LIVRO-REPORTAGEM “RAP: O SOM QUE PEDE O PLAY”

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UNIVERSIDADE ANHANGUERA-UNIDERP SCHIMENE DUQUE WEBER

LIVRO-REPORTAGEM “RAP: O SOM QUE PEDE O PLAY”

CAMPO GRANDE - MS 2015



SCHIMENE DUQUE WEBER

LIVRO-REPORTAGEM “RAP: O SOM QUE PEDE O PLAY”

Livro-reportagem apresentado na Disciplina de Projeto Experimental II, como requisito básico para a apresentação do Trabalho de Conclusão do Curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo, da Universidade Anhanguera-Uniderp, sob a orientação do Prof. Marcelo Rezende.

CAMPO GRANDE – MS 2015



DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a minha família por todo o suporte dado, principalmente pela minha mãe Angela e pelo meu pai Jair, pois confiaram em mim e na minha capacidade durante todos esses anos e foram de fundamental importância para que eu chegasse até aqui da forma que cheguei. Ambos não mediram esforços para que eu pudesse me dedicar inteiramente aos estudos durante toda a minha jornada pré-universitária, e continuaram ao meu lado, me apoiando e auxiliando em todos os aspectos possíveis, durante os quatro anos em que estive cursando o nível superior. A vocês, além destas folhas, dedico toda a minha gratidão e todo o meu amor. Se existem pessoas que merecem algo muito além de “muito obrigada”, estas pessoas são vocês. Jamais seria um terço do que sou se não fosse pela somatória de grandes lições que recebi desde o começo da minha vida, lições estas que me acompanharão até os meus últimos instantes e que farei questão de também passar adiante. Também dedico este trabalho a minha irmã Meyene, por, em meio a diversas brincadeiras referentes às minhas escolhas profissionais, ter me incentivado e me ajudado a confiar inteiramente no meu potencial e na minha vocação para esta formação. Aos meus colegas de turma, em especial a Kerolyn Araújo, Ana Letícia Gaúna, Stephanie Romcy e Paulo Francis, pessoas maravilhosas que tive a oportunidade de conhecer e criar laços durante os últimos anos e que foram de fundamental importância para que este trabalho fosse concluído com


sucesso devido ao total apoio recebido desde a escolha do tema até a produção deste pré-projeto. Aos meus amigos de longa data Thaynara Costa, Lucas Souza, Alan Júnior, João Érico Benites, Everson Umada e Aline Fernandes, que me apoiaram e sempre estiveram ao meu lado nos momentos mais difíceis da minha vida – e também nos mais felizes. Vocês são pessoas incríveis e eu amo cada um de vocês! Muito obrigada por tudo!


AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus e a Nossa Senhora, pois sem a proteção concedida pelos dois, eu jamais teria traçado os meus caminhos pessoais e profissionais da forma que tracei. Agradeço também a minha família e aos meus amigos, por terem me apoiado e não terem permitido que o pânico e o desânimo tomassem conta de mim nos mais diversos momentos. Ao meu namorado Sávio Santos, por todo o carinho, a paciência e a confiança a mim dedicados, principalmente na etapa final de elaboração deste material. A todos os professores, em especial ao meu orientador Marcelo Rezende, por ter abraçado o meu projeto e me auxiliado durante as minhas dúvidas, me transmitindo tranquilidade e segurança para que fosse possível dar continuidade à minha pesquisa, ao Professor Mestre Clayton Sales, que ouviu minhas dúvidas com paciência e procurou me ajudar de todas as formas que estiveram em seu alcance e a Professora Angelica Sigarini, pela colaboração técnica deste material. A todos os colaboradores deste trabalho, em especial ao Márcio Fernandes, do grupo Falange da Rima, ao Paulo Morais, do grupo Locoleste, e ao Wilson Ferreira, pela grande colaboração com a produção deste livro-reportagem.

A todos vocês, minha eterna gratidão.



SUMÁRIO

PRÓLOGO...............................................................................11 INTRODUÇÃO.......................................................................13 QUE SOM É ESSE?................................................................25 SCRATCHES E BATIDAS......................................................31 REC........................................................................................37 PÉ NA PORTA.......................................................................45 BECO SEM SAÍDA..................................................................51 CORES E VALORES DE DUAS GERAÇÕES........................59 LIÇÕES ÉTNICAS..................................................................65 CANETA E CORAÇÃO...........................................................73 DE FAIXA EM FAIXA............................................................81 BASTIDORES DO RAP..........................................................87 VAI, RAP!...............................................................................91 REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................97 ANEXOS.................................................................................99



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PRÓLOGO

Canta tua aldeia e cantarás o mundo Já dizia o dramaturgo e escritor russo, Anton Pavlovitch Tchecov: “Canta tua aldeia e cantarás o mundo” e é exatamente essa “aldeia” que é retratada no livro-reportagem “Rap: o som que pede o play” de Schimene Weber. O livro narra histórias de personagens que dedicaram suas vidas na difusão dessa manifestação cultural, que não é apenas música. O Rap é também dança, moda, estilo de vida e arte. Nascido em comunidades negras dos Estados Unidos, o Rap, assim como o Blues e o Jazz, ganhou o mundo e, é claro, aportou aqui no Brasil. Conquistou corações e mentes em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. A poesia cantada pelos MCs, os “Mestres de Cerimônia” e acompanhada pelos beatbox e scratches chegou a periferia da Cidade Morena e foi ganhando espaço onde a cultura sertaneja é predominante. O livro deu voz àqueles que cantam suas mazelas, seus sonhos e sua realidade. A importância do jornalismo cultural se confirma na obra que mapeou os principais grupos de Campo Grande e que também foi até Dourados, mais precisamente nas tribos Jaguapiru e Bororó, onde existe o primeiro grupo de Rap indígena, intitulado “Brô MCs”, que canta em português e guarani suas letras politizadas. É impossível deixar de associar a frase do escritor Tchecov a esta manifestação cultural que saiu do gueto e que


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cresce a cada dia. A rima e a batida são as ferramentas para levar histórias de vida de quem quer apenas um microfone e ritmo para passar sua mensagem. “Rap: o som que pede o play” é uma viagem nesse mundo que poucas vezes tem apoio da grande mídia e que agora se materializa nesse brilhante relato. Dispa-se de preconceitos e boa leitura. Um salve pra galera do Hip-Hop. Marcelo Rezende é professor, jornalista e músico.




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A proposta do livro-reportagem a seguir tem como principal objetivo explicitar a história do rap dentro do movimento Hip-Hop em Campo Grande e, desta forma, evidenciar também as dificuldades encontradas pelos seus expoentes em uma cidade com a cultura predominantemente interiorizada. A ideia de retratar tal tema em uma peça partiu do interesse pessoal em mostrar ao público que tiver acesso a tal conteúdo, que o rap merece, sim, ser ouvido e respeitado, ainda que o mesmo tenha nascido de forma marginalizada, e que inúmeras pessoas trabalham constantemente para que tal desejo de viver desta arte, tanto quanto inúmeros artistas dos mais diferentes ritmos e gêneros, se torne realidade. É evidente que, apesar do fácil acesso a informação e a popularização do rap na internet e, consequentemente, na mídia, algumas pessoas ainda enxergam este movimento cultural com olhos preconceituosos e, com estes mesmos olhos, aqueles que são adeptos ao mesmo. Hoje em dia, o maior público consumidor do rap nacional se concentra na adolescência e no começo da fase adulta. Este fato deve-se ao espaço que, aos poucos, vem sendo conquistado nacionalmente, principalmente por artistas de São Paulo e Rio de Janeiro. Porém, em Campão (nome pelo qual a cidade carinhosamente passou a ser chamada por muitos adeptos e/ou seguidores do movimento Hip-Hop), a cena é completamente diferente – mas não está totalmente perdida. E é por essa esperança que o livro-reportagem foi produzi-


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do – essa, que não vem somente por questões históricas de aceitação (como foi em SP e no RJ), mas que nasce, principalmente, dos corações daqueles que escolheram o rap como um estilo de vida, como uma forma de libertação, como uma terapia ou apenas viu nele uma arte que valesse a pena. O Hip-Hop é um movimento cultural que teve início na década de 70, na área do Bronx, localizado na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. A utilização desta expressão foi feita por Afrika Bambaataa, pseudônimo de Kevin Donavan, um DJ estado-unidense considerado o “Pai do Hip-Hop”, para caracterizar a forma de transmissão da cultura dos guetos americanos no jeito de dançar da época, que consistia em movimentar os quadris (hip) e saltar (hop). A expressão passou a se expandir e ganhar mais força nos bairros negros e latinos de Nova Iorque, com Grand Master Flash e Kool Herc, que propunham novas formas de rimar em cima das batidas cada vez mais diferenciadas que saíam das mesas de áudio dos DJs. A cultura periférica do Hip-Hop começou a congregar os DJs, MCs (acrônimo de Mestre de Cerimônias que, neste caso específico, atua em nível musical), Grafiteiros (artistas de rua que trabalham com pinturas, assinaturas e murais, geralmente feitos com spray) e B.Boys/B.Girls (dançarinos de Break Dance), que em sua maioria residiam e frequentavam os guetos estadunidenses. No início da década de 80, o movimento chegou ao Brasil, principalmente com o Break e, posteriormente, com o rap (abreviação para a expressão rhythm and poetry [ritmo e poesia]), objeto de estudo deste trabalho.

Sobre este, Pais (2006) ressalta: [...] O rap cultiva uma sensibilidade justicei-


17 ra, ao denunciar situações de injustiças, para anunciar outros futuros. As palavras soletradas são recuperadas de uma semiótica de rua, transgressiva por natureza, palavras encavalitadas em palavrões para melhor insultar, atingir, provocar. Palavras que são voz de consciência, que se vestem de queixumes, que se revestem de revolta. Voz singular (a de vocalista) que contagia, que se transforma num coletivo (nós, os do movimento) que se insurge contra eles (que não nos entendem). (PAIS, 2006, p. 13)

O rap surgiu no País precisamente em 1986, na cidade de São Paulo, considerada o “coração” desta expressão artística no Brasil. Embora não tenha sido totalmente aceito pela sociedade paulistana da época, devido à ligação direta com as favelas, o estilo acabou conquistando alguns adeptos, principalmente por narrar situações costumeiras para aqueles que caminhavam diariamente entre as vielas das periferias de SP e não viam com clareza qualquer sinal de melhora em um futuro próximo ou distante. [...] Os rappers afirmaram desde o início a condição de “anti-sistema”. Promoveram sobretudo a crítica à ordem social, ao racismo, à história oficial e à alienação produzida pela mídia. Construíram mecanismos culturais de intervenção por meio de práticas discursivas, musicais e estéticas que valorizam o “autoconhecimento”. (ANDRADE, 1999, p. 24)

Também acerca do objeto cultural de estudo deste projeto, Kellner (2001) afirma que: [...] No estudo que se segue dessa forma extremamente controversa, argumentamos que a melhor maneira de considerar o rap em si é vê-lo como um fórum cultural em que os negros urbanos podem expressar experiências, preocupações e visão política. Como fórum cultural, é um terreno de disputas entre


