No balaio do maracatu arlene holanda ilustrações cesar miranda

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Obra realizada com o apoio da Prefeitura Municipal de Fortaleza, por meio da Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza – Secultfor.

Copyright © 2016, Arlene Holanda

Prefeito de Fortaleza Roberto Cláudio Rodrigues Bezerra

Concepção e Coordenação Editorial Gylmar Chaves

Vice-Prefeito de Fortaleza Gaudêncio Gonçalves de Lucena Secretário Municipal da Cultura de Fortaleza Francisco Geraldo de Magela Lima Filho Secretária-Executiva Paola Braga de Medeiros Assessora de Políticas Culturais Nilde Ferreira Assessor Jurídico Vitor Melo Studart Assessora de Comunicação Paula Neves Coordenadora de Ação Cultural Germana Coelho Vitoriano Coordenadora de Criação e Fomento Rejane Reinaldo

Coordenador de Patrimônio Histórico e Cultural Jober José de Souza Pinto Coordenadora Administrativo-Financeiro Rosanne Bezerra Diretora da Vila das Artes Cláudia Pires da Costa

Ilustrações Cesar Miranda Projeto Gráfico e Diagramação Arlene Holanda Revisão Milena Bandeira Assessoria Técnica Adson Pinheiro Graça Martins

Diretora da Biblioteca Pública Dolor Barreira Herbênia Gurgel Diretor do Teatro São José Pedro Domingues

Catalogação na Fonte Bibliotecária: Perpétua Socorro Tavares Guimarães CRB 3 801/98 H 722 n Holanda, Arlene No Balaio do Maracatu /Arlene Holanda; ilustrações de Cesar Miranda. - Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2016. 28 p. :il. ISBN: 978-85-420-0798-5 1. Maracatu I. Miranda, Cesar

II. Título CDD: 398


A

visita do personagem Francisco a Fortaleza é o mote para contar essa história ficcionista sobre o Maracatu, manifestação afro-brasileira-cearense que por suas características singulares, foi reconhecida pela Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza – SECULTFOR como Patrimônio Imaterial da cidade. Francisco, que, desfilou na Ala dos Caboclinhos em sua adolescência, volta a Fortaleza pra realizar um sonho antigo: desfilar novamente no Maracatu Estrela Guia. E não vem sozinho. Traz consigo a filha Generosa, que é apresentada e se deslumbra com o universo do Maracatu, em plena efervescência dos ensaios e preparativos para o desfile carnavalesco. O desenrolar da trama reserva uma surpresa e um desafio para nosso personagem: ele substituiria o mestre Manuel como Rainha. O grande dia é uma apoteose. O rufar dos tambores, ganzás e chocalhos evoca um mundo ancestral, vindo do outro lado do oceano para se materializar aqui, no Maracatu. Nas Alas de Caboclinhos, Mucamas, na Calunga, nos Pretos-velhos, Balaieiro, Reis e Rainhas. No estandarte colorido e reluzente do Estrela Guia. Abram alas para nossas tradições afro-brasileiras porque elas precisam passar. Passar para ficar e lembrar aos muitos que somos o que fomos, lembrar os que lutaram, viveram, cantaram, celebraram. E que a estrela brilhante do Maracatu ilumine esse caminho de diversidades, africanidades e cearensidades. Axé!


Ancestralidades Quantas vezes escutamos alguém dizer que no Ceará quase não havia negros? E que a escravidão daqui era diferente da do resto do Brasil? Que era mais branda, tanto que a libertação foi antecipada e o Estado ficou conhecido como Terra da Luz? O que têm a dizer os milhares de negros que labutavam nas fazendas nos mais diferentes ofícios – vaqueiros, mucamas, pedreiros, carpinteiros, engomadeiras, ambulantes, carreteiros, estivadores, jangadeiros? O que têm a dizer as centenas de negros que participaram, ao longo dos tempos, das coroações de reis de congo em Fortaleza, desde os idos do século XIX? Era uma cidade ainda pequena, iluminada à luz de lampiões de azeite e candeeiros. As ruas do centro também tinham nomes diferentes, quiçá mais bonitos do que os atuais. Os grupos formados de trinta a quarenta pessoas desfilavam pelas ruas em busca da igreja de Nossa Senhora do Rosário. Esse templo, o mais antigo de Fortaleza, foi construído pelas irmandades de negros. Tinha paredes de taipa e cobertas de palha. Ao longo dos anos, sofreu várias reformas, sendo totalmente restaurado na década de 2000.


