Secretaria de Saúde do Estado da Bahia Centro de Informações Antiveneno – CIAVE Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio – NEPS ASPECTOS PSICOLÓGICOS NAS INTOXICAÇÕES Soraya Carvalho I – A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE A relação ou integração entre o médico e o paciente, ou mais amplamente entre o cliente e a equipe de saúde, pressupõe a existência de um contexto específico, responsável por estabelecer seus limites e responsabilidades, bem como determinar os papéis e as funções de seus participantes. Este contexto no qual esta relação se estabelece, está permeado por fenômenos psíquicos que envolvem desde sentimentos até fantasias, na maioria das vezes inconscientes, suscitados pela doença, tanto no paciente quanto na equipe que o atende. No que diz respeito às intoxicações, sejam elas voluntárias ou acidentais, os aspectos psicológicos envolvidos, se caracterizam, a princípio, pelo medo frente ao desconhecimento dos efeitos produzidos por essas intoxicações. O conhecimento técnico da equipe deve possibilitar ao paciente, não apenas o tratamento adequado, como também, reduzir sua ansiedade ao desfazer os mitos e folclores em torno das substâncias tóxicas e de seus efeitos nocivos no organismo. No que se refere às tentativas de suicídio, outras variáveis importantes estão presentes na relação estabelecida entre a equipe e o paciente. A principal delas é que o suicídio ou sua tentativa é um ato que subverte a ordem médica. O profissional de saúde e mais precisamente o médico, é treinado paras salvar vidas, restituí-las. Fator que imprime uma condição de saber e poder frente ao doente e à doença. O paciente ao tentar contra a própria vida, desestabiliza a equipe de saúde, na medida em que desafia o seu poder com seu ato, se tornando assim, na maioria das vezes um paciente indesejado nas emergências. Sabe-se que 98% das pessoas que cometeram o suicídio tinham um diagnóstico de doença mental na ocasião do suicídio. A depressão como a causa mais prevalente, seguida do alcoolismo e da esquizofrenia. Partindo da constatação de que a depressão é considerada a principal causa associada ao suicídio, criamos o NEPS- Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio, com o objetivo de oferecer um espaço psicoterapêutico aos pacientes que tentaram o suicídio ou aqueles com depressão grave e risco de suicídio. II – DEPRESSÃO UMA ABORDAGEM PSICANALÍTICA DA DEPRESSÃO E DO SUICÍDIO DEPRESSÃO: Denominada de doença da modernidade, a depressão é hoje um mal que segundo estimativa da OMS, acomete aproximadamente 100 milhões de pessoas em todo mundo.
Além disso, atualmente, cerca de 1 milhão de pessoas se suicidam por ano no mundo. Calcula-se ainda que para cada caso de suicídio, haja entre 10 e 25 tentativas não consumadas. Na Bahia é registrada uma média de mensal de 100 tentativas de suicídio. Destas tentativas 70% ocorrem entre 15 e 35 anos. A depressão, entretanto, tem sido citada desde a Antiguidade e sua descrição pode ser encontrada em textos muito antigos, a exemplo da síndrome depressiva do rei Saul no Antigo Testamento, ou no suicídio de Ajax, na Ilíada de Homero. Vale ressaltar que em 400 AC, Hipócrates usou os termos “mania” e “melancolia” para perturbações mentais. Melancolia, em grego, significa bile negra. Partindo dessa definição, os médicos hipocráticos atribuíram ao negror da bile poderes nefastos sobre o cérebro. A bile negra era considerada a causa dos estados de excitação com delírio em oposição a pituitária, responsável pelos delírios calmos. Ainda segundo Hipócrates, o tipo de excitação dependia da direção que tomava a bile negra. Se ela incidia no corpo, teríamos a epilepsia, se incidida na inteligência, a melancolia. No entanto, nessa época, o termo melancolia não se referia ao humor triste, mas englobava qualquer tipo de delírio parcial. Em 1854 Jules Falret descreveu uma condição de folie circulaire, na qual o paciente apresentava alterações de humor alternado entre mania e a depressão. Em 1899 Emil Kraepelin, a partir do conhecimento anterior acumulado dos psiquiatras franceses e alemães, descreveu a Psicose, maníaco-depressiva como o transtorno bipolar. Em 1915 Freud concluiu um de seus mais importantes escritos “Luto e Melancolia” onde estabelece um paralelo entre essas duas formas de reação à perda de um objeto amado. Em linhas gerais, podemos definir a depressão como uma patologia psíquica com repercussões somáticas. FISIOLOGIA DA DEPRESSÃO Os NT (neurotransmissores) são responsáveis por levar o impulso nervoso de um neurônio a outro. Para isso, as moléculas de NT devem sair de um neurônio , atravessar a sinapse e ocupar os receptores de neurônio seguinte (NR). È como se o NT fosse a chave e o NR a fechadura. Os NT mais importantes são a serotonina, a noroadrenalina, a dopamina e o GABA. Nos indivíduos com depressão observa-se uma diminuição significativa na produção dos NT serotonina e noroadrenalina. A psiquiatria dividia a depressão em endógena ou depressão maior, psicogênica e reativa. Atualmente esta classificação está reduzida aos transtornos de humor. Para a Psicanálise a depressão é melancolia e, entende-se por melancolia a doença que acomete o sujeito em decorrência de uma perda real ou ideal , onde este, no lugar de fazer o trabalho normal do luto, identifica-se ao objeto perdido e dirige para si os impulsos hostis que deveria dirigir ao objeto. Também denominada de neurose narcísica, a melancolia se caracteriza pela impossibilidade de o sujeito elaborar simbolicamente esta perda.