18 | RAP: O SOM QUE PEDE O PLAY diferentes tipos de rap em que competem diversas modalidades de expressão vocal, visão política e estilo. (KELLNER, 2001, p. 230)

Em Mato Grosso do Sul, especificamente em Campo Grande, a militância também enfrentou uma séria resistência, visto que a cultura predominante no Estado é a sertaneja. [...] É possível notar que símbolos como o Pantanal e a Fronteira são os dois principais índices identidários dessa música sul-matogrossense; o primeiro enquanto temática, a segunda enquanto suporte. Ou seja, é uma fusão entre os temas relacionados ao universo natural e cultural pantaneiro, somado às influências da música paraguaia. (CAETANO, 2012, p. 98)

Para contar a história deste início e de todo o contexto atual do rap na Capital, a peça a ser produzida será o livro-reportagem. Sobre o formado, Lima (2009) explica que: [...] O livro-reportagem é o veículo de comunicação impressa não-periódico, que apresenta reportagens em grau de amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios de comunicação jornalista periódicos. Esse “grau de amplitude superior” pode ser entendido no sentido de maior ênfase de tratamento ao tema focalizado – quando comparado ao jornal, à revista ou aos meios eletrônicos -, quer no aspecto extensivo, de horizontalização do relato, quer no aspecto intensivo, de aprofundamento, seja quanto à combinações desses dois fatores. (LIMA, 2009, p. 26)

Entende-se que, desta forma, com maior liberdade, a retratação do que acontece com a cena do Hip-Hop em Campo Grande poderá ser feita de forma mais ampla do que a costumeira, fazendo a aproximação do leitor com a realidade total. A escolha deste tema pode ser justificada por Maria Immacolata Vassalo Lopes (1994), que explica que:


19 [...] O engajamento teórico, o compromisso social, as condições institucionais são fatores intervenientes na escolha e dirigem os alvos teóricos e práticos da pesquisa. Ao invés de ser apressadamente confundida com a moda intelectual do momento, a escolha do tema pode ser encarada “como um fato social em si, e que pode também ser explicada sociologicamente”. (LOPES, 1994, p. 120)

Para escrever este trabalho, a linguagem utilizada foi a do jornalismo literário, que, conforme Lima (2009), “(...) praticado tanto em periódicos quanto em formato de livro, encontra um canal de expressão fabuloso no livro-reportagem e este, por sua vez, pode alcançar o máximo de seu potencial enquanto produto de comunicação pública (...)”. (LIMA, 2009, p.XVI)

Ainda sobre tal gênero jornalístico, Pena (2007) resume: [...] Defino jornalismo literário como linguagem musical de transformação expressiva e informacional. Ao juntar os elementos presentes em dois gêneros diferentes, transforma-os permanentemente em seus domínios específicos, além de formar um terceiro gênero, que também segue pelo inevitável caminho da infinita metamorfose. Não se trata da dicotomia ficção ou verdade, mas sim de uma verossimilhança possível. Não se trata da oposição entre informar ou entreter, mas sim de uma atitude narrativa em que ambos estão misturados. Não se trata nem de jornalismo, nem de literatura, mas sim de melodia. (PENA, 2007, p. 56)

Pode-se justificar também a escolha da peça de apresentação deste Trabalho de Conclusão de Curso pelo exposto por Lima (2009): [...] Quanto ao conteúdo, o objeto de abordagem de que trata o livro-reportagem correspondente


20 | RAP: O SOM QUE PEDE O PLAY ao real, ao factual. A veracidade e a verossimilhança são fundamentais. Entende-se aí o real tanto como ocorrência social já definida (...) quanto uma situação mais ou menos perene, uma questão ou uma ideia vigente, refletindo um estado de coisas, mas que não corresponde necessariamente a um acontecimento central. (LIMA, 2009, p. 27)

O livro-reportagem a respeito da cultura do rap em Campo Grande se enquadra, dentro de sua proposta de relatar o que era e como atualmente é, no estilo “Livro-reportagem-história”, que, conforme define Lima (2009): [...] Focaliza um tema do passado recente ou algo mais distante no tempo. O tema, porém, tem em geral algum elemento que o conecta com o presente, dessa forma possibilitando um elo comum com o leitor atual. Esse elemento pode surgir de uma atualização artificial de um fato passado ou por motivos os mais variados. (LIMA, 2009, p. 54)

Para narrar uma ordem temporal de acontecimentos, utilizarei a entrevista como principal forma de registro de informações, uma vez que, no Estado, não existe nenhuma pesquisa publicada acerca do tema.

Sobre a narrativa, Medina (2009) explica que: [...] As cenas que compõem a dramaturgia narrativa nascem da percepção viva de quem foi ao mundo e não se fechou na couraça dos que não viram, não cheiraram, não tocaram, não ouviram nem degustaram – aqueles relatos preconceituosos que sabem de antemão o que vão escrever. (MEDINA, 2009, p. 143)

E continua: [...] A forma de narrar não baixa do céu de graça, mas a graça de sentir profundamente o mundo e o outro, em movimento, encurta os caminhos


21 nunca dantes navegados. A dor permanece na razão direta da disciplina solidária. O autor da narrativa quer devolver em símbolos legítimos e verossímeis o esforço racional da fidelidade. A ética mobiliza a técnica. Lá do outro lado estará um leitor também autor. (MEDINA, 2009, p. 143)

Sobre a metodologia utilizada para a elaboração do trabalho a seguir, em busca do melhor modelo de narrativa para poder explicar de forma ampla a situação do rap em Campo Grande, o livro-reportagem foi construído em terceira pessoa e em ordem cronológica de acontecimentos, através de entrevistas feitas com aqueles que vivem e sobrevivem neste e deste cenário, como já explicado anteriormente, que, juntas e organizadas de maneira clara e coesa, formam a peça final deste trabalho. De acordo com Cremilda Medina (2000, p. 15), a entrevista pode ser utilizada como uma forma de compreender o ser humano através do diálogo, onde “o entrevistador e o entrevistado colaboram no sentido de trazer à tona uma verdade que pode dizer respeito à pessoa do entrevistado ou a um problema”. Desta forma, podemos salientar que este diálogo foi realizado com pessoas que possuem determinado conhecimento acerca do tema para que nenhuma informação seja dada de forma leviana ou equívoca. [...] O conhecimento é uma atividade teórico-prática/prático-teórica, já que a teoria orienta a ação e a prática estrutura e/ou realimenta a teoria. O conhecimento não é, portanto, uma mera expressão de imagens cognitivas, mas é, antes, uma coexistência do sujeito com o objeto numa dada realidade; é o sujeito cognoscente envolvido com o mundo cognoscível. (BARROS e LEHFELD, 1990, p. 11)


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Também sobre este conhecimento, Duarte e Barros (2014) sustentam que “uma boa pesquisa exige fontes que sejam capazes de ajudar a responder sobre o problema proposto”, e continuam: [...] Elas deverão ter envolvimento com o assunto, disponibilidade e disposição em falar. (...) É importante considerar que uma pessoa somente deve ser entrevistada se realmente puder contribuir para ajudar a responder à questão da pesquisa. (DUARTE e BARROS, 2014, p. 68)

Para a captação das entrevistas, utilizei um gravador portátil sempre que possível, salvas as situações em que o material, que foi ser emprestado da Universidade, esteve em uso. Neste caso, o gravador utilizado foi o de celular, com qualidade suficiente para que fosse possível ouvir com clareza os depoimentos dos entrevistados. Também foi utilizado um bloco de notas, material essencial dentro do jornalismo, para que as informações mais relevantes fossem pautadas e, desta forma, utilizadas com precisão na produção da peça. Jorge Duarte e Antonio Barros (2014) denominam as técnicas acima citadas como “Instrumentos de Coleta” e explanam sobre anotações e gravação, respectivamente: [...] Anotações sobre questões centrais, dúvidas, aspectos relevantes, detalhes que não tenham sido verbalizados ou mesmo ideias que surjam e possam ser esquecidas devem ser feitos, inclusive quando há gravação. É importante transcrever imediatamente as anotações, registrar comentários, observações, de maneira a não esquecer pontos essenciais ou perder os registros. (DUARTE e BARROS, 2014, p. 76)

E continuam: [...] A gravação possibilita o registro literal e integral. [...] O gravador possui a vantagem de evitar perdas de informação, minimizar distorções,


23 facilitar a condução da entrevista, permitindo fazer anotações sobre aspectos não verbalizados. (DUARTE e BARROS, 2014, p. 76/77)

Foram também anotadas as formas de expressão dos entrevistados, como defendido anteriormente por Duarte e Barros (2014), uma vez que estas são de fundamental importância para a construção da literatura do trabalho.

Felipe Pena (2007) também disserta sobre o assunto: [...] Quando o homem fala, há um componente sinestésico tanto na emissão quanto na recepção. Ao ouvir alguém em uma praça pública, por exemplo, não estamos só usando a audição. Estamos vendo seus gestos, usando o tato para nos apoiar em algum banco ou ficar de pé, sentindo o cheiro no ar e o paladar de nossa última refeição ou da fome que se aproxima. Todos estes componentes influenciam a mensagem. São parte dela. (PENA, 2007, p. 03)

Sobre a literatura citada, explica: [...] Significa potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lide, evitar os definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos. (PENA, 2007, p. 06-07)

Na peça também estão expostos os registros fotográficos mais antigos, a fim de ilustrar a história que está sendo contada, técnica defendida por Bauer e Gaskell (2002) através do seguinte trecho: [...] A fotografia, adequadamente aumentada, pode servir como um desencadeador para evocar memórias de pessoas que uma entrevista não conseguiria, de outro modo, que fossem relembradas espontaneamente, ou pode


24 | RAP: O SOM QUE PEDE O PLAY acessar importantes memórias passivas, mais que memórias ativas, presentes. (BAUER e GASKELL, 2002, p. 143)

Os autores Bauer e Gaskell (2002) também defendem, em trecho que segue a citação acima, que “as imagens fazem ressoar memórias submersas e podem ajudar entrevistas focais, libertar suas memórias” e, por isso, podem colaborar com o trabalho realizado entre o entrevistador e a sua fonte. Toda a metodologia utilizada neste trabalho baseiase nas chamadas “técnicas de coleta”, defendidas por Maria Immacolata Vassalo Lopes (1994), que as explicam como “instrumentos através dos quais são obtidas ou coletadas as informações ou dados brutos da pesquisa”. [...] Elas são propriamente técnicas de observação ou de investigação (questionário, entrevista, histórias de vida, etc), no que se diferenciam das técnicas de análise (tabulação e classificação) que lhes sucedem. [...] As técnicas são teorias particulares relativas à representação do objeto e, por conseguinte, são procedimentos que constroem empiricamente o objeto através dos fatos coletados. (LOPES, 1994, p. 127)

O livro-reportagem a seguir mostrará que hoje, mais do que nunca, o rap é o som que pede o play, que luta por seu espaço, que pede a chance de mostrar ao que veio – dar voz àqueles que, por muito tempo, não tiveram o direito de gritar os seus pensamentos.