Mas de onde veio esse ritual de coroar simbolicamente reis que ficaram do outro lado do Atlântico? Diz a sabedoria popular que recordar é viver novamente. Nessas coroações, os escravizados lembravam do que eram antes: um povo com seus reis, suas lutas, suas terras, lavouras, crenças, rituais e festas. Desse modo, nunca deixariam os mais jovens esquecer quem foram. E assim se multiplicaram pelo território brasileiro, esses autos que têm variações quanto a nomes, representação e instrumentos, mas uma só motivação: honrar os antepassados e praticar sua cultura. Não deixar morrer sua alma. Os negros de Fortaleza, muito mais numerosos do que se imagina, seguiam esse ritual em época natalina.


As cortes dos congos fortalezenses tinham o Rei, o Príncipe Sueno, o Embaixador, o Secretário, além de soldados e cantores. As crianças também participavam e eram chamadas de “conguinhos”. Fantasias coloridas enchiam os olhos da plateia, principalmente das crianças. Eram roupas ricamente enfeitadas, recamadas de vidrilhos, lantejoulas e espelhinhos, que pareciam brilhar mais ainda sob a luz avermelhada dos archotes e candeeiros. O Rei ostentava uma coroa rutilante, e na cintura trazia uma espada. O manto escarlate descia até o chão. Vestia colete verde, calção azul e calçava sapatos de entrada baixa. A indumentária do Príncipe e do Secretário eram bem parecidas, sendo que o último ostentava um chapéu de abas largas, ornado de conchas brilhantes. O embaixador se apresentava de capa e espada e os soldados e cantores vestiam saiotes e uma espécie de bolero. Arrebatavam olhares por onde passavam. Ajuntavam-se em frente à igreja do Rosário, onde dançavam e realizavam cerimônias de louvação. Depois se apresentavam em residências mediante paga ou organizavam espetáculos em praças ou ruas, cobrando uma modesta entrada dos participantes. Divulgavam esses eventos com antecedência, por meio de cartazes e também do boca a boca.



As cantorias eram improvisadas, por vezes misturando cantigas tradicionais a brincadeiras com os participantes e o público. Palavras de antigos dialetos africanos sobreviviam nas falas. Os instrumentos musicais usados eram pequenos maracás, ganzás e tambores, que eventualmente ofuscavam o canto dos participantes. A cerimônia começava pela fala do Rei. Sentando majestosamente em seu trono, ele cantava: Eh Gonguê! Ao que o coro respondia: ia: Eh Gongá! E o Rei continuava: A lerêlerôlerê Vamo lá, vamolatê Alevanta mezifi. Qui tem muito quidizêê Vai fazê a ginitrinha Bem fetá e bem fazida.. Qui esses necessitados Fique de boca embambacato E de oioengrangarato.* No cortejo para a igreja do Rosário costumavam cantar versos de louvação. O Secretário perguntava: –Os pretinhos dos congos pra ondee vão? Ao que o coro respondia: –Nós vamos pro Rosário “festeja” Maria. E o Secretário continuava: –Oh festeja, oh festeja!*


Dia de congo era dia de festa. Olhos atentos para o espetáculo que se realizava na rua. O Rei tomava posse do seu trono, por vezes uma simples cadeira recoberta com uma toalha vistosa, mas ainda um trono! O coro de cantores anunciava: Arredar e arredar, dexar passar Nossos reis, nossos reis D. Carlongo Mais a sua, mas a sua divindade Toda ela, toda ela pra seu trono.* Versinhos e cantigas enchiam a noite de alegria: Já fui cravo, já fui rosa Hoje sou manjericão Daquele bem miudinho Que as moças pega na mão.*

*Falas transcritas por João Nogueira (1867-1947) em Fortaleza Velha – Editora Armazém da Cultura, 2013.