Em Luto e Melancolia, Freud descreve o processo de adoecimento na melancolia, listando suas pré-condições, a saber. -
Uma escolha objetal com forte ligação (fixação) da libido no objeto Perda do objeto amado (perda real ou ideal, desconsideração, decepção) Relação objetal destroçada Catexia objetal com pouco poder de resistência é liquidada A libido retirada faz uma regressão ao eu A doença se restabelece
Entre o luto e a melancolia pode-se delimitar semelhanças e diferenças: Semelhanças: -
Reação à perda de um objeto Desânimo extremamente penoso Cessação de interesse pelo mundo externo Perda da capacidade de amar Inibição de qualquer atividade Diferenças:
Luto 1. Perda real 2. Não há 3. O mundo se torna pobre e vazio 4. Não há 5. Não há 6. Quando o trabalho de luto, se conclui, o eu fica outra vez livre e desinibido 7. Não há 8. Pode haver insônia ao deitar 9. Pode perder o apetite 10. Concluído o luto, há retirada da libido do objeto, que é deslocada para outro objeto.
Melancolia 1. Perda mais ideal 2. Perturbação na auto-estima 3. É o próprio eu que se torna pobre e vazio 4. Auto-recriminação 5. Expectativa delirante de punição 6. O trabalho do luto não se conclui totalmente 7. Delírio de inferioridade (principalmente moral) 8. Insônia na madrugada 9. Anorexia total ou parcial 10. A libido livre não é deslocada para um novo objeto. Ela se retrai no ego, servindo para estabelecer uma identidade ou objeto perdido
A melancolia é quando o luto ganha um cunho patológico. Observa-se que o sujeito experimenta um conflito devido a ambivalência frente ao objeto: o sujeito sente-se culpado pela perda do objeto, como se a tivesse desejado, o que explica a auto-acusação e a auto-tortura. TRATAMENTO Freud desvendou o enigma da melancolia, descobrindo a “chave do quadro clínico”, ao constatar que na melancolia, as auto-recriminações são recriminações feitas ao objeto amado que, ao ser perdido, foram deslocadas para o eu do próprio paciente. Do ponto de vista terapêutico, é infrutífero contradizer o paciente. Em determinadas situações, deve-se até confirmar algumas de suas declarações (Freud). É preciso escutar este delírio de inferioridade como um delírio qualquer, ou seja, como uma tentativa de cura. O tratamento da melancolia deve associar a medicação à psicoterapia, sendo o uso de antidepressivos por vezes associados a tranqüilizantes, fundamental para não só garantir uma estabilidade no quadro, como para manter a adesão do paciente à psicoterapia. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MELANCOLIA O melancólico obtém satisfação sádica do seu sofrimento e pelo caminho indireto da autopunição, consegue vingar-se do objeto perdido. Desta forma, esse sadismo solucionará o enigma do suicídio. MANIA É a característica mais notável da melancolia, pois se constitui na tendência em se transformar em seu oposto, o conteúdo é o mesmo, a diferença é que na melancolia o sujeito sucumbe ao “complexo”, enquanto que na mania, domina-o . A depressão como sintoma, também pode ser encontrada na neurose e na psicose. A DEPRESSÃO NA PSICOSE Na psicose, a depressão pode ser observada em alguns casos de esquizofrenia, paranóia e catatonia, chegando a anteceder, em alguns casos, o desencadeamento do surto. A DEPRESSÃO NA NEUROSE Do ponto de vista fenomênico, a depressão na neurose não difere da melancolia. Entretanto, como a psicanálise faz o diagnóstico pelo discurso e não pelo sintoma do paciente, na neurose não se observa o delírio de inferioridade e indignidade encontrado no melancólico. A depressão na neurose aponta para a perda de gozo fálico. Não se trata mais da perda do objeto, mas da perda do brilho fálico que toca o pano narcísico do sujeito.