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Foi nos anos 80 que os primeiros passos foram dados. Algumas pessoas de Campo Grande começaram a ouvir músicas que vinham direto de São Paulo, ainda em fitas e LPs, que eram diferenciadas daquelas que todo o resto da população da Capital estava acostumada a ouvir. Eram fitas importadas dos Estados Unidos, mescladas com algumas produzidas por DJs e rappers de SP, que continham batidas diferentes daquelas habituais e que só poderiam ser encontradas nos grandes centros brasileiros. Enquanto alguns diziam “pô, que maneiro isso aí!”, outros já começavam a dançar, envolvidos pelo ritmo contagiante que misturava tambores, riscos nos vinis e palmas, e que era carregado de swing, de jazz e de blues. Os primeiros ouvintes mal conseguiam imaginar o tamanho que a importância do Hip-Hop teria em suas vidas, e muito menos que aquele som posteriormente se tornaria um dos principais gêneros de protesto social no País. Relatos de pessoas daquela época garantem que a música “Lagartixa”, de Ndee Naldinho, foi a primeira do gênero a soar em solo campo-grandense. A letra repetida de “e a lagartixa na parede, a lagartixa, a lagartixa, a lagartixa na parede” fazia com que muitos se mexessem incessantemente, praticando “manobras” que exigiam movimentos precisos de braços, pernas e pulos. Estes dançarinos, dentro da cultura do Hip-Hop, se tornariam os B-boys – mas isto, também, ninguém poderia imaginar.


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O principal ponto de encontro dos rapazes, que tentavam incansavelmente repetir os movimentos vistos nos aparelhos de televisão, eram os pontos públicos, como praças, e os terminais de ônibus da Capital. Eles reuniam uma grande quantidade de pessoas que sabiam dançar no bairro ao qual pertenciam e iam até esses pontos, onde encontravam outras pessoas de outros bairros, e iniciavam ali uma batalha de break, como em uma das cenas no filme Beat Street (1984), em que as gangues de dança travavam duelos de passos. Houve um tempo, também, em que as “batalhas de break” ultrapassavam as barreiras municipais. Wildenis, o King Wild, de Dourados, que é até hoje considerado um dos melhores b-boys do Mato Grosso do Sul, treinava na cidade para enfrentar o Thalles, de Campo Grande, para que, quando houvesse o encontro entre os dois, fosse possível fazer a demonstração de um verdadeiro espetáculo ao público que apoiava a cena do Hip-Hop. Os movimentos, que tentavam imitar as exibições de grupos e cantores famosos nos programas de TV, também tinham como inspiração as apresentações de grupos de dança japoneses, que exigiam precisão, rapidez e técnica. A ideia do rap foi sendo concebida nesse meio. Entre vielas, fitas de som, danças e grafites exigindo maior tolerância da polícia e também um olhar especial para a população carente. O protesto enraizado no Hip-Hop ganhou voz – esta, forte, carregada de mágoas, de gritos de socorro, de ódio perante a desigualdade e, principalmente, carregada de histórias que mereciam ganhar vez, depois de tantos anos guardadas e trancafiadas em baús de medo. Facilmente tais características podem ser explicadas devido ao cenário social da época: negros, pobres, sem


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oportunidade de estudo, sem oportunidade de emprego, sem moradia, sem nenhum tipo de incentivo do governo, sem nenhuma visão de um futuro bom. Viam-se menores de idade ingressando no mundo do crime pelo desejo de comprar um tênis que um garoto de classe média ostentava nos shoppings, viam-se pais de família desesperados porque o dinheiro do mês ainda não havia sido depositado e ainda assim as contas chegavam e os credores não davam a mínima – eles só queriam receber. Viam-se pessoas com melhores condições sociais fechando vidros de carros quando um garoto negro de chinelo se aproximava pra pedir algumas moedas pra comprar uma bala. Viam-se portas fechando – e nenhuma porta se abrindo. A solução? Jogar uma pedra no vidro e entrar sem convite algum. Ao menos, era isso que pensavam. Nessa grande cena que em muito lembra a dramaturgia das novelas, chegou o ritmo e a poesia, com a frase “empurra a porta com a sola do pé que uma hora ela abre – ou a gente arromba”. Wilson Rodolfo Ferreira, de 48 anos, conhecido como Bolinho, é o primeiro MC da história de Campo Grande, e teve a inserção no mundo do Hip-Hop através do break. O rap, muito além de um gênero musical, é encarado como uma forma de vida. Batidas elaboradas pelos mais diversos beatmakers1 são apenas parte de algo que funciona como um corpo humano – e que possui órgãos, membros e também uma consciência. A letra que um rapper escreve e grava em um estúdio (seja este caseiro ou profissional) é muito mais do que simples linhas agrupadas em uma só faixa: ela é a ________________________ 1 Beatmaker, dentro da cultura Hip-Hop, é uma pessoa que atua como produtor musical e constrói os instrumentais das suas músicas, que se baseiam principalmente em uma batida e em uma melodia, algumas vezes contendo samples de outros artistas.


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transcrição da alma do MC, que representa um povo. Bolinho conta que a primeira impressão que teve do rap era de algo “muito próximo” daquilo que ele já conhecia, e ao mesmo tempo muito diferente de tudo. “Você não cantava, mas declamava uma poesia ritmada. Isso me marcou muito, a batida foi a primeira coisa que me chamou a atenção, e principalmente o conteúdo das letras, que falavam de coisas que eu vivia, de coisas que eu sabia, de coisas que eu sentia. Isso que me tocou. Quando eu ouvi Thaíde, eu falei ‘nossa!’. Foi aí que eu comecei a me enturmar no movimento”, explica. Ele ainda relata que, ao mesmo tempo em que surgiram boas emoções ao escutar o rap, veio também o choque. “A gente mora em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, cidade conhecidamente como ‘Terra Pantaneira’, ‘Terra de Agricultor’, com uma cultura pecuarista, e eu ia de encontro a tudo isso. Quando a gente começou, era muito difícil. A gente ia numa rádio, tinha que tomar chá de cadeira pra explicar o que era o rap, o que era esse ritmo e poesia. Tivemos a cooperação de pessoas como o Silvinho César, que deu uma ajuda imensa pra nós, cedendo meia hora de seus programas, até sem o conhecimento da diretora da rádio, dando uma mão excelente pra fazermos o programa ‘Hip-Hop na Veia’, que foi o primeiro programa de rap na rádio existente em Campo Grande, no ano de 1993. O Silvinho fazia esse programa até mesmo sem as condições de patrocínio”, conta. É nessa representatividade que o rap se apoiou para que muito além de primeiros passos, fosse possível nessa estrada pantaneira finalmente caminhar.




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Para falar sobre o rap, é preciso fazer uma referência honrosa aos DJ’s, que são os verdadeiros maestros que conduzem a banda dos MC’s. É notório que, hoje em dia, devido aos avanços tecnológicos que ocorreram no meio musical, a “interação” entre o rapper e o DJ diminuiu bastante, principalmente porque tudo pode ser encontrado muito facilmente na internet, e tudo pode ser feito de maneira muito mais simples com os novos teclados e com os notebooks. Scratches e batidas são produzidas nas mãos de talentosos DJs com uma praticidade e rapidez inexistente há 20, 30 anos, e é sobre esse paralelo histórico que se trata este capítulo. William Reges Ferreira, o Billy, foi o primeiro DJ de rap da história da Capital, e também o responsável pelas apresentações de Bolinho, seu irmão. Ele era o DJ da Facção Hip-Hop e aprendeu tudo o que deveria fazer com Jânio Dj Jam, profissional que ele conheceu durante uma visita ao seu pai na cidade de São Paulo, que o ensinou a fazer alguns truques nas pic-ups, como produzir scratches com palha de aço e panela, no final de 1988. Ele conta que antigamente treinava em três em um e que, em Campo Grande, não existiam DJs de Hip-Hop, mas sim um “preconceito monstro” com aqueles que insistiam em fazer parte do movimento. Nessa época, quem tinha muito tinha somente duas toca-discos boas e um mixer bom, e o DJ fazia o resto com o vinil, como virar, por exemplo, 16 bases em


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15 minutos. Havia a necessidade de o profissional se especializar cada vez mais, para aprender a ser bom, aprender o tempo, conseguir deixar o espaço para o rapper entrar na música. Antigamente, os grupos ensaiavam até mesmo os erros. “Se pular a agulha, como é que a gente vai fazer?”, questionavam os MCs, que ouviam imediatamente como resposta a possibilidade de uma pequena mudança na batida para que a falha pudesse ser “disfarçada” e a mesma não atrapalhasse o desempenho nas performances. Os profissionais aprendiam a desparafusar o equipamento, descer a mesa, colocar um feltro para que a mão ficasse leve o bastante para não riscar o disco, aprender a fazer scratches na diminuição e no aumento do volume do som no próprio equipamento. Por isso, há anos atrás, quando havia a oportunidade de trabalhar com um equipamento bom, bons resultados eram apresentados, já que até mesmo na dificuldade havia a possibilidade de sair um trabalho muito bem feito dadas as circunstâncias nas quais os mesmos eram produzidos. Billy ensinou suas técnicas ao Magão e ao Marquinhos Espinosa, este último, DJ de Campo Grande reconhecido internacionalmente, que aprendeu a trabalhar com os equipamentos “old school” usados antigamente. Hoje em dia, como já dito anteriormente, as facilidades são tamanhas e chegaram a impressionar até quem trabalhava com as “bolachas pretas” de antigamente. Bolinho conta que, certa vez, ele e Billy estavam participando de uma gravação e foram apresentados ao Serato DJ, que dispõe de recursos profissionais de mixagem através de um aplicativo que permite o total controle do som, e o William não sabia sequer como manusear o equipamento, uma vez que foi acostumado


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aos gadgets2 mais “complicados” e totalmente manuais. Os saudosistas sentem falta da interatividade existente entre o DJ, o rapper e o público. Dizem que os ouvintes pagam um ingresso para assistirem a um show completo, não somente a uma apresentação musical. Esse show, no caso, refere-se ao talento do deejay, que consegue envolver a sua plateia em manobras com os discos e os equipamentos que o cercam, e também ao desenvolvimento do MC, que é o letrista, a pessoa que consegue versar por cima das tão bem elaboradas batidas. Ainda que caminhem juntos, a menção sobre tais maestros do rap se faz necessária porque é impossível falar de um sem falar do outro – para que seja possível dar continuidade à história do rap em Campo Grande, é necessário que haja o total entendimento daqueles homens por trás dos pratos, que tanto possibilitaram aos denominados “mestres de cerimônia” e, por isso, o paralelo histórico precisa ser tratado com atenção. Para falar sobre o PRIMEIRO rap que foi feito, é preciso falar sobre o PRIMEIRO DJ da Capital. São figuras importantíssimas e que faziam acontecer o som, que faziam acontecer a magia em cima do palco.

“O rap não acontece sem o DJ”, finaliza Bolinho.

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Expressão francesa comumente associada às peças mecânicas variadas.