Vendedores ambulantes gritavam seus pregões, anunciando suas mercadorias: pirulito, quebra-queixo, garapa de cana, aluá. E assim os congos iam desfiando suas memórias pelas ruas. Fazendo viver um passado de muito longe, esquecido por muitos. Muitos natais se passaram. Até que decidiram proibir os cortejos nas festas religiosas. Não podiam mais louvar Nossa Senhora no pátio da igreja do Rosário. Mas os reis, rainhas e príncipes africanos não se deixaram vencer. Renasceram ainda mais fortes, nas cores, ritmos e batuques do Maracatu. O Maracatu é sagrado e profano, desafia o tempo e chama o povo pra realçar sua negritude, pintando a cara com uma mistura de fuligem de lamparina com vaselina. São pais-de-santo, operários, ambulantes, sobreviventes de todo tipo que viram reis, rainhas, príncipes, princesas, índios e guerreiros. Inventam novos mundos, nem que seja por quatro ou cinco dias. E a glória do desfile, sem plateia ou com plateia, nunca sai da cabeça de quem brincou no Maracatu. Nunca saiu da memória de Francisco. Mesmo em terras distantes, a batida ainda ecoa, trazendo de volta cheiros, sabores, emoções. É por isso que ele quer retornar para desfilar novamente na Ala dos Caboclinhos, com cocar, penas e tudo que tem direito.


O visitante Francisco mora em São Paulo há mais de quarenta anos. Foi embora rapazinho, no rastro de uns tios e primos que já haviam se estabelecido com sucesso por lá. Chegaram todos com a cara e a coragem, sobretudo coragem. Muita coragem de trabalhar em serviço duro, o que aparecesse: estivador, carregador, vigia, servente e, por fim, pedreiro, ofício tradicional de muitas gerações pelo lado da mãe. Chegou e se estabeleceu numa casinha de fundos, um cômodo apenas. Logo prosperou e construiu seu barraco, no seu modo de chamar. Depois veio o casamento com Lúcia, também cearense, e logo depois vieram os filhos, como era de se esperar. Os meninos eram três. Meninos era uma forma de dizer. Os dois mais velhos já passavam dos vinte. A caçula tinha dezesseis. Muito apegada ao pai, tinhosa como ela só. Chamava-se Generosa. Um nome que Francisco achou de desencavar de uma escancha-avó, no dizer de Lúcia.


– Você mata essa menina de vergonha! – acusava o marido. – Não sei porque! Generosa é um nome muito bonito. E era o nome de minha escancha-avó que, segundo dizem, era muito bonita. A menina parecia não se incomodar tanto. Zoavam com ela na escola, é verdade. Mas ela sabia tirar de letra. Não nascera pra abaixar a cabeça pra ninguém. Puxava ao sangue dos Feitosas, dizia orgulhoso Francisco. Na verdade, não era bem sangue. O seu tataravô, que havia sido escravizado, ganhara esse sobrenome junto com a liberdade. Conquistara a duras penas sua carta de alforria anos antes da promulgação da Lei Áurea. Como não tinha sobrenome, pois os nomes africanos não eram permitidos para registro, aceitou de bom grado a oferta de seu ex-senhor. Francisco, como todo bom nordestino e cearense, tinha um sonho antigo: voltar a sua terra natal pra ver como andava a parentada e apresentar os “meninos”. O destino seria Fortaleza, pra onde os pais dele haviam migrado há anos. Francisco ainda era menininho. Antes moravam no sertão dos Inhamuns, de onde foram expulsos pela pobreza, agravada pela estiagem. Seu Geraldo, o pai, sobrevivera do seu ofício de sapateiro. A esposa sempre ajudou, vendendo café e tapioca na Praça da Estação. Francisco costumava acompanhar a mãe e guarda muitas lembranças dessa época. Era atento, fazia favores, sempre ganhava uns trocadinhos que reforçavam o magro orçamento familiar.


Cresceu entre o vai e vem de pessoas que passavam apressadas, pra pegar ônibus ou trem sempre lotados, sobretudo nos horários de rush. Frequentara alguns anos de escola. Seu Geraldo fizera questão: “não quero filho meu analfabeto, que nem eu e minha velha”. O adolescente Francisco era dado. Querido por todo mundo. Por meio de um amigo, acabou conhecendo o mundo do Maracatu. No começo, o rapaz achou muito estranho quando soube que aquelas figuras femininas, com saias cheias de babados, eram homens. E mais ainda, seu amigo Manuel era a Rainha! Manuel explicou, a seu modo, que pintava o rosto pardo de preto retinto pra sentir mais orgulho de ser negro.