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ABORDAGEM PSICANALÍTICA DO SUICÍDIO Este trabalho foi desenvolvido a partir da escuta oferecida aos pacientes que tentaram suicídio e foram atendidos pelo CIAVE- BA. Para falar do ato suicida faz-se necessário, inicialmente, descrever não só o perfil do sujeito que tenta dar a morte a si mesmo, bem como o perfil da equipe que o atende. PERFIL DO SERVIÇO DE PSICOLOGIA DO CIAVE -
Acompanhamento psicológico em emergência Acompanhamento psicológico em UTI Acompanhamento psicológico em enfermaria Acompanhamento psicológico em ambulatório
DO PACIENTE QUE TENTA O SUICÍDIO -
Não demanda o tratamento Dificilmente de implica no ato Grande parte começa o tratamento Muitos abandonam sem concluí-lo As mulheres tentam mais o suicídio que os homens O número de óbitos é maior entre os homens Agente mais utilizado: raticidas Agente que provoca mais óbitos: raticidas
Pacientes em psicoterapia a reincidência cai para 0,2 % DA EQUIPE QUE ATENDE O suicídio mobiliza o profissional de saúde nas questões com sua própria morte, geralmente ele não suporta o suicida: o suicida é aquele que vem subverter a ordem médica. Diante do suicida, o profissional faz seu julgamento baseado em seus próprios valores, podendo reagir com: - Indiferença - Impaciência - Pena-paternalismo - Ironia - Lições de ânimo
TEORIAS FREUDIANAS A CERCA DO SUICÍDIO São duas as teorias de Freud sobre o suicídio. Na primeira, ele define o suicídio como “uma saída, uma ação, um término de conflitos psíquicos”... e “se trata de explicar o caráter do ato e como o suicida leva a termo a resistência ao ato suicida”. Ele propõe que 5
o enredo clínico deva ser investigado na semiologia do ato e no próprio discurso do paciente. A segunda teoria de Freud sobre o suicídio, respalda-se na Pulsão de Morte, conceito por ele criado para designar um certo apetite pela morte, presente em todo indivíduo. Freud chegou a esta conclusão estudando a “compulsão à repetição”, verificada no discurso de seus analisandos. Para ele, o sujeito tende a repetir, compulsoriamente, a experiência traumática, ainda que esta tenha sido extremamente desprazerosa. Inicialmente, ele defendia a hipótese de uma tendência humana em buscar a homeostase, reduzindo ao máximo as tensões e o desprazer. A repetição do traumático levou Freud a constatar a existência de um mais além do Princípio do Prazer, o qual ele denominou Pulsão de Morte. Segundo ele, o que a Pulsão de Morte tenta repetir é o mais arcaico, o estado inicial do qual o homem se afastou em decorrência do aparecimento da vida, ou seja, o que ela tenta repetir, em última instância, é o estado inorgânico. Dito de outra forma, “o objetivo de toda vida é a morte”, isto é, o retorno ao inanimado. Ainda em Freud, ele propõe que diante do suicídio, o analista deva buscar as relações entre sujeito e objeto que não puderam encontrar outras modalidades de expressão sintomatológicas senão no ato suicida. Além disso, diante da singularidade de cada sujeito, não é possível uma explicação universal acerca do suicídio. Cada caso deve ser compreendido em sua essência, tomando as particularidades da história de cada um. Para a psicanálise, o suicídio é um ato, e um ato é sempre embaraçante. No Seminário O Ato Psicanalítico, Lacan cita três características básicas para o ato. A primeira é que o ato apresenta uma dimensão de linguagem, como o próprio Freud descrevia o Ato Falho – uma fala recalcada, manifestada por um lapso, ou mesmo no “agieren”, traduzido por Strachey como Acting Out, que seriam as moções pulsionais que não passaram pela palavra e se impõem enquanto ato, com seu aspecto de fala impossível, o impossível de ser dito, e por isso mesmo atuado. A segunda característica do ato é que ele promove no sujeito um ultrapassamento, uma ação que visa acabar com sua indeterminação, gerando uma mudança radical, pois com o ato não é possível voltar atrás; no que se refere ao sujeito, nada será como antes. A terceira e última característica do ato, diz respeito ao fato de ser acéfalo, ou seja, o sujeito não se reconhece no ato, ainda que o ato saiba sobre o sujeito; ele é agido, o que quer dizer que, no ato, o sujeito do inconsciente está ausente. Considerando a hipótese que o