Sefarad Universo
ANO 3 N.6 - EDIÇÃO ESPECIAL DE PESSACH - ABRIL 2020
Um Pessach Especial PORTAL AJ:
Uma Referência Mundial faz 10 Anos 1
CHAG HAPESSACH KASHER VESAMEACH A TODOS
PESSACH SAMEACH A TODO NOSSO ISHUV 3
Sefarad Universo
Diretor/Editor Executivo Elias Salgado Editora Executiva Regina Igel Diretor de Arte e Design Eddy Zlotnitzki Conselho Editorial HOMENAGEM ESPECIAL: Prof. Samuel Isaac Benchimol z”l Andre de Lemos Freixo Fernando Lattman-Weltman Heliete Vaitsman Henrique Cymerman Benarroch Ilana Feldman Isaac Dahan Jeffrey Lesser Michel Gherman Monica Grin Regina Igel Renato Athias Wagner Bentes Lins Editores Reina Igel Elias Salgado Projeto gráfico e arte diagramação Eddy Zlotnitzki Revisão Mariza Moreira Blanco Colaboram neste número Cristina Konder Rachel MIzrahi Paulo Valadares Sergio Simon Alfredo Lopes Incluí o Suplemento Amazônia Judaica
Universo Sefarad é uma publicação da Talu Cultural www.talucultural.com.br www.portalamazoniajudaica. com.br Email: contato@talucultural.com.br universosefarad@gmail.com Facebook Universo Sefarad
EDITORIAL Vehakadosh baruch hu matzileinu miyadam V’hi she’amda lavoteinu velanu Shelo echad bilvad amad aleinu lechaloteinu Elah shebechol dorvador omdim aleinu lechaloteinu Vehakadosh baruch hu matzileinu miyadam Tradução: E isto tem nos protegido / aos nossos pais e a nós. / Pois não apenas um / se ergueu contra nós para nos aniquilar. / Mas em toda geração existem aqueles que se erguem para nos aniquilar. / E o Eterno, bendito seja, nos salva das mãos deles. (Hagadá de Pêssach) Poucas vezes na história da humanidade, nos vimos diante de situação tão temerosa, quando todos os seres humanos, indistintamente, veem suas vidas ameaçadas. Poucas vezes a passagem de Pessach e seu contínuo ensinamento, geração após geração, foi tão fundamental, tão exemplar, quando uma nação inteira se viu em trevas e conseguiu sobreviver. A narrativa e a vivência do Pessach nos coloca diante de uma verdade: a salvação só se dará, se nossa escolha for buscá-la. A luta entre a escravidão e a liberdade física e espiritual é uma luta a ser travada com nós mesmos. Em nós, em nossas atitudes; em nossa postura diante da vida e do outro. Que saibamos atravessar estes tempos temerosos, com fé e sabedoria. E principalmente, praticando o que nos ensinaram nossos chachamim – “Ahavat Achim”. Nesta edição da Universo Sefarad e seu Suplemento Universo Amazônia Judaica, não só o Pessach comemoramos. Festejamos, também, os 10 anos de criação do Portal e Arquivo Histórico Amazônia Judaica. É isto mesmo! Festejar. Vida longa Amazônia Judaica Os editores
ÍNDICE
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CULINÁRIA - : Um passeio pela gastronomia judaica
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REVELAÇÃO
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RESGATE
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REGISTRO
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REVELAÇÃO - Colombo e a Igreja
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LEMBRANÇAS
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LITERATURA
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SUPLEMENTO UNIVERSO AMAZÔNIA JUDAICA
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CAPA ESPECIAL - Portal Amazônia Judaica chega aos 10 Anos com 350 mil acessos
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MIGRAÇÕES
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CRÔNICA
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DO NOSSO PORTAL
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CULINÁRIA
COMO FAZER O GEFILTE FISH EM TERRA ESTRANHA?
PAULO VALADARES, Mestre em História Social (USP), autor de artigos e livros sobre História Judaica. Premiado com o The AJL Judaica Reference Award (2003), Nova York. Autor de Caiu na rede é post (Rio de Janeiro: Talu Cultural, 2019). 6 ANO 3 N.6 - EDIÇÃO ESPECIAL DE PESSACH - ABRIL 2020
Escrevi este ensaio pensando em nossa remota avó, Ana Rodrigues, a “Macabéia”, covilhanense, que foi presa pela Inquisição em 1592, por entre outras coisas, “não comer carne sendo em dias de carne e buscarem-lhe peixe para comer”. Tomados como indicativos de sua identidade judaica Paulo Valadares*
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CULINÁRIA
A
cozinha judaica, independente do tempo e espaço onde tenha medrado, obedece a milenar cashrut (leis dietéticas) contidas nos livros veterotestamentários de Levíticos (cap. XI) e Deuteronômios (cap. XIV). São regras do que pode ser consumido, combinações permitidas (juntar carne e leite são proibidos) e a forma do abate dos animais. Não se come caça. Leis que foram e são reinterpretadas até hoje por rabinos especializados nas questões de alimentação – há especialistas, os poskim, em todas as áreas do comportamento humano, inclusive na culinária. Esta é a comida casher (permitida) em oposição a treif (impura). Dentro do cotidiano judaico a alimentação ocupa uma posição importante, ela é relacionada ao sagrado e a história do Povo Judeu, uma forma de perpetuar a memória ancestral (zahor), através de jejuns e iguarias. Ela não tem apenas uma expressão. Obedece a geografia percorrida durante a diáspora (galut), que expôs os judeus a novos alimentos, que examinados segundo os padrões da cashrut (conjunto de leis dietéticas), são incorporados ou não a sua gastronomia. São reconhecidos dois grupos etnoculturais – há outros menores, que compõem os judeus. São os ashkenazim (judeus europeus) e sefaradim (ibéricos radicados no Império Otomano e norte da África). Dentro destes grupos há dezenas de tradições culinárias que refletem a sua história particular. O Brasil tem dois momentos desta culinária: da formação do país até tornar-se reino em 1808. Durante este período foi proibida a presença de judeus no território; mas, descendentes de judeus convertidos forçosamente no séc. XV, trouxeram 8 ANO 3 N.6 - PESSACH 2020 - EDIÇÃO DE PESSACH - ABRIL 2020
clandestinamente esta visão culinária para o país. Reprimida pela Inquisição. Com a liberdade de entrada dos judeus ao país, vieram de todos os países, para constituir a comunidade judaica (ishuv) contemporânea. Não se sabe o nome do primeiro judeu que pisou no Brasil; sabe-se apenas que estava na armada de Pedro Álvares Cabral (1467? – 1520?) e pode ser dentre outros: o astrônomo Mestre João (de Paz), o tradutor Gaspar da Gama, que era um poilisher (judeu polonês), etc. Os judeus da armada já eram convertidos ao catolicismo, a religião do Estado: obrigatória para todos. Entre 1500 a 1808 manteve-se o mesmo status jurídico: o judeu reconhecido como tal era proibido de entrar no espaço brasileiro e quem entrava são os cristãos-novos, chamados depreciativamente de “marranos” (porcos), descendentes dos antigos judeus convertidos forçosamente no séc. XV. Não era o tamanho do nariz, a cor da pele ou o nome de família que identificava o cristãonovo judaizante para a Inquisição Portuguesa. Nem as idéias, era a cozinha. A ligação indissociável entre os judeus e a cashrut levou a repressão inquisitorial identificar os remanescentes pela forma singular de alimentar-se. O que se come, como se come e principalmente o que não se come, formando o que denominei de “culinária do não”, como parte da identidade do cristão-novo. Os processos inquisitoriais movidos a réus por “culpas do judaísmo” trazem sempre menções a alimentação. A Igreja Católica em Portugal, atuando como antropóloga, produziu textos sobre os costumes alimentares dos judeus, com descrições minuciosas do assunto. Como
Adafina - prato judaico marroquino
no “Monitório do Inquisidor Geral” (1536), do Bispo D. Diogo da Silva. São elementos de provas judiciais os seguintes costumes:A Igreja Católica em Portugal, atuando como antropóloga, produziu textos sobre os costumes alimentares dos judeus, com descrições minuciosas do assunto. Como no “Monitório do Inquisidor Geral” (1536), do Bispo D. Diogo da Silva. São elementos de provas judiciais os seguintes costumes: “Preparar comida para o dia seguinte às sextas-feiras”. Como é proibido acender fogo no shabat (sábado na visão judaica), que começa na visão da primeira estrela da sextafeira – há tabelas modernas com a hora exata do evento; a alimentação é preparada no dia da sexta-feira. São 52 shabatot (sábados) no ano (falo de 2020). “(...) se degolam a carne e aves, que hão de
comer, à forma e modo judaico, atravessandolhe a garganta, provando e tentando primeiro o cutelo ou unha no dedo da mão, e cobrindo o sangue com terra (...)”. É necessário o schochet (abatedor) para este mister. Às vezes a arte de cortar e desossar bovinos, ovinos e caprinos era passada de pai ao filho; como os “Barbados do Assougue (sic)” de Vila Real, ancestrais do romancista português Camilo Castelo Branco. E mais próximos a nós, os Kornmehls de Viena, “Açougueiros de Freud” chamados assim por ele ser vizinho e cliente. Um deles, Leib Farber (*1876), trabalhou depois da Guerra no Rio de Janeiro. Talvez o primeiro deles por aqui foi Benjamin Levy (+ Londres, 1693), “el viejo askkenazy”, no enclave do Brasil-holandês. A shechitá (abate de um animal casher) implica em três atos posteriores: a) bedicá, inspeção dos órgãos internos a procura de doenças e 9
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CULINÁRIA
O Cholent ashkenazita. é o similar à Adafina
ferimentos; b) nicur, remoção de certas veias e sebos; c) melichá, salgamento da carne para retirar todo o sangue. Estas exigências tornam o abate do gado difícil e caro; daí, a opção por peixes e frangos. Ana Rodrigues, a Macabéia, que foi presa pela Inquisição na Bahia, por entre outras coisas, “não comer carne sendo em dias de carne e buscaremlhe peixe para comer”. Ou seja, já que não tinha carne confiável - ela optou pelo peixe. Isto influenciou certas áreas no Brasil onde os antropólogos atribuíram a abstinência do sangue abatido em todas as formas, a esta 10 ANO 3 N.6 - PESSACH 2020 - EDIÇÃO DE PESSACH - ABRIL 2020
influência. Atualmente os consumidores de alimentação casher tem o serviço de certificação, atestando que o produto está de acordo com as leis dietéticas, o BFK (Beit Din Kashrut), tribunal formado por rabinos especializados. 1. “(...) não comem toucinho, nem lebre, nem coelho, nem aves afogadas, nem enguia, polvo nem congro, nem arraia, nem pescado que não tenha escama (...)”. O “não” gastronômico mais visível é o consumo do porco e seus derivados. Isto gerou situações tragicômicas, como a do Padre Manuel da Nóbrega, circa