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No ano de 1998, Campo Grande ganhou o grupo de RAP conhecido como Falange da Rima – este, que resiste até hoje, apesar das mudanças e do passar dos anos. A história teve início com o break e com os coletivos de MCs conhecidos como Perfect Break, composto por Bolinho, Magão, Coró, Dedê, Geléia, Barril e Snake; Cultura de Rua, do bairro José Abrão, composto por Galo, Alciney (in memorian), Flynt, Clay, Tatu e Boca; e o Facção Hip-Hop, da região do Jardim Imá, composto por Billy, Bolinho e Magão, um grupo “alternativo” do Perfect Break, onde começaram a produzir as primeiras rimas de rap na Capital, em 1989. Conforme mostram os relatos daqueles que viveram esta primeira experiência, a ideia inicial era gravar um álbum com o nome “A Falange da Rima na Cidade dos Anjos Caídos”, que posteriormente viria a ser também o nome do grupo, nascido a partir da ideia de tentar fortalecer o Hip-Hop no Mato Grosso do Sul. Pelo grupo, já passaram nomes como Bolinho, Ucley, TGB, Pongo, Cleyr, e a atual formação é composta por Márcio Leite Fernandes, o Xis, de 45 anos; André Aguirres, o Flynt, de 44 anos; Altino Araújo, o Jhon Geral, de 32 anos; e Claudinei Souza, o Magão, de 40 anos. A primeira apresentação grande dos músicos foi na abertura de um show dos Racionais MC’s, no primeiro evento que eles participaram em Campo Grande. O grupo também participou da abertura de um show de Thaíde e DJ Hum, no


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Ginásio do SESI, e num show do GOG, em Cuiabá. Pouco tempo depois de sua criação, já no início dos anos 2000, o grupo alcançou um patamar jamais visto pelos MCs do Estado: ganharam respeito do público e da crítica com as músicas “Circo dos Horrores”, “Abracadabra” e “A Quem Possa Interessar”, que continham, na lírica, pesadas críticas ao sistema opressor. Esta primeira citada, inclusive, ganhou espaço no programa “Yo!”, transmitido pela MTV Brasil, com a exposição das mazelas sociais da Capital pelos versos de “Vem, vem, pro Circo dos Horrores! Vem, vem, senhoras e senhores... Vem, vem, que o show vai começar – eu tenho ingresso pra vender, quem quer comprar?”, que referiam-se aos inúmeros casos de desamparo social, da diferença entre as classes e também às dificuldades automaticamente impostas para as pessoas menos favorecidas. Após o reconhecimento conquistado na atmosfera nacional, no ano de 2013, o coletivo lançou o CD intitulado “Esquadrão Mariposa”, com uma nova postura musical e letras críticas mais elaboradas, mas também mais leves. Esse “novo conceito” de rap, para Márcio, é extremamente válido, uma vez que na periferia “já existem muitas coisas ruins” – e quando fala sobre isso, ele transparece a serenidade de quem confia em dias melhores no futuro. Muito disso é resultado de experiências adquiridas com o passar dos anos, entre terminais de ônibus, histórias de ruas sem leis e olhos já cansados dos horrores presenciados dia após dia em uma cidade que, apesar de passar a sensação de segurança para aqueles que nela vivem em boas condições, só revela a desigualdade existente nos “cenários morenos”. Este trabalho contém faixas como “Hey Mano, o Mundo é Louco”, “Passos na Areia”, “Menos 1 Guerreiro”, “Passos


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Indecisos”, “Matemática do Cão”, “Filho”, “Capital sem Favela”, “Perdoe-nos”, “Vagabundo Treme”, “Caminhos Tortos”, “O Pano do Rei” e a “Super Heróis”, música particularmente curiosa. Flynt, que é um homem de voz firme e agressiva (no bom sentido, já que transmite imposição e respeito), apresenta uma feição séria e fala sobre tal faixa com o carinho de quem se lembra do exato momento em que ela foi pensada e, depois, escrita. Enquanto a caixa de som solta que “em cada esquina um novo herói, uma lenda, surge na quebrada, em meio a violência”, ele conta que a ideia da produção desta música surgiu em meio a uma conversa com alguns garotos do bairro Dalva de Oliveira, que há alguns anos sofria constantemente pela chamada “Guerra dos Becos”. Entre risadas e lembranças, os garotos se mostravam orgulhosos por seus feitos ilegais e se consideravam como Super-Heróis. Um dizia que era o Homem-Aranha, porque nenhuma parede era capaz de detê-lo. O outro, o Flash, já que ninguém nunca conseguia encontra-lo a partir do momento em que o mesmo “dava fuga”. Outro, ainda, dizia-se tão destemido quanto o Wolverine. Ele, ainda, conta que essa música retrata somente uma das várias outras histórias que ele já ouviu e presenciou no local. Buscando em suas memórias algo que também retrate as dificuldades já vividas, Flynt tenta expor a fragilidade social instalada no Brasil enquanto conta que, na quebrada, o sonho de todo garoto é ter um cano3 e uma moto. Em seu relato, traz à tona o fato de que, certa vez, dois garotos estavam conversando perto do muro de sua casa sobre aquilo que nunca havia acontecido com eles: um dos garotos nunca levou um tiro e, o outro, nunca atirou. Conversa vai, conversa vem, ouve-se um barulho próximo de uma arma disparada. Enquanto um se-


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gurava a arma e gabava-se por dar seu primeiro tiro, o outro, entre sorrisos de alegria e lágrimas de dor, celebrava o fato de ter sido atingido no pé. “Histórias da suposta Capital sem favelas, não é, ex-governador?”, ironiza, entre um e outro gole de aguardente para aquecer a voz antes do ensaio. Os integrantes do grupo são unânimes ao relatar que todo o trabalho feito até os dias de hoje só foi possível graças às insistências e aos esforços de cada um daqueles que já fizeram e fazem parte desta “família”. Xis conta que, apesar da falta de apoio e incentivo por parte do governo, eles sobreviveram até hoje contando com a própria independência e com algumas parcerias que também são independentes. “Nós deixamos o nosso material nas lojas que tem alguma proximidade com o Hip-Hop, como as que vendem acessórios para skate, e depois deixamos a marca dos ‘patrocinadores’ na capa do CD, pra ajudar a divulgar o trabalho deles também”, explica, enquanto deixa claro que tudo que já foi feito até agora, está na cena graças ao empenho daqueles que acreditam na força que o rap tem – e projetam a força que ele ainda vai ter. Ainda em 2015, o grupo pretende lançar um novo EP4 mais “espiritualizado” que todos os trabalhos anteriormente produzidos, mas sem abrir mão do estilo já proposto em seus últimos álbuns. O single do trabalho é intitulado “Anjo”, e retrata a vida de um trabalhador que precisa lidar com as dificuldades do dia a dia e, ao mesmo tempo, precisa manter forte a sua fé – que é essencial, aos olhos dos homens tementes a Deus. “Eu era um anjo e as minhas asas me levavam ao espaço ________________________ “Cano” é uma gíria que se refere às armas. Extended Play (EP) é uma gravação em vinil ou CD que é longa demais para ser considerada um single e muito curta para ser classificada como álbum; 3

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sideral, e a minha casa era um circo que eu armava e desarmava em qualquer lugar... E hoje: o escritório, o ar refrigerado e as prestações para pagar. Minha casa, o meu carro, e as prestações para pagar. E o cigarro que hoje fumo se encontra em qualquer bar...”, quando repetida incessantemente na caixa de som do espaço improvisado para os ensaios do grupo, na casa de um dos integrantes, faz com que os artistas se emocionem. O orgulho do que foi produzido é claramente estampado em cada um dos rostos dos homens que, muito além de MCs, são pais de família, trabalhadores, filhos, irmãos, e que, ainda assim, encontram um espaço em seus regrados e sagrados horários para levar adiante um projeto que, se fosse um filho, já seria maior de idade... Já seria um homem – que, na força dessa palavra, teria a mesma responsabilidade que o Hip-Hop trouxe para cada um deles: levar adiante a ideia de que a cultura é um corpo e só funciona se todos os seus membros trabalharem juntos, por somente um ideal. “Qualquer um que falar sobre o Hip-Hop e não der argumentos que signifiquem isso, não representa a cultura e não sabe do que está falando”, encerra Flynt, com o punho direito cerrado em uma clara demonstração de força – esta, que o movimento tem de sobra.





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Todas as pessoas que fizeram parte do movimento HipHop em Campo Grande, de certa forma, contribuíram para esse “pé na porta” na cultura de Mato Grosso do Sul, que é muito fechada e enraizada em sua essência pantaneira e campeira. Seguindo essa ideia, além dos MCs, DJs e dos b-boys, também se faz necessário lembrar dos grafiteiros, que contribuíram e contribuem muito para a aceitação da cultura na Capital. Essa arte, por si só, é uma manifestação artística crítica, onde se pode debater sobre o tema proposto ou admirar a estética dos traços, em meio aos centros urbanos – como é em Campo Grande – e como faz o rap, só que em forma de pintura e riscos rústicos nas paredes. Sua popularização aconteceu na década de 70, quando grupos de jovens decidiram marcar as paredes da cidade com algum tipo de símbolo próprio, como uma espécie de demarcação territorial, ou simplesmente expressar aquilo que estavam vendo por meio de uma lata de spray. Renan Mello, da tag Ópio-Um, contribui com o movimento do grafite desde o ano de 2005. Ele divide a atenção dada aos muros com a família e o trabalho e afirma que, em seu tempo livre, sempre procura estar entre as latas de tinta. Com seu gosto pessoal voltado para essa arte urbana, ele garante que existe muito preconceito, mas ainda assim, se dedica ao máximo para que seus desenhos despertem curiosidades e passem boas impressões. “A crítica é o que


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mais me fortalecia. O cara criticava um trabalho meu há um tempo e eu pensava assim ‘que nada! Vou me dedicar para fazer o melhor e assim, quando ele passar de novo, ele vai pensar duas vezes naquilo que ele está dizendo’”, afirma. Ele ainda garante que, hoje em dia, o grafite já não é tratado como ‘qualquer coisa’ ou ‘molecagem’, como era há alguns anos. “O negócio ficou muito rígido. Se você não tem uma autorização num muro, onde você vai fazer um grafite, se a polícia te parar, pode ser o desenho que for, eles vão te levar, vão te fazer assinar um B.O, te fazer pagar a multa de R$ 1.500,00”, explica. Renan também conta que, vez ou outra, algumas pessoas costumam convidar os grafiteiros para participarem de projetos e de ações que colorem muros. “A gente tenta mostrar pra comunidade que nós somos pessoas normais, que estamos tentando viver nossas vidas. Quando acontece algum evento, a gente tenta arrecadar alimentos pra passar pras pessoas carentes, pra Cidade de Deus, pra mostrar que a gente não faz nada de mais”, diz. Porém, mesmo com isso, ele ressalta que, rotineiramente, ocorrem as chamadas “revoltas dos grafiteiros”, quando o pessoal adepto do movimento sai pra riscar algumas propriedades. “Isso acontece por causa da revolta que eles causam na gente. A polícia aparece do nada pra bater, sendo que nós somos artistas e alguns de nós ganhamos a vida com isso. Eu não to tentando mudar o mundo com isso, mas querendo mostrar pros outros o que eu gosto de fazer nas ruas”, sintetiza. Bolinho conta que, no rap, de certa forma, foi um dos primeiros a fazer isso, na época em que ainda participava do Facção Hip-Hop. Conforme seus relatos, as idas para a cidade de São Paulo muito contribuíam para movimentar a cena na


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Capital, já que de lá vinham discos, VHS e projetos sociais que de forma direta e indireta moldaram o que o rap sul-mato-grossense tem em sua essência. Dessa forma, a cidade ganhava contribuições de um local que, culturalmente falando, já caminhava com suas próprias pernas. Os integrantes da Falange da Rima também são importantes nesse primeiro passo que o rap deu, quebrando o estereótipo sertanejo da cidade e “dando a cara à tapa” para que a cultura se transformasse naquilo que é hoje. Eles contam, com um certo ar de nostalgia, que no começo todas as coisas sempre foram muito difíceis, mas que a persistência na arte, na dança e na música, mesmo que ainda não tenha dado grandes retornos financeiros, valeu a pena. “É o que a gente ama fazer. Mesmo sem o incentivo do governo, mesmo sem incentivo dos próprios MCs ou do público, a gente continua fazendo porque acha que é importante fazer”, explica Xis.





