis. Para Homero os estados de espírito são importantes porque iluminam uma situação partilhada: revelam o que mais importa num dado momento e, ao fazê-lo, levam as pessoas a realizar façanhas heróicas e apaixonadas. Os deuses são cruciais para desencadear esses estados de espírito e deuses diferentes iluminam formas diversas, e até incompatíveis, de conferir relevância a uma dada situação.” – escreveu Hubert Dreyfus. Tônia, uma jovem advogada de
40 anos, se define como uma “grega de Homero” por tais razões. Ela argumenta que para ter uma opinião íntima sobre suas subjetividades precisa necessariamente de um parecer público. Sua individualidade é coletiva. Para encontrá-la é importante ir aos outros, às suas expectativas, à face outra das mídias sociais. É uma questão de número de likes. Muito do que denominados o horizonte de alteridades em Levinas, ainda é o jardim, dentro do cercado, do discurso ontológico grego. Para muitos parece ainda assim ser.
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DESIGUALDADE EM SALA DE AULA ESCOLA SEM PARTIDO (PARTE 2) UMA NOVA ORGANIZAÇÃO DA ESQUERDA
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CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & E CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADE & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCI
CONHECER PAR A RESPEITAR
Simone da Silva Viana é professora e pesquisadora nas áreas História, História Regional, Trabalho, Políticas Sociais, Educação e Cultura. Professora da Universidade Estácio de Sá, nos cursos de Direito e Pedagogia. Mestranda em Políticas Sociais na UENF/RJ 34 •
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as considerações de Paulo Freire, “você, eu, um sem-número de educadores sabemos, que a educação não é a chave das transformações do mundo, mas sabemos também que as mudanças do mundo são um quefazer educativo em si mesmas. Sabemos que a educação não pode tudo, mas pode alguma coisa. Sua força reside exatamente na sua fraqueza. Cabe a nós pôr sua força a serviço de nossos sonhos.”(1991, p. 126) Faz-se necessário compreender a educação como transformação social, oportunizar aos nossos alunos desde a educação infantil serem sujeitos construtores da própria história. A escola deve educar para a vida desde bem cedo, daí a importância de se trabalhar na escola
questões como: a desigualdade social, a discriminação racial e a diversidade cultural; oportunizando aos alunos a quebra de paradigmas desde cedo, reconstruindo valores e verdades a respeito do outro, respeitando as diferenças sociais, culturais e raciais no seu cotidiano. É imprescindível, a escola atual, trabalhar de maneira eficaz a matriz africana no seu currículo. Pois a História africana, sua formação e delineamento da identidade cultural afro-brasileira, é de suma importância no cenário educacional, pois será interpretando e recriando as práticas de outras culturas, que os alunos irão ter possibilidades de conhecer e assim respeitar o outro. Herdeiros de uma escola que sempre privilegiou, em grande parte de sua traje-
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Um grande desafio para banir a desigualdade e a discriminação do cotidiano escolar
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OCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE ÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •
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FAZ-SE NECESSÁRIO COMPREENDER A EDUCAÇÃO COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL, OPORTUNIZAR AOS NOSSOS ALUNOS DESDE A EDUCAÇÃO INFANTIL SEREM SUJEITOS CONSTRUTORES DA PRÓPRIA HISTÓRIA. A ESCOLA DEVE EDUCAR PARA A VIDA DESDE BEM CEDO
tória, conteúdos eurocêntricos, vivemos hoje a urgência de rever conteúdos e temas formativos em nossos bancos escolares. Dessa maneira, conhecer e refletir sobre os costumes e tradições, as práticas e as representações culturais, a mitologia e a religião, a linguagem e as escritas, a resistência e as lutas, a memória e a história do povo africano; assim ensinar, aprender, refletir e debater sobre as identidades, é um exercício fundamental para o combate à intolerância, à discriminação, à xenofobia, ao racismo. A importância de se discutir tais questões no âmbito da educação é atestada pela amplitude e incidência de crimes e violência no Brasil. Estes ocorrem no contexto de uma história e uma cultura que favorece a violências de todo tipo. Tratar a discussão sobre a cultura afro-brasileira, como matéria/disciplina, significa dar um passo importante para reduzir as desigualdades e a violência que marcam nosso
país e o cotidiano escolar. A luta contra o preconceito é tanto política quanto acadêmica. Para a Unesco, debater essas questões em sala de aula é fundamental, é primordial que ensinem aos estudantes que todas as pessoas são iguais, independentemente da cultura ou até mesmo de sua cor. Um dos compromissos dos países-membros da Organização das Nações Unidas é garantir o cumprimento da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, adotada pelo Brasil e todos os outros Estados-membros da ONU em 2015. Entre os 17 objetivos globais da agenda, está a garantia de ambientes de aprendizagem seguros e não violentos, inclusivos e eficazes, e a promo-
ção da educação para a igualdade e os direitos humanos. A Carta Magna Brasileira prevê, no Art. 3.º, inciso IV, que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre outros, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Prevê, ainda, em seu Art. 206, no que tange ao direito à educação: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino.
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CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & E CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADE & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCI Neste sentido, a política de educacional é imprescindível, é na educação básica que as crianças podem tornar-se seres mais esclarecidos e livres para entender o mundo, sem imposições. Para o alcance dessas propostas, é necessário, implementar a educação sobre os temas dos direitos humanos e da diversidade na formação inicial e continuada, oferecida por faculdades e universidades; disponibilizar material didático-pedagógico para auxiliar os profissionais de educação na abordagem destes temas; e realizar pesquisas para o monitoramento e avaliação desse trabalho. Penso que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) [BRASIL, 1997] são propostas do Ministério da Educação e do Desporto (MEC), datadas de 1997, 1998 e 1999, para a abordagem curricular da educação básica, com o objetivo de serem um referencial comum para a educação de todos os Estados do Brasil, não é suficiente, pois muitos professores têm tido dificuldades em aplicar as sugestões apresentadas por eles, o trabalho interdisciplinar ainda é um desafio no cotidiano escolar, sendo necessário políticas educacionais que atendam a regionalidade de cada lugar no Brasil. Desse modo, verifica-se que a Nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de 1997, enfatizam a ideia de diversidade cultural, múltiplos olhares sobre a cultura e a História do patrimônio material e imaterial do Brasil. Nos permitindo, como professores ampliar estes temas, incorporando leituras críticas de textos em sala de aulas, resgates de lendas e tradições regionais, pesquisas de fontes históricas, estudo de textos literários, possibilitar discussões a respeito da diversidade cultural, narrativas cotidianas. Mas isso só será viável pedagogicamente, se Escola, Docentes e Alunos esti36 •
LEVAR ESTA DISCUSSÃO PARA O UNIVERSO ESCOLAR É ABRIR-SE PARA UMA EDUCAÇÃO QUE VAI ALÉM DA REPRODUÇÃO DE VALORES, É ENTENDER QUE SE DEVE EDUCAR PARA A CRÍTICA ÀS REPRODUÇÕES CULTURAIS verem abertos para a realidade da comunidade escolar, pelo saber adquirido a partir das vivências e tradições da mesma. Quando a escola aborda a questão racial, cultura afro-brasileira, numa perspectiva plural, ela mostra ao aluno que tudo o que existe na nossa sociedade são construções culturais, e que elas mudam ao longo do tempo. Dar essa perspectiva histórica ao aluno, de que nem sempre foi
assim e nem sempre vai ser assim, faz com que eles reflitam e aí, sim, se tem um ganho progressivo de liberdade, de autonomia, que são características importantes. Nesta perspectiva, os PCN’s oportunizam à escola refletir sobre o seu currículo, sobre as necessidades de sua comunidade escolar quanto à realidade de diversificar as práticas pedagógicas, pois rompem a limitação da atuação dos educadores em relação às atividades formais e ampliam um leque de possibilidades para a formação do (a) educando (a). A escola pode e deve contribuir na construção de princípios de igualdade e justiça, culminando assim no desenvolvimento de uma cultura democrática e participativa. Se queremos uma sociedade mais justa e igualitária, é sem dúvida na escola que iremos reverter o quadro desolador de desigualdade. E atitudes preconceituosas e discriminatórias somente podem ser mudadas por meio da educação – em todos os níveis e modalidades – em direitos humanos e de respeito à diversidade humana, em todas suas manifestações. O currículo escolar também é uma outra ação necessária, pois
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OCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE ÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • deveriam dar maior ênfase ao cotidiano escolar, permitir estudos de Histórias regionais, locais, que incentivassem a formação de uma identidade cultural e consequentemente nacional; dar ênfase as tradições, valores, memórias, vivências e uma nova percepção do tempo e do espaço. Levar esta discussão para o universo escolar é abrir-se para uma educação que vai além da reprodução de valores, é entender que se deve educar para a crítica às reproduções culturais, tornar prioridade nas políticas curriculares. Os professores podem oportunizar, por meio de atividades pedagógicas, a busca pelas raízes culturais junto aos alunos, através de projetos pedagógicos que trabalhem educação e cultura. No que se refere à contribuição africana é evidente, principalmente, na culinária, dança, religião, música e língua. Deste intercâmbio cultural formou-se a cultura afro-brasileira, sendo visível à
influência africana em todos os aspectos da sociedade brasileira, em diálogo com valores humanos de várias etnias e grupos sociais, imprimimos valores civilizatórios de matriz africana à nossa brasilidade que é plural. É imprescindível trabalhar esses temas no cenário educacional, iniciando desde a educação infantil até ao Ensino Médio; além do Ensino superior. Para assim edificarmos valores essenciais para a vida e na vida! E assim, estarmos contribuindo por uma educação crítico social no cumprimento das leis: 10.639/03 e 11.645/08. É cumprir nosso papel social, enquanto professores, fortalecendo nossa identidade social, para que nossos alunos conheçam e reconheçam o espaço em que vivem, proporcionando mudanças no seu modo de entender a si mesmo, entender os outros, as relações sociais e a própria História; entendendo que saber sua história é saber narrar a si mesmo e ao outro; é ser sujeito de sua própria história, um agente ativo na sociedade, um sujeito capaz de pensar e transformar, exercendo sua plena cidadania. A ideia de educação deve estar intimamen-
COMO A CULTURA SE TRADUZ EM EXPERIÊNCIAS ESCOLARES? QUAL A IMAGEM QUE OS ALUNOS TÊM DE SI MESMOS, DE SEU LUGAR, DE SEU PAÍS, DO MUNDO EM QUE VIVEM? É PRECISO, ENQUANTO PROFESSORES, BUSCARMOS ESSE OLHAR, ESSA IDENTIDADE, ESSE SUJEITO CAPAZ DE TRANSFORMAR A SUA REALIDADE A PARTIR DO CONHECIMENTO OBTIDO te ligada às de cultura, liberdade, democracia e cidadania. É importante refletir esta questão, como a Cultura se traduz em experiências escolares? Qual a imagem que os alunos têm de si mesmos, de seu lugar, de seu país, do mundo em que vivem? É preciso, enquanto professores, buscarmos esse olhar, essa identidade, esse sujeito capaz de transformar a sua realidade a partir do conhecimento obtido. Oportunizar ao aluno a busca de suas raízes, em relembrar coisas do passado, seja na família ou comunidade, na cida-
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CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & E CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADE & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCI de ou região, tornando a história viva; tornando-se sujeitos de sua própria História, sendo capaz de transformá-la de maneira crítica e consciente, propiciando a sociedade cidadãos críticos, transformadores e sensíveis ao meio em que vivem. A cultura é plural, implica sujeitos, valores, manifestações artístico-culturais e materiais, imaginário social, identidade, conhecimento, relações de poder, religião, etc.; possibilitando assim várias possibilidades de projetos interdisciplinares, girando em torno de grandes temas, como: Identidade e Pluralidade; Cultura de massa e Consumo; Patrimônio e Herança Cultural; Cultura e Cidadania. Todos estes temas estão interligados, valorizando a cultura no cenário educacional. Assim sendo, a cultura configura um mundo de símbolos, que atribui significados e delimita a forma como se lê, se sente, se vive; definindo a maneira de ser e de agir do indivíduo. Nessa perspectiva, o ensino-aprendizagem oportuniza um espaço-tempo de reflexão crítica acerca da realidade social e, sobretudo, referência para o processo
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A ESCOLA DEVE RECONHECER E VALORIZAR A HISTÓRIA E A CULTURA AFRICANA, A AFRO-BRASILEIRA E A INDÍGENA, QUE SÃO IMPRESCINDÍVEIS PARA O ENSINO DA DIVERSIDADE CULTURAL NO BRASIL de construção das identidades destes sujeitos e de seus grupos a qual pertence, o que é determinante na construção da leitura de mundo deste aluno. Para uma boa prática, é necessário conhecer e fortalecer a identidade social, possibilitando ao aluno conhecer e reconhecer o espaço onde vivem, pertencer e se apropriar do mesmo no decorrer da sua História, promovendo a troca de
significados e vivências. Incentivar a diversidade cultural, o conhecimento e respeito a cultura do outro, fortalecer a memória e novos saberes, conhecer tradições e o lugar em que vive. Conhecer para respeitar! Aprender a ser, só é possível quando existem trocas de saberes, partilha de experiências e situações instigadoras. Assim, vamos gerar cidadãos capazes de mudar e transformar o lugar em que vivem, sem precisar mudar de lugar. A História das populações indígenas e afro brasileira, é de suma importância de ser compreendida e vivida na atualidade; como meio de conscientização e valorização do passado dos povos indígenas e africanos, oportunizando ao aluno a reflexão e o respeito às diferenças culturais em nosso país. A promulgação da Lei 10.639/03, alterando a LDB, estabeleceu a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da rede de ensino da educação básica, oportunizando a visibilidade e o reconhecimento da cultura e memória do povo africano e suas experiências, na sociedade brasileira ao
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O DESAFIO, NOS DIAS ATUAIS, É FORMAR UM CIDADÃO QUE SEJA CONSCIENTE DA NECESSIDADE DE SUA PARTICIPAÇÃO SOCIAL, POLÍTICA E ATITUDES CRÍTICAS DIANTE DA REALIDADE. E QUE ESTEJA APTO A ENCABEÇAR UMA VERDADEIRA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL pectiva a possibilidade de mudar essa realidade, repensar a formação de homens capazes de transformar, caracterizada pela ação transformadora do mundo. Compreender que o homem é um ser histórico, capaz de construir sua história participando ativamente com os outros no
REFERÊNCIAS
longo da História. A mesma lei foi novamente alterada pela de n. 11.645/08, com a inclusão da temática indígena nas escolas, em uma abordagem que possibilita ao aluno dos ensinos fundamental, médio e superior, ter uma visão crítica à imagem dos povos indígenas, sua diversidade étnico-cultural, sua história e presença na atualidade. Desta forma, a escola deve reconhecer e valorizar a história e a cultura africana, a afro-brasileira e a indígena, que são imprescindíveis para o ensino da diversidade cultural no Brasil. Trata-se de um momento em que a educação brasileira busca valorizar devidamente a história e a cultura de seu povo afrodescendente e indígena, buscando assim desconstruir paradigmas racistas e eurocêntricos da memória e História desses povos, que devem ser reconhecidos e respeitados,. A escola deve educar para a vida e na vida, desde bem cedo, entendendo a sociedade como um espaço de realizações instigando no aluno a formação de uma consciência crítica e cidadã. Para isso, será necessário, que a escola tenha clareza de seu currículo, de sua proposta pedagógica, de seu sistema de avaliação no processo de ensino e de aprendizagem, na ação educativa; discutindo-a, e colocando como pers-
mundo. Uma educação transformadora, é capaz de promover mudanças por meio da leitura do espaço; o qual traz em si todas as marcas da vida dos homens, construído cotidianamente e que expressa tanto as nossas utopias, como os limites que nos são postos; é oportunizar a reflexão sobre o papel de sujeitos de nossa História, mobilizando para os caminhos de acesso ao conhecimento, associada a cultura, leitura crítica da realidade, desafiando-nos para que percebamos que o mundo pode ser mudado, transformado, reinventado. A escola tem como desafio nos dias atuais, a formação do cidadão, para que este tenha conscientemente participação social, política e atitudes críticas diante da realidade que vive, oportunizando uma atuação e transformação da realidade histórica na qual está inserido. É imprescindível, que a sociedade e o Estado, percebam e assumam que a escola é uma instituição social plural, que se educa para a vida e para a cidadania. Se fazendo necessário, repensar o significado da transformação social no cenário educacional e assim buscar para o nosso país. Assim, um dos desafios da educação é inspirar, criar e recriar possibilidades de lutas contra o preconceito, a violência, a alienação, o autoritarismo, enfim uma nova ressignificação da atuação pedagógica para aceitar e incluir as diferenças do outro, das nossas próprias diferenças e assumir uma postura diante das diferenças produzidas ao longo da História da Humanidade. BRASIL. Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Aprova o Plano Nacional de Educação e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2001. . Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 jun. 2014. FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez; 1991.