E Francisco se empolgou. Logo começou a desfilar na ala dos caboclinhos, representando os povos indígenas, cuja herança e memória de lutas merecem ser igualmente cultuadas. Mas, voltando aos planos de viagem, Francisco anunciou à mulher e aos filhos na sala, interrompendo a audiência da novela: – Está decidido! Esse ano vamos passar o carnaval em Fortaleza. – Mas, pai, Fortaleza não tem carnaval! – protestou Generosa. – Quem disse isso, menina? Em Fortaleza tem carnaval, sim, senhora! E vou desfilar no Maracatu Rei de Paus. – Desfilar? Como em escola de samba? Conta outra, pai... – Pois fique sabendo: é pura verdade. Quando era da sua idade, desfilei dois anos nos Maracatus. E olhe que agora a festa é grandiosa, as fantasias são lindas. Veja aí o que tem na internet sobre o Maracatu cearense. Enquanto Generosa pesquisava sobre o Maracatu, Francisco foi procurar fotos antigas numa caixa onde guardava suas memórias de Fortaleza. Encontrou uma foto em preto e branco, com a fantasia da Ala dos Caboclinhos. Voltou exultante para mostrar à filha, em tom de prova. A menina ainda estava deslumbrada com as imagens que pesquisara na internet. – Tá aqui, tá aqui, eu não disse?! Esse último da direita sou eu – disse ele, indicando a foto circulada com caneta de tinta azul. – Como você era magrinho e diferente, pai! Até que era bonitinho... Quero ver agora, como vai se virar nesse desfile. Pelo que vi, é “irado”. Arranja um lugarzinho pra eu desfilar também? – Vamos ver como é que você se comporta... E voltaram aos planos da viagem. Iriam de avião, Francisco já havia comprado as passagens em segredo. Generosa era a mais animada. Depois que descobrira sobre o Maracatu, sonhava com a possibilidade de desfilar. Imagina-se na avenida, fantasiada, poderosa. Iria postar muitas fotos nas redes sociais, deixar as amigas morrendo de inveja.


Em Fortaleza Chegaram a Fortaleza uma semana antes, a tempo de participar dos ensaios. A primeira parada foi na casa dos pais de Francisco. A festa estava armada. Baião de dois, farofa, galinha à cabidela e uma boa buchada para matar a saudade dos velhos tempos. Tudo feito no capricho por dona Dos Anjos. A rua em que moravam ficava na periferia, com direito a cadeiras na calçada, a despeito da condição de metrópole de Fortaleza. Logo a notícia se espalhou pela vizinhança. Antigos companheiros vinham rever Francisco, lembrando as brincadeiras de menino: a pelada na rua, soltar pipa, pião, a disputada corrida em carrinhos de rolimã. O barracão do Maracatu Estrela Guia ficava na mesma rua onde morava Seu Geraldo. Tão logo se fartou com o almoço de dona Dos Anjos, Francisco foi fazer uma visita. Precisava saber se o convite para o desfile ainda estava de pé. E ainda havia a promessa feita à Generosa. Francisco não disfarçou a tristeza ao saber da doença do amigo Manuel. Ele estava lá, firme, deitado em uma rede armada ao fundo do barracão, de onde acompanhava o movimento. Foi recebido com lágrimas de emoção. Tristeza e alegria se misturavam.


Uma incógnita pairava no ar, preocupando os integrantes do bloco: será que ele se recuperaria para desfilar? Se não, quem estaria preparado para assumir o posto de Rainha? Uma profusão de materiais, como penas, estandartes, tecidos, brocados, engrenagens invadiam o espaço meio improvisado. Costureiras, artesãs e soldadores realizavam os mais diferentes trabalhos. Francisco se esgueirou entre as pilhas de materiais, seguido por Generosa. Foi encontrando velhos conhecidos. Logo pai e filha se ofereceram para ajudar no mutirão. Francisco foi reforçar o time que montava as alegorias e Generosa se enturmou com as mulheres que bordavam o vestido da Rainha, com vidrilhos e lantejoulas. O ensaio seria à tardinha. Tempo certo para o sol causticante dar uma trégua. A rua era fechada, os instrumentos afinados, os tiradores começavam as loas. O baque surdo dos atabaques e zabumbas e o tinir do ferro dos triângulos vibrava no ar seus sons cadenciados. O desfile do Estrela Guia nesse ano era especial: contaria a própria história do Maracatu, dos congos do século XXI aos dias atuais. Muito mais que a história de uma manifestação cultural, era, sobretudo, a história da resistência de negros, pardos e mestiços que aqui viveram. Na hora do ensaio, Francisco já assumira seu antigo posto na ala dos caboclinhos, enquanto Generosa integrava a ala das mucamas. – Você teve sorte, Generosa, pois agora eles aceitam mulheres. No meu tempo era só homem. E não é que você leva o maior jeito! Filha de peixe...