1633, homônimo do companheiro de Anchieta, percebendo o falatório sobre a sua origem étnica, deu um banquete para o Bispo D. Lourenço de Mendonça que visitava a sua paróquia. O primeiro prato foi toucinho. O anfitrião ao comê-lo, levou a iguaria a boca, mastigou e (...) vomitou. Tornou-se o “Arrevessa-Toucinho”. 2. “(...) Jejuaram ou jejuam, o jejum maior dos judeus, que cai no setembro, não comendo em todo até a noite, que saiam as estrelas (...)”. O jejum é abster-se de comer por razões metafísicas – não é fome, nem regime. Há seis jejuns no Judaísmo, com durações e objetivos diferentes. O principal deles é o Yom Kippur (Dia da Expiação), comemorado entre setembro ou outubro no calendário judaico. Ele é tão forte que até os céticos o praticam. 3. “(...) as Páscoas dos judeus, assim como a Páscoa dos pães ázimos, e das Cabanas, e a Páscoa do Corno (...)”. É proibido comer chamets (alimentos levedados, pão, vinagre, cerveja, etc) no Pessach (Páscoa). Há uma caça ao chamets ritual pela casa, quando dez pedaços de pão com fermento são escondidos e “encontrados” após a procura (bendicat). Páscoa do Corno (no sentido de chifre, o shofar) é o Rosh HaShanah (Ano Novo) quando ele é tocado. 4. “(...) “(...) se por morte dalguns ou de algumas, comeram ou comem em mesas baixas, comendo pescado, ovos e azeitonas por amargura (...)”. É o período do luto conhecido como shivah, quando se faz a “refeição do consolo” (seudah havra´ah) e se come obrigatoriamente, pães, ovos e legumes cozidos. A estas intervenções podemos acrescentar: os alimentos são classificados em seis grupos: pães, os que contêm farinha, vinho, frutos que
nascem em árvores, frutos da terra (legumes, hortaliças, etc) e os que não vêm da terra e bebidas. Todos eles são abençoados antes do consumo, com uma berachá (benção no sentido de agradecimento) própria; mas, com o mesmo início: “ מֶ לְֶך,ֹלהֵ ינּו- ֱבָּרּוְך אַ תָ ּה ה’ א הָ עֹולָם/ Bendito és Tu, o Eterno nosso D´us [isto é uma convenção ortodoxa – não citá-lo com todas as letras], Rei do Universo (...)”. Isto serve para completar a cota das cem berachot (bênçãos) diárias, conforme estatuiu o Rabino Meir no Talmude. O calendário – há um calendário judaico, lunar, partindo do começo do mundo – que ritualiza o cotidiano (estamos em 5780); indicando as festas e lembranças. Muitas delas elas estão relacionadas a alimentação como forma de uma pedagogia religiosa. Os ovos cozidos (luto) comidos no Lag Baómer lembram o falecimento de Rabino Shimon Bar Yohai, pai do misticismo judaico; ou a cabeça de peixe, o começo do ano no Rosh Hashaná. A abertura dos portos brasileiros em 1808, em função da invasão napoleônica e Portugal e o apoio militar britânico, permitiu a entrada de judeus no país, sem precisar do disfarce como católicos. A partir disto, é possível identificar sete ondas migratórias, que assentaram-se por aqui. Sem esquecer os indivíduos, que de forma aventurosa vieram, sem contar com a rede de proteção dos patrícios, como até gente do Rajastão (o cantor negro Beny Yanga, Beni b. Patel (1923-2000), um dos exemplos e não o único.
As ondas migratórias são: 1. Alsacianos – ashkenazim, vindos da França em razão da guerra contra a Prússia (1870). Vieram como comerciantes de mercadorias de luxo, para um país que buscava a sofisticação. 11
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Sara Schwarz Spighel, o “Buraco” da Sara, S. Paulo (Bom Retiro), Arquivo Nacional (RJ), 1937
Kurt Deichmann, Confeitaria Deichmann, Rio de Janeiro (Leblon), Arquivo Nacional (RJ), 1939
Assentaram-se entre Rio e S. Paulo. Não
construíram instituições judaicas, pois pretendiam retornar a França.
2. Magrebinos – Sefaradim – divididos entre tochavim (autóctones) e megorashim (ibéricos), vindos do norte da África, notadamente do Marrocos. Falavam a hakitia. Fugiam da pobreza e a partir de Belém se espalharam pela Amazônia. 3. Russos e poloneses – ashkenazim, vindos do Império Czarista. Chegam ao Brasil no final do século XIX. Uma parte deles, os bessarabers, formaram o maior contingente dos judeus que vieram para cá. Falam idish. 4 Turcos – sefaradim e mizrahim (autóctones), vindos do imenso Império Otomano, falam ladino. São divididos por cidades de origem: Esmirna, Istambul, Salonica, Sfat, etc. 5. Italianos e Alemães – em razão das políticas antissemitas dos governos 12 ANO 3 N.6 - PESSACH 2020 - EDIÇÃO DE PESSACH - ABRIL 2020
Lina Levi, Casa Búlgara, S. Paulo (Bom Retiro), Arquivo Nacional (RJ), 1975
nomeados. Os italianos dividem-se entre sefaradim – estes em ponentini (portugueses) e levantini (norte da África); ashkenazim; além
Leib Farber, um dos “Açougueiros do Dr. Freud” Arquivo Nacional (RJ), 1940
Bernard Manischewitz, comida industrializada, Arquivo Nacional (RJ), 1954
dos que estavam em Roma desde os césares. Os judeus de Livorno falavam o baggito. Os alemães (iekes) são majoritariamente ashkenazim.
cebola, alho, açúcar, que lhe dão sabor agridoce. A abstenção de carne bovina devese a dificuldades de obtê-las casher. Ela não é única entre os ashkenazim - esta é principalmente na área czarista (yddishland). Mesmo dentre os originários da mesma região é possível identificar a origem da cozinheira degustando o alimento preparado. Os litvaks (lituanos) preferem o gefilte fish (bolinho de peixe), com bastante sal e pimenta; já os galitzianers (oeste da Ucrânia), preferem mais suaves.
6. Países Árabes – Sefaradim e Mizrahim (autóctones), expulsos de seus países em razão da refundação do Estado Judeu em 1948, Israel, na terra ancestral. 7. Circulação latino-americana. A cozinha dos ashkenazim é a da escassez e do frio. É baseada na batata: “Domingo, batatas / Segunda, batatas / terça e quarta, batatas / sexta, batatas / e no shabat, cholent com batatas”. Cholent é um guisado de carne, batatas, feijão e cevada. Preparado na sexta para o shabat. Repolho, cenoura, beterraba, também são partes do cardápio. Junto a peixes defumados como carpas e arenques. Enriquecidos por vinagre, suco de limão, gordura de galinha (schimaltz),
A cozinha dos Sefaradim é semelhante a mediterrânea, apenas obedecendo os limites da cashrut. É baseada em vegetais, temperos aromáticos, coloridos (açafrão) e azeite de oliva. O elenco é extenso: feijões, arroz, aspargos, alface, tomates, berinjelas, azeitonas, pimentas, pepinos, amêndoas, melões, tamarindos e uva. Ela também é subdividida por várias regiões do Império Otomano e suas áreas de influência. 13
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Vindos de centenas de aldeias e cidades européias, asiáticas e africanas; todos são judeus, cada um com sua culinária peculiar, unificados pela cashrut; porem o senso comum no Brasil aponta como os representativos, os do Leste Europeu, pois esta região é a que deu mais imigrantes para o país – pois ela é a responsável pela construção de sinagogas, cemitérios, escolas e sociedade de ajuda-mutua, pioneiras no país. E, portanto a mais visível. Esta presença estrangeira trouxe novos pratos ao país. Durante anos ela manteve-se doméstica, restrita ao lar e a comensalidade entre os iguais. A figura central foi a dona da casa, herdeira de uma tradição, responsável pela alimentação familiar. Trabalho honroso, reconhecido pela família e pelos amigos. “Cozinheira de mão cheia” é como Bertha Galender Schwarz, Bracha b. Yossef (19262016) é identificada na sua lápide (matseivá) no Cemitério Israelita do Butantã, em S. Paulo. A mudança de continentes obrigouos a adaptações. Samuel Waingort, Schmuel b. Yitzhak (1890-1968), pai da historiadora Anita Novinsky, trouxe a carpa para o Brasil, necessária para a alimentação ritual judaica. Trocar a maçã pela banana para o strudel, foi a solução que Ida Derbarindiner, Ita b. Tzvi (1906-1993) encontrou para manter a cozinha familiar. Com a mesocratização destas famílias ela foi afastada do papel por cozinheiras não-judias, conhecidas coletivamente como “Marias”, normalmente mulheres nordestinas e mestiças, católicas, como Maria de Lourdes dos Santos, sergipana de Itaporanga, que aprendeu a fazer “guefilte fish”, “varenikes”, “kneidale”, etc. Muitas vezes a gastronomia tornou-se uma 14 ANO 3 N.6 - PESSACH 2020 - EDIÇÃO DE PESSACH - ABRIL 2020
atividade profissional exercida dentro da comunidade ou até para o mundo exterior. Schohet (açougueiro), bodek (inspeção sanitária), restaurante casher, empórios de produtos alimentícios, serviços para festas de bar-mitvá (maioridade masculina aos 13 anos) e casamentos. Conversando com antigos moradores, encontrei memórias dos primeiros schohetim no Bom Retiro em S. Paulo: Naum Grosslerner, Noah b. Aaron Yehuda (18641905); Israel Vilensky, Israel b. David (18781961) e Szlama Aron Elwing, Szlama Aron b. Arieh Leib (1878-1948). Eles iam às casas dos clientes onde abatiam as aves, normalmente frangos e galinhas, nos quintais. Nos anos Setenta chegou a S. Paulo, vindo de Israel, o schohet Mordecai Fisher que trabalhara nas comunidades da Romênia, Polônia, Iugoslávia, Irlanda e Austrália. Uma vez por semana ele abatia entre 180 a 250 bois. No começo de 1954, o americano Bernard Manischewitz (1916-2003), presidente da maior empresa de alimentação casher do mundo, fundada em Ohio, em 1888, esteve no Brasil, em S. Paulo e Rio de Janeiros, prospectando o mercado judaico e divulgando os seus produtos para a ampliação de vendas. Ele acreditava que a sua empresa era responsável pela “maior mudança na vida doméstica judaica desde os tempos bíblicos”. Restaurantes judaicos, como o “buraco (por ser num subsolo) da Sara”, comandado por Sara Schwarz Spighel, Sara b. Welwel (19161989), bessaraber, vinda de Roma em 1947, para comida judaica do Leste Europeu. Ou o a Casa Búlgara, de Lina Levi, née Toledo (1927-2018), que trouxe a comida judaica para o fast food, divulgando as burekas (massa assada) para a população paulistana. Mesmo
sem recursos para a alimentação cotidiana os judeus paulistanos empobrecidos podem contar com as refeições diárias desde 1992; quando foi inaugurado no Bom Retiro, o Ten Yad (estender as mãos), restaurante que serve duas mil refeições diárias gratuitas, entre domingo e sexta-feira. Nem todos ficaram no espaço comunitário; também são veículos de difusão da cultura gastronômica européia no Brasil, como o húngaro Laszlo Wessel, Eliezer b. Marton (1916-1997), herdeiro de um açougue casher há cinco gerações na família - desde 1830; que ao emigrar para S. Paulo, descobriu que o corte da carne no Brasil era descuidado; montou um açougue para servir ao paladar mais requintado, tanto que tornou-se uma marca de qualidade. A letã Anna Kopenhagen, Hannah b. Moshe (1895-1981), ao perceber que o marido não conseguia inserir-se no mercado de trabalho, começou a fazer “marzipãs” para uma clientela expatriada e expandiu-se, tornou-se uma fábrica bem sucedida de chocolates. Ou o confeiteiro alemão Kurt Deichmann (1907-2000), criador da Confeitaria Kurt no Leblon, Rio de Janeiro, responsável pelo refinamento no consumo de doces. E mais a escola de culinária de Wilma Kövesi, Sara b. Dvoira (1930-2004) para ensinar a ficar perto do fogão, independente da cozinha pretendida. A presença judaica da cozinha judaica no Brasil vem desde os primeiros anos da colonização. Chegou através dos cristãosnovos – judeus convertidos forçadamente no final do séc. XV e contemporaneamente, através de judeus imigrantes, que chegaram no pais a partir de 1808. Ela tem várias origens nacionais; mas, obedecem as mesmas
regras milenares da cashrut. Pratos do Leste Europeu, criados pelos judeus locais, são identificados como representativos da cozinha graças a sua visibilidade, por ela ser maior parte da comunidade judaica brasileira.