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ESCOLA SEM PARTIDO (parte 2) Eliminação das ideologias no ensino ou hegemonia de uma? O que é e quem defende o Escola sem Partido
U
é uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior. A pretexto de transmitir aos alunos uma “ visão crítica” da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo.1 O Escola Sem Partido é um movimento que teve a sua gênese no ano de 2003, quando o advogado Miguel Nagib resolveu fazer uma carta aberta a um professor de sua f ilha, com 300 cópias entregues aos 1
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Disponível em: http://escolasempartido.org/quem-somos
SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL DO AUTOR
Victor Santana de Araújo é graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
m dos temas que tem causado maior quantidade de debates por todo o meio acadêmico, em todas as áreas, desde o ensino infantil até o as universidades é o projeto Escola Sem Partido. De um lado, pessoas acusando professores de diversas áreas da educação de praticarem a chamada doutrinação ideológica; de outro, estudantes e professores defendendo aquilo que chamam de liberdade de cátedra como um dos pilares da liberdade de expressão. Para se compreender o que está em discussão, devemos nos perguntar: o que é o Escola Sem Partido? Quem são os principais atores políticos que reivindicam a implementação do projeto? Que ideias defendem seus precursores? De acordo com o próprio site:
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FOI EM 2015 QUE O MOVIMENTO PASSOU A GANHAR MAIS VISIBILIDADE, EM CONSEQUÊNCIA DA AVALIAÇÃO DO ENEM DAQUELE MESMO ANO. O TEMA DE UMA DAS QUESTÕES ERA UM TRECHO DO LIVRO ESCRITO POR SIMONE DE BEAUVOIR, INTITULADO O SEGUNDO SEXO
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2 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/23/politica/1466654550_367696.html
elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualif icam o feminino” (BEAUVOIR, 1960). Colocando o trecho em seu devido contexto, a autora busca fazer uma clara diferenciação entre natureza e cultura, sendo a primeira como algo que vem do nascimento, da biologia, traços imutáveis que nascem e morrem com o ser humano. Mas o que Beauvoir queria chamar a atenção é para a questão da mulher no que tange à cultura, pois esta sim tem uma f lexibilidade muito maior que a natureza, e ela não se constitui no nascimento, mas sim nas relações sociais. Beauvoir atenta para o fato de que a sociedade impõe para a mulher padrões comportamentais que a impedem de decidir sobre si mesma; padrões esses não decididos entre outras do mesmo sexo, mas sim Simone de Beauvoir, em visita ao Brasil. O segundo sexo, publicação da autora, polemizou edição do ENEM por pessoas do sexo masculino, estabelecendo assim uma relação de dominação sobre si e estabelecenépoca, o que gerou na sociedade do os papéis da mulher na sociedauma mudança brusca nos valores e de. O livro e a autora em questão nos costumes. foram umas das maiores inf luênMas o trecho em si foi o suf icias no movimento feminista da ciente para os opositores do movimento tirarem o texto completamente de contexto e divulgar apenas a parte selecionada pelo MEC, sem sequer publicar também as alternativas que respondiam o que a autora quis dizer com tais af irmações. Por meio do Twitter, o deputado e pastor da igreja Universal, Marco Feliciano, escreveu: “Essa frase da f ilósofa Simone de Beauvoir é apenas opinião pessoal da autora, e me parece que a inserção ARQUIVO NACIONALWIKIMEDIA COMMONS
pais no estacionamento do colégio. O professor, no caso, havia comparado o revolucionário Che Guevara a São Francisco de Assis, no contexto de que ambos largaram seus lares para seguir uma ideologia. O advogado, no entanto, entendia aquela analogia como uma santif icação de Che Guevara. A direção do colégio o chamou para uma reunião e informou que não era nada daquilo que havia ocorrido. Os pais dos outros alunos ignoraram a indignação do advogado e pai, e os alunos f izeram passeata em apoio ao professor. Diante de toda essa situação, Nagib resolveu criar uma associação que lutasse contra o que chama de abusos nos quais as crianças estavam sendo vítimas, inspirado num suposto site norte-americano, que Nagib diz estar fora do ar, mas que tinha a mesma f inalidade. E foi assim que, no ano de 2004, surgiu o Escola Sem Partido. 2 Mas foi no ano de 2015 que o movimento passou a ganhar mais visibilidade, em consequência da avaliação do ENEM daquele mesmo ano. O tema de uma das questões era um trecho do livro escrito por Simone de Beauvoir, intitulado O segundo sexo, que dizia: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico def ine a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que
O ATUAL PRESIDENTE ELEITO, NA ÉPOCA DEPUTADO FEDERAL, JAIR BOLSONARO, TAMBÉM SE POSICIONOU A RESPEITO DA QUESTÃO, DIZENDO QUE “MAIS OU TÃO GRAVE QUANTO A CORRUPÇÃO É A DOUTRINAÇÃO IMPOSTA PELO PT JUNTO À NOSSA JUVENTUDE” 42 •
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O carro chefe da campanha do Escola Sem Partido, sem dúvidas, é o que políticos, associações, militantes e subcelebridades simpatizantes ao projeto chamam de “ideologia de gênero”. O termo vem sendo divulgado, reproduzido e repetido incansavelmente como um mantra para os simpatizantes ao projeto, e junto com ele, há uma forte conotação religiosa e tradicional. De acordo com o site da Canção Nova, comunidade pertencente a ala conservadora da igreja católica, a renovação carismática; a ideologia de gênero é uma desconstrução da família e os vínculos existentes dentro dela. Os f iéis das muitas vertentes da igreja evangélica também aderiram ao termo e o reproduzem, entre os mais destacados estão os pastores Marco Feliciano e Silas Malafaia. O próprio termo convida a interpretar que há uma ideologia que quer se impor no imaginário de todas as pessoas, de modo a contaminar a sociedade. Essa ideologia, de acordo com eles, se funda na eliminação da classif icação de gênero entre os seres humanos para que assim se alcance uma igualdade entre todos.
O PRINCIPAL ALVO DAS CRÍTICAS DOS SIMPATIZANTES DO ESCOLA SEM PARTIDO É A FILÓSOFA JUDITH BUTLER, QUE REVIROU O MEIO ACADÊMICO AO TRATAR O GÊNERO COMO UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL INACABADA E FALHA O principal alvo das críticas dos simpatizantes do Escola Sem Partido é a f ilósofa Judith Butler, que revirou o meio acadêmico ao tratar o gênero como uma construção social inacabada e falha. E ao contrário de todos e todas que a antecederam, ela ousou a trazer a biologia também para o campo social, se perguntando se o sexo possui história ou é uma dada estrutura, sendo que este também
deve estar no campo social, e não apenas no biológico. Para Butler, as categorias “homem” e “mulher” trazem consigo uma série de papéis a serem desempenhados por ambas as partes, desenvolvidos ao longo dos séculos, principalmente nas sociedades ocidentais, onde o sexo masculino obtém sua dominância. Também essa teoria foca na crítica ao feminismo, que vê a mulher como uma categoria singular a ser interpretada. Para a autora, os gêneros devem ser pensados de forma mais livre, sem tanto pragmatismo, pois está suscetível a erros que acabam prejudicando outra parte da sociedade que acaba sendo esquecida, no caso os LGBT. Para a autora, um dos grandes problemas das nomeações pragmáticas de homem, mulher, heterossexual e homossexual traz consigo uma regulação de normas estabelecidas e a exclusão social. Críticas e polêmicas à parte, a autora traz uma discussão que pouquíssimo saiu da academia e que uma mudança cultural desse porte na sociedade levaria décadas para ter resultados signif icativos, e na educação, principalmente, esse debate sempre esteve longe de ser feito nas escolas.
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OUTRO ALVO DO MOVIMENTO ESCOLA SEM PARTIDO É O EDUCADOR E FILÓSOFO PAULO FREIRE, CUJAS OBRAS DÃO BASE ÀS CRÍTICAS AO MODELO EDUCACIONAL NO BRASIL, SENDO ELE, PARA OS SEUS OPOSITORES UM DOS MAIORES RESPONSÁVEIS PELO ATRASO DA EDUCAÇÃO NO PAÍS O que se procura trazer à discussão em sala de aula nos últimos tempos nas escolas, pouco está relacionado às ideias da autora, já que as categorias criticadas por Butler não estão sendo colocadas em xeque. O que se busca nos novos tempos é algo muito mais simples: a ideia da aceitação à diversidade e da igualdade na sociedade, e para que isso possa obter resultados, deve ser colocado em sala de aula o aprendizado ao respeito e à igualdade. Quando se apelida um colega de bicha, por quais razões o professor não teria de questionar o que o aluno quer dizer com esse apelido? Por que não ter o
direito de trazer ref lexão ao fato de a homossexualidade ser motivo de chacota? Pois quando se ref lete, não há explicação lógica para tratar a homossexualidade de forma pejorativa, pois é uma característica humana como qualquer outra. No f inal das contas, a única explicação que se consegue obter a esse tipo de “xingamento” é o tratamento dessa característica como uma anomalia, uma doença mental, ou seja, algo já superado pela ciência há muitas décadas, e sendo assim, o preconceito perde a sua cortina de fumaça. E por que não o desvelar? Como garantir a democracia de um país, quando se opõe a direitos humanos básicos de diversida-
de e igualdade racial, regional, de gênero e orientação sexual? No ano de 2017, o Brasil alcançou a marca de 445 assassinatos a homossexuais, e entre 2008 e 2016, 868 travestis e transexuais perderam as suas vidas de forma violenta, como é o caso da travesti Dandara dos Santos. Num vídeo que circulou pela internet, cinco homens aparecem espancando a travesti com chutes e chineladas, ordenam-na a subir num carrinho de mão, e ao cair no chão novamente, dão mais pancadas em sua cabeça. Gritos e ofensas marcam a gravação, e um dos rapazes a atinge com um pedaço de madeira. Após a gravação, segundo a polícia, o grupo a espancou até a morte. 3 No ano de 2015, a atriz transexual Viviany Beleboni, de 26 anos, durante a Parada LGBT, encenou sua crucif icação para demonstrar o sofrimento vivido por LGBT em todo o país devido ao preconceito, fazendo uma menção à cruz de Jesus. Isso causou impacto na sociedade de forma a sofrer repúdio por parte da igreja católica. Mas a vida imitou a arte, e Dandara dos Santos teve o seu destino selado por homens que, iguais a inúmeros outros espalhados por todo o país, não aceitam sua identidade. Também no ano de 2017, o Brasil teve documentado mais de 600 casos por dia de violência doméstica, totalizando em 221.238 registros, um aumento de 6,1% comparado ao ano anterior. Desse número, 1.133 foram vítimas de feminicídio. Por quais razões não se deve abrir um debate sobre esses assuntos em sala de aula? Não há registro algum de professores incitando alunos a mudarem seus padrões de vida, sua orientação sexual. Mas o que pode ser discutido é justamente os porquês de ser um fardo assu3 Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/ noticia/2017/03/policia-investiga-homicidio-de-travesti-que-foi-espancada-atemorte-no-ce.html
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mir sua orientação. É pela censura de propor esse diálogo que o país possui um número tão alarmante. O que está sendo posto à mesa não é o f im de uma suposta ideologia que quer se impor a qualquer custo como uma lavagem cerebral a crianças e adolescentes, mas sim a eliminação de ideias que hoje são defendidas pela esquerda, contudo, não são necessariamente exclusivas da mesma. Pois quando se fala de igualdade de gênero, raça e orientação sexual, não está em xeque os valores universais do liberalismo econômico de igualdade de oportunidades, direito à propriedade, à cidadania, ao respeito, ao trabalho, etc. Os valores do liberalismo estão diretamente conectados as reivindicações por igualdade entre seres humanos de diferentes categorias. Por exemplo: quando se estabelece cotas raciais nas universidades, é justamente para trazer mais justiça às formas de se ascender socialmente, já que parte da sociedade, para ser mais específ ico os negros, é historicamente prejudicada e, por isso, sempre começa a partir de um ponto inferior à raça branca, sendo empurrado para as atividades mais braçais e servis. O que se busca é um ponto de partida mais justo entre as pessoas para que possam competir de igual, e isso não traz a eliminação do mundo competitivo, embora o torne ainda mais acirrado. Na questão do gênero, sob outras formas, está também diretamente ligada a essa racionalidade. Historicamente, embora as lutas das mulheres, dos negros e dos gays tenham trazido resultados signif icativos à sociedade, não tiraram da sociedade o seu caráter discriminatório e desigual, mesmo quando as constituições e os códigos civis garantam cidadania a todos sem nenhuma restrição. Isso está mais ligado a ações concretas do que um embate de ideias. Não está sendo proposto um debate se gênero existe ou não,
WILSON DIAS/AGÊNCIA BRASIL
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O deputado e pastor da igreja Universal, Marco Feliciano, defensor do movimento Escola Sem Partido
OS OPOSITORES DE PAULO FREIRE O ACUSAM DE SER O RESPONSÁVEL POR UMA EDUCAÇÃO IDEOLÓGICA NO BRASIL, SENDO ELE UM SOCIALISTA QUE PRETENDE ENSINAR OS ALUNOS A SEREM SUBVERSIVOS seja nas escolas ou na câmara dos deputados e no senado. O que está sendo proposto é o cumprimento das legislações que garantem cidadania a todos os seres humanos sem qualquer restrição. O ESPECTRO DE PAULO FR EIR E E A SUPOSTA DOUTR INAÇÃO
Um outro alvo do movimento Escola Sem Partido é o educador e
Filósofo Paulo Freire, cujas obras dão base às críticas ao modelo educacional no Brasil, sendo ele, para os seus opositores um dos maiores responsáveis pelo atraso da educação no país. Quem é Paulo Freire? O que tem a dizer? Que inf luência ele exerce na educação brasileira? Os opositores de Paulo Freire o acusam de ser o responsável por uma educação ideológica no Brasil, sendo ele um socialista que pretende ensinar os alunos a serem subversivos e não seguirem os valores aprendidos dentro de casa. Nos trabalhos acadêmicos das ciências humanas, sua obra “Pedagogia do Oprimido” é a terceira mais citada em trabalhos da área de humanas, segundo um levantamento feito no Google Scholar ferramenta de pesquisa dedicada à literatura acadêmica. No ano de 2012, por unanimidade na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do senado, foi sancionada a lei que o tornava patrono da educação brasileira, sendo demonstrado o seu reconhecimento tanto por organizações de esquerda como as de direita.
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O MÉTODO PAULO FREIRE TROUXE AVANÇOS SIGNIFICATIVOS NA EDUCAÇÃO QUANDO O ENTÃO PRESIDENTE JOÃO GOULART LANÇOU A CAMPANHA NACIONAL DE EDUCAÇÃO, CRIANDO A COMISSÃO DE CULTURA POPULAR (A CCP), TENDO O EDUCADOR COMO PRESIDENTE Paulo Freire defendia a ideia de que a educação não era uma mera transmissão de conhecimento, o que ele chama de educação bancária, aquela em que o professor deposita sobre seus alunos um conhecimento padronizado e nada ref lexivo. Assim diz o autor:
outros como seres manipuláveis. Portanto, para Freire, isto faz parte de um processo de doutrinação. Os opositores de Paulo Freire e simpatizantes do projeto dizem que, a partir dessa lógica de ensino, o professor se aproveitaria da fragilidade intelectual de seus alunos e traria ref lexões que fossem apenas nos interesses de suas convicções ideológicas. Quando se lê Paulo Freire com a única intenção de confrontá-lo sem dá-lo ao menos uma chance de expor suas ideias, erros podem facilmente ser cometidos, como os opositores o fazem. Pois Paulo Freire era também um crítico da autoridade do professor como uma f igura que preenche mentes que até o momento estão vazias. O professor mantém uma certa autoridade no sentido de conduzir, mas não pode ser uma f igura autoritária. Em suma, Freire acreditava numa relação dialógica entre professor e aluno em que ambos aprendessem. Em 1962, quando era diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife, Freire criou um método que visava
alfabetizar adultos, e na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, e sem nenhuma cartilha, alfabetizou 300 cortadores de cana em 45 dias. Freire era crítico do sistema de educação feito a base de cartilhas, que ensinavam por meio da repetição palavras e frases de maneira forçada. Por isso criou o que se chama de Método Paulo Freire. O método consiste em três etapas, sendo elas: 1) investigação: professor e aluno buscam palavras e temas mais significativos de seu cotidiano e de onde vive; 2) tematização: tomada de consciência do mundo por meio das palavras e temas procurados no item 1; 3) problematização: etapa em que o professor incentiva o aluno a olhar os temas de maneira mais crítica. O método Paulo Freire trouxe avanços signif icativos na educação quando o então presidente João Goulart lançou a Campanha Nacional de Educação, criando a Comissão de Cultura Popular (a CCP), tendo o educador como presidente. Contudo, após o golpe militar de 1964, o autor foi preso e exilado, e a partir de então, passou
O autor nos diz nessa passagem que, a partir do momento em que se deposita ideias uns nos outros, trata-se de tornarmos uns aos FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 45.