sujeito é o produto da divisão significante, e se no ato o significante falha, pode-se dizer que o ato é sem sujeito. O ato vem no lugar de um dizer o qual muda o sujeito. Com isso conclui-se que não há subjetivação do ato, a não ser a posteriori. Por uma questão meramente didática, o ato suicida será classificado em dois fenômenos: o acting out e a passagem ao ato. Uma tentativa de suicídio por acting out poderia ser compreendida como um ato dirigido ao Outro, um apelo, uma demanda de amor e de reconhecimento. No acting, o sujeito, inundado em seu sofrimento particular, cria a cena, se inclui nela, e atuando, põe em risco sua própria vida. O mais interessante é que o sujeito acredita querer matar-se, embora termine, sem se dar conta, criando todos os recursos possíveis para que o suicídio não se concretize. Num suicídio por passagem ao ato, por seu turno, o sujeito estabelece uma identificação com o resto, o dejeto do mundo.O sujeito já não pode mais se inscrever no campo do Outro, se identificando assim com o objeto a, o objeto perdido. Para Lacan, na passagem ao ato, o sujeito não pode manter-se na cena, num estatuto de sujeito historizado, por isso ele deixa a cena, não havendo mais um elemento 6
de mostra ao Outro. É, portanto, a evasão da cena que permite diferenciar a passagem ao ato do acting out. Entretanto, seja num suicídio por acting out ou passagem ao ato, tem-se que levar em conta a dor de cada sujeito, sem minimizar ou reduzir suas causas ou efeitos, compreendendo que a dimensão do seu ato estará sempre vinculada a razões que ultrapassam a interpretação do motivo manifesto apresentado. Há que se levar me conta os conteúdos latentes que motivaram seu ato e os dados de sua história nele implicados. Lacan define o suicídio como um “modo de saída” da cadeia significante, uma recusa radical ao assujeitamento do sujeito à dor de existir. Em linhas gerais, podemos delimitar alguns tipos mais freqüentes de suicídio: o suicídio neurótico, geralmente definido como um ato dirigido ao Outro; o suicídio melancólico, uma vez que o sujeito encontra-se identificado ao objeto perdido, ao matar-se, está verdadeiramente matando o objeto; o suicídio psicótico, quando o sujeito, comandado por um Outro que vem do Real, acata suas ordens a partir do automatismo mental, mesmo que a ordem seja: “mate-se”, ou quando o psicótico mata-se numa tentativa de livrar-se desse gozo do Outro que o invade e o atormenta através do delírio ou de alucinação auditiva; o suicídio dos kamikases – morrer por uma causa ou uma ideologia eterniza o herói, pois, ao matar-se, encontra uma forma de manter-se vivo. Na clínica, observamos dois grandes grupos de depressão: a melancolia, como um quadro clínico específico, e a depressão como um estado experimentado em qualquer estrutura clínica. A depressão, para a psicanálise, é um estado compatível com todas as estruturas clínicas, podendo se apresentar de forma variada. Ela não é considerada uma causa, nas um efeito. Entretanto, os estados depressivos têm em comum, a suspensão da causa do desejo. E, posto que a depressão não é considerada um sintoma, portanto, não é produzida pela castração, ela é, antes de tudo, uma resposta do sujeito diante do Real. Um Real que lhe convoca a ocupar uma posição ética diante do seu desejo e de seu gozo. A depressão é uma resposta do sujeito frente à sua falta constitutiva, mas também um modo de não consentir a falta no Outro. Diante da falta, um dos recursos é a constituição de um Ideal, ou seja, um Outro sem falta, sem falhas. A depressão pode ser desencadeada pela queda do Ideal. O deprimido, diante da perda do objeto idealizado, experimenta o par “dor e tristeza”, perda de interesse ou de capacidade, inibição da vontade e perda do desejo. A melancolia, por sua vez, é a patologia onde se verifica uma incapacidade do sujeito em subjetivar suas perdas. Esta incapacidade é um efeito da falha radical verificada no momento da sua constituição do eu, o que termina promovendo um eu frágil, imaginariamente precário. E, na tentativa de tamponar sua falha narcísica, o sujeito melancólico, elege um objeto de amor, também idealizado, estabelecendo com este uma ligação puramente imaginária e narcísica, de modo que quando esta relação