O QUE SE LER SOBRE O TEMA ALGRANTI, Márcia (Barki). Cozinha Judaica: 5000 anos de histórias e gastronomia. Rio de Janeiro: Record, 2002. BAR-DAVID, Molly [Malka] Lyons. The Israeli Cookbook: What´s cooking in Israel´s melting pot. Nova York: Crown, 1964. CASCUDO, Luis da Câmara. História da alimentação no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Nacional (2 vol), 1963. DWECK, Poopa (Joyce Kattan). Aromas of Aleppo: the legendary cuisine of Syrian Jews. Nova York: Ecco Press, 2007. EDEN, Esin; STAVROULAKIS, Nicholas. Salonika: a family cookbook. Atenas: Talos Press, 1997. LERNER, Breno. O Ganso Marisco e outros papos de cozinha. S. Paulo: Melhoramentos, 2012. LESSA, Viviane; STEINBRUCH, Leo; CENEVIVA, Chris (foto). Cozinha judaica da Maria. S. Paulo: Alaúde, 2011. MACHLIN, Edda Servi. The classic of the Italian Jews: traditional recipes and menus and a memoir of a vanished way of life. Nova York: Dodd, Mead & Co.; 1981. MANN, Sheila. Culinária do Líbano a Israel. S. Paulo: Edição da autora, 2013. MARKS, Rabino Gil. Encyclopedia of Jewish Food. New Jersey: John Wiley, 2010. RODEN, Claudia (Douek). The book of Jewish Food: An odyssey from Samarkand to New York. Nova York: Knopf, 1996. TABACOF, Sulamita D. Beabá da Bessarábia à Bahia. Histórias e receitas. Salvador: Editora Corrupio, 2019.
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REVELAÇÃO
A IGREJA NÃO CANONIZOU COLOMBO
“PORQUE ERA JUDEU”
A Igreja católica retirou sua própria proposta de canonizar o almirante Cristóvão Colombo ao saber que “era judeu”, disse o autor espanhol Oscar Villar Serrano em seu livro “ Cristóbal Colón: el secreto mejor guardado”(Cristóvão Colombo: o segredo mais bem guardado”)
V
illar Serrano, doutor em Ciências Náuticas e capitão do Comando marítimo de Torrevieja, na província espanhola de Alicante, afirma que Colombo manteve sempre um certo anonimato sobre sua personalidade “ porque era judeu, fato que lhe permitiu receber o apoio dos judeus” em sua primeira viagem a América com a promessa de
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“oferecer a eles a terra prometida”. Villar assegurou que “o mistério” que envolve Colombo se deve a que teve que ocultar sua religião porque para financiar sua viagem buscou o apoio de uma rainha católica, se bem que, “todos seus grandes apoios “ foram judeus, desde o banqueiro da Coroa de Aragão, Luis
Santángel, até a própria tripulação das caravelas, “majoritariamente judia”. Neste sentido, o autor relembra em seu livro os movimentos migratórios ocorridos na Itália e Espanha, durante os séculos XIV e XV,devido a perseguição que os judeus sofreram, e “é neles que está o segredo da família Colombo”. Villar, assegura em sua obra que mantiveram Colombo e seu filho Fernando “há muitas provas de suas crenças religiosas judaicas”. As cartas estavam fechadas com números hebraicos, os textos foram escritos num idioma “ininteligível” e faziam as despedidas lembrando uma benção judaica. Mesmo assim, o autor afirma que Colombo recomendava a seu filho por carta, que diante de todos se comportasse como mandava a lei canônica, “porém entre nós – cita a Colombo, textualmente – temos que conservar nossos costumes” .
O converso Luis Santángel, banqueiro da Coroa de Aragão Abraham Cresques, autor do famoso Atlas Catalão de 1375. Ele e seu filho Iehuda eram grandes mestres da navegação, da Escola de Mallorca, Ilhas Beleares, Espanha
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REVELAÇÃO
O capitão Oscar Villar Serrano, autor de “Cristocal Colón: El secreto mejor guardado”
Villar relembra que o irmão de Cristóvão Colombo foi queimado em Valência, em 1493, por ser judeu e que, curiosamente, foi a própria Igreja, que com a morte do marinheiro, propôs canonizar o descobridor, pelo fato de haver cristianizado os indígenas da América, “porém desistiu ao dar-se conta que era judeu”. Além disso, o autor do livro sustenta que o navegador “sabia onde ia” quando descobriu o novo continente, pois contava com informação sobre a rota a seguir. Em seu livro, Villar explica que Colombo “não foi um simples aventureiro”, e sim um letrado, cartógrafo e cientista que possuía mais de vinte mil livros sobre navegação que foram posteriormente cedidos por seu filho, aos dominicanos de Sevilha, onde se tomavam
O Atlas Catalão 1375
anotações do próprio descobridor. Villar diz também, que Colombo conhecia a distância que ia cobrir e quanto tardaria porque “tinha cartografia precisa”. Neste sentido, o autor sustenta que os mapas saíram da Escola de Sévres (França). Quanto ao financiamento da primeira viagem, Villar explica que
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“mas era falso”, já que chegou ao novo continente pelo sul, evitando o Mar dos Sargazos. “ Cristóbal Colón: El secreto mejor guardado” não é um romance, e sim, “ uma obra na qual se mescla a Historia com conhecimentos científicos e na qual são apresentadas novas conclusões”, disse Oscar Villar serrano.
parte do dinheiro que deu Santángel para Colombo, vinha do arrendamento de domínio público, das salinas de Torreviejam propriedade do banqueiro. Villar relata em sua obra que Colombo se cercou de importantes judeus espanhóis, como Abraham e Iehuda Cresques, criadores do Atlas catalão, cientista italiano Paolo Del Pozzo Toscaneli, o explorador florentino Nicolo di Conti e o cartógrafo e irmão do conquistador, Bartolomeu Colombo.
Fonte: www.salvamentomaritimo.es Leia artigo completo de Oscar Villar Serrano em: www.savamentomaritimo.es/data/articlefiles/ colon.pdf
Como fato de destaque, Villar mantém que os portugueses sempre estiveram atentos e interessados na primeira viagem que Colombo realizou a América, e por isso o descobridor anotava em seu diário de bordo “dados errados para não dar pista da rota correta”. Segundo Villar, Colombo dizia que havia descoberto as Indias Orientais por uma rota norte, 19
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RESGATE
Kol Israel A voz sionista na Amazônia “Amazing!”, exclamou o professor Charles Berlin, diretor geral da seção de judaica da Harvard University Library. Ele acabara de receber uma cópia do Kol Israel, o jornal sionista criado em Belém do Pará em 1918, uma das primeiras publicações do gênero no País por Sergio Daniel Simon – Fonte: Revista Morashá - Edição 103 - Abril de 2019
1ª página ediição de 1 ano jornal KOL ISRAEL
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verdade é que a história do Kol Israel é realmente surpreendente. Editado pelo meu avô, Eliezer Levy, mais conhecido como Major Eliezer Levy, o jornal Kol Israel se tornou um símbolo das primeiras publicações e iniciativas sionistas no Brasil. O que o torna peculiar, no entanto, é ter sido publicado em plena região amazônica, e distribuído em barcos pelos rios da bacia do Amazonas para todas as pequenas comunidades judaicas marroquinas que habitavam Cametá, Santarém, Alenquer, Itacoatiara, Macapá, Igarapé-Miri, etc. Assim, os judeus que moravam no interior da selva eram mantidos informados sobre a Declaração Balfour, a construção do Hospital Hadassah, os esforços internacionais de Chaim Weizmann e a construção dos kibutzim e moshavim que caracterizavam a colonização judaica inicial em terras da então Palestina. Minha família materna, oriunda de Belém do Pará, mantinha viva a história do jornal Kol Israel, se bem que não tivéssemos nenhum exemplar do mesmo. Para mim, era como se fosse uma lenda, uma história verdadeira, mas longínqua e apagada. Mesmo tendo sido alvo de tese de mestrado na USP, a história do meu avô Eliezer Levy não estava devidamente documentada – faltavam os exemplares do seu jornal sionista. Mas o que fazia essa comunidade marroquina e sionista na Amazônia? A imigração marroquina para a região amazônica, em busca de ouro, borracha, castanha e outros produtos do comércio local, iniciou-se por volta de 1808, ano da chegada da família real portuguesa ao Brasil. Em 1822, ano da Independência do Brasil de Portugal, era constituída a primeira comunidade formal em Belém, a sinagoga Shaar Hashamaim (Portal dos Céus), que continua em atividade até os dias de hoje, em Belém. Os jovens marroquinos embrenhavam-se pela mata, estabelecendo-se em pequenas cidades à beira dos rios. Muitos se
mantinham observantes dos preceitos religiosos judaicos, inclusive da Cashrut. Outros acabaram por se assimilar e casar com caboclas locais, sendo que seus descendentes hoje em dia só podem ser identificados como descendentes de judeus por seus sobrenomes tipicamente judeus marroquinos: Sicsú, Serruya, Benzaquen e outros. De qualquer modo, a vida judaica no interior da Amazônia era marcada por hábitos judaicos: muitos armazéns de beira de rio fechavam na sexta-feira à tarde e reabriam somente no domingo, nada funcionava nos feriados do calendário judaico, e o hábito da circuncisão era mantido nesses rincões distantes. Pequenas sinagogas pontuavam cidades como Cametá, Parintins e outras, e cemitérios judaicos até hoje podem ser encontrados em pequenas e médias cidades do interior do Pará e do Amazonas.