As formações das alas simulavam o que aconteceria no grande dia. Todos já se preparavam para começar o ensaio quando alguém chamou o nome de Francisco. – Francisco, mestre Manuel quer que você ensaie como Rainha. – Como Rainha? – admirou-se Francisco. Nunca havia passado pela sua cabeça assumir o lugar do mestre. Era uma responsabilidade muito grande. Mas não podia recusar um pedido do amigo. Pegou o estandarte, fez pose de rainha. Sentiu-se seguro e radiante. Revirou a memória para lembrar os meneios do Mestre Manuel. Uma embaixada aqui, um cumprimento ali. Os brincantes pareciam ter aprovado, pois se ouviram palmas e assobios. Já era noite alta quando os últimos integrantes se dispersaram. Havia muita euforia no ar. Esse era o “ano” do Maracatu Estrela Guia. Os ensaios se amiudavam e o trabalho no barracão virava madrugadas. O dia do desfile se aproximava e tudo precisava estar perfeito.



O grande dia Chegou o grande dia. Desde cedo o movimento no barracão se intensificara. Todo mundo agitado como um enxame de abelhinhas. Ou talvez um grupo de formigas operárias. Últimos ajustes nas fantasias, nas alegorias, nos adereços. Mestre Manuel não sarara e Francisco iria mesmo desfilar como Rainha em seu lugar. Estava com um friozinho na barriga. Depois de vestir a fantasia, pintou o rosto de forma tradicional, com a mistura de fuligem de lamparina e vaselina. De repente, um sentimento de majestade lhe assaltou. Tomou o cetro nas mãos e assumiu seu posto triunfalmente. Generosa estava eufórica em sua roupa de mucama. Postava fotos em frenesi, fazendo uma cobertura completa. Aos poucos todos foram se encaminhando para a concentração. O clima era de mutirão. Um ajudava daqui, outro dali, uma “mãozinha” para ajustar a fantasia, a cota para a despesa imprevista, de última hora. “Sandubas” e caldo de carne feitos por dona Geralda eram distribuídos para reforçar a barriga dos brincantes para a maratona que viria. Atabaques, zabumbas e triângulos deram os primeiros tons. A cadência do Maracatu invadia a avenida Domingos Olímpio. O palco era nobre, com arquibancada e tudo. Uma conquista para o “povo” do Maracatu, que desde os tempos do congado, quando foram proibidos de desfilar nas festas religiosas, perambularam por várias ruas do centro: Senador Pompeu, Duque de Caxias, Dom Manuel, Heráclito Graça, Aguanambi. O próprio Francisco se assustou quando viu a multidão. Estava acostumado a desfilar para vinte “gatos


pingados” que teimavam eu não debandar de Fortaleza no carnaval, talvez mais por falta de grana que por falta de vontade. E o Maracatu, antes menosprezado pelas escolas de samba, agora atraíra muito mais gente. As arquibancadas estavam lotadas, e ainda tinha gente de pé, se esgueirando entre a multidão. – No dia das escolas de samba não estava assim, ainda tinha vaga nas arquibancadas – comentavam muitos.


Parece que o Maracatu renascia glorioso, glorioso como os reis e rainhas rainh ali coroados. Francisco sentiu uma alegria lá no fundo do coração, das mais verdadeiras que existem. Não era só o desfile. Não era só o posto de Rainha nem a vibração do público. Era um pedacinho da história do seu povo que estava sendo revivido. Eram as lutas, as conquistas, a memória dos que vieram do outro lado do oceano e sobreviveram à longa travessia, e agora moram na memória coletiva, renascendo nas asas do imaginário. Todas as alas alinhadas, instrumentos afinados, loas sendo entoadas... O espetáculo começava. O Baliza abre o cortejo com seus mil malabarismos. A Calunga Negra, simbolizada por uma boneca ricamente vestida, é carregada em seu nicho. Está ali para lembrar-nos da eternidade. Muitos escravizados se jogavam nos braços do mar – chamado por eles de Calunga Grande –, o mesmo oceano que haviam atravessado, na esperança de ir novamente para casa. E de certa forma iam. Agora livres. O Balaieiro tem destaque central no cortejo. O cesto de frutos que carrega na cabeça é uma forma de demonstrar gratidão à mãe natureza pelas riquezas que desfrutamos. Reverência ou sabedoria (prefiro)