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MARCOS CORRÊA/PR
O diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes.4
Para o presidente eleito, Jair Bolsonaro, o ENEM seria o “Exame Nacional do Ensino Marxista”, sendo necessário rever os temas da prova nacional, tendendo o teste a uma perspectiva mais “neutra”
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Creio que nunca precisou o professor progressista estar tão advertido quanto hoje em face da esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação. Desse ponto de vista, que é reacionário, o espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que se treinam os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra. 5 Para
Freire,
a
neutralidade
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1997. p. 38.
5
DE UM PONTO DE VISTA REACIONÁRIO, O ESPAÇO PEDAGÓGICO É AQUELE EM QUE SE TREINAM OS ALUNOS PARA PRÁTICAS APOLÍTICAS, COMO SE A MANEIRA HUMANA DE ESTAR NO MUNDO PUDESSE SER NEUTRA nada mais que a perpetuação de uma ideologia, pois para qualquer um que estude linguística, não há neutralidade na linguagem, no falar. O ato de falar em si já é o suf iciente na transmissão de valores mundanos que passam do emissor ao receptor, e isso se reproduz em todas as relações sociais. Ao buscar uma neutralidade na educação, se busca uma neutralidade diante de todos os problemas REFERÊNCIAS
o seu conhecimento em outras partes do mundo. O que o criador do Escola Sem Partido diz de Freire, é que o autor promove, por meio de seus métodos uma doutrinação ideológica de cunho marxista nos alunos, e uma educação que tem por base os seus conhecimentos é uma educação ideológica. E quanto a Nagib: não propõe algo tão quanto ideológico? Af inal, como af irma o f ilósofo Slavoj Zizek em seu livro Um mapa da ideologia, quando se diz que determinado processo é ideológico, certamente o seu inverso também o será. Zizek acertou na colocação, pois no ano de 2009, o procurador e criador do Escola Sem Partido escreveu, no site do Instituto Millenium, um artigo intitulado “Por uma educação que promova os valores do milênio”. E os valores que ele propõe são o da propriedade e da meritocracia. Isto é ou não ideológico? Paulo Freire, ao contrário do que dizem seus críticos, foi opositor da doutrinação ideológica nas escolas, mas sob outra perspectiva. Ao criar uma educação acrítica, indiferente e padronizada, tira-se dos alunos a sua capacidade ser sujeito dono de sua própria história enquanto cidadão, como diz na seguinte passagem:
sociais, econômicos e ambientais no mundo em que vivemos, e dessa maneira, essa suposta neutralidade acaba por ser tão ou até mais ideológica. Pois o fato de silenciar diante de todos os problemas que a humanidade enfrenta é a legitimação e a perpetuação dos mesmos. Portanto, conclui-se que não há, de maneira nenhuma, uma educação que possa garantir isenção de conteúdo ideológico.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1997. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 45. PENNA, Fernando. Programa “Escola Sem Partido”: Uma ameaça à educação emancipadora. In: GABRIEL, C. T.; MONTEIRO, A. M. e MARTINS, M. L. B. (org.) Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de história. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016. PENNA, Fernando; FRIGOTTO, Gaudêncio; QUEIROZ, Felipe (orgs.). Educação democrática: antídoto ao Escola Sem Partido. Rio de Janeiro: LPP/UERJ, 2018. Projeto Escola Sem Partido, disponível em: http://escolasempartido.org/quem-somos
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TAREFAS DA ESQUERDA PAR A 2019 Um ensaio sob a perspectiva pós-eleitoral
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FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL
lguns haverão de me perguntar: porque escrevo sobre esse tema em 2019 se nem vencemos o primeiro turno? Há muita luta, muita batalha pela frente, sem dúvida. Não tratarei sobre pesquisas, probabilidades eleitorais, que já escrevi exaustivamente sobre isso, tendo gravado vídeos e áudios sobre essa temática. Abordarei aqui tarefas das organizações de esquerda (partidos, movimentos e organizações sociais), para que a democracia de nosso país, que viveu e vive tempos de estado de exceção, possa voltar a se consolidar. Porque devemos participar de governos em um Estado burguês? Não vou teorizar sobre isso, nem sob a ótica de pensadores mais liberais e de centro- esquerda, menos ainda sob a ótica do pensamento marxista-leninista que esposo. Apenas tenho convicção de uma coisa: o que garante o caráter e o conteúdo de classe de um Estado não é só necessariamente a classe que ocupa o seu aparelho, mas também as suas tarefas, seu plano de governo, as ações que ele defende. Nunca tive dúvida sobre a classe social – pelo menos do ponto de vista de origem – a que o nosso ex-presidente Lula pertence. Ele é exemplo típico que Marx descreveu como um operário do setor produtivo industrial do país, sendo um representante do proletariado. Mas, o programa que ele implantou no país jamais poderíamos classificá-lo como um programa do proletariado, mas sim desenvolvimentista, nacional e popular. Ainda assim, sem ter jamais rompido com o rentismo (e tenho sinceras dúvidas se a correlação de forças que vivemos nos permitiria hoje esse rompimento com Haddad ou na hipótese improvável e menor ainda com Ciro Gomes, esse sim de origem de classe burguesa). No entanto, temos que desenvolver três linhas de acumulação de forças, para fortalecer o nosso campo popular. Travar diuturnamente a luta de ideias, acumular forças nos parlamentos e governos e organizar o povo brasileiro. Quero, então, desenvolver melhor o aspecto de acumulação de forças de participação institucional em governos,
Lejeune Mirhan é sociólogo, Professor, Escritor e Analista Internacional. Foi professor de Sociologia e Métodos e Técnicas de Pesquisa da UNIMEP e presidente da Federação Nacional dos Sociólogos – Brasil. É colaborador dos portais Vermelho, Brasil247, Grabois, Duplo Expresso e Resistência. Tem nove livros publicados de Sociologia e Política Internacional.
O QUE GARANTE O CARÁTER E O CONTEÚDO DE CLASSE DE UM ESTADO NÃO É SÓ NECESSARIAMENTE A CLASSE QUE OCUPA O SEU APARELHO, MAS TAMBÉM AS SUAS TAREFAS, SEU PLANO DE GOVERNO, AS AÇÕES QUE ELE DEFENDE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •
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OCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE ÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •
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CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & E CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADE & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCI sejam eles populares, de centro-esquerda ou mesmo ainda mais de centro. Que fazer nessas situações? Listo, a seguir, pontos que entendo como fundamentais que devem dar sentido a essa participação. Não cumprindo esses requisitos, não haveria sentido estarmos nesses governos. Vamos a eles: Organização popular – Nem vou martelar na tecla que “descuidamos desse aspecto profundamente”, como sempre dizemos quando criticamos os 13 anos dos governos petistas, no qual o PCdoB esteve presente e em outros momentos também o PDT e o PSB (PCO, PCB, PSOL, REDE e PSTU, seja lá por quais motivos, jamais participaram). Não se trata de um simples descuido. O que vimos foi uma verdadeira transferência dos principais quadros petistas e de outras organizações, para o aparelho de Estado, que é, em última instância, burguês. Jamais poderíamos ter cometido esse erro e – espero – não venhamos nunca mais a cometê-los. O que leva um (ou uma) líder popular, sindical, de movimentos sociais trocar a aspereza das periferias, o chão das fábricas, os campos, por salas com ar condicionados, ter
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TEMOS QUE DESENVOLVER TRÊS LINHAS DE ACUMULAÇÃO DE FORÇAS, PARA FORTALECER O NOSSO CAMPO POPULAR. TRAVAR DIUTURNAMENTE A LUTA DE IDEIAS, ACUMULAR FORÇAS NOS PARLAMENTOS E GOVERNOS E ORGANIZAR O POVO BRASILEIRO uma secretária, carro, apartamento funcional e mudar-se para Brasília? Não que não devamos estar presentes nesses espaços institucionais. Mas, todo mundo? Os principais quadros? Quem cuida da organização do povo
na “planície”? Todo mundo vai para o planalto? Com quase um milhão de servidores federais, será que não encontramos algumas dezenas de milhares altamente competentes, capacitados, politizados, comprometidos com o avanço do País e da Nação, para ocuparem esses espaços sem que tenhamos que deixar o imenso vazio no movimento popular? Penso que sim. Temos que criar essas alternativas. Elevação da consciência política das massas – Aqui outra tarefa fundamental de todos nós, dos partidos e organizações de massa vinculadas ao povo e de concepções de esquerda, nacionalistas, patrióticas. Não é possível termos descuidado disso por mais de uma década. Será que avaliamos que basta apenas melhorar o nível de consumo de massa para que o povo melhore a sua consciência? E os meios de comunicação? O quão tarde nós empreendemos cuidados com a empresa pública de comunicação? Hoje já nem faz sentido mais falarmos em jornal impresso. Mas, ainda assim, em 2003, porque nunca tivemos um jornal de massas que falasse a língua dos partidos do governo, na linha do desenvolvimento nacional e organização do povo? Não temos nós centenas de grandes e competentes jornalistas hoje cuidando de mais de uma dezena de grandes sites da imprensa alternativa? Porque nunca juntamos toda essa gente? Por que não apoiamos uma revista como Carta Capital para enfrentar outras três (Veja, Isto É e Época)? Por que jogamos 10 bilhões de reais nos cofres das organizações Globo? A lista de problemas iria longe. O que sei é que nunca mais poderemos descuidar desse aspecto. A organização de um sistema público de comunicação é urgente no sentido de elevar o nível cultural da população trabalhadora. O povo tem que ser preparado para enfrentar situações de golpe como a que vivemos em 2016. Mas tem que ser preparado para as grandes reformas para o futuro que ainda teremos que fazer.
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OCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE ÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • Instituição da democracia direta – Em tempos de Internet veloz, algoritmos, bioengenharia, medicina genética, inteligência artificial, votações cada vez mais instantâneas, por que governos populares como os de Lula e Dilma não conseguiram inovar na democracia direta? Qualquer país europeu, especialmente os nórdicos, usam e abusam da democracia direta há muito tempo. De várias formas. No limite, em determinadas situações, até votando com levantamento de braços em sua região de moradia em certas questões. No Brasil, até onde minha vista alcança, apenas o movimento sindical, com suas assembleias, exercitam esse mecanismo democrático, qual seja, votação e tomadas de decisão sem passar por eleições formais, urnas, cédulas. Decisão tomada, passa a ser a posição da entidade. Com a Internet e mecanismos de segurança, temos várias entidades sindicais, conselhos profi ssionais que já usam o voto pelas redes informacionais para tomadas de decisão. Por que – se nossa Constituição prevê – usamos tão pouco os instrumentos de soberania popular que são o plebiscito e o referendo? Devemos, em um novo governo popular, usar e abusar desses mecanismos. Nos EUA, sede do império do Norte, sempre que ocorrem eleições estaduais e nacionais, a cédula vem acompanhada de um conjunto de perguntas que tem força de lei o seu resultado. Isso é extremamente positivo. Lula falava em referendo revogatório de todo o entulho autoritário dos dois anos de meio de ditadura civil e midiática sob o comando da quadrilha chefi ada pelo Temeroso. Por que não fazê-lo de imediato para revogar pelo menos a famigerada reforma trabalhista, a entrega do pré-sal às petroleiras internacionais, a terceirização total, algumas privatizações? A lista do que precisa ser revogado é imensa. Diminuição da desigualdade – Há um livro fantástico que veio ao mundo em 2013 e nos chegou em 2014 (eu o devorei quando o ad-
O QUE LEVA UM (OU UMA) LÍDER POPULAR, SINDICAL, DE MOVIMENTOS SOCIAIS TROCAR A ASPEREZA DAS PERIFERIAS, O CHÃO DAS FÁBRICAS, OS CAMPOS, POR SALAS COM AR CONDICIONADOS, TER UMA SECRETÁRIA, CARRO, APARTAMENTO FUNCIONAL E MUDAR-SE PARA BRASÍLIA? quiri), chamado O Capital no Século XXI, do renomado intelectual francês Thomas Piketty1. Em poucas palavras, ele mostra que o século XX praticamente universalizou os acesso à educação básica, à saúde e a um sistema mínimo de aposentadoria. O desafio para o século XXI será a diminuição da desigualdade. Ele bate duro contra o fato de que nos países desenvolvidos, as taxas de acumulação de renda e de riqueza são muito superiores ao próprio desenvolvimento do país. Com dados, gráficos, 1 Para maiores esclarecimentos pode-se ter acesso a esta página: https://pt.wikipedia.org/ wiki/Thomas_Piketty que mostra a sua trajetória de vida, que estudamos em 4 de outubro de 2018 às 14h52.
planilhas, ele mostra como tão poucas pessoas acumulam a riqueza e a renda de bilhões de pessoas. Por isso venho indagando desde que escrevi sobre esse tema pela primeira vez em 2013: qual o sentido da participação em um governo burguês ou mesmo de esquerda, sem que a questão central a ser atacada seja a desigualdade social? Nosso país vive taxas de desigualdade de países subsaarianos. A luta contra o rentismo – Aqui talvez esteja o ponto central. Como se dizia desde a primeira agressão ao Iraque em 1991: esta talvez seja mesmo a mãe de todas as batalhas. Recentemente o grande cineasta e documentarista deste país, que é o Sílvio Tendler, lançou o seu fi lme excepcional
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CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & E CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADE & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCI
FRANK O. SALISBURY/WIKIMEDIA COMMONS
A ORGANIZAÇÃO DE UM SISTEMA PÚBLICO DE COMUNICAÇÃO É URGENTE NO SENTIDO DE ELEVAR O NÍVEL CULTURAL DA POPULAÇÃO TRABALHADORA. O POVO TEM QUE SER PREPARADO PARA ENFRENTAR SITUAÇÕES DE GOLPE
Franklin Roosevelt, presidente dos Estados Unidos em 1932, clamava à população para que suas reivindicações fossem cobradas
intitulado Dedo na ferida 2. Como pode um país desenvolver-se, criar milhares de quilômetros de ferrovias (algumas de alta velocidade), construir reatores nucleares e usinas hidroelétricas, construir milhares de quilômetros de estradas, assentar milhões de famílias de sem-terra, equipar dezenas de milhares de escolas de ensino fundamental e médio, criar centros de pesquisa, abrir novas universidades, ampliar vagas nas existentes públicas, se pagamos todos os anos 1,6 trilhão de reais a título de juros da dívida pública? Como diz Piketty, ao invés de aumentar nossa dívida pública tomando mais dinheiro emprestado das 20 mil famílias super ricas (que detém 70% dos títulos dessa mesma dívida), por que não taxamos pesadamente o lucro, os dividendos e a renda dessas mesmas famílias em Ele pode ser assistido no You Tube no endereço https://www.youtube.com/watch?v=Y_C2PgI2I9Y.