se desfaz, o melancólico reedita sua ferida primordial, experimentando uma dor insuportável, caracterizada pela angústia, podendo passar ao ato suicida. O melancólico, responsabiliza-se e culpa-se pela perda do objeto, o que levou Lacan a dizer que o melancólico é o sujeito vivencia a perda como dor moral. Para Freud, por sua vez, a chave do quadro clínico melancólico é o comprometimento de sua auto-estima, podendo culminar num delírio de indignidade e de inferioridade, além dos fenômenos de mortificação, a saber, os distúrbios alimentares e do sono. Desta forma, seja na melancolia ou na depressão, o desencadeamento está relacionado à perda de um objeto idealizado, aquele que supostamente poderia preencher a falta constitutiva do sujeito, como na depressão, ou a falta relativa à constituição do eu, 7
como na melancolia. Em ambos os casos, perder o objeto idealizado levaria o sujeito a deparar-se com seu vazio existencial, o que para alguns pode ser insuportável. III – SUICÍDIO III. 1 - TEORIAS FREUDIANAS A CERCA DO SUICÍDIO São duas as teorias de Freud sobre o suicídio. Na primeira, ele define o suicídio como “uma saída, uma ação, um término de conflitos psíquicos”... e “se trata de explicar o caráter do ato e como o suicida leva a termo a resistência ao ato suicida”. Ele propõe que o enredo clínico deva ser investigado na semiologia do ato e no próprio discurso do paciente. A segunda teoria de Freud sobre o suicídio, respalda-se na Pulsão de Morte, conceito por ele criado para designar um certo apetite pela morte, presente em todo indivíduo. Freud chegou a esta conclusão estudando a “compulsão à repetição”, verificada no discurso de seus analisandos. Para ele, o sujeito tende a repetir, compulsoriamente, a experiência traumática, ainda que esta tenha sido extremamente desprazerosa. Inicialmente, ele defendia a hipótese de uma tendência humana em buscar a homeostase, reduzindo ao máximo as tensões e o desprazer. A repetição do traumático levou Freud a constatar a existência de um mais além do Princípio do Prazer, o qual ele denominou Pulsão de Morte. Segundo ele, o que a Pulsão de Morte tenta repetir é o mais arcaico, o estado inicial do qual o homem se afastou em decorrência do aparecimento da vida, ou seja, o que ela tenta repetir, em última instância, é o estado inorgânico. Dito de outra forma, “o objetivo de toda vida é a morte, isto é, o retorno ao inanimado. Ainda em Freud, ele propõe que diante do suicídio, o analista deva buscar as relações entre sujeito e objeto que não puderam encontrar outras modalidades de expressão sintomatológicas, senão no ato suicida. Além disso, diante da singularidade de cada sujeito, não é possível uma explicação universal acerca do suicídio. Cada caso deve ser compreendido em sua essência, tomando as particularidades da história de cada um. Para a psicanálise, o suicídio é um ato, e um ato é sempre embaraçante. No Seminário O Ato Psicanalítico, Lacan cita três características básicas para o ato. A primeira é que o ato apresenta uma dimensão de linguagem, como o próprio Freud descrevia o Ato Falho – uma fala recalcada, manifestada por um lapso, ou mesmo no “agieren”, traduzido por Strachey como Acting Out, que seriam as moções pulsionais que não passaram pela palavra e se impõem enquanto ato, com seu aspecto de fala impossível, o impossível de ser dito, e por isso mesmo atuado. A segunda característica do ato é que ele promove no sujeito um ultrapassamento, uma ação que visa acabar com sua indeterminação, gerando uma mudança radical, pois com o ato não é possível voltar atrás; no que se refere ao sujeito, nada será como antes. A terceira e última característica do ato, diz respeito ao fato de ser acéfalo, ou seja, o sujeito não se reconhece no ato, ainda que o ato saiba sobre o sujeito; ele é agido, o que quer dizer que, no ato, o sujeito do inconsciente está ausente. Considerando a hipótese que o sujeito é o produto da divisão significante, e se no ato o significante falha, pode-se dizer que o ato é sem sujeito. O ato vem no lugar de um dizer o qual muda o sujeito. Com isso conclui-se que não há subjetivação do ato, a não ser a posteriori. Por uma questão meramente didática, o ato suicida será classificado em dois fenômenos: o acting e a passagem ao ato. Uma tentativa de suicídio por acting poderia ser compreendida como um ato dirigido ao Outro, um apelo, uma demanda de amor e de reconhecimento. No acting, o sujeito, inundado em seu sofrimento particular, cria a cena, se inclui nela, e atuando, põe em risco sua própria vida. O mais interessante é que o sujeito acredita querer matar-se, embora termine, sem se dar conta, criando todos os recursos possíveis para que o suicídio não se concretize. 8