expressa na quase totalidade dos rituais de culturas ancestrais. Cabem no balaio do Maracatu: o caju, o pescado, o feijão e o arroz para o bom baião de dois, o milho das deliciosas pamonhas e canjicas, a carne do sol, a paçoca, a tapioca, o beiju e tantas outras iguarias. Cabe também a sombra do juazeiro, as flores do ipê, da catingueira, as palhas do coqueiro e da palmeira, que balançam com o vento que sopra do litoral. A chuva molhando o chão, a água do córrego, do riacho, a vastidão do mar, o céu estrelado – guia dos jangadeiros – e o sol de cada dia. Mas nada se compara à pompa e galhardia da corte real. Uma corte que veio de longe, do outro lado do oceano, para ser coroada e reinar novamente. Uns dizem serem essas coroações inspiradas em Chico-Rei, soberano de uma tribo do Congo que teria sido trazido para o Brasil na condição de escravizado. Segundo a tradição oral, conseguiu comprar sua liberdade e a de seu filho. Por fim, adquiriu a mina em que trabalhava e a alforria de muitos de seus compatriotas.


Realezas negras não faltam. Como a soberana Rainha Nzinga (ou Ginga), que lutou contra o reino português pela soberania de seu trono em Angola, e a poderosa Rainha Agotime, escravizada em seu reino de Dahomé e supostamente aportada em São Luiz do Maranhão, onde fundou um novo império. Não sabemos – e talvez jamais seja possível saber – que reis os congos e os Maracatus reverenciavam. Não sabemos exatamente a quem saudavam, embora sejam citados os reis D. Carlongo, Henrique Cariongo, os reis Catronguê, a rainha Ginga. Francisco não pensava nisso enquanto adentrava triunfante na avenida. Era ele próprio a realeza, com coroa, manto, cetro e seu anel de pedra brilhante. A roupa pesava muitos quilogramas, mas ele flutuava leve como as penas que decoravam sua fantasia. Não era um triunfo só seu. Era um triunfo do amigo Manuel e dos muitos que o precederam. A arquibancada levanta explodindo em aplausos, enquanto a loa segue sendo cantada, ao ritmo cadenciado dos instrumentos: Rainha negra do Maracatu/ Nessa rica passarela/ Ninguém brilha mais que tu.


As alas continuam desfilando sob aplausos e assobios da multidão. Todos estavam radiantes. A apuração confirmou o que todos já sabiam: aquele era o ano do Maracatu Estrela Guia. Era, sobretudo, o ano do Maracatu, em vias de ser tardiamente reconhecido como manifestação do patrimônio imaterial brasileiro. Brasileiro, isso sim! Porque veio da África, mas aqui engrossou seu caldo, cantando reis e rainhas míticos, cujo reinado não acaba quando se para de respirar. Aquele carnaval foi inesquecível para Francisco e Generosa. Voltaram para casa com a certeza de retornarem todos os anos a Fortaleza para “renovar os votos” e a alma, para nunca deixar cair no esquecimento os que ficaram do outro lado do oceano, mas estão aqui, vivos e brincantes como nunca deixaram de estar. Contam que os escravizados, antes de embarcarem nos negreiros, eram obrigados a dar sete voltas em torno da árvore do esquecimento. Assim, não lembrariam mais quem eram nem o que foram. Mas tiraram as contas erradas. A árvore da memória venceu e fincou suas raízes no solo mais profundo, e o Maracatu está aqui pra confirmar. Seus reis, rainhas, caboclinhos, guerreiros, calungas, balaieiros, mucamas dançarão para sempre essa dança ancestral, reinventando a vida.