Meu avô, Eliezer Levy, teria nascido oficialmente em Gurupá, em 29 de novembro de 1877. Minha tia Hanna, a segunda de 13 filhos que viria a ter, confidenciou-me que, na verdade, meu avô nascera em Casablanca, mas trocara seus documentos para poder entrar na política brasileira. De qualquer maneira, o casal Moysés e Halia Levy, meus bisavós, moraram e mantinham comércio na cidade de Gurupá. Eliezer Levy foi levado após o Bar Mitzvá para Belém, a fim de completar seus estudos. Lá conheceu minha avó, Esther Benoliel, também de ascendência marroquina, e vieram a se casar em 21 de março de 1900 (ele com 23 anos, ela com 14!), na cidade de Cametá, tendo depois o casal se estabelecido finalmente em Belém do Pará. Tiveram 13 filhos, dos quais 12 chegaram à idade adulta. Desde cedo, Eliezer Levy se dedicaria com afinco à comunidade judaica, tornando-se um importante líder local. Apesar de não ser diplomado em Direito, era possível, na época, praticar Direito em escritórios de advocacia. Eliezer Levy entrou inicialmente na 21
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Guarda Nacional, tendo chegado ao posto de Coronel. Apesar disso, ficou conhecido como Major Eliezer Levy. Trabalhou no escritório de advocacia de Francisco Jucá Filho, Procurador da República, e de Álvaro Adolfo da Silveira, futuro Senador da República e assessor de Oswaldo Aranha, na ONU. Tendo desenvolvido grande amizade com Álvaro Adolfo da Silveira, meu avô o introduziu ao ideário sionista precocemente, o que facilitou, segundo conta a comunidade judaica de Belém, o apoio do então chanceler Oswaldo Aranha à partilha da Palestina em dois estados, um judeu e um árabe, em 29 de novembro de 1947, e que levaria à declaração da Independência de Israel, em maio de 1948.
Em visita à comunidade de Belém para homenagens, em 1952, Oswaldo Aranha disse, agradecendo: “Não é a mim que vocês têm que agradeMajor Eliezer Levy cer, é ao Álvaro Adolfo, que me fez criador do jornal KOL atrasar a votação por dois dias para ISRAEL que conseguíssemos o quórum favorável à Partilha, e que resultou na criação do Estado de Israel”. Sevimentação política dos primeiros líderes sionisgundo meus familiares, era tudo obra do Major tas. Fundou o Comitê Ahabat Sion em novembro de Eliezer Levy... 1918, coincidindo com o final da 1ª Guerra Mundial. O Major Eliezer Levy terminou por ligar-se, politicamente, ao governador Magalhães Barata e acabou sendo nomeado por três vezes, entre janeiro de 1937 e julho de 1944, prefeito de Macapá. Até hoje seu nome é conhecido e homenageado na capital do Amapá, tendo dado seu nome a importante rua e ao porto (trapiche) de Macapá. Mas seu ideal judaico foi sempre ligado ao ideário sionista. Desde 1905 seus escritos revelavam admiração pelas ideias de Theodor Herzl e pela mo22 ANO 3 N.6 - EDIÇÃO ESPECIAL DE PESSACH - ABRIL 2020
Em seguida, iniciou a publicação do jornal Kol Israel. Mas as edições impressas do jornal, que aparentemente duraram até dezembro de 1923, desapareceram. Decidi ir atrás do que houvesse restado dessas publicações. Em uma visita às sinagogas de Belém, nas quais há muitos documentos antigos guardados (a comunidade Shaar Hashamaim, fundada em 1822, continua ativa), nada pude encontrar. Em conversas com líderes comunitários em Belém ninguém conseguiu me ajudar muito. Nunca haviam
visto um exemplar do Kol Israel. Meus tios, filhos do Major Eliezer Levy, juravam ter visto os exemplares na infância, mas nenhum havia guardado um número sequer do jornal. Decidi investigar então o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, certo de que um documento dessa importância histórica haveria de ter sido preservado pelo País. Nada foi conseguido na busca eletrônica dos Arquivos Nacionais. Finalmente, em uma de minhas viagens a Israel, decidi tentar por uma última vez: entrei na ferramenta de busca do Archion Hamerkazi Shel Haam HaYehudi Yerushalaim (Arquivo Central do Povo Judeu Jerusalém). Para surpresa minha, na pesquisa inicial do termo “Kol Israel ”, já apareceu: “conjunto de jornais sionistas editados em Belém do Pará, de 1918 a 1923 – coleção completa”. Mal pude acreditar que eles realmente tivessem a edição completa. Um e-mail para a diretora geral do Arquivo confirmou que possuíam as edições do jornal e que estariam à minha disposição para estudo e cópias eletrônicas.
Desta maneira, em dezembro de 2017, 99 anos após sua publicação, estava eu manuseando o Kol Israel original editado por meu avô. A coleção completa estava lá, amarelada, desbotada, com o papel extremamente fragilizado pela passagem do tempo, provavelmente por muitos anos no calor e na umidade da Amazônia. Mas era perfeitamente legível e consegui que o Arquivo me fizesse uma cópia fac-símile de todos os números do jornal. A doação do Kol Israel ao Arquivo do Povo Judeu fora feita por um sr. Serruya, em data não identificada. De volta ao Brasil, consegui imprimir três cópias do jornal: uma para o Centro de Memória e Documentação do Museu Judaico de São Paulo, em fase de construção, outra para a coleção de Judaica da Biblioteca da Universidade de Harvard, e a terceira para a família. Mas o que há nestas edições do Kol Israel ?
No primeiro número, A Voz de Israel – “órgão independente de propaganda sionista” e “órgão do Comitê Ahabat Sion”, publicado no dia 8 de dezembro de 1918 (5 de Tebet de 5679, segundo o jornal), proclamava, em sua primeira coluna: “Um sonho de vinte séculos vae ser enfim realidade. Dispersos há dois millênios pelo mundo, a raça hebraica sofredora, resignada, laboriosa e tenaz, ella continuou a chorar a sua desdita, cantando ao mesmo tempo com as harpas...”. No mesmo número podia-se ler sobre a fundação “em setembro último”, na Nova Universidade Hebraica em Jerusalém, um “acto que marca uma victoriosa etapa nos domínios intellectuaes, abrangendo todas as modalidades scientíficas e artísticas...”. Em seus vários números, o Voz de Israel acompanhava, por exemplo, o “Extraordinário Protesto do Judaísmo Norte-Americano contra os “Progroms” (sic) da Polonia”, ou uma carta de Max Nordau à comunidade judaica de Londres, ou o “Soccorro à Palestina: De New York com destino a Jaffa zarpou o grande transatlântico “Leviatã” - a seu bordo seguiu com aquelle destino uma missão judaica, composta de 250 pessoas, encarregadas de distribuir importantes socorros aos israelitas residentes na Palestina”. Misturavam-se ainda notícias da política brasileira, propaganda comercial da comunidade judaica de Belém, notas sociais e curiosidades do mundo judaico. Um retrato dos anseios e aflições de uma comunidade distante, mas intensamente ligada à luta pelo ideal sionista. O Kol Israel já completou mais de 100 anos de sua primeira edição. Apesar de o Major Eliezer Levy ter falecido em 1946, pouco antes da criação do Estado de Israel, sua obra perdura até hoje, símbolo da unidade do povo judeu, em seus rincões mais distantes, pela causa do Estado de Israel. Sergio Daniel Simon é Presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica e Presidente do Museu Judaico de São Paulo 23
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REGISTRO
Amazônia, a nova Terra Prometida dos judeus Por Alfredo Lopes (Fonte: Jornal do Commercio)
Capa do DVD do documentário Eretz Amazônia, ganhador do I DOC TV – Pará. Direção de Alan Rodrigues. Produção – David Salgado
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Desde as incursões científicas dos viajantes europeus do século XVIII, que invadiram a Amazônia em busca de respostas para as demandas do Velho Mundo - alimentos, fármacos, cosméticos, condimentos e energéticos, além dos metais preciosos, é claro a divulgação das potencialidades regionais fez da biodiversidade florestal da Amazônia um Eldorado de atraentes negócios
E
ntre mitos, fatos e boatos, a floresta fervilha no imaginário da humanidade como respostas às demandas milenares da energia plena e limpa, o néctar da eterna juventude, o tesouro das Icambiabas e suas miríades de versões e fetiches a materializar sonhos e ansiedades universais. A mitologia e sua intimidade insinuante com a teogonia florestal.