Num suicídio por passagem ao ato, por seu turno, o sujeito estabelece uma identificação com o objeto na sua de condição de resto, de dejeto do mundo. O sujeito, por não poder mais se inscrever no campo do Outro, se identifica ao objeto, o objeto nada, e passa ao ato. Para Lacan, na passagem ao ato, o sujeito não pode manter-se na cena, num estatuto de sujeito historizado, por isso ele deixa a cena, não havendo mais um elemento de mostra ao Outro. É, portanto, a evasão da cena que permite diferenciar a passagem ao ato do acting out. Entretanto, seja num suicídio por acting ou passagem ao ato, tem-se que levar em conta a dor de cada sujeito, sem minimizar ou reduzir suas causas ou efeitos, compreendendo que a dimensão do seu ato estará sempre vinculada à razões que ultrapassam a interpretação do motivo manifesto apresentado. Há que se levar em conta os conteúdos latentes que motivaram seu ato e os dados de sua história nele implicados. III. 2 – TEORIA LACANIANA SOBRE O SUICÍDIO Lacan define o suicídio como um “modo de saída” da cadeia significante, uma recusa radical ao assujeitamento do sujeito à dor de existir. Entretanto, se em Televisão, considerou o suicídio como o único ato bem sucedido do sujeito, mais tarde, no seu seminário O saber psicanalítico, defende a idéia de que o suicídio, como os todos os outros atos, é um ato falho, justamente ali onde o sujeito nada quer saber. III. 3 – CONSIDERAÇÕES GERAIS Em linhas gerais, podemos delimitar alguns tipos mais freqüentes de suicídio: o suicídio neurótico, geralmente definido como um ato dirigido ao Outro; o suicídio melancólico, uma vez que o sujeito se encontra identificado ao objeto nada, ao matar-se, está verdadeiramente matando o objeto; o suicídio psicótico, quando o sujeito, comandado por um Outro que está no registro do Real, acata suas ordens e suas determinações captadas através das alucinações, no fenômeno conhecido como automatismo mental, mesmo que a ordem seja: “mate-se”, ou quando o psicótico suicida-se numa tentativa de livrar-se desse gozo do Outro que o invade e o atormenta através do delírio ou de alucinação auditiva; o suicídio dos kamikases, morrer por uma causa ou uma ideologia eterniza o herói, pois, ao matar-se, encontra uma forma de manter-se vivo. Em última instância, qual a finalidade de oferecer uma análise a esses sujeitos cuja morte se mostra como uma saída possível para livrar-se do seu sofrimento? Inicialmente, não se trata de fazer o paciente arrepender-se do ato, muito menos de mudar seu passado ou sua realidade imediata. Trata-se, antes de tudo, de oferecer uma escuta que permita ao sujeito reconhecer a verdade da sua relação íntima com o gozo que produz seu ato. Portanto, o que muda numa análise é a posição subjetiva do sujeito, ou seja, a forma como ele se situa em sua própria história e o novo sentido que lhe dá. Para concluir, o que pode um analista frente à melancolia e a depressão? Primeiramente acolher o sujeito, oferecendo-lhe um lugar para falar do seu sofrimento, com a garantia que será ouvido sem julgamentos. O analista deve suportar os únicos recursos que o sujeito dispõe para dar conta do Real, a saber: o delírio de inferioridade e os fenômenos de mortificação, na melancolia, ou a tristeza e a dor, na depressão. Numa análise, o sujeito, ao ser convocado a falar, é convocado ao bem-dizer do seu desejo, do seu gozo, do seu ato; o gozo da morte é confrontado com o desejo de saber. Um saber que interroga o sujeito sobre a posição que ocupa diante do Outro, levando assim a implicar-se e responsabilizar-se pelo seu sofrimento. Isto possibilita que possa ressignificar seu ato suicida dentro de sua própria história, e que alguma significação possa advir, seja do buraco deixado pela perda do objeto, seja pelo ato suicida. 9