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Enquanto grandes capitais brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e Florianópolis abrem as portas para MCs empilharem discos e agendas recheadas de shows, Campo Grande ainda carrega uma certa resistência para a permissão desse crescimento acelerado. A vida de quem escolheu o rap como uma espécie de profissão não foi fácil no começo, e continua a pesar nos dias atuais, como é possível perceber em cada uma das palavras proferidas pelos homens e meninos que levam essa missão nas costas. Os mais antigos, responsáveis pelo grupo Falange da Rima, acumulam profissões. Um deles trabalha com a construção civil. O outro, é cartazista. Um trabalha com o manuseio de azulejos. Outro, em uma gráfica e, nos finais de semana, trabalha como DJ em festas independentes. Nenhum possui o curso superior completo – mas todos possuem lições que jamais seriam ensinadas em sala de aula por qualquer doutor ou mestre. Com a voz serena e carregada de certezas, Márcio, o Xis, garante que apesar do amor que eles sentem pelo rap, não é possível viver somente disso quando existe uma família que precisa de sustento, ou quando as contas continuam chegando, ou quando eles mesmos precisam tirar dinheiro do próprio bolso, caso queiram cantar em algum evento ou participar de algum show, uma vez que o incentivo é baixo e as despesas que envolvem locomoção e aparelhagem são


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grandes demais. Ele ressalta, também, que o grupo consegue um “dinheiro extra” através da venda de camisetas e moletons com a tag Falange da Rima. Os produtos são vendidos em uma barraca do Camelódromo, que é de um amigo. A negociação funciona assim: o material recebe um preço original X e, tudo o que o dono do box colocar em cima deste valor, fica de lucro para ele, que acaba conseguindo vender também um boné, outras camisetas e outros artigos que podem interessar para todos aqueles que fortalecem a cena underground5 do Estado. Os garotos mais novos, que integram o grupo Locoleste, do clã OsFreiDeBura 05768, como denominam, desde sua formação, no ano de 2011, possuem uma forma de pensar um pouco diferente: em meio às dificuldades, eles ainda batem o pé no chão e teimam em carregar somente o fardo de ser rapper – com exceção de um, que é o tatuador oficial e que consegue ganhar algum dinheiro “fora” do Hip-Hop. Eles são: Gabriel de Souza, o Neco; Paulo Morais, o Woompa; Matheus Leonel, Yule; Fábio Henrique, o Lov; e Juliano Salustiano, o Deejay Prato, cada um com um estilo único e uma levada que se difere quase que totalmente daquele estilo convencional de levar a mensagem aos seus ouvintes. Eles explicam que o coletivo OsFreiDeBura 05768 é composto por pessoas que atuam no meio artístico e que os números desordenados ditam regras que devem ser seguidas por todos aqueles que fazem parte desta união. A regra número 0 – que segue a disposição numérica -, pede humildade, ________________________

Underground é uma expressão utilizada para designar um ambiente cultural que foge dos padrões comerciais, dos “modismos”. Em inglês, significa “subterrâneo”. 5


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lealdade e respeito. A número 5 implica no profissionalismo com a cultura, que significa que, não importa o que você esteja fazendo, você precisa levar de forma correta e profissional o nome do clã. A regra 7 fala sobre a inexistência de hierarquia no grupo, ou seja, que independente de quem esteja em falta com as duas primeiras regras, qualquer outro integrante poderá questionar o comportamento do “faltoso” e, assim, solicitar o seu afastamento das atividades. A regra 6 é sobre a necessidade da tatuagem que identifique os irmãos, que pode ser o brasão do clã, ou a numeração 05768, ou a sigla OFDB, que deverá ser feita em qualquer parte do corpo, como um pacto e uma decisão de viver com somente uma escolha. A regra número 8 é a “regra geral” e fala sobre a expulsão do integrante em qualquer desrespeito às regras anteriormente citadas. Sobre o nome do clã, explicam que “OsFreiDeBura” é uma gíria utilizada no bairro Tiradentes para falar sobre as pessoas que são freio (frei) de viatura (bura), ou seja, pessoas que, pela aparência diferente e por cantarem o que cantam, certamente chamam a atenção da viatura da polícia. Woompa explica que a escolha pelo nome foi feita em uma severa critica contra o sistema e o seu “braço” (no caso, a polícia), já que são oprimidos constantemente pela escolha de vida que fizeram Por trás dos mesmos, estão os produtores Ellys Kohagura, irmã do Neco, e Eduardo Martins, conhecido como “Engenheiro Edson”. Eles, de forma direta e indireta, auxiliam no ganho dos garotos e possuem valiosas lições em suas bagagens. A garota de 20 anos e seus parceiros no negócio acumulam um conhecimento que ainda está em falta para


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muitas pessoas envolvidas no ramo musical: o reconhecimento das virtudes dos demais ramos musicais e a prática de ações semelhantes para alavancar a arte que ela promove e defende com unhas e dentes para todo o País. Eduardo defende a ideia de que é preciso aprender, por exemplo, com o sertanejo – que é o estilo musical que mais faz sucesso em Mato Grosso do Sul, devido às raízes pantaneiras que traçam todo o Estado. Em sua carreira de produtor, ele consegue ver, muito claramente, que a organização que os artistas sertanejos vendem é algo de encher os olhos e dar inveja até mesmo àqueles que não possuem qualquer apresso pelo estilo. A estrutura dos trâmites, em sua exemplificação, é muito mais segura: os papéis são redigidos com antecedência, os equipamentos são manuseados com rapidez, os artistas chegam exatamente no horário marcado, todos os compromissos feitos são honrados e, desta forma, o “cartão de visita” é muito mais bonito e encarado com muito mais seriedade – esta, que muitas vezes falta naqueles produtores envolvidos no mundo do rap. Todo esse aprendizado foi passado aos garotos, que assimilam que a arte, independente de suas diferenças, continua sendo arte e, por isso, sempre vai ter um público fiel – e que depende do esforço de todos os envolvidos para crescer ainda mais e ganhar ainda mais espaço nos fones, nas rádios, nos aplicativos musicais, no YouTube, na televisão e nos mais diferentes tipos de plataformas que podem proporcionar a experiência auditiva aos interessados. Paulo e Gabriel defendem, com unhas e dentes, que o rap não possui uma fórmula mágica e que precisa ser trabalhado gradualmente e em todas as atmosferas para que possa se


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expandir tanto quanto todas as outras vertentes culturais. Tal pensamento é extremamente cravado na linha de raciocínio de que, quando existe trabalho, existe também a recompensa, já que, se não houver empenho de todas as partes envolvidas nesse processo, estar em Campo Grande ou em uma cidade como São Paulo, a situação será absolutamente a mesma: ninguém vai conseguir ganhar nada com isso. Woompa, que parece ter dentro de si uma inflamação política e social muito grande, deixa claro que não adianta gritar com pedidos de mudança se ninguém se mexe para, efetivamente, fazer a mudança acontecer. Seu corpo coberto por tatuagens e sua voz firme transmitem a segurança de quem está no jogo para vencer, e não somente para ser um mero coadjuvante de uma história tão bonita quanto a do rap em Campão. Ele fala sobre a inserção de MCs na política, sobre a capacitação cada vez maior dos envolvidos no mundo artístico, da necessidade de inúmeras conversas para que seja possível enxergar um objetivo em comum... Neco também possui um estilo um tanto quanto diferente aos olhos daquilo que é comum, e demonstra a mesma vontade de fazer parte, de integrar, de fazer crescer o movimento do Hip-Hop na Capital. Em suas palavras, o rap, muito mais que um estilo musical e um movimento cultural, é também um salvador de vidas – a sua, inclusive, e talvez seja por isso que defende tão firmemente essa ideologia que o ritmo e a poesia carregam em suas entranhas. Bolinho ressalta que toda arte, sendo ela de rua, sendo a arte que for, possui essa magia de resgate às pessoas. “Eu tive a oportunidade de ver, em meio às transformações da sociedade, que o rap consegue resgatar, e ao mesmo tempo vi muitos entrarem por um caminho errado. É aquilo que eu


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sempre tentei passar em todas as minhas apresentações: não vire personagem daquilo que você canta. No rap, assim como no rock e nos mais variados movimentos artísticos, existem várias ramificações, e cada um tem uma forma de cantar, uma forma de mostrar o seu conteúdo. Você tem que, entra as suas palavras, ter o discernimento de mostrar uma alternativa, porque uma comunidade não quer ouvir só ostentação, só crime, só violência, porque isso a gente vê toda hora. A comunidade quer que a juventude dela apresente uma solução”, explica. Em meio às dificuldades e opiniões que se divergem dentro do próprio movimento, é estranhamente visível que desde as falas de “não dá” dos integrantes da Falange da Rima à “teimosia” dos meninos que insistem em viver de tudo que o rap pode dar, que todos buscam o seu espaço – até mesmo quando não acreditam mais nele. O beco pode até ser sem saída, mas nada impede que seja criada uma nova rota, que seja traçado um novo caminho... Disposição é, definitivamente, a única coisa que não falta para todos aqueles que entenderam que cada um que vive isso é o próprio Hip-Hop e que ele, apesar de ser tão grande, faz com que todos os que o vivem sejam somente um.




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Já cantavam Racionais MC’s que “somos o que somos, somos o que somos, somos o que somos, cores e valores, cores e valores, cores e valores”6: uma apresentação da ideia de que cada cor pode ser interpretada como um tipo de valor ou forma de se comportar no mundo – especificamente no caso citado, valores de resistência, luta, construção de famílias e comunidades fortalecidas. Quando se fala sobre o rap, é impossível fugir da ligação direta com o protesto – comumente visto nas letras dos grupos e artistas mais conhecidos do cenário nacional, como os próprios Racionais MC’s, Realidade Cruel, Facção Central e demais expoentes. Na Capital de Mato Grosso do Sul, principalmente nesta questão, a história não haveria de ser tão diferente daquela contada e conhecida em todo o território nacional – e fora dele também. As pessoas cresceram acreditando que o rap haveria de ser feito de um ou de outro jeito – e muitos levam isso extremamente a sério, não fugindo muito das habituais letras contra o sistema político, a desigualdade social, as mazelas sociais e demais temas que assolam a população mais carente e frágil do País. O grande problema, nacionalmente falando, é que o “protesto”, também, é recheado de preconceito – e não é difícil percebê-lo nos artistas e simpatizantes da cultura do Hip-Hop. É possível enxergar com frequência, em fóruns na ________________________ 6

Faixa 1 do álbum “Cores & Valores”, lançado em novembro de 2014.