Pilares de uma Civilização Tropical Passa pela consideração da presença judaica toda e qualquer iniciativa para resgatar a memória dos grandes empreendedores da Amazônia no século XX. Um fato curioso, na celebração dos 50 anos da Federação das Indústrias do Amazonas (Fieam), ocorrido em 2010, chamou atenção na escolha dos critérios de premiação adotados pela entidade para festejar a própria história. Aí estão filiadas empresas globais com tecnologia de ponta - duas rodas, eletroeletrônicos, informática, relojoeiro, plásticos etc.. - que integram o Polo Industrial de Manaus. Naquele evento, entretanto, a homenagem mais simbólica foi prestada à presença judaica no Estado, um hebreu exportador de castanhas, o empresário Moisés Sabá, remanescente de
uma saga de empreendedores da região. Numa tacada, a entidade resgatou a castanha, um ícone da biodiversidade tropical, e reconheceu o papel exercido pela presença judaica na Amazônia, que acabara de completar 200 anos.sem muitos alardes nem sobressaltos, a Amazônia é, decididamente, a nova Terra Prometida, anunciada aos hebreus no Exílio.
A castanha, a borracha e a promissão A castanha é um sinal de alerta para a vocação coerente de negócios da região. E os hebreus aqui chegaram fugidos da discriminação opressiva, do Velho Mundo, via Marrocos, para respirar o oxigênio da liberdade, “fazer a América”, diga-se, mais precisamente no sentido de sua potencialidade biogenética tropical mais referencial – a Amazônia. Em 1810, quando Brasil e Inglaterra firmaram um tratado de navegação e comércio, os navios que zarparam com os hebreus marroquinos já tinham em mira as promessas da floresta, além das castanhas, das ervas do sertão e, reafirmadas logo depois, a descoberta da Hevea brasiliensis, a mitológica seringueira, como a árvore da fortuna, que propiciou o início do Ciclo da Borracha. Ao lado dos nordestinos e nativos, eles se fizeram artífices e protagonistas 25
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de um ciclo de dor, parto e glamour. O prêmio dos 50 anos da Fieam - no contraponto das commodities que levaram o Brasil para um lugar de destaque no cenário da economia internacional com o agrobusiness - reconheceu o significado e as promessas simbólicas das 1.400 toneladas de castanhas do Pará, ou do Brasil, como querem alguns aborígenes da Amazônia Ocidental, comercializadas com os Estados Unidos e com a China no ano anterior.
Extração, beneficiamento e mercado Seringueiras e castanheiras se associam ao revolucionário curauá na produção da fibra vegetal 26 ANO 3 N.6 - EDIÇÃO ESPECIAL DE PESSACH - ABRIL 2020
amazônica que poderá substituir a fibra de vidro na indústria digital e automobilística, entre outras bromeliáceas ou palmáceas, leguminosas e oleaginosas em profusão e prontidão energética, cosmética e alimentar. Os judeus na Amazônia desencadearam múltiplas acões pioneiras para fazer desses itens da agro e da biondústria emblemas e poemas naturais amazônicos, a flora do tesouro genético,o leite e o mel da promessa milenar. Nos anos 1950, havia mais de 40 empresas que beneficiavam para exportação diversos itens do acervo natural florestal. Resgatar essas iniciativas é convite para revisitar o sentido instigante da presença hebraica na região e seus indicadores de cumplicidade étnica, que desembarcou na comunhão de propostas
e propósitos focados na vocação econômica e ecológica de negócios e oportunidades da floresta, a nova Terra Prometida.
história de dor, amor e paixão, plena de grandes atribulações, conquistas e avanços, frutos da fidelidade e obstinação atávica.
Sustentabilidade, conceito e requisitos
Isaac Sabbá e Moysés Israel
Os judeus na Amazônia, “Eretz Amazônia”, foi tema de uma publicação densa, épica e profética do professor Samuel Benchimol, que gerou um documentário, vencedor do I DOC TV, da TV Cultura do Pará , dirigido por Alan Rodrigues e produzido por David Salgado. E uma peça em sete atos do escritor Márcio Souza, para resgatar essa relação entre a obstinação de um povo – e sua obsessão libertária – e a provocação dos desafios que o bioma amazônico sinaliza e abriga em seu fascínio e mistérios. Eretz Amazônia foi reivindicado por uma editora de Tel Aviv para ganhar versão hebraica, publicada em 2012.
Cabe recordar, nos primórdios de luta que antecederam a implantação da Zona Franca de Manaus, em meados dos anos 1950, que a saga dos judeus na região atuou decisivamente na Associação e Junta Comercial local. Não apenas com um portfólio de negócios que reúnem mais de 40 empresas, mas como pressão moral e política para o Brasil voltar atenções para a prodigalidade de promessas da região. Eram beneficiadoras de produtos regionais, fibras, peles, resinas, óleos vegetais, fármacos, produtos madeireiros e não madeireiros da silvicultura, que deram base, por exemplo, à economia e carta de crédito para a compra de uma refinaria de petróleo – isso mesmo! -, trazida em navio da Costa Leste dos Estados Unidos para ser montada no meio da floresta sem guindastes, no “muque” obstinado de caboclos, hebreus, arigós, árabes, europeus e asiáticos. ativos e executivos remanescentes do II Ciclo da Borracha, que o governo norte-americano havia buscado retomar sem muito empenho técnico e administrativo nos estertores da II Guerra Mundial.
Amazônia em Israel
Identidade e Diversidade
A publicação em hebraico do Eretz Amazônia, do professor Samuel Benchimol, em Tel Aviv, ficou a cargo da Editora Lashon Tsachaque, e ocorreu no dia 5 de julho de 2012, por uma “suspeita coincidência”, o dia em que se registraram dez anos de sua partida, e uma semana antes de seu aniversário, quando completaria 89 anos. É uma Amazônia que desembarca em Israel trazida como objeto de um relato sentimental, uma
O empreendedorismo dos Benayon Sabbá, Benarrós, Benzecry, Cohen, Assayag, Benchimol, Minev... em completa harmonia com síriolibaneses, turcos, palestinos, gregos e troianos, precisa, pois,ser revisitado e compreendido como paradigma de bionegócios sustentáveis, e das múltiplas e inesgotáveis oportunidades. E demonstração do quanto são fecundos os paradigmas de paz e solidariedade.
Eles enfrentaram os desafios – cada dia mais urgentes – de promover a diversificação e interiorização da economia, do desenvolvimento, à luz dos novos paradigmas de sustentabilidade e da prosperidade geral. Aliás, como veremos adiante, da família Benchimol surge nosso pensador que disseminou em tom de profecia o sentido e os requisitos do termo Sustentabilidade.
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O empresário Isaac Sabbá com o Presidente Juscelino Kubitscheck, na inauguração da Refinaria de Manaus, que leva seu nome No livro “Manaós-do-Amazonas”, são listados pelo professor Samuel Benchimol, 41 produtos extraídos da floresta e que faziam a base da economia regional nos anos 1940 em diante, quando esses empreendedores, a despeito do marasmo econômico da Amazônia de então, consolidaram teimosamente seus investimentos na região. Uma verdadeira empreitada de bons negócios da floresta. Farinha, cacau, castanha, borracha, malva e juta... são alguns carros-chefes das empresas que I.B. Sabbá fez florescer a partir do almoxarifado de produtos naturais da Hileia demandados pelo mercado internacional. 28 ANO 3 N.6 - EDIÇÃO ESPECIAL DE PESSACH - ABRIL 2020
Engenho e arte milenar Com os recursos dessas empresas, o engenho e a arte hebraica para os negócios, desembarcaram nos anos 1960 na gestão competente da Companhia de Petróleo da Amazônia, matriz de uma rede de terminais para distribuição do combustível que possibilitou o ensaio de integração da Amazônia com a vida econômica do país. Foi a contribuição da floresta para os Anos Dourados do presidente Juscelino Kubitscheck, que, aliás, se dignou a cortar as fitas de inauguração, ao lado do lendário
Gilberto Mestrinho, então prefeito de Manaus, Isaac Sabbá, Plinio Coelho e Moysés Israel. A infraestrutura energética e de abastecimento dos transportes estava colocada, num surto visionário e sensibilidade e faro de empreendedorismo. O aparente delírio virou realidade e confirmação da prodigalidade de oportunidades de que a floresta dispõe para quem tem tino e respeito a ela.
Castanha do Brasil, borracha, juta, cacau... Além da castanha, Bertholletia excelsa, as empresas da família investiram historicamente no cultivo da juta, cacau e da seringueira em área de várzea, com excelentes resultados de produção. Experiências que foram transformadas em pesquisas, levadas a efeito, posteriormente, pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, a maior autoridade em cultura de várzea na região,
e se constituem em oportunidades efetivas de promissores negócios.
Terra Prometida As várzeas do Nilo foram berço e suporte material de muitas civilizações. Na Amazônia, tais projetos, devido à escassez demográfica, o rodízio entre o extrativismo e o cultivo racional, sempre disputaram mão de obra extensiva e esperam do poder público e órgãos de pesquisa as atenções e os recursos necessários à sua consolidação. As várzeas regionais são, pois, promessas densas de progresso e abundância. E são testemunha da saga judaica de empreendedores regionais, seu DNA de qualidade, solidariedade e partilha de paz, o sucedâneo fraterno da prosperidade geral, insumos sagrados e inerentes desta Amazônia que se pode credenciar a ser uma nova Terra Prometida.
Castanha é uma das riquezas do extrativismo amazonense
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LEMBRANÇAS
Inesquecíveis jantares de Pessach – na residência de Sultana Levy Rosenblatt e Martin Rosenblatt Regina Igel
Vou começar esta história desde o começo: Moro em Maryland, estado que fica ao norte da cidade de Washington, DC. Sou professora de Cultura e Literatura em Língua Portuguesa na University of Maryland, desde 1978. Dois anos D. Sultana depois que aqui cheguei, ouvi pelo Levy Rosenblatt rádio em língua espanhola que uma igreja católica em Washington estava procurando por voluntários para levar empregadas domésticas e garçons oriundos da América do Sul para conhecer a cidade
O
u para qualquer evento, incluindo um café em algum lugar. – Decidi me apresentar como voluntária, num domingo ‘depois da missa’. Chegando na igreja, me apresentaram a algumas pessoas, entre elas uma brasileira do Belém do Pará. Meu carro era um Fusca de 30 ANO 3 N.6 - EDIÇÃO ESPECIAL DE PESSACH - ABRIL 2020
segunda-mão naquele tempo, caberiam apenas três pessoas, mas como esta moça era um pouco avantajada, no banco de trás couberam ela e mais uma (não era brasileira) e um garção, que se sentou no banco da frente, ao meu lado (ele era do Rio Grande do Sul, se não me engano).