Festas do Rosário, Congados e Maracatus “Ao que tudo indica, essa forma de cultura afrodescendente está presente apenas em nos estados do Ceará e Pernambuco”, é o que escreve Hilário Sobrinho sobre o Maracatu. Ainda segundo esse autor, as origens dessa manifestação cultural estão ligadas às procissões em louvor a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e às coroações dos Reis de Congo. Os antigos congos atuaram de meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX em Fortaleza, nas festas religiosas de Nossa Senhora do Rosário. Esses reis de manto escarlate e seu séquito deixaram vívida impressão em quem assistiu a seus cortejos, entre eles os escritores Gustavo Barroso, Rodolfo Teófilo e Otacílio de Azevedo. Assíduo frequentador destas festas populares, Gustavo Barroso cita os Congos de João Ribeiro, localizado no fim da Rua Major Facundo, bem como os Congos da Praça do Livramento, atual praça Do Carmo. João Nogueira relata na Revista do Instituto do Ceará, número 48, publicada em 1934, que os Congos de Fortaleza se apresentavam à época do natal, saindo pela primeira vez na noite de festas, quando iam dançar em frente à igreja de Nossa Senhora do Rosário, e depois faziam apresentações de fronte às casas. Diferentes fontes apontam que os caminhos dos Congos e Maracatus se cruzaram. No final do século XIX e início do século XX, algumas manifestações populares ainda eram bastante praticadas na cidade de Fortaleza: Boi Surubi, Pastorinhas, Fandangos e o Auto dos Reis de Congo, relatado por vários memorialistas cearenses, assim como os Maracatus. O próprio Gustavo Barroso também se reporta aos Maracatus, inclusive citando nomes de alguns: “(...) o Maracatu do Morro do Moinho, Maracatu do Outeiro, da Apertada Hora, da Rua de São Cosme e do Manuel Conrado se apresentavam principalmente durante o período de festas natalinas”. Segundo Franck Ribard, os Congos são registrados até a primeira década do século XX, depois desaparecem das anotações e dos registros oficiais. Uma das possíveis causas foi o fato das Irmandades terem perdido espaço pra outras instituições, desde fins do século XIX, diminuindo gradativamente a atuação dos Congos. A despeito disso, algumas comunidades negras mantiveram o cortejo de coroação, que teria passado a se chamar Maracatu. A partir das primeiras décadas do século XX, os Maracatus deixaram de se apresentar em períodos de festas de fim de ano e passaram a participar dos carnavais de rua da cidade de Fortaleza. Raimundo Alves Feitosa foi um dos pioneiros. Desfilou no recém-criado Maracatu Az de Ouro, no ano de 1936, primeira agremiação a participar nos carnavais de Rua de Fortaleza. Não existe consenso em relação à origem do Maracatu em Fortaleza. Alguns autores, em sua maioria não historiadores, remetem a origem dessa manifestação ao início do século XX, quando surgiu o Maracatu Nação Az de Ouro. De fato, a história da fundação dessa agremiação confunde-se com a história do nascimento do Maracatu na cidade de Fortaleza.


Seu criador, Raimundo Alves Feitosa, conhecido como Boca Aberta, afirmou certa vez, numa entrevista, que a criação do seu Maracatu foi inspirada pelo Maracatu pernambucano. A isso se deve a tese da origem pernambucana do Maracatu cearense. À luz dos estudos culturais, podemos nos arriscar a afirmar que tanto os Congos e Maracatus antigos como as nações pernambucanas devem ter influenciado o surgimento desse segundo ciclo do Maracatu em Fortaleza, a contar da função do Az de Ouro. Gilmar de Carvalho enxerga diferenças significativas entre o Maracatu pernambucano e o cearense: a presença marcante do elemento indígena, o batuque plangente e mais lento, vestimentas mais suntuosas, a tradição de pintar o rosto de preto. Após experimentar um período de relativa desvalorização frente às escolas de samba inclusive chegando a serem obrigados a se enquadrar nesse modelo de desfile, os Maracatus cearenses estão em processo de revitalização. O público deixou de fugir em massa para as praias e os desfiles na avenida Domingos Olímpio costumam lotar as arquibancadas. Surgiram novas agremiações nos últimos anos, e hoje são mais de dez nações divididas em dois grupos, com acesso e decesso nos desfiles. O Maracatu favorece a formação de identidade por meio da superação da invisibilidade, reforçando os processos de afirmação, resistências, solidariedades e cidadania. Em dezembro de 2015, a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza – SECULTFOR concluiu o processo de registro do Maracatu Cearense como Patrimônio Imaterial da cidade. Essa ação foi de fundamental importância para a valorização das tradições de raízes africanas na capital cearense e das heranças culturais de matriz afro-brasileira.