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internet, nas próprias letras e etc, pessoas tão apegadas ao rótulo de que o rap precisa ser da favela para ter algum tipo de valor, ao ponto de não concordar com o crescimento que a vertente está tendo em todo o País, que impulsiona os artistas a botarem a cara na televisão nas mais diversas emissoras, a tocarem nas rádios e que faz com que os mesmos sejam reconhecidos por seus respectivos trabalhos. Em Campo Grande, os garotos do Locoleste, apesar de considerarem que o rap é a voz daqueles que muitas vezes não podem falar, acreditam que o crescimento é bom para todo mundo – e que o reconhecimento que este crescimento trás, também. Paulo defende a ideia de que, se um grupo pode ir no Manos e Minas7, que fala exclusivamente sobre rap para um publico devidamente segmentado, ele pode também ir no Esquenta, da Rede Globo, que possui um alcance muito maior, uma vez que o rapper nada mais é que um trabalhador, e precisa mostrar o seu trabalho para o máximo de pessoas que ele puder, porque isso rende dinheiro – e este último é necessário para que seja possível levar adiante todo o trabalho no qual eles se empenham para fazer. Em seu pensamento, é preciso aproveitar a “onda” que a mídia nacional está fazendo crescer sob o rap e a quantidade absurda de problemas sociais, para que o estilo seja firmado de uma vez por todas na Capital, como foi com o sertanejo, com o pagode, com o eletrônico e, por último, com o funk. Os integrantes da Falange da Rima empenham-se, constantemente, em participar do dia-a-dia dos garotos, para poder somar com essa ideia do crescimento exponencial que a cultura do rap vem sofrendo nos últimos anos. “Nós sempre ________________________ 7

Programa televisivo brasileiro exibido pela TV Cultura desde 2008.


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procuramos estar com eles, somando nesse pensamento de que precisamos crescer, mas sem perder a nossa essência, a nossa raiz, que é a nossa quebrada, o que nós vivemos aqui”, explica Xis. O achismo de que o rap é “moda” também é um ponto que consegue incomodar pessoas da antiga e da atual geração, uma vez que o movimento existe há anos, possui adepto há anos, e agora que está chegando aos ouvidos de diversas outras pessoas, de diversas outras classes sociais, há quem o julgue como algo passageiro, como foi, por exemplo, o “movimento” emo. Os garotos do Locoleste, inclusive, lançaram recentemente, no dia 10 de setembro, o clipe oficial da música “Moda me Incomoda”, que trata sobre o tema. “A mídia traz a moda e a moda é que me incomoda, várias horas de marola, prova e escola nóiz reprova... Não é por nada não, não é nada pessoal, quer rap? A letra é pura treta e ‘Zé Povim’ é tudo igual...”, é um dos versos do som que critica a “rotulação” constante que o Hip-Hop e especialmente o rap vem recebendo, principalmente por conta do crescimento acelerado proporcionado pela aparição de artistas do gênero em programas das maiores redes televisivas do Brasil (como a Rede Globo, Rede Record, Rede Bandeirantes, SBT, etc).





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Ainda que Campo Grande seja o principal foco deste trabalho, no município de Dourados, em Mato Grosso do Sul, precisamente entre as aldeias Jaguapiru e Bororó, próximas ao perímetro urbano, estão Bruno Veron, Clemerson Veron, Kelvin Peixoto e Charlie Peixoto, que compõem o primeiro grupo de rap indígena do Brasil, intitulado Brô MCs (abreviação da palavra americana brothers, que significa irmãos). A ideia de formar essa “nova voz” de um povo que frequentemente é alvo de preconceito começou em 2008, com Bruno, que gostava de ouvir rap de expoentes como 509E e Racionais, e em diversas situações se reunia com alguns amigos para escutar as fitas compradas e trazidas da cidade, até que um dia foi convidado pelo diretor da escola local para fazer uma espécie de apresentação cultural um pouco diferente daquilo que era visto e conhecido pelas crianças que frequentavam o ambiente. Foi assim que, pela primeira vez, ele apresentou publicamente algumas de suas letras, sempre inspiradas pelos maiores nomes do cenário nacional. Com o passar do tempo e com o surgimento de novas oportunidades de cantar na aldeia, seu irmão Clemerson se juntou a ele e, posteriormente, os integrantes Kelvin e Charlie, também irmãos. Com a frequência das apresentações e com o convite do agora produtor Higor Lobo, que fazia parte do coletivo Fase Terminal – também fonte de inspiração para o Brô MCs, o grupo fez uma participação especial no CD do HG (como Higor é chamado) e foi aí que o trabalho recebeu um maior tom de seriedade.


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A música gravada com o grupo, intitulada “No Yankee”, levou o grupo ao “concurso” de RPB (Rap Popular Brasileiro). A primeira etapa, realizada em Dourados, foi vencida pelo “grupo que misturava guarani com português”, nas palavras do animador da plateia. Bruno conta que a participação no torneio não tinha objetivos maiores do que a amostragem do trabalho do grupo para as pessoas da cidade e os demais competidores, mas que, mesmo sem a pretensão, a vitória veio em boa hora. A segunda etapa foi realizada em Campo Grande, e o grupo também levou o título. A terceira e última etapa foi no Rio de Janeiro, para onde eles viajaram de van, devido a falta de condições financeiras para custear o embarque aéreo, e mesmo entre todos os “bons grupos” que lá estavam, eles saíram com o quinto lugar. Com olhar tímido, camisa azul, bermuda e pés descalços no chão de terra vermelha, Bruno comenta sobre a escolha do rap como forma de expressão e também sobre a importância do mesmo em sua vida. “Eu escolhi o rap pela liberdade de expressão. Se eu escolhesse o sertanejo, o forró ou outro tipo de música, estaria falando de outra realidade, eu não estaria falando sobre o que acontece aqui na minha quebrada8. Eu escolhi o rap pra mostrar a realidade, mostrar o que passa na minha aldeia, através de rimas e poesia. Por isso ele é importante. Porque através dele eu mostro que o que está acontecendo na quebrada de um cara de um grupo famoso, também está acontecendo aqui, e então eu falo sobre isso e mostro a minha realidade, que também é a realidade de outros lugares”, fala, entre olhares que transmitem segurança e certeza do que expressam cada uma das palavras proferidas.

Ele também conta sobre a gravação do primeiro CD e

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Palavra que se refere ao local onde vive o MC.


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sobre o que esse marco proporcionou para o grupo. “Algumas pessoas não levavam a gente a sério. Nas nossas famílias, nossos pais acreditavam que seria algo passageiro, não colocavam muita fé. Quando veio o primeiro trabalho, eles viram que era pra valer. Os líderes da tribo, que também achavam que o que fazíamos não era sério e nem certo, viram que nós falávamos nas músicas sobre o que acontecia aqui e acabaram gostando e apoiando. As pessoas daqui [do povoado] também... Com esse CD, nós fomos convidados para o Programa da Xuxa, participamos de entrevistas do G1, UOL, EFE, etc”, conta. A participação no programa global, inclusive, é um marco para os rappers de Mato Grosso do Sul: nunca antes um grupo com integrantes do estado conseguiu chegar tão longe. O fato também é reconhecido pelos MCs da Capital, que elogiam a presença do movimento em um programa de alcance tão grande. Apesar de o rap chegar ao Brasil através da importação da cultura americana, o que é visto em solo sul-matogrossense (e que ganhou destaque nacional) é a valorização do idioma nativo, o guarani, e a necessidade de mostrar a cultura brasileira através da música. “Representamos uma etnia e um Brasil de muita diversidade, então mostramos a nossa realidade nessa mistura entre o guarani e o português, e somos o único grupo a fazer isso”, explica. O rapaz, que tem uma espécie de brilho nos olhos quando fala sobre o rap, conta com orgulho que as letras elaboradas pelos seus companheiros e por ele mesmo tem como principal objetivo fazer com que as pessoas tenham ideias positivas. “Falamos sobre a nossa realidade para que o pessoal não vá para o caminho das drogas, da violência.


70 | RAP: O SOM QUE PEDE O PLAY

Queremos ser exemplo, mostrar que os outros também podem chegar lá, que só precisa de dedicação e força de vontade para realizar os planos”, diz. Ainda sobre a lírica utilizada pelo grupo, Bruno aponta que outro tema que recebe muita atenção é a questão da morte das lideranças nas áreas de conflito. “A gente recebe notícias, relatos e vídeos que falam sobre os conflitos, e com esse material podemos escrever as nossas letras, falando sobre o preconceito que nós sofremos pelas pessoas que não conhecem a nossa causa e por pessoas que só se baseiam naquilo que a mídia mostra”, explica. A mídia citada no depoimento do elemento do grupo, inclusive, pode ser apontada como grande vilã em muitas das barreiras culturais impostas aos índios. O rapaz relata que, as vezes, as pessoas “do jornal” não costumam ouvir a verdade deles, ou enxergar a verdade deles, e preferem somente dar destaque quando algo ruim acontece. “Eles esquecem que nós temos o nosso lado bom também. Ninguém nunca fala quando um dos nossos morre, mas quando algum fazendeiro é assassinado, as notícias são divulgadas”, relata. Bruno também afirma que a internet é a principal aliada nessa propagação do rap que difunde a cultura indígena feito pelo grupo. “Todo mundo precisa de internet. A gente fez um videoclipe em 2010 jogou no YouTube para o pessoal ver, e hoje tem mais de 250 mil acessos. As músicas também. Gravamos e colocamos na internet para o pessoal escutar. A gente, antes de começar a viajar, não sabia que a nossa música estava tocando na Bahia. Um dia, um cara falou que estava tocando lá. A internet é importante para divulgar nosso trabalho para que outros povos indígenas vejam. A nossa música toca na Amazônia, no Paraguai e até na Europa”, finaliza, com


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orgulho de quem vê que, apesar da ferramenta ser “importada”, o trabalho é mais brasileiro do que muitas outras coisas que assim são definidas.