Decidi levá-los a conhecer o Kennedy Center, naquele então, um lugar maravilhoso, livre para se passear lá dentro, ir ao terraço acima do telhado, de onde se via uma boa parte de Washington. As moças e o rapaz ficaram maravilhados. A gente conversava sobre tudo, de onde eles eram, onde trabalhavam, seus planos para o futuro. Foi uma tarde muito harmoniosa. – E, de repente, a moça de Belém do Pará se aproxima de mim e me pergunta: -- Você é israelita? --- Sim, sou, por quê. E como você adivinhou? – Ela ficou um pouco embaraçada, mas respondeu: --- Você tem jeito... É que minha madrinha é israelita e me acostumei com o jeito das israelitas. Lá no Belém também tem muitos israelitas.
E ficamos nisto. Perguntei um pouco sobre sua ‘madrinha’ que era, na verdade, sua patroa. Esta patroa, uma verdadeira madrinha, era Sultana Levy Rosenblatt. A moça que vivia na casa dela e a ajudava nos afazeres domésticos, se chamava Ida Paraense. Era uma mulher alta, forte, um tanto acima do peso para sua altura e idade... mas era o Bem em pessoa. Sempre amável, risonha, faladeira, adorava conversar. Um dia ela me chamou ao telefone para me dizer o que estava cozinhando para a família. Mas a ‘madrinha’ pediu para falar comigo e me convidou a ir jantar lá. E fui. A casa ficava em McLean, no estado de Virgínia, mais ou menos a uns 45 minutos da minha casa, pela marginal (“Beltway”). Uma casa espaçosa, com uma sala
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LEMBRANÇAS
que dava para os fundos, que se via por uma imensa janela pela qual entrava aquele quadro lindo de gramado e árvores frondosas. Conheci então uma família com a qual me daria bem pelos próximos 20 e tantos anos. E tudo começou de um trabalhinho voluntário. Não há coincidências, há destinos. Frequentei a casa da Dona Sultana por anos a fio, para reuniões festivas (aniversário dela e do marido), mas jantares de Shabat (sexta-feira à noite), para os aniversários da Ida (com guloseimas de todo tipo, comida paraense, coisas extraordinárias que ela trazia do Pará, para onde ia uma vez a cada ano ou a cada dois anos, no máximo; aliás, ia Prato de Pessach sefardi com carregada de presentes para gravura medieval. toda a família e agregados...). Pertence a Mas, frequentei a casa da Regina Igel Dona Sultana (ou da Sussu, como ela era muito conhecida) principalmente nas celebrações pequeninos então – hoje quase todos casados e judaicas. E agora eu gostaria de com filhos). falar sobre o Pessach, o jantar da celebração da A mesa posta. Velas acesas. Pratos, talheres, saída dos hebreus das terras egípcias, levados copos e taças de vinho, guardanapos... por Moisés. dispostos numa ordem perfeita. No móvel A mesa sempre estava posta. Os convidados atrás da mesa, as bebidas, desde sucos de e eu deveríamos estar lá antes do pôr-do-sol. frutas a refrigerantes e a vinhos ‘kosher’. Todos Não era fácil combater o trânsito do final da sentados, o Sr. Martin na cabeceira da mesa, tarde, mas se fazia de tudo para chegar na hora. coordenando nossas leituras. Cada um de nós Os outros convidados, em geral, eram seu filho, com uma Hagadá (livro) de Pessach – contando sua nora e os dois netos, que vinham de Nova a nossa libertação da escravidão no Egito. Em York, seus outros dois filhos, um que também frente ao dono da casa, as ‘matzot’ (biscoito que morava em Nova York e outro que morava nas vai substituir o pão por oito dias, lembrando o imediações da casa da família. Também uma tipo de comida que os ex-escravos faziam no amiga do filho casado, colega de profissão deserto). Elas estavam cobertas por rico tecido (ambos são psicólogos clínicos), mais um casal em veludo, com bordados dourados. A sala do Belém do Pará e seus três filhos (todos 32 ANO 3 N.6 - EDIÇÃO ESPECIAL DE PESSACH - ABRIL 2020
estava ricamente iluminada, não só pelo lustre acima de nossas cabeças, mas pelos sorrisos que se estampavam nos rostos de nós todos. Depois das rezas e dos cantos costumeiros, as travessas começam a chegar da cozinha, trazidas pela Ida. Ela e Dona Sultana fizeram tudo. Nós viemos para saborear. A conversa girava sobre muitos tópicos, o mais importante deles era o período da escravidão, o Moisés sendo salvo de afogamento, seu pedido ao faraó para que deixasse seu povo ir embora, a falsa palavra do rei dos egípcios... a fuga, a abertura do mar.... sempre algum de nós queria introduzir a argumentação ‘racional’, que o mar se abriu porque era a hora da maré baixa, que o Moisés já sabia disto e fez com que o povo chegasse à beira da água justamente na maré baixa, etc. ... E como discutíamos o fato de Uma mesa posta para a festa judaico-marroquina de Mimuna Ao final da semana, tínhamos a grande festa de Mimuna. Era quando bolos feitos com farinha de trigo entravam em cena outra vez, depois de ter sido excluída durante todo o tempo do Pessach. Havia rezas, cantos e comida. D. Sultana era fantástica cozinheira e doceira, além de ser escritora e contadora de histórias. Ela também costurava – fez um vestido de noiva para uma pessoa da família – e ajudava a quem precisasse de qualquer coisa: roupa, emprego, orientação de qualquer tipo. Seus pratos típicos ficaram famosos além do âmbito dos amigos quando um jornalista do “The Washington Post” fez uma reportagem sobre eles, o que foi publicado no jornal mais lido do país.
ele nunca ter entrado na Terra Prometida. Que mistério! E assim íamos pela noite adentro, até a hora da sobremesa, frutas e doces e depois nos despedíamos. Muitos ainda voltariam no dia seguinte... Dona Sultana nos contava como eram tais ceias na sua casa, em Belém, e como eram as tradições trazidas do Marrocos. Dizia ela que o pai (Sr. Eliezer Levy) procurava saber se havia algum viajante judeu na cidade – e uma vez descoberto o forasteiro, este era convidado para juntar-se à mesa da família (tanto nas festividades quanto nas sextas-feiras de noite). Este hábito ela continuava na sua casa, nos Estados Unidos. Quem estivesse na cidade sem ter para onde ir, era convidado(a) para a casa deles. E a mesa estava sempre rodeada de pelo menos umas dez a 12 pessoas. A Mimuna celebra a volta do ‘hametz’, a comida proibida durante o Pessach. Na casa dos Rosenblatt, era uma festa, um desfile de sabores, uma alegria muito grande. Dona Sultana transportava sua alegria de jovem, quando todas estas celebrações eram feitas na sua casa, em Belém. E na Mimuna entravam doces paraenses, preparados por ela ou por Ida. Quando Dona Sultana faleceu, alguém comentou, no enterro: “É o fim de uma era.” – Sim, quando já não teríamos sua abençoada casa, acolhedora e carinhosa para receber a nós todos, brasileiros e não-brasileiros nos Estados Unidos... Foi, sim, o fim de uma era. Depois que ela se foi, nós, brasileiros, nunca mais nos encontramos. Cada um de nós tem as lembranças. Foi uma Era Feliz. 33
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LITERATURA
Tatiana Salem Levy e a chave da boa literatura Por Winter Bastos (Fonte Homo Literatus)
A Chave de Casa é o primeiro romance da brasileira Tatiana Salem Levy, publicado em 2007. Pelo fato de conter vários elementos autobiográficos, a obra tem sido constantemente rotulada como “autoficção” Apesar de este ser um termo da moda (ou talvez justamente por isso), nutro uma implicância atroz contra tal denominação. Que diferença faz de onde vem a inspiração para uma obra literária? Esse é um problema do autor e não de nós leitores. O livro nos será bom ou ruim independentemente de onde venham os dados que o escritor opte por usar e transformar para a construção de sua arte. Ficar procurando as correlações com a vida de quem escreve é mais para apreciadores de revista de fofoca do que para quem curte romances verdadeiramente. A protagonista do livro se mostra, logo de início, como alguém que tem dificuldade de se libertar, de abraçar o mundo. Trata-se duma jovem presa à melancolia pela morte da mãe, mas instigada pelo avô a partir em busca de suas raízes familiares. Quando o avô lhe entrega a chave da antiga casa de seus ancestrais, várias questões vêm à tona: seria possível à personagem escapar da letargia que a domina e seguir para o exterior? E lá, na cidade de Esmirna, na longínqua Turquia, a casa ainda estaria de pé? Com a mesma porta? A mesma fechadura? 34 ANO 3 N.6 - EDIÇÃO ESPECIAL DE PESSACH - ABRIL 2020
A escritora Tatiana Salem Levy A Chave de casa aqui é um elemento que carrega em si uma forte simbologia. Ela é a prova – já que o avô guardou-a tanto tempo – de que a ligação com suas origens familiares lhe é, de fato, importante. A permanência da antiga chave de casa, junto à família, convence a protagonista da relevância do passado também para ela, cujas raízes igualmente remontam à antiga Turquia. Isso lhe instiga a partir para lá, independentemente de haver ou não ainda uma porta e uma fechadura física a serem abertas. Mas o leitor não depara com um romance de estrada, narrando aventuras exóticas em cenários distantes. A maior viagem retratada é a da autodescoberta. Daí a estrutura do livro ser tão multifacetada e não-linear: trata-se dum mergulho da narradora para dentro de si mesma e, paradoxalmente, para fora de si, do quarto claustrofóbico, da tristeza, da paralisia, da autocomiseração. Assim, ao se redescobrir, a protagonista desvela o mundo que a cerca e outras vozes e opiniões que não a própria. As falas da mãe surgem entre colchetes, comumente se contrapondo ao que a
protagonista diz, dando outras versões aos fatos expostos. A própria personagem narradora também se contradiz em outros trechos, enriquecendo as possibilidades de enfoque do que se passa ou se passou. Aliás, o tempo é tratado de maneira interessantíssima. O presente e os vários passados se mesclam: num momento a mãe doente ainda vive; noutro narra-se a trajetória do avô, antes mesmo de abandonar a Turquia após uma desilusão amorosa; noutro mais, a protagonista permanece imóvel na cama sem forças para viajar. Tudo isso após já terem sido contados vários episódios de sua odisseia à Turquia. A narrativa é psicológica, introspectiva, mas num modo diferente daquele de Clarice Lispector, por exemplo. Tatiana imprime sua marca já nesse seu primeiro romance e em momento nenhum faz pastiche de Lispector, do James Joyce da obra Ulisses, ou de outros autores que se aprofundam na exploração lexical e sintática por meio de neologismos ou intensa supressão de pontuação. Ela faz experimentalismos, sim, mas de seu jeito próprio – num genuíno estilo Tatiana Salem Levy. Quando vê razão para isso, ela ousa cortando vírgulas, como no trecho em que há uma tentativa de rompimento de um namoro que se mostra opressivo. Isso se dá entre as páginas 180 e 181 da edição lançada pela Best Bolso (Rio de Janeiro, 2013). Ali deparamos com uma frase que ocupa mais de vinte linhas, sem pontuação alguma, mas perfeitamente inteligível – e altamente expressiva. Os experimentos de linguagem não chamam a atenção para si próprios, não são meros malabarismos (ou exibicionismos) literários, mas recursos em prol da expressividade e da história, por mais que esta não se apresente de forma convencional, retilínea.