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alíquotas iguais às praticadas na Alemanha, Inglaterra, França e países baixos e nórdicos? Ah, me dirão vocês, mas e a força para fazermos essa reforma tributária? Por isso a organização do povo, sua conscientização. É claro que mudanças profundas dependem de mudanças mundiais. É a tal da correlação de forças que nos é ainda desfavorável. As forças do rentismo, do capital fi nanceiro são dominantes. Quando isso será modificado ainda não se vislumbra plenamente. Mas, a crise sistêmica do capitalismo, a bolha se acumulando, a falência do modelo de reprodução da riqueza sem passar pela produção estão chegando ao limite. E cabe a nós usarmos tudo que estiver disponível ao nosso alcance para já irmos rompendo com esse modelo perverso que só aumenta as desigualdades e concentra renda. Fecho este pequeno artigo com um episódio que tomei conheci-
mento, ainda que não tenha conseguido a fonte precisa da informação. Os EUA viveram a sua maior crise com a quebra da bolsa de Nova York em 1929. Franklin Delano Roosevelt, que alguns estudiosos e historiadores estadunidenses indicam ter sido o melhor ou entre os três melhores da história daquele país imperialista, foi eleito pelo Partido Democrata em 1932. Seria reeleito mais três vezes (por isso em 1945 eles limitaram em uma reeleição apenas). Consta que antes da eleição, na qual ele fora apoiado pela AFL-CIO, a central sindical unitária estadunidense, que levou ao ainda candidato uma lista imensa de reivindicações. Ele as leu com atenção e teria dito: concordo com tudo isso que aqui está, mas só implantarei todas essas medidas se vocês me pressionarem! Bingo! Aí está a solução da charada. Organizar o povo, elevar a sua consciência e manter o nosso presidente, eleito por nós, sob constante pressão, apoiando quando for necessário para as tomadas de grandes decisões, ou fazendo-lhe oposição quando ele se encontrar em posição de cedência por pressões externas. Esse é o grande desafio.
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MOMENTO DO LIVRO
Assassinato, traição, vingança, romance e mistério compõem o pano de fundo para Um Estudo em Vermelho, que marca a estreia da parceria entre o detetive mais famoso do mundo, Sherlock Holmes, e o médico John Watson. A partir desse encontro, estará selado um pacto entre ambos: “Na meada incolor da vida, corre o fio vermelho do crime, e o nosso dever consiste em desenredá-lo, isolá-lo e expô-lo em toda a sua extensão”.
Livro: Sherlock Holmes Um Estudo em Vermelho Número de páginas: 176 Editora: Lafonte
Nas livrarias e na loja Escala www.escala.com.br
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ÉTICA
por arthur meucci
J
ohn Stuart Mill, um ilustre defensor das liberdades individuais e de mercado, afirmou em seu clássico livro Sobre a Liberdade: “Se todos os homens menos um partilhassem a mesma opinião, e apenas uma única pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais legitimidade em silenciar esta única pessoa do que ela, se poder tivesse, em silenciar a humanidade” (2000, p. 29). Aqueles que estudaram o pensamento liberal no ensino médio se lembram que nos tratados políticos de John Locke, nos textos de Adam Smith, Thomas Paine e Benjamim Franklin a defesa da liberdade de expressão é um pilar fundamental para a liberdade civil e de mercado defendida pelos liberais clássicos – sobretudo a liberdade de imprensa e ensino. Entre os grandes liberais vivos, o economista indiano Amartya Sen, influenciado pelo pensamento de Adam Smith, ganhou o prêmio Nobel de Economia em 1998 com a sua obra Desenvolvimento como liberdade, onde faz uma defesa radical das liberdades individuais e sociais. A defesa da liberdade de opinião, imprensa e ensino são valo54 •
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res éticos e políticos inalienáveis no pensamento liberal. Estudantes, jornalistas e intelectuais brasileiros ficam confusos quando grupos de direita, que se intitulam “liberais”, defendem projetos de lei que promovem a censura – temos como exemplo histórico os políticos “liberais” da antiga UDN que apoiaram o AI-5 (1968) e, recentemente, políticos do MBL, DEM, PSL e Novo que defendem projetos como a “Escola sem Partido”. Um fenômeno semelhante ocorreu na ditadura chilena de Augusto Pinochet (1973-1990), onde os economistas “ultra liberais” da Escola de Chicago promoveram a perseguição, censura e morte de professores em escolas e universidades. Existe uma evidente contradição entre as práticas políticas dos “liberais” latino-americanos e os referenciais teóricos que afirmam defender. Ao contrário dos meus colegas, não classificarei estes políticos como liberais ou neoliberais, pois eles não comungam dos valores éticos e políticos destas correntes. Convém chamá-los de pseudoliberais, pois eles se utilizam de um referencial ético-
-político para promoção social, mas deturpam os valores e ideias liberais para justificar ações e projetos de interesse pessoal, clientelista ou mesmo práticas de corrupção, contrariando os fundamentos da referida corrente. É preciso questionar quais os reais motivos para os pseudoliberais defenderem o projeto “Escola sem Partido”. As respostas mais óbvias são o marketing e a distração. Enquanto propaganda política, o nome do projeto é retoricamente sedutor. Afinal, ninguém quer ter um filho formatado com supostas doutrinas partidárias. Esta ideia de doutrinação é desconexa com a realidade escolar – o conceito de doutrina faz referência ao universo religioso que não permite questionar suas crenças e seus líderes com ideias diferentes –, especialmente nas humanas, onde os estudantes tomam contato com diversas correntes teóricas e são estimulados a criticar os textos que estudam. Entretanto, a fabricação desta mentira tem criado palanque midiático para os políticos defensores do projeto. Mesmo com os vetos de inconstitucionalidade feitas pelo Supremo Tribunal Federal, os
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Prelúdio para a corrupção
de sustentação política, além da contratação de consultorias suspeitas, compra de equipamentos e campanhas de publicidade que custarão milhões de reais aos cofres públicos para realizar este projeto natimorto no velho estilo da corrupção. Outro projeto questionável é a terceirização de escolas e universidades por meio de Organização Social (OS). Os pseudoliberais defendem a contratação destas empresas, “sem fins lucrativos”, com a justificativa de gerenciar e modernizar a educação pública nos moldes do mercado sem a exigência de metas. Na prática, o sistema meritocrático do concurso público será substituído pela contratação temporária de apadrinhados e cabos eleitorais, na contramão do que defende o republicanismo e a democracia liberal. Os políticos pseudoliberais no poder pretendem vender ao povo brasileiro projetos questionáveis e onerosos para resolver pseudoproblemas e garantir uma educação de pseudoqualidade na base de velhos esquemas de corrupção baseados na PPP. Os reais problemas da educação pública brasileira permanecerão ignorados. REF.
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pseudoliberais continuarão propondo censuras e controles de escolas e universidades para gerar polêmica e visibilidade – que também será alimentada pelos políticos ditos de esquerda que pretendem se promover na defesa da liberdade de ensino. Este espetáculo político, com vilões e mocinhos de araque, será financiado com o dinheiro do contribuinte. O “Escola sem Partido” também serve como distração para se aprovar outros projetos educacionais que pretendem alimentar práticas de corrupção na Parceria Público-Privado (PPP) em nome da boa gestão e do combate ao marxismo. A primeira delas é a implantação do Ensino a Distância (EaD) na educação básica. Os principais especialistas em educação condenam a escolha desta modalidade e os pais dos estudantes de escolas públicas não vão pedir demissão para acompanhar os estudos dos filhos em casa. Além disso, as empresas de internet no Brasil, que gozam de total liberdade de mercado, oferecem uma péssima qualidade de sinal e cobram um preço abusivo. O fracasso na implantação da EaD é previsível. Em nome do combate ao “marxismo cultural” o projeto será realizado para enriquecer empresários do setor de educação que promovem bases
Arthur Meucci é doutor em Educação, pelo Mackenzie, bacharel, licenciado e mestre em Filosofia pela USP. Professor do Departamento de Educação da UFV, pesquisa sobre “Ética na Educação” e “Gerontologia Educacional”. Coordena a Cátedra Paulo Freire da UFV. arthur@meucci. com.br
STUART MILL, J. A Liberdade; Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000. www.portalespacodosaber.com.br •
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A ALTERIDADE em tempos de conservadorismo
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Falar de direitos humanos no Brasil é sempre um desafio, pois impera no senso comum a ideia de que “bandido bom é bandido morto” entre outras barbaridades. Desta forma, o outro torna-se menos humano, ainda mais quando o conservadorismo recrudesce em momentos de crise
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Rodrigo dos Santos Manzano é professor de filosofia da rede pública do Estado de São Paulo, graduado em filosofia pela UNIFAI e especialista em filosofia contemporânea e história pela Universidade Metodista. www.portalespacodosaber.com.br •
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É
tempo de conservadorismo! Ideias conservadoras ganham as ruas e se tornam públicas sem nenhum pudor daqueles que as expressam. No campo político, no campo religioso, no campo educacional, pululam ideias retrógradas, engessando a forma de pensar, colocando “viseiras ideológicas” nos olhos das pessoas. Reforçam um senso comum estabelecendo pontos de vista fechados, unilaterais, marcados pela falta de solidariedade. Neste momento de grave crise econômica, crise do sistema capitalista, no qual aparentemente não se apresentam sinais de solução, temos sérias consequências também nas questões humanitárias. Falar de alteridade nos tem-
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NÃO HÁ PREOCUPAÇÃO REAL COM A COLETIVIDADE, SOMENTE COM O INTERESSE DE CADA UM. AS DISPUTAS POLÍTICAS TORNARAM-SE MUITO MAIS ALGO PRÓXIMO DE TORCIDAS DE FUTEBOL, INCLUINDO O ÓDIO AO TORCEDOR DO OUTRO TIME, DO QUE ACEITAÇÃO DESSA OU DAQUELA PROPOSTA pos atuais é sempre um desafio, pois há séculos vivemos a cultura dos valores do individualismo. O instinto de auto-proteção e sobrevivência, algo como o conatus, de Baruch de Spinoza (1632 – 1677), parece ganhar força e reforçar o egoísmo. É fato, o individualismo tornou-se um va-
lor per si na sociedade moderna e contemporânea. A própria estrutura dessa sociedade limitou as possibilidades de nos voltarmos ao bem da coletividade. A ideia de bem comum deixou de ser um valor, e mesmo as discussões sobre política envolvem somente “a minha opinião”. Não há preocupação real com a coletividade, somente com o interesse de cada um. As disputas políticas tornaram-se muito mais algo próximo de torcidas de futebol, incluindo o ódio ao torcedor do outro time, do que aceitação dessa ou daquela proposta (e se analisarmos friamente, muitas vezes as próprias propostas políticas são pouco conhecidas pelos “torcedores”, apegando-se a preconceitos no seu rechaço às demais ideologias). A “surdez” e a “cegueira” diante do outro, a negação do outro, expressa no exemplo citado acima, é o ponto central do individualismo. Tornou-se um clichê, principalmente em redes sociais, o menosprezo das reivindicações de grupos desprivilegiados da sociedade, as minorias, chamando-as da forma pejorativa de “mimimi”! Feminismo, crítica ao racismo,
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ataque à cultura de estupro, denúncias de homofobia, esses são os exemplos do chamado “mimimi”, geralmente sendo denominados assim por membros de grupos historicamente privilegiados, e não pelos membros dos grupos minoritários. É a negação do outro a partir da desvalorização de suas reivindicações, vendo-as como amenidades, sem real importância. Em outras palavras, é tornar o outro menos humano, é não reconhecer a humanidade do outro, menosprezando suas reivindicações e necessidades, afinal, não são importantes. A ideia central do presente artigo é mostrar como tempos de crise, como o atual, tal qual as décadas de 20 e 30 do século passado, acirram essa negação do outro. Grupos privilegiados desprezarem a luta dos demais e criam guetos. É notória tal situação no Brasil hoje, na qual o discurso preconceituoso e discriminatório em todas as suas faces (racismo, machismo, xenofobia, homofobia) ganha força e é proclamado de forma despudorada, muitas vezes os seus defensores escorando-se na “liberdade de expressão”. As diferenças naturais tornam-se motivo para nos voltarmos uns contra os outros, tornando-nos “inimigos naturais” de quem nunca nos causou mal algum, mas que, por ousar reivindicar direitos que não contemplam meu grupo, deve ser calado. Thomas Hobbes (1588 – 1679) torna-se um fio condutor para a reflexão do presente artigo, afinal, o filósofo se destaca por defender o egoísmo natural do homem. “O homem é o lobo do homem”. Só uma grande força repres-sora pode apaziguá-lo. O egoísmo é a base do individualismo, por isso somos incentivados a sermos egoístas, e cada vez mais nos fecharmos, negando o outro. A crise econômica é cenário propicio para tal fato, afinal, “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro” e a “guerra de todos contra todos” acirra-se na carestia de recursos econômicos para atender as necessidades de todos.
Thomas Hobbes: o homem é naturalmente egoísta
HOBBES E A VISÃO CONTRATUALISTA DE ESTADO
O pensamento de Thomas Hobbes representa uma novidade no cenário do pensamento político. Enquanto os gregos viam com bons olhos a natureza humana, defendendo que as associações humanas surgiam do interior do altruísmo humano (Aristóteles [384 – 322 a.C.] destaca-se nessa visão nas primeiras páginas de sua obra Política), Hobbes, já vivendo na Idade Moderna, é um dos expoentes do individualismo, reforçando a ideia do egoísmo natural do ser humano. O Estado Natural, fase da história da humanidade supostamente anterior a Hobbes e à civilização, é marcado pelas disputas e pela “lei do mais forte”. Os homens viviam em constante medo uns dos outros e não existe segurança no Estado de Natureza. A saída para isso era o pacto.
VISÃO DE PACTO, DEFENDIDA POR HOBBES, SERÁ A BASE DA CONCEPÇÃO MODERNA DE PODER, DE POLÍTICA, DE ESTADO. NEM MESMO JEAN-JACQUES ROUSSEAU CONSEGUE SAIR DESSE CONCEITO www.portalespacodosaber.com.br •
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A crise da alteridade agrava a desigualdade social, ao mesmo tempo que crise e disparidades econômicas também a produzem
rem os homens, muitas vezes os colocam em conflitos, e sem um poder regulador (no caso de Hobbes, um poder repressor) não há qualquer segurança. É interessante notar a ideia do egoísmo dentro da sociedade na visão hobbesiana. Os indivíduos não conseguem chegar a nenhum tipo de acordo, a não ser à vontade de manterem suas vidas. Daí o poder externo, a ideia de fazer uma espécie de procuração dando plenos poderes ao líder (ou líderes) como mediador de conflito. Não há nenhuma tentativa de diálogo visando chegar em um bem comum, em um acordo para atender as necessidades de todos. Tal fato torna inclusive a
visão de política muito simples: basta entregar o poder para outro, e vivamos o como é possível, na certeza de que nossas vidas estarão garantidas pela tutela do Leviatã. O egoísmo impede qualquer diálogo. Hobbes parece ter acertado quando olhamos nossa sociedade. Como foi levantado anteriormente, em um momento de crise como o atual, o egoísmo e o fechamento em si mesmo dos indivíduos parecem prevalecer em relação às causas sociais e às necessidades de grupos específicos. Pior ainda é quando vemos a busca do Estado como elemento de tutela da segurança. O único direito, pensando numa socieda-
É INTERESSANTE NOTAR A IDEIA DO EGOÍSMO DENTRO DA SOCIEDADE NA VISÃO HOBBESIANA. OS INDIVÍDUOS NÃO CONSEGUEM CHEGAR A NENHUM TIPO DE ACORDO 60 •
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A visão de pacto, defendida por Hobbes, será a base da concepção moderna de poder, de política, de Estado. Nem mesmo Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), defensor da ideia da bondade natural do homem, consegue sair desse conceito, pois sua visão de organização social também parte da necessidade de um contrato, tendo a bondade natural se perdido com a civilização e a desigualdade social. O pacto ou contrato comprova a impossibilidade de se viver em sociedade harmonicamente, pacificamente, mas sim, a vida em sociedade traz em si um grau de violência, no qual cada um abre mão de parte de sua liberdade. Para Hobbes, a perda da liberdade é praticamente total, pois ou se perde a liberdade, ou se perde a vida. É marca do contrato modernista o egoísmo. Os homens não conseguem viver naturalmente em harmonia. Retoma-se aqui o zeitgeist moderno do individualismo, no qual as necessidades individuais são importantes, e o coletivo só é pensado por ser uma necessidade individual. Surge o contrato pois é a única forma de se garantir a segurança individual. Não há garantia de vida, de integridade física, em uma sociedade na qual todos têm pleno uso da liberdade, sendo essa tingida pelas tintas do egoísmo. Como diz Hobbes, as paixões, ao toma-
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de como a brasileira, a ser atendido é o direito à vida. O resto não é direito, é conquista. Reforça-se aqui, junto ao individualismo, o discurso da meritocracia, no qual quem não tem suas necessidades atendidas, satisfeitas, não é um problema da sociedade, mas sim um problema individual, da falta de esforço dos desprivilegiados. A grande disputa travada hoje é aquela entre os sem-direitos (indo desde os direitos mais elementares, os materiais, até os mais subjetivos, como questões de felicidade e liberdade de relacionamento) e os privilegiados. É a luta de classes, como preconizada por Karl Marx (1818 – 1883), mas não só, afinal, não se trata só de ricos x pobres. O conflito se torna mais amplo, pois há muitas ramificações nos grupos oprimidos e desprivilegiados. Negros têm protagonizado lutas históricas na América, e a conquista de direitos como cotas para o ingresso em universidades desperta o ódio dos não contemplados por esse direito. Homossexuais buscam a conquista de direitos como o do reconhecimento de união homoafetiva, despertando a fúria de grupos heterossexuais, principalmente ligados a correntes religiosas fundamentalistas. Mulheres lutam contra o machismo reinante em uma socie-dade patriarcal, atraindo contra si o rancor daqueles que ainda preconizam para elas o lugar destinado às atenienses imortalizadas por Chico Buarque (belas, recatadas, do lar e submissas). A voz desses grupos, entre tantos outros, deve ser calada, pois os privilegiados desejam manter seus privilégios. É a negação do outro, a negação do diálogo. O contrato pensado por Hobbes prevê segurança apenas. Querer mais é extrapolar limites do que a sociedade deve dar, do que é direito natural, do qual o Estado é muito mais um administrador de algo já dado pelo nascimento. Um dos pontos que vale a pena ressaltar no pensamento hobbesiano é a função do Estado como promotor de violência, uma vez que é sua obrigação primordial garantir a segurança dos indivíduos. Em outras palavras, o máximo rigor deve ser aplicado, de acordo com o filósofo, quando surgirem infratores. O pacto prescreve essa ideia central, do Estado como o defensor e garantidor da integridade física dos contratantes. A partir dessa ideia, há no pensamento de Hobbes um monopólio do uso da violência do Estado em relação aos cidadãos, para que estes não se voltem uns contra os outros. Não à toa,
OS PRIVILEGIADOS DESEJAM MANTER SEUS PRIVILÉGIOS. É A NEGAÇÃO DO OUTRO, A NEGAÇÃO DO DIÁLOGO. O CONTRATO PENSADO POR HOBBES PREVÊ SEGURANÇA APENAS. QUERER MAIS É EXTRAPOLAR LIMITES DO QUE A SOCIEDADE DEVE DAR, DO QUE É DIREITO NATURAL, DO QUAL O ESTADO É MUITO MAIS UM ADMINISTRADOR teorias como a de Hobbes são a base para o autoritarismo, sendo uma das bases para o Absolutismo, já combalido na Inglaterra que o filósofo vivenciou, marcada pela Revolução Gloriosa (1688 – 1689). Do pensamento hobbesiano, fica então a ideia central de que o outro é sempre um inimigo, seja potencial, seja declarado. Liberdade é sempre um fator negativo na sociedade, e quanto mais liberdade os homens tiverem, maior será o risco de uma sociedade ser lavada no sangue consequente da “guerra de todos contra todos”. Como solução, Hobbes propõe a repressão do Estado, ou seja, a substituição da “guerra de todos contra todos” pela guerra do Leviatã contra todos.