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O rapper Emicida versa, em uma canção lançada em dezembro de 2013, que “pros moleques que sonha com isso: é nóiz! Desde o começo a minha sugestão é ser: papel, caneta e coração... Papel, caneta e coração – nunca, nunca menos do que isso, certo?!”9 , um de seus sons em que conta um pouco da sua relação com a música e seus passos trilhados até então. Quando o assunto é o “coração” do MC, todas as palavras são extremamente pessoais. Os músicos entrevistados dizem que, em meio ao sentimento, há a ideia da valorização do trabalho, antes de tudo – até mesmo do chamado “amor pela música”. Talvez isso seja um dos principais diferenciais dos garotos de Campo Grande: a necessidade de valorização daquilo que eles fazem e vendem e a visão mais real sobre o seu produto, que é apenas mais uma ferramenta de propagação de ideias. O rapper paulista citado no início deste capítulo canta, em outra track, que “se alguém vai ganhar grana com essa porra, então que seja eu!”10, o que não significa que não haja o músculo que dá vida ao corpo humano envolvido – apenas que amor não paga as contas de ninguém. Vale ressaltar, também, que o real sentimento que é propagado por um rapper é pela sua ideia e não propriamente pelo movimento do rap. “Tem muita gente que fica nessa fita ________________________

Trecho da faixa “Papel, Caneta e Coração”, single disponibilizado por Emicida em dezembro de 2013. 9

Trecho da track número 25 intitulada “Oorra...”, escrita por Emicida, que faz parte da mixtape “Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe...”, de 2009. 10


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de ‘faça por amor’ e não é assim, mano. Pra você fazer o seu trabalho, você precisa de dinheiro. Se eu ficar fazendo por amor, muita gente vai desvalorizar meu trabalho e não vai me dar recurso pra eu poder continuar trabalhando, entendeu? É melhor você continuar no rap, continuar na ativa, do que você ficar nessa brisa de ‘eu faço por amor, eu faço por amor’, e ficar patinando sem sair do lugar. Você tem que amar sua ideia, antes de tudo”, explicam. É como canta Shaw, sob a alcunha de seu alterego Cachorro Magro, na faixa FMP, de seu EP intitulado “O Inferno do Cachorro Magro – O EP do Vilão”, lançado em janeiro de 2015, “é que pra mim é sagrado o fruto do suor diário de um homem, quem dera fosse sagrado também para os que o consomem...”. Sobre essa questão, Neco completa que “o que você precisa é profissionalismo. Como o truta estava dizendo, muitas vezes, se você fizer apenas por amor, as outras pessoas podem usufruir disso apenas pra te atrasar ou te desvalorizar. O que você tem que saber é que o sentimento pela música já está dentro de você e agora você tem que buscar o que você merece, entendeu? O sentimento já tá aí, você não precisa querer fazer as coisas por ele”, finaliza. Os MCs do Locoleste explicam que, antes de tudo, eles são profissionais – e a música é o produto final de seus trabalhos. O “produto” do grupo, por sua vez, é uma somatória de cenas que os mesmos presenciam, e estas podem ser cenas boas e cenas ruins, cenas de amor e cenas de ódio, cenas de felicidade e cenas de tristeza. Nada pode ser limitado, ou melhor, nada deve ser limitado. A música é o extrato do cotidiano de cada um dos garotos, que encaram diariamente as adversidades e felicidades que o mundo pode proporcionar para as pessoas e que apenas encontram uma forma mais fácil de “colocar para fora” aquilo que fica preso na garganta de


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tantos outros que “seguram a bronca” por Campo Grande. Eles ainda falam que o grupo não é acostumado a escrever sobre um tema só. Claramente existem assuntos que são mais abordados, mas não quer dizer que seja uma exclusividade ou preferência dos músicos. Um som sobre droga, por exemplo, não pode ser escrito com frequência, já que existem pessoas que fazem parte do dia a dia dos garotos que não usam droga. Um som falando mal da polícia, outro exemplo, não pode ser repetido constantemente, já que também existem, entre os corruptos, aqueles que exercem a profissão de forma digna, conforme foram designados. Woompa explica que “o que der na telha pra gente falar, a gente vai falar e pronto, entendeu?”. Neco também sintetiza que as letras passam por um processo de “fases pessoais” que deve ser considerado. “Pela letra ser a vivência do MC e o MC precisar de vivência pra escrever, já que o rap é baseado na realidade, se a gente viver na realidade aqui no beco onde tem polícia e traficante, a gente vai acabar falando disso porque isso é a nossa realidade, mas se um dia a gente tiver rico em um Lamborghini , a gente vai falar sobre o Lamborghini, mano, que a gente tá rico. O jeito que a gente estiver vai ser o tema que vamos acabar abordando”, ressalta. Este comportamento que não é exclusivo de um ou outro garoto que integra o grupo acaba causando alguns atritos com músicos, produtores e até mesmo ouvintes. “Tem cara que, por fazer um som diferente, não curte que seja feito um som diferente do dele, que aborde coisas que ele não aborda, e por aí vai”, conta Paulo, em uma tarde chuvosa atípica na Capital, durante uma reunião com a equipe da Zona Leste.

A “nova safra” do rap campo-grandense fala que, entre


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todas as coisas com as quais eles poderiam se importar quando escrevem as músicas, a que menos importa é a opinião do público em geral. “Na sinceridade, a gente não tá nem aí pro público. Quem curte nosso som e fecha com nóiz, é a mesma fita que nóiz e isso basta, mano. Os caras curtem o som e a gente quer compartilhar. Se for levar essa ideia de público, todo mundo vai criticar e, quem for falar bem, a gente não vai ficar ouvindo”, conta Yule. Os garotos levam em consideração que eles acabam sendo alternativos para o próprio movimento alternativo. “Tem coisas que os caras do rap não têm coragem de falar ou se privam de falar por quererem atingir um público a mais ou não, que a gente não se priva, entendeu? As cabeças que baterem e forem iguais às nossas, é isso que vale, é isso que conta. O resto, mano, infelizmente não passa de ser resto, porque ninguém vai fazer a nossa caminhada por nóiz”, ressalta Paulo. Quando questionados a respeito da vontade de atrair uma maior quantidade de público, a sinceridade fala mais alto. “A gente procura atingir um público e a gente quer atingir mais público, com certeza, mas sem precisar mudar a nossa ideia pra isso, entendeu? A gente quer atingir quem bate as ideia, quem tem a mesma ideia que nóiz, na mesma frequência, que vai se identificar com o som, tá ligado?”, resumem. “Rap é ritmo e poesia, e a poesia é verdade, é o que acontece. Então acho que o rap é isso, mano: o rap é você saber transmitir uma poesia verdadeira em cima do ritmo, mano, com musicalidade, entendeu?”, encerra Neco. Para representar também o sexo oposto, Bernarda Trelha Ferreira, a Becky Bee, de 17 anos, que já tem oito músicas gravadas, mesmo sem ter qualquer mixtape ou EP na rua,


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é uma das expoentes femininas mais ativas na cena do rap em Campo Grande. Para ela, ritmo e poesia nada mais é do que a liberdade de expressão. “O rap é tipo aquele ponto em que eu vou conseguir atingir todo mundo. Desde os pobres loucos aos caras dentro da prefeitura, lá em cima. O rap pra mim é mais que um estilo de vida, é a nossa alma”, sintetiza. Com cabelos curtos e um rosto que passa leveza, a garota, que apesar de nova transmite muita firmeza em tudo aquilo que faz, acredita que, em suas letras, possui uma visão “muito oculta e muito sensata” de tudo o que busca transmitir através da música. “Eu acho que eu tento passar que, mesmo sendo mina, eu posso ter uma ideia e bater de frente com os manos. Eu tenho direito de dar minha opinião, não só como mulher, mas também como MC, porque você escrever um som que vai ter que agregar todo tipo de pessoa é difícil, e é isso que eu tento fazer”, explica. Para ela, os MCs estão na cena para mostrar a cor das ruas e, por isso, não existe limitação alguma para a criatividade poética e lírica de cada um, já que a diversidade abriga a todos e o rap também deve abrigar. “Tudo é possível. Eu tenho a minha liberdade para falar daquilo que eu quiser. Meus sons têm temas, eu nunca escrevo sobre qualquer coisa. Eu sempre penso muito, estudo muito, procuro saber sobre tudo, mas eu não tenho nenhuma limitação. Procuro escrever as coisas da forma mais simples, mas sem perder a classe de mina, porque tem toda aquela coisa de ter a minha voz no meio. Eu acho que a gente é livre pra falar do que a gente quiser, o rap é livre pra a gente meter o loco. A gente capta tudo que acontece na rua, tudo o que acontece ‘lá dentro’11 e passa através do som”, conta. ________________________

A expressão é utilizada para falar sobre o chamado “sistema”, que pode ser explicado como o mundo regido por leis e regras, “impostas” pelos detentores do poder. 11





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Entre letras que dizem que “o dia em que a cabeça de um rei fica inclinada, é um sinal de que a coroa do rei ficou pesada, e então a deusa da justiça põe sua venda, a balança da justiça fica tensa”12 para outras que falam “o rap é muito que é contar, cantar vantagem, manguear, passar pra trás. Os poetas de verdade não conta, não canta viagem, e sabem diferenciar liberdade de libertinagem”13 e ainda passam por “levando em frente a cultura, a favela, na nossa banca não cola comédia”14 e “eu mato inocente, mas com bandido, mano, eu não mexo, não. Pois sei que, na verdade, eles são o meu patrão”15 e também pelo romântico “quando estou perto dela, eu me sinto um menino... Ela me faz entender que a vida é mais que um destino”16, existem muitas histórias escondidas nas entrelinhas. Cada uma das composições que ficaram no papel ou que passaram por um beat engenhoso traz consigo a responsabilidade de convidar o público a conhecer um trabalho totalmente diferente daquele que é comercial e que toca nas rádios – e que mesmo assim pode ser bom e proveitoso para cabeças que buscam muito mais do que somente batidas bem elaboradas que estouram fones de ouvido e passam por pratos ________________________ 12

Faixa “O Pano do Rei”, de Falange da Rima.

13

Faixa “SMS - Silence Make Sound”, de Locoleste.

14

Faixa “Aqui Na Banca Não Cola Comédia”, de Locoleste part. Bolinho.

15

Faixa “Cão de Guarda”, de Du Mato.

16

Faixa “Vai Que Dá Certo”, de Du Mato.