um mesmo universo: a luta de uma jovem para se erguer da depressão após a morte da mãe; a trajetória do avô turco que vem para o Brasil; o combate contra a ditadura militar; o exílio político em Portugal; o relacionamento amoroso arrebatador (limítrofe à loucura); a viagem à Turquia em busca das raízes familiares. Apesar de tudo, o sentido de unidade se mantém neste riquíssimo romance, repleto de descobertas, buscas e caminhos variados. A Chave de Casa foi consagrado pela crítica literária brasileira, recebendo, inclusive, o Prêmio São Paulo de Literatura 2008 como melhor livro de autor estreante. Logo foi publicado também em Portugal. Traduzido, alcançou França, Itália, Espanha, Turquia e Romênia. Que a viagem narrativa desse excepcional romance de Tatiana Salem Levy atinja campos cada vez mais vastos. A chave para a fruição da boa literatura atual está bem aí a nossas mãos. Que o público leitor ouse empreender a viagem.
Livro de estreia da escritora, vencedor do Prêmio Jabuti 2008
De fato, pode-se considerar que estamos diante de histórias entrelaçadas, coabitando 35
A Talu Cultural e o IBI - Instituto Brasil Israel, lançarão no Brasil, em Israel e em Portugal, o novo livro do mais premiado correspondente internacional para o Oriente Médio da atualidade.
Site Talu:
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contatotalucultural.com.br 36 ANO 3 N.6 - EDIÇÃO ESPECIAL DE PESSACH - ABRIL 2020
ANO 12 No 16 ABRIL DE 2020
Suplemento Universo
Portal AJ
10 ANOS NA VANGUARDA
CAPA
Portal Amazô
chega aos 10
350 MI
38 ANO 3 N.6 - PESSACH 2020 - EDIÇÃO DE PESSACH - ABRIL 2020
ônia Judaica
0 Anos com
IL ACESSOS 39
CAPA
Criado por Elias e David Salgado no Pessach de 2010, ano dos festejos do bicentenário da presença judaica na Amazônia, com o apoio de algumas famílias eminentes de Manaus e Belém, o Portal Amazônia Judaica (www.amazoniajudaica.com.br), está completando 10 anos de atividades ininterruptas e atingiu o patamar de mais 350 mil acessos (média de 3 mil acessos/mês)), tornando-se a maior referência mundial sobre o tema judeus na Amazônia. O Portal AJ como é conhecido, é o pioneiro e o único em seu gênero, em todo o mundo. Ele é composto de um imenso acervo, um repositório de informações – o ARQUIVO HISTÓRICO DIGITAL AMAZÔNIA JUDAICA (AHDAJ); dois blogs – BLOG AMAZÔNIA JUDAICA e o BLOG UNIVERSO SEFARADI. Através dele têm-se acesso à revista UNIVERSO SEFARAD com seu SUPLEMENTO UNIVERSO AMAZÔNIA JUDAICA e a uma loja virtual para aquisição das edições impressas da nossa editora, a TALU CULTURAL. Nosso portal e seu arquivo recebem visitas e solicitações as mais diversas, de pessoas do Brasil e de diversos países. São pedidos de informações sobre o tema judeus
Livros editados pela Amazônia Judaica
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na Amazônia; genealógicas, referências bibliográficas, para produção de matérias e artigos, além de solicitações de contato com as comunidades da região e de cursos de judaísmo e de hebraico. Como é uma referência no tema judeus na Amazônia, o Portal AJ é uma imensa e muito utilizada, fonte de consulta para universitários, mestrandos, doutorandos, pesquisadores, para a mídia e o público em geral, interessado em conhecer a história da presença judaica na Amazônia. Nestes 10 anos de atividade, o Portal AJ teve a oportunidade e a honra de poder contribuir com estudiosos do tema, publicando seus livros – Judeus do Eldorado, de Reginaldo Jonas Heller (publicado pelo selo e-papers sob nossa coordenação editorial e patrocínio parcial) e Identidade e Tradição: Um estudo sobre as mulheres da Comunidade Judaica de Manaus, de Dina Paula Santos Nogueira; além de publicar livros de nossa própria equipe de pesquisa (História e Memória: Judeus e industrialização no Amazonas, de Elias e David Salgado) e a coletânea Amazônia Judaica, 15 anos de travessia, uma seleção de matérias, artigos, crônicas e ensaios, publicados em
nossa revista e no jornal Amazônia Judaica, desde sua criação em 2012. Sua contribuição vai além disso, motivando a publicação de artigos e ensaios em nossas revistas; participando de seminários, encontros e congressos acadêmicos e eventos culturais diversos. Várias parcerias culturais e acadêmicas já foram concretizadas ao longo dessa década de existência, com universidades, comunidades, instituições e entidades diversas, no Brasil e no mundo. A mais recente delas, e que muito nos alegra, foi a parceria criada entre o Amazônia Judaica e o NESA – Núcleo de Estudos Safarditas
da Amazônia, da UFPA, campus Bragança. O primeiro fruto desta parceria promissora é a edição, pelo selo Amazônia Judaica, do livro “Ecos Sefarditas, judeus na Amazônia”,
que foi patrocinado pelo escritor Ilko Minev a quem agradecemos imensamente. Trata-se de uma coletânea de ensaios literários sobre autores sefarditas da Amazônia, organizada pelas PhDs Alessandra Conde e Silvia Benchimol – coordenadora e vice coordenadora do NESA – que tem como supervisora editorial, a PhD Regina Igel, Coordenadora do Dpto. de língua portuguesa e espanhola da Maryland University e Editora Executiva de nossa editora, a Talu Cultural. Se em seus primeiros 10 anos tudo isso já foi realizado, imaginem o que e quanto ainda será!
ATIVIDADES COMEMORATIVAS DOS 10 ANOS DO PORTAL AJ * Lançamento do livro “Ecos Sefarditas: Judeus na Amazônia” * Exposição Digital ”Judeus na Amazônia 210 depois” * Edição de calendário especial 10 Anos do Portal AJ * Manutenção, ampliação e atualização do Portal AJ
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CAPA
A “menina dos olhos” do Portal AJ, o AHDAJ, maior referência mundial em seu gênero, é o que se pode chamar de um “projeto aberto”, dado que não se encerra jamais, estando em constante crescimento e atualização. Seus principais objetivos, são:
• Manter e ampliar um acervo histórico e memorial sobre os judeus na Amazônia. • Apoiar e incentivar o estudo e a pesquisa sobre judeus na Amazônia. • Fornecer aos estudiosos e pesquisadores orientação e fontes documentais e bibliográficas para suas pesquisas. • Publicar/ postar, livros, artigos e matérias resultantes de tais pesquisas. • Elaborar projetos e realizar pesquisas próprias, através de sua equipe de pesquisa e publicá-las através de seu selo Amazônia Judaica
O AHDAJ está estruturado nas seguintes seções: UNIVERSO AMAZÔNIA JUDAICA: Biblioteca:
• Files de famílias: Imagens, árvores genealógicas, documentação. (Em construção) • Fototeca: Imagens de comunidades diversas da Amazônia (capitais e interior) https:// www.amazoniajudaica.com.br/fototeca/ • Hemeroteca: cópia da coleção completa do Jornal Folha Israelita, editado em Manaus, ao longo de uma década, de 1949 a 1959. • https://www.amazoniajudaica.com.br/ hemeroteca/ • Videoteca: documentários, filmes, e entrevistas, sobre a história, a memória e a vida comunitária e cultural judaico-amazônica atual • https://www.amazoniajudaica.com.br/ videoteca/
UNIVERSO SEFARAD: • https://www.amazoniajudaica.com.br/ universo-sefarad/ • Acesso à Revista e ao Blog Universo Sefarad: https://issuu.com/sefaraduniverso4
• Links para vídeos, filmes e documentários de temática sefardita
• Artigos, monografias, dissertações de mestrado, teses de doutorado. Livros, (ficção e • Acesso a instituições acadêmicas e comunitárias, não ficção) https://www.amazoniajudaica. publicações, com.br/artigos-teses-monografias-e-cronisites, portais cas/ do judaísmo • Revista Amazônia Judaica: https://www.amasefardita no zoniajudaica.com.br/revista-amazonia-jumundo daica/) • Parcerias e • Jornal Amazônia Judaica: http://www.amaprojetos zoniajudaica.com.br/wp-content/uploads/2019/08/Edicao_1_03_2002.pdf ). • Documentos históricos: Comunitários, públicos e familiares vários https://www.amazoniajudaica.com.br/biblioteca/documentos-historicos/ 42 ANO 3 N.6 - PESSACH 2020 - EDIÇÃO DE PESSACH - ABRIL 2020
FINALMENTE ALGO NOVO, REALMENTE
NOVO!