A CRISE DA NEGAÇÃO DA ALTERIDADE
A crise da negação da alteridade, podemos concluir da reflexão feita até aqui, tem dois motivos principais: o individualismo histórico, arquitetado e incutido em nossa cultura por séculos, e a crise econômica, levando essa negação ao seu ponto alto. Em tempos de crise, a negação da alteridade atinge seus picos, fazendo eco aqui, nesse cenário de crise, o mesmo problema levantado por Hobbes no século XVII, o medo de perder o seu para o outro. Sendo os direitos de minorias garantidos a partir de investimentos governamentais em políticas públicas, os não contemplados, por não terem necessidades tão www.portalespacodosaber.com.br •
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A luta de classes, como preconizada por Karl Marx (1818 – 1883), fica evidente nesse cenário. Mas não se trata só de ricos x pobres 62 •
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A CRISE DA NEGAÇÃO DA ALTERIDADE, PODEMOS CONCLUIR, TEM DOIS MOTIVOS PRINCIPAIS: O INDIVIDUALISMO HISTÓRICO, ARQUITETADO E INCUTIDO EM NOSSA CULTURA POR SÉCULOS, E A CRISE ECONÔMICA, LEVANDO ESSA NEGAÇÃO AO SEU PONTO ALTO beneficiados com o programa, de forma especial os nordestinos, são os párias, vivendo da caridade do governo, sugando os impostos pagos por quem realmente se esforça, os trabalhadores honestos. Não é preciso dizer aqui o quanto a visão é equivocada (ainda mais levando em consideração o valor investido em programas de transferência de renda, muito abaixo das quantias bilionárias de gastos do governo com juros da dívida pública). Volta-se aqui, diante dessa situação, à negação do outro. “Nordestino não é gente”, “esses vagabundos que vivem de bolsa-miséria”! Não há nenhum tipo de diálogo, nem de tentativa de compreensão da realidade daqueles que são atendidos pelo programa. Só um julgamento precipitado, baseado em informações do senso comum. Julgamento este que se torna a base, no senso comum, de discursos de negação dos desvalidos e desfavorecidos, vendo qualquer possibilidade de solucionar a desigualdade social ou a situação da falta de direitos como um erro, uma medida equivocada por parte do Estado, afinal, essas pessoas desvalidas e desfavorecidas não são gente, não são seres humanos. É o discurso de negação do outro. A negação do outro tem tomado proporções assustadoras no decorrer dos últimos anos. Como a crise vai tornando a vida mais difícil para muitos, devido ao aumento do desemprego, à diminuição do poder aquisitivo, culpados vão surgindo a todo momento. E a luta por direitos vai se tornando, no senso comum, um “mamar nas tetas do governo”. Quem
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urgentes, veem nos que são atendidos por esses investimentos como seus potenciais inimigos. Não é difícil entender essa questão. Ao compararmos a situação atual com a da Alemanha nazista, os ju-deus foram em grande parte hostilizados, pois a propaganda do regime fez dos mesmos os usurpadores da riqueza dos verdadeiros alemães. Além de terem enriquecido às custas do povo alemão, da exploração dos nativos, da raça mais evoluída, ainda foram responsabilizados pela derrota na Primeira Guerra Mundial. A consequência deste discurso pernicioso foi a negação do judeu, no qual o mesmo passa a ser visto como uma espécie de sub-humano, indigno de di-reitos e, portanto, alguém a ser exterminado. O discurso de diminuição de um ser humano devido a ser visto como um parasita é extremamente pernicioso, pois é a base para as doutrinas de higienização social, de eugenia, enfim, na base, de extermínio dos grupos parasitários. Podemos pensar, a partir desta lógica, em beneficiários de programas de transferência de renda, como o Bolsa-Família. Tornou-se senso comum que uma das causas da crise econômica é a “caridade com chapéu alheio” feita pelo governo no decorrer desses últimos anos, e os pobres
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A LUTA POR DIREITOS VAI SE TORNANDO, NO SENSO COMUM, UM “MAMAR NAS TETAS DO GOVERNO”. QUEM TRABALHA E SE ESFORÇA TEM SEU LUGAR AO SOL
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trabalha e se esforça tem seu lugar ao sol, mas quando o Estado interfere, nem sempre a meritocracia age justamente. Afinal, torna-se injusto um negro, por exemplo, entrar na universidade pública só por ser negro (como se o sistema de cotas obrigatoriamente colocasse na universidade quem se beneficia dele). Diante desse cenário, qualquer possibilidade de valorização da alteridade torna-se impossível. A disputa toma o lugar da solidariedade ou do reconhecimento da fragilidade social de outros grupos. E obviamente, o sistema vai se alimentando destas contradições e disputas, pois, a divisão dos grupos e as inimizades, ao se cons-
truírem e se imporem entre eles, torna mais fácil a manutenção do mesmo, e o pior, assegura que os beneficiados serão os mesmos de sempre. A possibilidade de uma mudança do sistema a partir de uma lógica de solidariedade e de coletividade, a partir do reconhecimento do outro como aquele que é digno de direitos, e por não tê-los deve ter sua voz sendo ouvida e suas reivindicações sendo atendidas, torna-se nula. Da desumanização, da negação do outro, abre-se o espaço para a eliminação do diferente. A negação do ser do outro é um problema sério para a superação da crise. O outro não tem valor para mim, assim como eu
também não tenho valor para o outro. Voltamos aqui ao conceito hobbesiano de “guerra de todos contra todos”, e a guerra se dá na negação de direitos ao outro, principalmente quando esse outro faz parte de outro grupo naturalmente diferente do meu. É um processo de formação de guetos, nos quais fatores religiosos, políticos, raciais, de gênero, são base para a separação. Quem faz parte do outro gueto, não é ser humano. A sociedade não é um espaço para a convivência pacífica, na qual os conflitos podem ser resolvidos por meio de pactos, de acordos, visando atingir o bem-estar de todos e a justiça social. Conflitos são base para intensificar esses guetos, e o diferente é o inimigo sempre. No máximo, o diferente pode ser aceito se pensa com a mentalidade dos privilegiados. Se renega os direitos que passam a ser reconhecidos e garantidos por políticas afirmativas e de cunho solidário. O negro anti-cotas, a mulher “machista”, o pobre “meritocrata”, esses podem atravessar as muralhas do gueto. Tornam-se inclusive úteis, para negar qualquer tipo de preconceito, e reforçar a lógica da meritocracia e individualista. Há uma pseudo-aceitação do outro, nesse caso particular, mas não a verdadeira aceitação do outro, nas suas necessidades e em seus anseios. O outro, o diferente, vale, desde que pense como eu e confirme o
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defesa do darwinismo social. Os fracassados são os únicos culpados pelo seu fracasso. Vale ressaltar, um dos problemas levantados pelos defensores do pensamento conservador é exatamente o problema levantado por Hobbes, a falta de segurança. No caso do Brasil o pensamento conservador geralmente vem associado a uma defesa de políticas repressoras, como a exaltação do período de ditadura militar (1964 – 1985). Esse seria o período histórico dourado, no qual havia ordem e segurança. A violência e a criminalidade como consequência da falta de direitos nunca são aceitas. Somente é aceita, inclusive legitimada e incentivada, a violência por parte do Estado contra aqueles que não se esforçam, mas sim caem na “vida fácil’ da criminalidade, ou na “vagabundagem” de programas assistenciais. Não se percebe a necessidade de se garantir direitos a todos, justiça social, como fator primeiro na solução da criminalidade. A solução é sempre o “bandido bom é bandido morto”. Na mentalidade brasileira, repressão, leis mais rígidas, abolição de direitos humanos, torna-se a única solução. Desde a República Velha questões sociais são vistas como “caso de polícia”. Há a forte defesa do Estado Mínimo, pois na mentalidade nacional
políticas sociais só servem para “sustentar vagabundo”, porém, ao mesmo tempo há a forte defesa da repressão por parte das forças do Estado. Reforça-se aqui a falta de reconhecimento do outro como um igual a mim, devendo ter sua vida respeitada. Pelo contrário, impõe-se a lógica punitiva, tocando de perto a necessidade de vingança. A vingança é a base da justiça no senso comum brasileiro. Errou, deve pagar, e se possível, com a própria vida. Principalmente quando esse outro não pertence ao meu grupo, ao grupo dos privilegiados e esforçados. Interessante notar que a lógica da punição, consequência da negação do outro, demonstra como violência gera violência. Quem rouba, seja para atender suas necessidades justificáveis, seja para atender vontades criadas pela propaganda e pelos padrões de felicidade e de aceitação (ou seja, respectivamente, por exemplo, quem rouba alimento num mercado ou quem rouba um celular) deve pagar, e não raro defende-se, com a própria vida. Mais uma vez demonstra-se aqui a luta de classe, com a diferença de que os privilegiados, na busca de manter suas “conquistas”, legitimam a sua reação, usando o Estado como instrumento de punição na sociedade. A reação dos privilegiados é legal, mesmo sendo a lógica da desigualdade,
NEGAR DIREITOS A ALGUNS GRUPOS DEVIDO A ERROS OU DEFENDER PUNIÇÕES DESUMANAS SÓ MOSTRA QUE EM NOSSA MENTALIDADE NÃO HÁ VALORIZAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA 64 •
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mundo defendido por mim. Tal fato, vale ressaltar, ainda torna a luta por direitos mais difícil, pois os grupos contrários a eles dirão que nada disso é necessário. Muitas vezes até dirão direitos aos desvalidos são formas de acentuar uma rivalidade e uma disputa sem sentido, ressaltando o preconceito e a discriminação. Não é o preconceito que vem antes da luta por essa lógica, mas a luta quem gera o preconceito. O discurso conservador, tendo por base a negação do outro, o não reconhecimento do outro como ser humano, por isso indigno de direitos, traz como consequência a legitimação da violência. Eis um dos problemas maiores da negação do outro. Se o outro não é um como eu, se eu não consigo me colocar no lugar dele, se eu não consigo reconhecer e nem entender suas dores e suas necessidades, sua vida é descartável. Ainda mais porque esse outro, ao exigir direitos, ao lutar por uma sociedade menos dura pra si e aos membros de seu grupo social, já é por si um fracassado. Ser humano é necessariamente ser vencedor, pelo menos em algum grau. Quem batalha para ter sua vida confortável, sem reclamar e exigir nada da sociedade merece viver. Os outros não. Quem exige interferência externa à lógica econômica é quem “fica de mimimi”. É a
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um dos principais motivos da violência, uma consequência de uma sociedade egoísta. Medidas punitivas são necessárias, porém, não são o ponto final para a solução dos problemas dos desprivilegiados. Pelo contrário, a solução dos problemas sociais, inclusive do problema de segurança, se dará através da ampliação de di-reitos. Esta ampliação passa pelo reconhecimento da dignidade do outro, e assim pelo reconhecimento de suas reivindicações como válidas. Daí a importância dos direitos humanos, pois a ideia que perpassa os 30 artigos da Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) traz por base a dignidade humana, a dignidade de todo ser humano. Negar direitos a alguns grupos devido a erros ou defender punições desumanas (pena de morte, prisão perpétua e tortura) só mostra que em nossa mentalidade não há nenhuma valorização da dignidade humana. Apenas a lógica da vingança no lugar de justiça. As reivindicações de grupos sociais não devem ser vistas como caso de polícia, como foi proclamado na República Velha, ou como “mimimi” tão alardeado atualmente. Por isso, a necessidade de se quebrar a lógica individualista e egoísta, buscando valorizar o outro. Há a necessidade de uma outra lógica, a lógica da alteridade. Só pelo reconhecimento do outro, do diferente, do desigual, do membro de outra classe ou de outro grupo social, como um ser humano, haverá uma transformação mais profunda da sociedade. A questão ideológica tem forte peso aqui, pois há diversas for-
A NEGAÇÃO DO SER DO OUTRO É UM PROBLEMA SÉRIO PARA A SUPERAÇÃO DA CRISE. O OUTRO NÃO TEM VALOR PARA MIM, ASSIM COMO EU TAMBÉM NÃO TENHO VALOR PARA O OUTRO. VOLTAMOS AQUI AO CONCEITO HOBBESIANO DE “GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS”, E A GUERRA SE DÁ NA NEGAÇÃO DE DIREITOS AO OUTRO
mas das classes privilegiadas fazerem outros membros de classes sem direitos se voltarem contra reivindicações de seus próprios interesses. Não são só os privilegiados os detratores dos direitos humanos, mas muitas vezes aqueles que não são atendidos por eles também. Quanto mais fragmentados estivermos, mais difícil a organização para uma verdadeira transformação social. Há a necessidade de novos paradigmas para a crise de valores na qual a humanidade se encontra.
Urge, em nosso tempo, repensar o lugar do outro e a construção das relações com esse outro, principalmente quando o outro se encontra em grupo diferente do meu e possui demandas e necessidades diferentes e mais urgentes que as minhas. Talvez estejamos a anos-luz de distância do que realmente precisamos para tornar nossa sociedade mais humana, porém, até que ponto pretendemos ir para percebermos que estamos caminhando para a auto-destruição?