Referências BARROSO, Gustavo. Idéias e palavras, Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro & Murilo, 1917. CARVALHO, Gilmar de. Artes da tradição – mestres do povo. Fortaleza: Expressão Gráfica/Laboratório de Estudos da Oralidade UFC/UECE, 2005. CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. A prática do maracatu na cidade de Fortaleza. Disponível em http:<// www.ce.anpuh.org/download/anais_2008_pdf/Carlos%20Rafael%20Vieira%20Caxil%E9.pdf>. Acesso em 20 fev. 2016. DEBRET, Jean Baptista. Viagem pitoresca e histórica do Brasil. Trad. e notas. Sergio Milliet. São Paulo: Livraria Martins, 1940. MARQUES, Janot Pires. Auto de Rei Congo em Fortaleza: Uma prática cultural negra na dinâmica socioespacial da cidade (1873-1900). Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana. Disponível em: <www.revistas.usp.br/sankofa/article/download/88744/91640>. Acesso em 20 fev. 2016. NOGUEIRA, João. Fortaleza velha, Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2013. RIBARD, Franck. A corte real dos Reis de Congo: territórios festivos negros em trânsito (Fortaleza-1871/1900) In: HOLANDA, Cristina (Org.) Negros no Ceará: história, memória e etnicidade. Fortaleza: Museu do Ceará/Secult/Imopec, 2009. SOBRINHO, José Hilário Ferreira. Cultura popular e as culturas afrodescendentes. In: HOLANDA, Cristina (org.). Negros no Ceará: história, memória e etnicidade. Fortaleza: Museu do Ceará/Secult/Imopec, 2009. TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo: Art Editora,1988.


ARLENE HOLANDA Nasci numa comunidade rural chamada Córrego de Areia, em Limoeiro do Norte, no Ceará. Convivi durante minha infância com o universo sertanejo: seus falares, costumes, ofícios, num cenário em que tradição e modernidade travavam uma verdadeira batalha pelas identidades, em suas permanências e mudanças. Sou apreciadora de panelada, paçoca e pamonha – doce melhor que quebra-queixo não existe. Meu coração pula quando ouço o rufar dos tambores em um Maracatu, de um Congado, meu corpo vibra ao som de um genuíno Forró Pé-de-serra. A curiosidade e o gosto por histórias me fez escolher o curso de História, o interesse por educação determinou a escolha da especialização em Ensino de História e História da África. Escrevo em variados gêneros e estilos literários. Tenho cerca de 50 livros publicados, entre literatura (adulto, infantil e juvenil), didáticos e obras complementares. 6 títulos de minha autoria foram selecionados para compra em editais do MEC (PNBE E PNLD). Como ilustradora, tive 2 livros selecionados pelos mesmos programas. Ganhei vários editais e prêmios: da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ, Ministério da Cultura, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará e Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza.

CESAR MIRANDA Nasci e sempre morei na cidade de São Paulo. Quando criança gostava de imaginar coisas. Eu não tinha tantos brinquedos, por isso improvisava. Usava qualquer objeto para brincar: uma caixinha virava um carrinho, uma latinha virava um tambor, uma escova virava um foguete! Ah, e também passava as tardes desenhando. Desenhei tanto que virei artista desde pequeno. Ganhei um concurso de desenho na escola com cinco anos de idade! Hoje, quando ilustro livros, é da mesma forma que sempre foi: brincando com a imaginação. E de tanto imaginar, virei um inventor de mundos. Sou formado em Comunicação Visual e trabalho com ilustração, cenários, pinturas, brinquedos, fantasias e tudo o que minha imaginação criar. Já conhecia um pouco sobre o Maracatu. Uma vez acompanhei em minha cidade natal um batuque de Maracatu e fiquei enfeitiçado pelo ritmo. O estrondo dos tambores reverberava dentro do meu corpo e fui conduzido a um estado de encantamento. Quando recebi o convite para ilustrar esse livro, decidi olhar mais de perto esse mundo colorido e ornamentado do Maracatu em seu berço. Assisti aos desfiles em Fortaleza, onde pude fazer um registro fotográfico coletando referências para os desenhos. Testemunhei a alegria, o encanto e a reverência próprios dessa cultura, manifestados nos rostos do público e dos brincantes.


O rufar dos tambores, ganzás e chocalhos evoca um mundo ancestral, vindo do outro lado do oceano para se materializar por meio do Maracatu, com suas alas de Caboclinhos, Mucamas, Calungas, Pretos-velhos, Balaieiros, Reis e Rainhas. Abram alas para nossas tradições afro-brasileiras, porque elas precisam passar. Passar para ficar em nós e nos lembrar quem somos e quem fomos, nos lembrar dos que lutaram, viveram, cantaram, celebraram. E que a estrela brilhante do Maracatu ilumine este caminho de diversidades, africanidades e cearensidades. Axé!


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