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dos DJs mais famosos do mundo. E cada uma delas, também, é de certa forma a causadora da solidificação pela qual o rap passou em nos últimos anos – e que, mesmo sem ser tão forte como aquela existente no Rio de Janeiro e em São Paulo, se mostra verdadeira a cada dia que passa e a cada novo rec dado em qualquer um dos estúdios da Capital. Luiz Mário França Júnior, conhecido como Buiu, de 32 anos, que faz parte do grupo Dupla Permanência, fundado há 14 anos, lembra e reafirma a fala de que, no começo, até mesmo os ensaios eram complicados. Era necessária a utilização de uma fita cassete e uma mão de obra muito pesada, visto que os equipamentos eram vários e, as vezes, precários para suprimir as necessidades que os rappers tinham. Fazendo um paralelo, ele diz que, nos dias de hoje, as coisas avançaram muito. “Temos as pessoas qualificadas, os materiais, o pessoal do estúdio que trabalha com os instrumentais próprios para o rap mesmo... A gente vê que as pessoas se capacitaram, que os artistas estão cada vez melhores, também, e não só no rap, mas em todo o movimento Hip-Hop”, conta. Ele cita, também, que o crescimento do rap poderia ser muito maior se a união entre os artistas regionais também fosse mais ampla. “A tecnologia avançou, e às vezes o que falta é um canal único, uma união, de todo mundo correr pelo certo. Eu também sou culpado, às vezes eu fico meio disperso, cada um vai fazendo sua correria, mas se fosse mais unido, seríamos mais fortes ainda”, diz. Bolinho, que segue no rap da Capital desde os primórdios do Hip-Hop em solo pantaneiro, acredita que a solidificação atual do movimento muito se dá por conta da evolução pela qual o mesmo passou ao longo dos anos. “Muitos molequinhos que eu via estão na cena hoje. Uns produzindo,


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outros cantando, outros dançando. Podemos dizer que o rap está solidificado, mas tem seu público guetiado17, seu público específico, que está nas periferias. Esse é o público do rap, que o acompanha aqui na cidade, que acompanha o que vem de fora, e cada um no seu estilo. Nós não temos uma vertente só, são várias que estão unidas em uma mesma cultura”, explica. Ele reforça o discurso antes citado por Buiu, quando diz que o que falta é unir todas essas vertentes em uma coisa só, para que o rap cresça ainda mais, como acontece em outras capitais. “Nós não temos, por exemplo, uma equipe de baile, que faça um Baile Black aqui, porque o pessoal não curte. Ninguém curte o funk, o verdadeiro, não aquele do Rio de Janeiro... Ninguém curte um soul, como acontece nas outras metrópoles brasileiras, onde isso faz parte da cultura da população afro-brasileira”, fala. O rapper ainda lembra que, quando ele começou, as coisas eram ainda mais difíceis do que elas são hoje. “Quando eu comecei, essa cultura afrontou uma situação. Hoje, ela se solidificou, mas ainda não é enraizada. Ela tem uma solidificação no sentido de que as pessoas fazem, mas não é enraizada no sentido de você ter uma coisa só, como acontece com outras culturas por aqui. Não é como uma árvore, de onde vão saindo os galhos. O rap não é. É cada um na sua arvorezinha”, compara. Compartilhando o mesmo pensamento de Bolinho e Buiu, Alisson Benitez Grance, o Du Mato, de 26 anos, o rap continua em desenvolvimento e passa por uma evolução, e por isso ainda precisa “completar” algumas fases para que exploda, como foi em Curitiba, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, ________________________ 17 Público guetiado refere-se ao público que vem do gueto, ou seja, de um bairro onde vivem os membros de uma etnia ou um grupo minoritário.


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São Paulo e demais grandes cidades brasileiras. “Pra mim, existem dois pilares dos quais toda cena cultural depende: primeiro, a união. Aqui, a união é muito fragmentada, cada um corre por si mesmo. E, em segundo, o incentivo. Da mídia, do município, da Secretaria da Cultura, da Secretaria Estadual, enfim, do sistema como um todo”, explana. Ainda assim, porém, todos eles comungam a ideia de que, de faixa em faixa, a história vai sendo construída. Du Mato, em sua trajetória como rapper na Capital, já passou por diversos episódios na cena cultural, chegando a lançar o clipe “Cão de Guarda” para fazer uma crítica à polícia que, conforme noticiado no site Campo Grande News18, teria o torturado por suspeitas de tráfico de drogas, fala que tal falta de incentivo por parte do governo, como já citado anteriormente, não prejudica tanto quanto pensado. “A gente corre sozinho mesmo, não dá nada. A gente faz uma cena bem independente”, explica.

________________________

Matéria “Rapper nega ser traficante e denuncia tortura de policiais em detalhes”, assinada por Lidiane Kober, publicada no site Campo Grande News em 21/01/2014.

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Por trás de todas as produções, letras, apresentações e semblantes fechados que transmitem uma revolta interna com todas as coisas erradas que existem no mundo, estão as famílias dos músicos que, pouco a pouco, tornaram-se determinantes na caminhada de cada um dos MCs. Os semblantes emocionados transmitem uma calma de quem sabe que, apesar das dificuldades encontradas no dia a dia, conta com pessoas que possuem uma tremenda fé em um futuro melhor. Xis conta que, quando contou para sua família que gostaria de estar inserido no movimento Hip-Hop, a primeira impressão foi o medo, talvez por conta da violência urbana enfrentada na época, ou por conta do receio do desconhecido ou ainda pelo “destino” que era projetado sobre a arte. “A minha mãe, quando eu contei que gostaria de participar do break, que foi por onde eu comecei nesse universo, achou que eu iria me quebrar todo e ficou com medo do que pudesse acontecer comigo”, fala. Ele lembra, porém, que quando todos viram que era algo sério, resolveram apoiar. “No começo, o pessoal pensava que eu estava nessa por brincadeira... Quando nós começamos a movimentar algumas coisas, aí também começaram a levar a gente a sério”, diz. Buscando lembranças em sua mente, ele também recorda que a família, querendo ou não, é uma fonte de inspiração para o trabalho. “A gente faz com mais seriedade quando


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a nossa família dá apoio, porque sabemos que, se der retorno, eles serão os principais beneficiados. Nosso trabalho fala de coisas positivas que vivemos aqui, coisas que também queremos passar para os nossos filhos, para os nossos pais, para as pessoas que são próximas da gente. Eles, além de tudo, também são fonte de inspiração”, fala. Neco, por sua vez, acredita que a principal incentivadora de sua função seja sua irmã, Ellys, até mesmo por ela também fazer parte do movimento, ainda que de forma “escondida”, já que sua função é atribuída aos bastidores. “Ela sempre me apoiou muito quando eu decidi viver de música”, explica. Woompa diz que, como unanimidade do grupo, está o apoio das famílias – porém, o apoio não veio desde o começo, ainda que ninguém tenha virado as costas para eles. “No começo, por não saberem onde a gente estava se metendo, não tivemos tanto apoio assim, mas ninguém nunca nos negou nada. Aí, quando eles viram que nosso trabalho era sério, que éramos profissionais e que conseguíamos tirar algum retorno financeiro disso, eles começaram a apoiar mais e mais”, conta. Ele ainda explica que, no seu caso, sua mãe tinha receio principalmente pela questão financeira, mas que logo isso foi deixado de lado e, hoje, ele recebe o apoio total de suas escolhas e decisões com o grupo. Sobre as apresentações, ele conta que, por conta da distância da maioria dos shows, sua mãe nunca pôde acompanhá-lo, mas que, no mês de setembro, em uma apresentação do Locoleste, ela finalmente conseguiu ir, deixando-o muito contente por saber que ela também admirava o seu trabalho. “Ela gostou muito, deu maior apoio para a nossa ideia”, fala.




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A artista Marina Peralta, que alcançou visibilidade nacional com a música “Agradece”, gravada inclusive com a banda Planta & Raiz, versando “e graças te damos pela vida, pela oportunidade de cantar e ser ouvida. Graças te damos pelo amor, esperança que inspira lutar contra o opressor”, e que gravou com o artista de rap Marcello GuGu a música “Cão”, que trata sobre um relacionamento problemático em sua letra que diz que “ver você e não poder te tocar é viver sem nem saber o que é amar”, é inserida na cena cultural alternativa de Mato Grosso do Sul e vê o rap com olhos de respeito. Em sua fala sempre serena, ela cita que o rap dominou. “Ele teve de ser aceito porque é muito forte! Muito respeito aos manos e minas que iniciaram esse processo na nossa cidade”, diz. “O rap nasce como um grito, né?! As pessoas encontram nele uma forma de expressão e uma forma de contar suas histórias de vida, mostrar sua realidade sem delongas. Hoje, as pessoas fazem o uso dessa ferramenta para falarem do que quiser. Acho até que rola uma confusão de liberdade de expressão com a liberdade de opressão. O rap veio para falar de opressão, e não para oprimir, como alguns MCs acabam fazendo com as mulheres, por exemplo. Existe uma responsabilidade que tem que ter com essa ferramenta”, conta. Com propriedade, a artista disserta sobre sua crença artística. “Acredito que ‘a expressão da sua arte é resultado do


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que há dentro de ti’. Então, fala-se de informações das quais se tem acesso. Maconha, por exemplo... Pra quem é pobre, mora numa quebra, é mais acessível que política, que economia, educação”, explica. Sobre a aceitação dita anteriormente, ela ainda complementa. “Acontece, também, de essa aceitação que tá rolando ser seletiva. Eu vejo que ela é aceita até o ponto que fala de assuntos que não tira quem tá ouvindo da zona de conforto”, encerra. Tal fala de Marina expressa muito aquilo que já foi dissertado anteriormente... Apesar desse aparente “boom” na Capital, o público do rap é o público do rap – e não foge muito disso -, mas pode fugir. Com histórias narradas linha por linha, realidades diferentes retratadas entre versos que soam poéticos e batidas e riscos em discos que tentam embalar uma história – por vezes triste, por vezes alegre -, é algo que soa como poesia até mesmo por ouvidos mais exigentes. Rústica, por vezes. Mas rimada. Cheia de vida e de sentimentos que caminham por loucura, raiva, crítica, amor e paz. Como cita GuGu, em sua faixa “Gil Scott Heron”, “pode me chamar de flow, eu sou, você é, nós somos, seremos e fomos, sejamos, vivamos. Pro Hip-Hop dar certo, temos que dar valor aos amores, esquecer os rancores, perdoar os pecadores, ignorar os rumores, se libertar dos senhores, se lembrar dos tambores... E, se andar armado for inevitável, que a sua arma atire flores! O rap é e sempre foi uma coisa só. Esquece bairro, indústria, mídia, preconceito, esquece quem tá falando que o rap tem que ser feito desse ou daquele jeito. Vários discutem quem se vendeu, quem tá vendido... Geralmente quem julga ou se perdeu, ou nasceu perdido... Pra eles tanto faz se a gente se matar entre nós ou viciados em crack. Pra eles, foi um


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a menos. Pra nós, foi Tupac. Vamos ser mais nós, seja mais você! Você é o Hip-Hop, você vive o Hip-Hop, e ele só morre se você deixar. Não vamos desistir, a luta é nossa e esse nosso amor é incomum... Porque nós somos o Hip-Hop e todos nós somos só um”. Ritmo e poesia, muito mais do que um simples estilo musical, é também um estilo de vida para pessoas que inseridas nele vivem e buscam, também, sobreviver – ainda que em um solo onde a aceitação para “esse tipo de música” seja curta e, por isso, merece o play – porque se rebela contra o comum e mostra o quão grande pode ser.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LOPES, Maria Immacolata Vassalo. Pesquisa em Comunicação – Formulação de um modelo metodológico. São Paulo : Edições Loyola, 1994. MEDINA, Cremilda. A Arte de Tecer o Presente – Narrativa e Cotidiano. São Paulo : Summus, 2003. MEDINA, Cremilda. Entrevista - O Diálogo Possível. São Paulo : Ática, 2000. PAIS, José Machado. Buscas de si: expressividades e identidades juvenis. In: ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de & EUGENIO, Fernanda (Organizadores). Culturas Jovens: Novos Mapas do Afeto. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2006. PENA, Felipe. O Jornalismo Literário como Gênero e Conceito. Resultado de pesquisa registrada na Universidade Federal Fluminense, 2007.


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