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por andré bueno
Buda Amitabha
Na China antiga, havia um monge 66 •
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budista que atendia ao público, ouvindo seus problemas e, ocasionalmente, dando alguns conselhos. Um dia, adentrou o templo uma senhora, que queria muito reclamar de seu marido: - Ele não presta, não trabalha, só dá problemas, é desagradável, inútil... Após passar o tempo de que dispunha, um discípulo do monge tocou pequeno sino, que marcava o final da consulta. O monge, então, dirigiu-se a ela e disse: - Você tem razão. Volte para casa, pense em tudo que disse. Ore, medite, e que Buda Amitabha a abençoe. Logo a seguir, entrou um homem – não por acaso, o marido da senhora que acabara de sair – e começou a desfiar suas queixas: - Ela só reclama, é antipática, cobra tudo, nada está bom, é nervosa, implicante... Soara o final de seu tempo, e o monge lhe falou: - Você tem razão. Volte para casa, pense em tudo que disse. Ore, medite, e que Buda Amitabha a abençoe. Quando aguardava novo visitante, foi surpreendido pelo discípulo que marcava o tempo, que o interrogou:
- Mestre, que tipo de conselho você dá aqui? Eles vêm aqui, reclamam um do outro e você não diz mais nada, dando razão para os dois? Ao que o monge respondeu: - Você tem razão. Volte para casa, pense em tudo que disse. Ore, medite, e que Buda Amitabha a abençoe. Encerrando nossa série, uma pequena história do Budismo chinês nos ilustra o papel do ‘terapeuta’, no processo de descoberta dos problemas que afetam o consulente. Diferente das historietas antes apresentadas, temos um monge que ouve seus ‘pacientes’ e lhes dá um conselho que, aparentemente, seria irrelevante: ‘Você tem razão. Volte para casa, pense em tudo que disse. Ore, medite, e que Buda Amitabha a abençoe.’ Notemos a sutileza profunda da recomendação: uma pessoa perturbada não costuma ouvir conselhos. Tão centrada que está em si mesma, em seus problemas e questões próprias, ela dificilmente consegue se colocar no lugar do outro, mantendo o procedimento já aventado de externalizar a ‘culpa’. Ainda que o paciente seja capaz, em
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is a quinta de uma série de cinco colunas cujo objetivo foi mostrar como sábio chinês da antiguidade – o sheng ren 聖 人– era uma espécie de terapeuta primitivo da China Antiga. A analogia não é despropositada: primeiro porque, em chinês, a palavra “sábio” – sheng – significa ‘aquele que escuta’. Sábio, pois, é aquele que escuta, pondera, e faz entender ao consulente – seja por meio do ‘sábio conselho’, seja por meio do estímulo a reflexão – como ele poderia encontrar uma ‘cura’ por suas próprias palavras. Nas histórias que analisamos, vimos casos – não necessariamente verídicos – mas que ilustram o desejo dos intelectuais chineses de serem capazes, como ‘médicos’, de processarem a ‘recuperação’ de seus pacientes [e nem sempre foram bem sucedidos]. Nesse sentido, a busca da metáfora – tão cara ao pensamento chinês, que faz uso amplo da analogia e da associação como um procedimento epistemológico indutivo – ressalta o intento de sondar o íntimo do ser em busca da resposta necessária e possível.
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outro momento, de ‘internalizar’ a ‘culpa’, esse movimento só desloca o problema do espaço [do outro ao eu], mas mesmo assim, não contribui para debelá-lo ou resolvê-lo. Outra história budista ilustra bem essa condição; quando perguntando sobre a existência de Deus, Buda teria respondido que ‘sim’ para uma pessoa; ‘não’ para uma segunda, e ‘talvez’ para uma terceira. Ananda, um de seus discípulos preferidos, questionou-o sobre a diferença das respostas, ao que Buda lhe respondeu: ‘alguns alcançam o conhecimento afirmando o que sabem; outros, negando o que sabem; e outros, ainda, pela dúvida’. Isso implica dizer que, em dado momento, o consulente não é capaz mesmo de assimilar uma resposta. O instrumento da autodescoberta seria o único capaz, de forma plena, de fazer com que o indivíduo compreenda, ele mesmo, as suas ânsias, angústias e tormentos. O Budismo indiano precisou se adaptar ao pensamento chinês para sobreviver, continuar e se expandir. Dessa experiência de hibridismo, o Budismo chinês construiu experiências fascinantes e profundas, tais como a escola Chan [em japonês, Zen], cuja ênfase na meditação simplificava muitas das práticas ascéticas e devocionais presentes nesse movimento religioso. O Chan renovara a ideia de
interiorização e da autocontemplação – que já existia há séculos entre os chineses, mas que o Budismo desenvolvera com técnicas aperfeiçoadas de concentração, além de uma vasta experiência ‘clínica’ no assunto. Contudo, uma última consideração nessa história aponta para a importância de um sentimento sagrado na prática búdica. ‘Que Buda Amitabha o abençoe’ nos mostra que estamos inseridos num mundo mais amplo do que nossos sentidos imediatistas podem nos propor, e governando por um conjunto de princípios naturais e inteligentes – Buda para os Budistas, o ‘Céu’ ecológico dos confucionistas, ou os deuses do Daoísmo – cuja função seria, antes de tudo, a preservação harmônica da vida e a libertação da alma de suas angústias e pressões. Assim sendo, a busca do ‘Eu’, e sua constatação, conectam a ‘natureza original’ e a ‘divindade interior’ do indivíduo com o universo infinito que o circunda, proporcionando um estado de equilíbrio A conclusão dessa série de histórias nos mostra que os métodos diversos – o desprendimento daoísta, o cultivo da mente confucionista ou a meditação budista – apesar de suas diferenças metodológicas, convergem para uma única condição fundamental: a sublimação do ser, que instaura a saúde harmônica e durável no íntimo da alma.
André Bueno é professor adjunto na UERJ. Atua nos temas: Pensamento chinês, Confucionismo, História e Filosofia antiga, diálogos e interações culturais Oriente-Ocidente. É membro da Ass. Europeia de Estudos Chineses e da Ass. Europeia de Filosofia Chinesa; membro do grupo Leitorado Antiguo [UPE]; membro do Alaada; membro da Rede Iberoamericana de Sinologia [Ribsi]; membro da International Confucian Association; membro do Laphis/ Unespar.
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PARA REFLETIR A velhice
Autora: Simone de Beauvoir Editora: Nova Fronteira 608 páginas
Simone de Beauvoir: velhice e finitude FILOSOFIA, LITERATURA E ESTÉTICA
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autora francesa. Um ponto de saída a considerar sobre o livro: publicado pela primeira vez em 1970 na França, traz conceitos que envolviam a velhice à época e que não eram, de longe, os mesmos de hoje. E isso é fundamental. Podemos, durante a leitura, tecermos comparações de quanto o mundo mudou, na verdade, em tão pouco tempo, visto que a expectativa de vida era outra. O livro possui, em termos de pesquisa histórica, uma precisão quase cirúrgica. Mas com a beleza e a singularidade da escritora. Um ensaio em que sobram sua capacidade de síntese, aliada à capaci-
dade de análise. Lembrando que o ensaio é uma modalidade textual em que a liberdade escritural é, acima de tudo, o que vai determinar o estilo. Aquilo de mais autoral e singular que um texto tem a oferecer. Na primeira parte do livro temos um quadro extremamente importante em que Simone de Beauvoir traça, sempre remetendo a reflexões, o que foi a velhice nas diversas etapas da humanidade, em inúmeras culturas. Com isso, temos um quadro singular do que o tempo e a memória representam para a diversidade das sociedades. A pluralidade das perspectivas faz com possamos rever
UM PONTO DE SAÍDA A CONSIDERAR SOBRE O LIVRO: PUBLICADO PELA PRIMEIRA VEZ EM 1970 NA FRANÇA, TRAZ CONCEITOS QUE ENVOLVIAM A VELHICE À ÉPOCA E QUE NÃO ERAM, DE LONGE, OS MESMOS DE HOJE
iMageNs: Divulgação e arquivo pessoal
Certo dia (ou incerto?) somos surpreendidos, de alguma forma, pelas obscuras vias do anúncio de que nossa vida, realmente, vai ter um fim. São os sinais mais claros e objetivos de que a finitude está à espreita. Quando crianças os dias nos parecem mais longos e o tempo possui uma conotação de lentidão. As horas são prolongadas por nossos anseios do presente (quase absoluto) que regem a infância. Na adolescência o tempo aponta, por conta das contradições que a envolvem, uma indolência sem precedentes. Insatisfações e contradições prolongam uma transição que parece não ter fim. A juventude anuncia um tempo mais cintilante e que possui um encanto jamais experimentado. Podemos optar e sonhar com mais liberdade. Projetos futuros nos absorvem. Finalmente, a velhice nos espreita e aponta, perversamente, para a nossa inescapável transitoriedade. A Velhice, de Simone de Beauvoir, Editora Nova Fronteira, relança,mais um obra prima da ciência&vida
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a concepção contemporânea do que significa envelhecer. Talvez a parte mais rica do livro seja a segunda. Simone de Beauvoir traça uma dimensão da velhice em que coloca a posição de muitos pintores e escritores, como por exemplo: “Da Vinci, aos 60 anos, fez de seu rosto uma extraordinária alegoria da velhice; a torrente da barba e dos cabelos, a moita das sobrancelhas indicam uma vitalidade intacta e mesmo impetuosa; os traços são esculpidos pela experiência e pelo conhecimento; são os de um homem chegado ao apogeu de sua força intelectual, e que se situa além da alegria e da tristeza; está desiludido, à beira da amargura, sem, entretanto, entregar-se. Rembrandt, que durante toda a sua vida fixou na tela diversos rostos, nos lega, em seu último retrato, uma espécie de testamento.” Com tais reflexões a autora busca enriquecer as fontes históricas que geralmente são frias e seguem uma rígida metodologia. A autora é um ser livre. Uma escrita que nos lembra que os “rigores” acadêmicos, tão em moda, apenas deixam as pesquisas, em se tratando de escrita, iguais e insípidas. Subtraindo a sedução. O ensaio por definição pode trilhar por onde quer que seja sem perder o rigor e, sobretudo, a inventividade. Toda a obra é, simplesmente, atravessada por excelentes questionamentos propostos pela autora: “Existir, para a realidade humana, é temporalizar-se: no presente, visamos o futuro através de projetos que ultrapassam nosso passado, no qual recaem nossas atividades, imobilizadas e carregadas de exigências inertes. A idade modifica nossa relação com o tempo; ao longo dos anos, nosso futuro encolhe, enquanto nosso passado
A AUTORA É UM SER LIVRE. UMA ESCRITA QUE NOS LEMBRA QUE OS “RIGORES” ACADÊMICOS, TÃO EM MODA, APENAS DEIXAM AS PESQUISAS, EM SE TRATANDO DE ESCRITA, IGUAIS E INSÍPIDAS vai se tornando pesado. Pode-se definir o velho como um indivíduo que tem uma longa vida por trás de si, e diante de si uma expectativa de sobrevida muito limitada. As consequências dessas mudanças repercutem umas nas outras para gerar uma situação, variável segundo a história anterior ao indivíduo, mas da qual podemos destacar constantes. “ Diferentemente dos animais o homem está imerso no tempo. Portanto, temporaliza-se à medida que possui consciência de seu passado e pode projetar seu futuro. Isso é uma condição humana. Somente humana. A partir disso, a escritora francesa traz importantes considerações a respeito da memória. Entre tantas coisas que poderiam ser citadas, lembra que a velhice quando não aceita, (ocorre com a maioria das pessoas), a tendência é: aquele que a recusa vive se alimentando do passado. Ou se fixa, de forma veemente, nos momentos de juventude. Na verdade, gostaria que voltassem
para o presente. Somente aqueles que possuem um projeto para o futuro decolam do passado. Encaram com naturalidade a velhice porque possuem planos. As pessoas que possuem um futuro a ser cumprido, mesmo na velhice, encaram a passagem dos anos como um processo, embora doloroso, de forma mais natural. Além disso, ressalta que a memória é seletiva, hierarquizada. Reconhece, em si mesma, lacunas de memória, ou seja, fatos dos quais não se lembra mais, mesmo que tenham sido significativos para ela no passado. Ressalta, inclusive, que, muitas vezes, juntamos muitas imagens, de tempos diferentes, numa só. Muitas vezes ‘congelamos’ imagens. Algumas se tornam imutáveis. Pode-se lembrar, por exemplo, com frequência de um pai ou de uma mãe, sem alterar determinada imagem, deles, fixadas em nossa memória. O tempo e a memória são mecanismos que revelam, pouco a pouco, a relação de nossa forma, profunda, de existir e estar no mundo.
Ana Maria Haddad Baptista (A. M. H. B.) é mestra e doutora em Comunicação e Semiótica. Pós-doutora em História da Ciência. Pesquisadora e professora da Universidade Nove de Julho. Escreve sobre Literatura nestas páginas.
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Qual realidade? ARTES VISUAIS / REGISTRO A discussão sobre o caráter realista da pintura é antiga. Plínio, o Velho, em sua História Natural, nos conta do pintor Zêuxis (464 a. C. – 398 a.C.), citado por Platão no Protágoras, que em disputa com seu concorrente Parrásio teria pintado cachos de uvas tão perfeitas que passarinhos tentaram bicar as frutas. Então, não é de hoje, que o aspecto real do mundo tenta ser replicado na pintura. O quadro como janela do mundo terá seu momento de triunfo a partir da Renascença, atingirá seu apogeu com a pintura flamenga e se tornará um cânone com o academicismo. Neste trânsito, o injustiçado gênero denominado “natureza morta” permitirá aos pintores irem se livrando de temas históricos e mitológicos, a favor de um realismo que se debruça sobre objetos do cotidiano como vasos com flores, taças, animais de caça, utensílios de porcelana e de metal, tecidos, enfim, objetos reproduzidos com técnica quase fotográfica sem que nenhum discurso fora da própria pintura se intrometa. Interessa aqui somente a composição pictórica escolhida pelo artista dentro do retângulo da tela. O “arranjo” dessas naturezas mortas já indica uma forma de autonomia estética livre de qualquer narrativa. O termo “realismo” merece ainda um recorte histórico. A partir de Gustave Courbet e Manet, ele irá batizar um período da história da arte. E aqui, o termo “realismo” toma outra conotação. O 70 •
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movimento realista na pintura, em oposição ao romantismo, refere-se, antes de tudo, a um realismo social, deixando em segundo plano sua mera verossimilhança com o mundo externo. Daí o realismo ter sido um momento em que o expressionismo pôde aventurar-se no contexto social e na subjetividade da psicologia humana. Não é desse realismo social que fala a exposição “50 Anos de Realismo” do CCBB em São Paulo. O recorte desta exposição se dará a partir do “Fotorrealismo” ou “Novo Realismo” norte-americano até chegar à realidade virtual, passando pelo movimento “Hiper-Realista. Trata-se, portanto, da retomada da discussão do núcleo duro do realismo nas artes visuais. O que significa captar o real? Esta pergunta complicou-se na medida em que o próprio “real” começou a ser colocado em questão. Afinal, de que real estamos falando? Pergunta complicada, desde que a física clássica foi substituída pela física quântica ao postular que no cerne mesmo da matéria só existe campos de energia e, assim, tudo que era
sólido desmanchou-se em partículas que emergem desse vácuo quântico. Restou, então, considerarmos as coisas num prisma fenomenológico. As coisas tais como se apresentam para a consciência. Para a consciência elas parecem reais, sólidas e coloridas. Entretanto, chegou o tempo das imagens virtuais, dos games e da realidade aumentada. Novamente, o que a consciência agora vê não passa, na verdade, de algoritmos e pixels. Um jogador de games com suas luvas sensoriais e seus óculos 3-D, entretanto, tem completa interação com o que está a ver e sente-se plenamente imerso na ação da qual participa. Onde, então, está a realidade? Questionar isso é a intenção da exposição do CCBB. Então, aconselhamos o visitante a começar pelo subsolo da mostra (na contramão do que propõe a curadoria). É lá que está a nova esfinge a desafiar o real. A realidade virtual. Munido de óculos 3D entre literalmente na animação da artista da Alemanha Bianca Kennedy e sua banheira cheia de bolinhas transparentes e então descobri-
O MOVIMENTO REALISTA NA PINTURA, EM OPOSIÇÃO AO ROMANTISMO, REFERE-SE, ANTES DE TUDO, A UM REALISMO SOCIAL, DEIXANDO EM SEGUNDO PLANO SUA MERA VEROSSIMILHANÇA COM O MUNDO EXTERNO
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Divuklgação arquivo pessoal e shutterstock
Obras de Giovani Caramello, como esta, intitulada Nikutai, estiveram à mostra no CCBB
rá que essa banheira está repleta de imagens bizarras. Não eram só bolinhas de plástico. O real parece ter vários níveis no mundo dos algoritmos. Depois desse choque com o real virtual podemos ir para o trajeto do fotorrealismo, do hiper-realismo e todas as tentativas que tentaram enfrentar a realidade fenomenológica. Parece que houve uma desconfiança dos artistas plásticos do final dos anos 60 e anos 70 com relação à realidade fenomenológica. Eles a ampliam até torná-la fantasmagórica e utilizam-se da fotografia para criar climas quase surreais como se a realidade fosse alguma forma de sonho estranho onde estamos imersos e não podemos acordar. Mas, ao fim e ao cabo dessa exposição, a sensação estranha que permanece é que, na verdade, nunca soubemos o que seja o real onde vivemos. De certa maneira, os artistas plásticos sempre estive-
ram tentando nos alertar quanto a isso. Nós é que não prestamos atenção até o momento em que uma estranha realidade virtual passou a concorrer com nosso cotidiano. Talvez, como alguns andam a conjecturar, tudo não passe de pixels (o menor ponto que forma uma imagem digital), num grande programa computacional cosmológico. Afinal, a física quântica, igualmente, tem nos alertado de que o próprio espaço-tempo possa ser granulado, outra forma de falar em pontos de energia ou campos de forças mínimos conhecidos como “constante de Planck”; o famoso “quantum” de energia que batizou a física quântica diferenciando-a da física newtoniana. Decididamente a espessura do real está sendo colocada fortemente em suspeição. E a arte, assim como a filosofia, foram as primeiras a desconfiar da estrutura da realidade. Talvez, com boas razões.
50 ANOS DE REALISMO Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Rua Álvares Penteado, 112, Centro, SP. Esteve aberta ao público até 14/01/2019.
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O QUE A CONSCIÊNCIA AGORA VÊ NÃO PASSA, NA VERDADE, DE ALGORITMOS E PIXELS. UM JOGADOR DE GAMES COM SUAS LUVAS SENSORIAIS E SEUS ÓCULOS 3-D, ENTRETANTO, TEM COMPLETA INTERAÇÃO COM O QUE ESTÁ A VER E SENTE-SE PLENAMENTE IMERSO NA AÇÃO DA QUAL PARTICIPA
Walter Cezar Addeo (W. C. A.) é mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e membro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), escritor e roteirista. Escreve sobre Artes Visuais nestas páginas. waddeo@uol.com.br
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A terceira guerra, virtual FILOSOFIA DA MENTE E se um dia as superpotências mundiais resolverem iniciar uma terceira guerra mundial? Algumas pessoas afirmam que ela já está ocorrendo, com focos de violência crônica, guerras civis intermitentes, escassez de alimentos em algumas regiões e hordas migratórias. São múltiplas guerras embora com um objetivo comum: o genocídio. É uma grande guerra que envolve todas as outras, uma guerra que ninguém declarou, mas que todos os governos praticam. É preciso diminuir a população. Sem mencionar nunca a palavra “superpopulação” que é um tabu para as religiões e para aqueles que acreditam tanto no poder da justiça distributiva que a confundem com o milagre da multiplicação dos peixes. Se uma terceira guerra mundial fosse declarada, não saberíamos quem a começou e porque, quem a ganhou ou quem a perdeu. Seria uma guerra travada na infosfera, uma guerra de fake news. Sucumbiríamos confinados em um casulo de informações desencontradas e falsas. Tudo se passaria como a invasão de marcianos transmitida por Orson Welles que em 1938 conseguiu, com uma simples transmissão radiofônica, fazer com que a população dos Estados Unidos acreditasse estar sendo invadida por alienígenas. Aa transmissão durou menos de uma hora, mas o pânico se espalhou. O quarteirão no qual moramos seria arrasado por uma bomba. Mas 72 •
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a mídia continuaria declarando que estamos ganhando em outras frentes de batalha. Conhece a história do cidadão assaltado perto de casa, mas que, ao ligar a TV ouve que o crime no seu bairro diminuiu? Milan Kundera chamava isso de imagologia. A imagologia se sofisticou e se transformou em fake news. Na terceira guerra haverá uma tempestade de fake news, ainda maior do que a que temos agora. Tudo pode ser fotografado, filmado e distorcido indefinidamente. O real pode se transformar em fake. Consequentemente, o fake pode se transformar na única realidade de que dispomos. Todos poderão enganar a todos, seja para tranquilizar, seja para desassossegar. A era da informação acabou. Nunca vivemos um período no qual a troca de mensagens fosse tão rápida, eficiente e barata como nos últimos anos. Mas, paradoxalmente, as redes sociais estão nos arrastando para o
grau zero da informação e a sociedade da informação se transformou na sociedade do ruído. Quando todos falam, ninguém consegue escutar. Poluímos a infosfera com informações incorretas ou inúteis. Criamos a poluição mental e, agora, não sabemos como nos livrar dela. As fake news são um dos mais sérios problemas ecológicos da nossa era. Fábricas de fake news são um problema ecológico tão sério quanto a crescente emissão de C02 na atmosfera. Ele não será resolvido com meia dúzia de técnicas e com o desejo de ser um bom samaritano como apregoa Mark Zuckerberg, presidente do Facebook.
A IMAGOLOGIA SE SOFISTICOU E SE TRANSFORMOU EM FAKE NEWS. NA TERCEIRA GUERRA HAVERÁ UMA TEMPESTADE DE FAKE NEWS, AINDA MAIOR DO QUE A QUE TEMOS AGORA. TUDO PODE SER FOTOGRAFADO, FILMADO E DISTORCIDO INDEFINIDAMENTE
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Transformamos o mundo em um cenário cinematográfico, o real em imaginário e o imaginário em real. É a época do apocalipse, palavra que originalmente significa “revelação”, mas que, por conta de mistificações, passou a significar “o fim do mundo”. Poderemos ver tudo, ver todas as versões do mundo, tudo estará escancarado diante dos nossos olhos, mas não saberemos o que é real ou o que é fake. Um sonho dentro do qual
sonhamos e sabemos que estamos sonhando, mas do qual é impossível acordar. É o que os neurocientistas chamam de sonho lúcido, a forma mais sutil da alucinação. Ao longo da história, as sociedades humanas sempre definiram suas políticas da experiência, ou seja, determinaram o que pode ser percebido, sonhado ou dito na composição do que se convenciona serem estados normais de consciência. As
políticas da experiência têm o papel de uma espécie de tribunal que decide o que existe. Na Idade Média o mundo era habitado por milhares de bruxas e espíritos que eram considerados tão reais como nós. Hoje em dia, a política da experiência é decidida pelas tecnologias da consciência, que passaram a regular a percepção e a introspecção a partir de critérios determinados pela mídia, pela internet e pela psicofarmacologia.
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As fake news afetam radicalmente a cognição. No longo prazo, perderemos a capacidade de distinguir entre o real e o imaginário. Um animal que não sabe distinguir entre o real e o imaginário não sabe distinguir entre comida e veneno, entre o certo e o errado, na política, na ciência e na ética. É um animal em extinção. Um animal apocalíptico que morrerá pela fome que ele produziu, pela radiação que ele produziu ou pelas doenças que ele produziu. Mas é possível que a internet encolha muito antes de algo como uma guerra virtual acontecer. Há um grande gargalo que precisa ser enfrentado: a geração de energia. Atualmente, a quantidade de ener74 •
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gia para rodar os servidores internacionais que mantêm a internet funcionando lançam na atmosfera, anualmente, mais C02 do que o produzido pela aviação mundial. E, sem a energia limpa, o aquecimento global será acelerado. As consequências, todos já sabemos. Hoje em dia há no mundo 4 bilhões de pessoas sem acesso à internet. Quase 10% desse número são jovens e crianças. Será que teremos de migrar para as áreas pré-tecnológicas do planeta para sobrevivermos? Seremos os futuros migrantes que fugirão para essas paragens que, atualmente, correspondem às áreas pobres e semi-povoadas na Terra?
João de Fernandes Teixeira é paulistano, formado em Filosofia na USP. Viveu e estudou na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Escreveu mais de uma dezena de livros sobre Filosofia da Mente e Tecnologia. Lecionou na Unesp, na UFSCar e na PUC-SP.
arquivo pessoal e shutterstock
ATUALMENTE, A QUANTIDADE DE ENERGIA PARA RODAR OS SERVIDORES INTERNACIONAIS QUE MANTÊM A INTERNET FUNCIONANDO LANÇAM NA ATMOSFERA, ANUALMENTE, MAIS CO2 DO QUE O PRODUZIDO PELA AVIAÇÃO MUNDIAL
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A maldade já vimos demais Literatura e Filosofia na compreensão da vingança, a partir de O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë
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ão me interessa ser um idiota da objetividade. Quando leio Fogo Morto, estou no sertão, ressentido, batendo sola, e sou Mestre José Amaro; ou continuo no sertão, sendo atormentado pelos moleques: papa-figo papa-figo! E sou Capitão Vitorino Carneiro da Cunha. A literatura é algo muito sério, ou a engolimos e ela se torna parte de nós, ou é nada. Desde os dezesseis anos, tanto para o bem, quanto para o mal, sou Heathcliff: sei ser estoico e aguentar pancada, sei o que é o
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amor e a humilhação. Estou também atrás da porta quando Cathy diz: “se eu e Heathcliff nos casássemos, seríamos uns pobretões. Enquanto se eu me casar com Linton, poderei ajudar Heathcliff...” 1. Sou eu quem conversa com Nelly: - Nelly, mesmo que eu o derrubasse vinte vezes, isso não o tornaria menos bonito nem a mim menos feio. Como eu queria ter cabelo louro e pele clara, 1 BRONTË, 1971, p. 99
Daniel Lopes Guaccaluz é professor e escritor. Publicou alguns livros, mais recentemente os romances No céu com diamantes e Ménage a trois, ambos pela @link editora.
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CADA NARRATIVA FALA DE UM MODO DISTINTO PARA DIFERENTES LEITORES. AQUI PRETENDE-SE TRATAR APENAS DA VINGANÇA, EMBORA, PARA TANTO, SEJA PRECISO RECORRER A ALGUNS ACORDES INCIDENTAIS
Como diz Raul Seixas, em Segredo da luz: o ódio não é o real, é a ausência do amor. E, embora Eu-Heathcliff tenha encontrado algum amor pela acolhida do Sr. Earnshaw, o velho veio a falecer cedo, deixando-me só nas mãos de Hindley. E, embora tenha amado Catherine, embora tenha sido Catherine, fui traído – todo amor tem seu calcanhar de Aquiles – na noite em que ela foi mordida no pé pelo cão dos Linton e, quando voltou, cinco semanas depois, já era outra. Tinha esquecido a natureza, nossos campos em Yorkshire. Ela, Catherine, tinha sido domesticada pela cultura, enquanto eu, como um cão, encolhia-me sujo e descabelado, selvagem, natureza, num canto da casa. E ela riu, ó como riu! Se o ódio não é o real, é a ausência do amor, então sou essa ausên-
cia – menino achado sem idioma, sem pai, sem mãe. E, no entanto, como doeu... Como me culpei, como me arrependi, na noite em que o intrometido Sr. Lockwood, viu teu fantasma, Cathy, e nada pude fazer além de perder o controle e mergulhar no desespero. E ainda dizem por aí que não tenho coração: – Entre! Entre! solucei “– Cathy, entre. Oh venha... venha... uma vez mais! Oh, minha adorada! Escute-me agora, Catherine, fi nalmente!”3 – E... Nada. Só silêncio e brancura! Sempre acreditei que o dentro é fora e o fora é dentro. Subjetivo e objetivo são invenções metafísicas, apenas. Como o Sr. Lockwood diz no primeiro capítulo do romance: “A propriedade do Sr. Heathcliff chama-se, adequadamente, Wuthering Heights, sendo wuthering um significativo adjetivo provinciano para designar o tumulto atmosférico ao qual ela está sujeita em tempo tempestuoso.”4 Neste monodiálogo que estabeleço. Quero dizer o que aprendi sobre o abandono e a vingança. Quero fazer diferente desta vez.
TORNAR-SE VINGANÇA
A primeira questão que quero colocar é: qual é o assunto do livro O morro dos ventos uivantes? Trata-se da mais poderosa histó3 Idem, Ibidem, p. 44
2 Idem, Ibidem, p. 73
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4 Idem, Ibidem, p. 20
ria de amor já escrita no Ocidente? É um tratado sobre a vingança? Pode ser lido como um estudo das diferenças entre as classes sociais? O assunto é o mal, como percebeu Bataille? Acredito que o livro pode ser cada uma destas coisas, ou todas elas ao mesmo tempo. Cada narrativa fala de um modo distinto para diferentes leitores. Aqui pretendo tratar apenas da vingança, embora, para tanto, tenha de recorrer a acordes incidentais como, por exemplo, a ânsia de reconhecimento – justificada – por parte de Heathcliff. No enredo de O morro dos ventos uivantes, o que impede a união entre Cathy e o herói cigano, muito mais que a questão entre natureza e cultura5, é o abismo social que, no fundo, separam os dois irmãos-amantes. Na noite em que Heathcliff vai embora, ele ouve Cathy dizer a Nelly: - Separação! Abandono! – exclamou ela, com um acento de indignação. – Quem nos vai separar, diga? Quem ousará? Enquanto eu viver, ninguém, Ellen! Todos os Liton deste mundo poderão morrer, antes que eu consinta em esquecer Heathcliff ! Não é isso o que eu pretendo... não é isso o que eu quero dizer! Jamais me casaria com
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vestir-me e comportar-me bem e ter uma chance de vir a ser tão rico quanto ele! [...] Você deve aprender a desfazer essas rugas, a erguer abertamente essas pálpebras e transformar os demônios em anjos confiantes e inocentes [...] Não assuma a expressão de um cão danado, que só espera do mundo pontapés, embora odeie o mundo e os pontapés pelo que eles lhe fazem sofrer.”2
5 Embora ambos no início do romance fossem crianças selvagens, o rompimento se dá quando Cathy volta “civilizada” da residência dos Linton e Heathcliff se encontra ainda mais selvagem.
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Linton, se um tal preço me fosse exigido! Heathcliff será para mim o que sempre foi, toda a minha vida. Edgar terá de colocar de lado a antipatia que lhe tem e tolerá-lo, ao menos. Ele o fará, quando perceber o que eu sinto por ele. Nelly, vejo que você me considera uma terrível egoísta: mas nunca lhe passou pela cabeça que, se eu e Heathcliff nos casássemos, seríamos uns pobretões? Enquanto se eu me casar com Linton, poderei ajudar Heathcliff a subir e colocá-lo fora do domínio do meu irmão.6 Palavras duras de se ouvir, principalmente para um caráter orgulhoso como o do nosso herói. Heathcliff já se ressentia por sua orfandade, sua origem cigana. Queria ser reconhecido como um igual, um Earnshaw; mas, ao ouvir tais palavras, 6 Idem, Ibidem, p. 99
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algo deve ter se quebrado dentro dele. A inocência morrera de vez. A partir daquela noite, ele se ausentará por três anos e, quando voltar, há de exigir duas coisas: reconhecimento e vingança. Sua ira não encontrará limites. Segundo Peter Sloterdijk, as energias ligadas à ira, para os gregos, thymós, são aceitas tanto por Platão, quanto por Aristóteles. Para o primeiro, a ira encontraria lugar na cidade dos filósofos, “uma vez que a pólis governada racionalmente também precisa de militares que figuram aqui como a classe dos ‘guardiões’.” 7 Para o segundo, a ira legítima teria ouvidos à razão, seria apropriada para combater as injustiças, mas apenas como aliada, tendo a razão por carro-chefe. O problema com o protagonista de O morro dos ventos uivantes é que a ira se torna o comandante do navio que tem por destino apenas a gana de reconhecimento e a vingança. Tudo o mais será secundário, acessório. Heathcliff é um homem selvagem, orgulhoso, duro; mas, no livro, encontramos poucos casos de violência física. Sua violência e força são sempre tratadas de maneira espiritual. O que ele almeja é estar à altura. Como mostramos num dos fragmentos anteriores, ele confessa a Nelly que, mesmo derrubando Linton vinte vezes, por ser mais forte e enérgico que seja, ainda assim “isso não o tornaria [Linton] menos bonito nem a mim menos feio. Como eu queria ter cabelo louro e pele clara, vestir-me e comportar-me bem e ter uma chance de vir a ser tão rico quanto ele!”8 A thymós grega tratada de modo civil transforma-se em ânsia por reconhecimento. Ainda conforme Sloterdijk (2012, p. 38): 7 SLOTERDIJK, 2012, p. 37 8 BRONTË, 1971, p. 73
SEGUNDO PETER SLOTERDIJK, AS ENERGIAS LIGADAS À IRA, PARA OS GREGOS, THYMÓS, SÃO ACEITAS TANTO POR PLATÃO, QUANTO POR ARISTÓTELES
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O fragmento parece ser escrito sobre o próprio Heathcliff.
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A ânsia pelo reconhecimento de outros homens, os Linton, o próprio Hindley Earnshaw, a dor de ser preterido por pena... Tudo isso desperta a ira. O menino cigano exige ser reconhecido como um igual, mas quando os interpelados se recusam a passar por essa prova, precisarão se confrontar com a ira daquele que apresentou a exigência. “Em ofensas que adoecem, a vingança é certamente a melhor terapia”9. Daí para a frente, Heathcliff já não será um ser humano, mas um destino, UMA VINGANÇA. Mesmo que essa vingança represente sua própria ruína. Por três anos ele desaparecerá. Quando voltar, será um cavalheiro abastado, mas cada dia mais avarento. Fugirá, para desposar, sem o menor traço de amor, Isabela, a irmã de Edgar Linton e com ela
Corria o último ano da década de 1980. Dormíamos, meu irmão mais velho e eu, no mesmo beliche, eu embaixo, ele em cima. Ele era três anos mais velho que eu. Hoje isso não é muito; mas, quando um tem dez e outro treze anos; um já é homem e o outro, menino. Durante a noite, costumávamos conversar
9 SLOTERDIJK, 2012, p. 73
10 Frase proferida pelo Sr. Madruga, personagem de Ramón Valdés na série Chaves.
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HEATHCLIFF E EU: A VINGANÇA NUNCA É PLENA, MATA A ALMA E A ENVENENA10
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Uma vez que thymós condicionado de maneira civil é a sede psicológica da aspiração ao reconhecimento apresentada por Hegel, torna-se compreensível porque o reconhecimento não concedido por outros homens relevantes causa ira. Quem exige reconhecimento de um outro determinado submete este outro a um teste moral. Se o interpelado se recusa a passar por essa prova, precisa se confrontar com a ira daquele que apresenta a exigência, já que este se sente desconsiderado. A exaltação irada acontece inicialmente quando o reconhecimento do outro me é subtraído (algo em razão do que surge a ira voltada para fora). No entanto, ela também se dá quando nego reconhecimento a mim mesmo sob a luz de minhas ideias de valor.
terá um fi lho. Lançará mão sobre todos os bens de Hindley, então um beberrão e jogador compulsivo. Quando a primeira Cathy morrer, logo depois de dar à luz a outra Cathy, sua fi lha, a ira de Heathcliff crescerá em proporções descomunais. Ele casará seu fi lho e a prima, Cathy, fi lha de Edgar Linton e a Catherine-mãe. No fi m das contas, Heathcliff herdará tanto o morro dos ventos uivantes, quanto a residência que pertencia aos Linton. Pensando ter realizado por completo sua vingança, Heathcliff perceberá, entretanto, nos últimos descendentes das famílias Linton e Earnshaw o olhar de seus antepassados e se lembrará do amor entre ele e Cathy. Com sua vingança completa – o ódio não é o real é a ausência de amor – Heathcliff morrerá louco e só. Como último desejo, será enterrado junto ao seu grande amor, Catherine. Daí por diante, muitos jurarão ver sempre um casal vagando pelas charnecas do morro.
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antes de o sono chegar. Tínhamos um rádio relógio com os números vermelhos digitais que colocávamos para despertar às seis e vinte da manhã, bem a tempo de nos aprontarmos para a escola. Antes de dormirmos, entretanto, deixávamos o rádio ligado, sintonizado na estação Antena 1 FM, que só tocava músicas calmas, clássicos românticos na maioria das vezes. Desde pequeno, nunca soube o que fazer das minhas emoções. Toda vez que tocava uma música estranha, meio fantasmagórica, cantada por uma mulher de voz aguda, eu chorava11. Não conseguia me segurar. Na parte de cima do beliche, meu irmão perguntava: – O que é que tu tem, Dan? – Nada não – respondia. Meninos não choram. Que havia de errado comigo? Será que era um mariquinha? Não, estava era apaixonado. Não pela professora, nem pela namorada do meu tio. Embora também tenha me apaixonado por elas por um curto período. Eu me apaixonava muito fácil naquela época. Meu coração é um balde despejado. Eu amava R., 16 anos, irmã mais velha do meu melhor amigo W. que, naquela época, tinha onze. Ela era mais que linda! A descrição de Catherine Earnshaw cairia como uma luva. Todos os dias, quando chegava da escola, lavava a louça, varria a casa, nossos pais trabalhavam fora, e partia para a casa de R. e W.. Lá, passava o resto da tarde, jogando conversa fora, ouvindo música, brincando com a cachorra deles. W. tinha outras quatro irmãs mais velhas; todas elas gostavam de mim. Abraçavam-me, cheiravam-me, encostavam os seios no meu corpo pré-adolescente. Diziam que eu era igualzinho ao irmão delas. Como eu era um ano mais novo que ele, era considerado o caçula da família. Já disse, todas eram lindas e gostavam de mim, como menino e não como homem. Também, eu era menino mesmo, não tinha um pentelho sequer no saco. De minha parte, só amava R.. Cada dia mais, mais, mais, mais, mais, mais, ad infinitum... E, durante a noite, a programação se repetia na rádio e eu ouvia aquela canção que me criava bolhas na alma. Um dia, tomei coragem e confessei a W. tudo o que sentia por sua irmã. Pensei que ele fosse ficar bra11 Na época eu não sabia, mas depois descobri que se tratava de Kate Bush cantando Wuthering Heights.
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vo... Considerar uma traição... Uma pilantragem... Mas, que nada, ele ficou foi feliz. Bolamos juntos um plano para eu me declarar a R.. Seria naquela tarde mesmo. Dois malucos. Ela estava passando roupa na sala, o rádio ligado: – R., o Dan tem uma coisa pra te dizer. Ela sorriu, as sobrancelhas levantadas. – Pois diga. Tentei dizer algo do que sentia, aquilo cujo nome desconhecia por completo, mas cadê voz? Por três ou quatro vezes abri a boca, mas nada saía. Já estava até gostando daquela sensação de sentir o coração disparado, sensação que mais tarde encontraria na cocaína, quando consegui dizer: – Eu gosto de você. Ela riu, largou o ferro de passar e me abraçou. Senti a humilhação no mesmo momento. – Também gosto de você, mas é como um irmãozinho. Fui embora chorando. W. atrás gritando meu nome e advertindo a irmã: – Tá vendo o que você fez, tá vendo o que você fez! Dias mais tardes, sentado com outros meninos nos degraus da Igreja da vila, batendo papo antes de
PROPOSTA DIDÁTICA O uso deste texto em sala de aula pode ser feito de forma interdisciplinar, como fio condutor de temas e conteúdos da Literatura, da História, da Sociologia e da Filosofia. Sugere-se a bibliografia ao final deste artigo como base, bem como perspectivas sobre os temas aqui tratados nas obras de pensadores como Platão e Aristóteles, para, em conseguinte, proceder questionamentos sobre os seguintes pontos, como provoca o próprio autor deste artigo: A obra de Brontë trataria sobre diferenças entre classes sociais? É possível analisar, sob essa perspectiva, o contexto histórico em que foi escrita? O que dizem Platão e Aristóteles sobre ira, paixões, vingança ou prosperidade social? Seus conceitos são válidos ou acirrados diante de questões sociais dos dias atuais? Sugerir outros autores, pesquisas, debates, dissertação e seminário como conclusão das reflexões sobre os temas aqui tratados, entre outras possibilidades didático-pedagógicas.
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EXISTÊNCIA
PEGUEI O DOCUMENTO DA MÃO DELA, SORRI, ABRI OS BRAÇOS E OFERECI MEU ABRAÇO. ELA ACEITOU. EU NÃO QUERIA TERMINAR MAL COMO O MENINO CIGANO DO LIVRO
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Isso mesmo: R. Tinha agora mais de quarenta anos, era mãe, mas continuava bonita. Entregou o título de eleitor nas minhas mãos e sorriu, sem saber muito bem como se comportar. Sem saber se quem estava do outro lado era o menino que brincava de ser seu irmão mais novo, ou o jovem duro, misto de Daniel e Heathcliff. Peguei o documento da mão dela, sorri, abri os braços e ofereci meu abraço. Ela aceitou. Eu não queria terminar mal como o menino cigano do livro. Os olhos estalados, como que cheios de cocaína. A vida é breve e eu sinto sempre tanta dor; talvez por isto nunca tenha conseguido deixar de beber de fato. A maldade, irmãos e irmãs, já vimos demais. O abraço tem mais poder que a vingança. REFERÊNCIAS
a noite cair e termos de entrar para casa, vi R. passando na garupa de motocicleta vermelha. Passaram-se oito anos. W. e eu continuamos amigos, mas nunca mais entrei na casa deles. Eu virei gótico, comecei a ouvir bandas como The Cure, The Smiths, Bauhaus, Sisters of Mercy, Ultravox, Cocteau Twins e li, reli, tresli, o livro que acompanharia pelo resto da vida: O morro dos ventos uivantes. Num sábado à noite, W. eu e mais um pessoal combinamos de ir à cachoeira, no dia seguinte. Eu iria na garupa do meu amigo W., afi nal ele tinha comprado uma moto e eu era menor de idade. Nesta noite, bebi demais e, dia seguinte, não consegui acordar. Eram seis horas da tarde, mais ou menos, domingo, quando chegou a notícia: W. estava morto. Ele era um menino bonito, os mesmos olhos da irmã. Lá na cachoeira, umas meninas deram em cima dele. Os rapazes que estavam com elas não gostaram. Discutiram. Ele montou na moto e tentou ir embora, mas antes de partir, levou um tiro na nuca. Eu devia estar lá, na garupa, e receber aquele tiro, mas escapara graças à bebida. Depois dizem que bebida só traz desgraça. Dia seguinte, no velório, R. veio chorando me abraçar. Eu tinha lido O morro dos ventos uivantes. Dei dois passos para trás e ofereci apenas minha mão. Eu-Heathcliff. Ela apertou minha mão e foi chorar abraçada às irmãs. Agora eu não chorava mais. Fiquei sim, com a moto de W.. O pai dele não suportava olhar para ela. Esta moto, entretanto, jamais funcionou. Como no romance, muitos anos mais se passaram, feito sopro. Casei, estudei, trabalhei, li, ouvi, escrevi. Um dia, estava trabalhando pela primeira vez como mesário nas eleições e quem aparece para votar justo na minha sessão?
BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes. Trad. Vera Pedroso. São Paulo: Companhia Editora brasileira, 1971. BRONTË, Emily. Wuthering Heights. London: HarperCollins Publishers, 2010. SLOTERDIJK, Peter. Ira e tempo: ensaio político-psicológico. Trad. Marco Casanova. São Paulo: Estação liberdade, 2012.
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LIVROS
Descartes – A paixão pela razão
Autor: Mário Sérgio Cortella Editora: Kindle (versão digital para Kindle Unlimited) 101 páginas
É impossível pensar a Filosofia, a Arte, a Ciência e a Religião na Modernidade sem Descartes. Sua argumentação original e, especialmente, sua concepção sobre o pensamento e o pensar como fundantes da realidade marcam a trajetória da nossa avaliação sobre a importância do raciocínio. A relevância desse conjunto de ideias é tamanha que “cartesiano” passou a ser sinônimo de obcecado pela razão. Ora, quem foi e o que fez esse pensador francês que contraditoriamente pareceu ter uma paixão pela razão? Este livro de filosofia tem um objetivo simples: começar do começo! Uma série de reflexões e atividades para auxiliar o processo, dirige-se ao jovem que se sente crescendo por dentro e que busca referências que o ajudem a se situar num mundo de ideias e decisões que se descortinam.
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Lacrimae rerum – Ensaios sobre o cinema moderno Autor: Slavoj Žižek Editora: Boitempo 224 páginas
Uma das obras mais aclamada de Slavoj Žižek ganha nova edição totalmente revista e ampliada pela Boitempo. A coletânea de ensaios, originalmente publicada em português em 2009, traz seis novos textos e análises originais sobre o cinema contemporâneo. Viral nas redes sociais e famoso por suas declarações polêmicas, o filósofo esloveno consegue manter-se sempre relevante no cenário intelectual ao abordar conceitos filosóficos pelo viés da psicanálise e da cultura pop.
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CORREÇÃO Na edição142 da revista Filosofia, em artigo sobre ensino religioso, na página 28, no quadro sobre o Decálogo, foi atribuído erroneamente ao profeta Maomé, e não a Moisés, o recebimento das tábuas dos Dez Mandamentos. A redação agradece ao professor Pedro Garcez, autor do texto, pela compreensão diante do equívoco cometido, pela redação, e vem a público para a devida correção do dado.
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grande valor liberal, não socialista, mas que num País como o nosso adquire sentido quase subversivo), que proporcionaria ao talentoso, independentemente de ser pobre ou rico, o mesmo sucesso na vida. O que eu disse aqui, na verdade, talvez tenha mais a ver com a justiça do que com a democracia. É justo todos terem as mesmas oportunidades. É injusto que a fortuna – a loteria do nascimento, como diziam os clássicos, ou o acaso do CEP, como dizem alguns – determine o futuro de uma pessoa. Vejam que, assim, o sucesso ou fracasso de alguém na vida quase nada tem a ver com seu mérito ou esforço. Ele decorre da herança, antes de mais nada. Não deveríamos estranhar a sociedade tradicional da Índia, marcada por castas, das quais ninguém escapa. Entre nós, só escapa do destino fixado pela família de origem o homem talentoso – se for negro, no futebol ou na música popular – ou a mulher muito bonita. Nada de novo, desde o século XIX. Portanto, um sentido de justiça, talvez o mais forte em nossos dias, é o da igualdade de chances. Cada um receberia mais, ou menos, em função essencialmente de seu esforço, de seu empenho, mas teria o mesmo ponto de partida. Por que essas ideias podem se tornar um eixo da democracia? Democracia é, etimologicamente, o poder do povo. Quer dizer que o povo, com ou sem intermediários, decide as questões essenciais. Mas para tanto é preciso haver uma certa igualdade. Não precisa ser total, absoluta. Alguns se des-
tacarão, essencialmente graças a seu poder econômico (ou a outros poderes que, na sociedade capitalista, derivam do dinheiro ou o implicam: o religioso, o intelectual, o esportivo...). Mas é preciso que esses poderes não-democráticos, que instauram a desigualdade dentro da sociedade dos iguais, estejam subordinados à democracia, a seu princípio de igualdade. Por isso, a Constituição e as leis tentam coibir o excesso do poder econômico (quero dizer, enquanto papéis escritos, elas o tentam; mas quem deveria aplicá-las mal o faz, se é que o tenta). É na questão da igualdade básica, com desigualdades existindo mas apenas derivadas, e sempre a partir de algo justo (por exemplo, maior empenho, maior esforço), que a democracia e a justiça se encontram. Hoje, não há regime político justo que não seja democrático. Aquilo que se esboçou em 1787 (uma democracia), quando os juízes do reino da França defenderam suas prerrogativas contra o rei absoluto, e começaram a corroer seu poder extremo, durou só dois anos. Não há, repito, justiça que não seja democrática.
Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP). www.renatojanine.pro.br
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL
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ercebi isso há uns dias, quando autografava exemplares de meu último livro, A Pátria Educadora em Colapso, no qual comento minha experiência como Ministro da Educação de um governo, o de Dilma Rousseff, a meses do seu impeachment, e trato da importância da educação para o desenvolvimento humano de nosso País. Eu sempre enfatizava a luta pela educação, a democracia e o Brasil. E aí, a certa altura, para não me repetir, me peguei desejando um Brasil e uma educação justos (antes, eu dizia democráticos). Para mim, eram sinônimos. Mas historicamente não são. Como aconteceu que a justiça se tornasse um valor democrático? São duas palavras que têm inúmeros sentidos. Justiça pode significar a distribuição de partes desiguais a pessoas desiguais – e pode também ser dar, na medida do possível, possibilidades iguais a todos. Democracia pode significar a participação de todos nas deliberações públicas, na praça pública – mas pode também ser o direito de todos a votar, uma única vez a cada tantos anos, para escolher gente que decidirá tudo em seu lugar. Para que Brasil democrático se torne sinônimo de Brasil justo, precisamos de definições bem específicas dedemocracia e justiça. O ponto de partida é que as coisas como estão não são justas (nem democráticas). Não são democráticas porque o mero direito de voto não assegura uma igualdade de oportunidades (o ciência&vida
23/01/2019 12:37
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