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MIGRAÇÕES
MIGRANTES E IMIGRANTES
JUDEUS MARROQUINOS EM SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO Por Rachel Mizrahi *
44 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 16 - ABRIL 2020
Embora minoria no conjunto imigrante, os judeus que se estabeleceram em São Paulo e Rio de Janeiro a partir da primeira década do século XX, identificados pela fé e tradições milenares, diferenciavamse pelo idioma, traços culturais e tipo físico. Enquanto os ashquenazim, procedentes das comunidades judaicas da Europa Oriental, se expressavam em iídiche, os sefardim, o faziam em ladino e, os judeus orientais, em árabe
C
ondições históricas e culturais permitiram que os judeus ibéricos se evidenciassem pelo cosmopolitismo e liberalidade, enquanto os ashquenazim e os judeus orientais no conservadorismo. Economicamente melhor situados, os sefaradim, procedentes de cidades otomanas de refúgio (Esmirna e Istambul), escolheram residir em bairros aprazíveis e residenciais de São Paulo e Rio de Janeiro. Fiéis observantes da religião e, comumente dirigidos por eminentes rabinos, os esmirlis de São Paulo conseguiram contratar o rabino Jacob Mazaltov, natural de Istambul e que prestara serviços à comunidade sefardi de Montevidéu. O religioso marcou época na sinagoga da Comunidade Israelita Sephardi, inaugurada em 1929. Em cerimonial solene, trajando vestes brancas, preocupado com o
Interior da Sinagoga União Israelita Shel Ghemilut Hassadim, no Rio de Janeiro. Sinagoga de rito português – marroquino. É a mais antiga da cidade. Sua arquitetura interior é uma referência a sinagoga de Lisboa. É a sinagoga dos judeus de origem marroquina por excelência daquela cidade.
entendimento das rezas, Mazaltov as interrompia para explicar seu significado aos presentes, fato que conduziu à sinagoga judeus de várias procedências, sobretudo depois da criação do Centro Recreativo Brasileiro Amadeu Toledano, o CIBAT. Instalados em São Paulo a partir da primeira década do século passado, os imigrantes sefaradim do Oriente Médio caracterizaram-se por abrir as portas de sua sinagoga a todos que a procurassem, possivelmente inspirados pelo Profeta Isaías que pressagiou “que minha casa seja a casa de oração para todos os povos”, dístico colocado na entrada do edifício da Sinagoga Beth-El do Rio de Janeiro. Assim construída, a sinagoga sefardi paulista recepcionou judeus a partir de 1930, procedentes da Itália, Grécia, Bulgária, antiga Iugoslávia e ashquenazis alemães, de linha liberal - imigrantes e refugiados em apoio diante das perseguições antissemitas, perpetradas pelo Nacional Socialismo Alemão em seus países de origem. Descendentes dos judeus marroquinos do Norte brasileiro, que escolheram transferir-se para o Rio de Janeiro, surpreenderam-se com a antiga União Israelita Shel Guemilut Hassadim, sinagoga construída por imigrantes alsacianos, oficializado pelo Imperador D. Pedro II, em 1873. Entre os que se filiaram à sinagoga, estava David José Pérez, nascido em Breves, no Pará. Pérez decidira instalar-se no Rio de Janeiro, depois de completar estudos nas yeshivot da cidade de Tânger, cidade natal de seu pai que o acompanhara. No Rio de Janeiro, Pérez dedicou-se à docência em escolas oficiais e particulares, chegando a emérito professor do famoso Colégio Pedro II. Depois do curso de Direito, doutorou-se em Ciências Econômicas, partindo para uma brilhante e elogiada carreira profissional e se projetando na vida cultural do Rio de Janeiro por artigos publicados em jornais da capital fluminense1. Em 1916, fundou “A Columna”, jornal mensal escrito em português sobre assuntos judaicos e sionistas. O humanista Álvaro de Castilho era seu sócio e colaborador2. Os artigos desses diretores objetivavam esclarecer o público sobre o judaísmo e a história dos judeus no Brasil e outras localidades da diáspora. Em 45
MIGRAÇÕES
O intelectual, professor e linguista David José Pérez, membro ilustre da Sinagoga Shel Ghemilut Hassadim
1922, Pérez aceitou dirigir a Escola Maguen David, primeiro estabelecimento de ensino judaico no Rio de Janeiro, do qual surgiu o conhecido Colégio Hebreu Brasileiro. A partir dos anos 20, a Shel Guemilut Hassadim recepcionou as famílias dos Azulay, Bemergui, Abecassis, Benzecry, Bensussan, Benarrosh, Zagury, Benoliel, Benchimol, Benjó, Bentes, Garson, Ezagui, Obadia e os Eshrique, migrantes judeus da Amazônia brasileira que, aos poucos, passaram a predominar nos cargos diretivos da sinagoga. Yomtob Azulay, por exemplo, chegou a presidi-la por 38 anos depois da transferência da sinagoga para Botafogo. Os 46 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 16 - ABRIL 2020
marroquinos diferenciavam-se por escolaridade em Universidades europeias: os irmãos Rubem David, Elias e Jacob Azulay destacaram-se na área médica (dermatologia e psicanálise), enquanto Rubem David Azulay ocupou a Presidência da Academia Brasileira de Medicina. Dos migrantes marroquinos que se estabeleceram na sinagoga sefardita de São Paulo, sob cuidados de Mendel Wolf Diesendruck, prestigioso rabino austríaco, citamos os Athias, Levy, Alves, Bensadon e os Mellul. A franca recepção sefardita aos marroquinos era motivada pela lembrança dos antigos diretores, como Amadeu Toledano, judeu da Ilha de Malta, que muito batalhou pela construção da sinagoga sefardita em 1929. Do grupo dos migrantes, destacamos Eliezer Levy, nascido na região amazônica em 1878. Na terra de origem, salientou-se por servir o batalhão da Guarda Nacional criada pelo Imperador D. Pedro II, em que atingiu patente de Coronel. Ao candidatar-se para
Machzor de Rosh Hashaná traduzido por David José Perez
Fortaleza e, depois, a Recife, até decidirem fixarse em Salvador em 1920. Seu irmão, Mário de Mello Kertész elegeu-se prefeito da cidade, em duas oportunidades, na década de 1980. Carlos Roberto de Mello Kertész, que por seis anos dirigiu a comunidade judaica da Bahia, reside hoje com a família em São Paulo e é vice-presidente do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro.
Rabino Jacob Mazaltov, natural de Istambul, líder espiritual da sinagoga da Comunidade Israelita Sephardi de São Paulo, Sinagoga Ohel Yaacov
Prefeito de Macapá, elegeu-se. Conhecido como “Major Levy”, manteve-se na função pública do Território do Acre de 1932 a 1947. Em São Paulo, sua filha Rachel casou-se com Siegbert Simon, de origem alemã, que chegara a São Paulo e se mantinha na sinagoga sefardita desde 1936. Formado na Alemanha, de cultura diversa, Simon adaptou-se aos costumes judaicos da esposa, trazidos da Amazônia marroquina. O mesmo acontecera com Carlos Kertész, cujo pai era procedente da comunidade judaica húngara e a mãe, da marroquina família Melul, nome aportuguesado para Mello. Carlos Kertész pertence à quinta geração brasileira das famílias Melul de Tânger e Aferiath de Mogador, pois seus trisavós, bisavós e avós já haviam nascido no Brasil. A família aportara no Brasil em 1824. A crise da borracha os levou a se transferirem de Belém do Pará para
Outro emérito participante da sinagoga foi Isaac Athias que, antes de se estabelecer em São Paulo, passara por Recife onde conheceu e se casou com Amélia Dimenstein, estudante de Medicina. Parente de Elisia Sarraf Hakim, Athias associou-se, em São Paulo, a Moisés Hakim, proprietário do “Ao Moveleiro”, famoso estabelecimento comercial de móveis para escritório. Athias conseguira, ainda no Norte, formar-se em Contabilidade. Sua formação religiosa foi exemplar, por ter sido aluno de Elias Israel, considerado um Tzadic, pela dedicação aos estudos e preocupado com o ensino das tradições judaicas às crianças judias na cidade de Belém. Era filho de Leão Israel, de prestigiosa família que negociava o látex. Seu pai lhe proporcionara esmerada educação em centros judaicos da Europa. Em busca do conhecimento, as crianças locomoviam-se em barcos através dos rios Major Eliezer Levy, grande ativista judeu sionista, criador do Jornal Kol Israel
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MIGRAÇÕES
- caminhos naturais da região, percorrendo distâncias enormes para estudar, sob os cuidados de Elias Israel e sua esposa Sol, da família Mamann Bendrihen. A religiosidade de Isaac Athias permitiu que assumisse o cargo de secretário da Congregação Sefardi de São Paulo, na gestão de Moisés Carmona. Por falar fluentemente o português, Athias passou a liderar a comunidade que o acolhera, em órgãos administrativos judaicos como a FISESP e a CONIB em âmbito nacional. Outro sefardi de destaque foi Moisés Hakim, nascido em Esmirna, que chegou ao Rio de Janeiro em 1922, procedente do Egito, atendendo ao chamado de seu tio materno, Joseph Aliman. Em São Paulo, Moisés Hakim casou-se com Elísia Roffé Sarraf, filha de antigos moradores judeus de Belém do Pará e doadores do terreno para o cemitério ou “lugar santo” da
Os irmãos Kertész. Mario foi prefeito de Salvador por dois mandatos e Carlos, dirigiu a comunidade judaica da Bahia por seis anos. São descendentes das famílias Melul de Tânger e Aferiath de Mogador, que aportaram no Brasil, em 1824
Sinagoga Ohel Yaacov. Primeira sinagoga sefardita de São Paulo 48 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 16 - ABRIL 2020
comunidade do Norte brasileiro. Um marroquino que se enquadrou de forma feliz entre os judeus do Oriente Médio, estabelecidos na Mooca, foi Jacques Sarraf. Ele, acompanhado da esposa Vitória Siles, eram procedentes da velha cidade de Safed. Jacques Sarraf instalou-se na sinagoga da União Israelita Paulista, fundada pela família de Mário Amar, da mesma origem. Poliglota, extrovertido, ousado e comunicativo, Sarraf marcou presença alegre na história dos primeiros imigrantes de fala árabe de São Paulo, residentes na Mooca. Iniciou-se como ambulante e, depois, no comércio atacadista de tecidos. Homem de religião, Sarraf
citamos os Laredo e os Chalom, famílias de projeção do norte africano. Descendente do rabino Aron Laredo - religioso da Região do Rif, no século XVII, Abraham Laredo, além de presidir a comunidade judaica de Tânger, era Presidente da Câmara de Comércio Internacional da expressiva cidade, tendo sido condecorado por serviços prestados com o título de Officiel de Palme Academique. Laredo foi também homenageado por MuhameD V, com a Ordem de Nissam Alauite. Na cidade do Rio de Janeiro, Isaac Rubens Israel, de origem marroquina, nascido em Portugal, projetouse nos meios de comunicação. Era filho de Rubens Israel e de Alegria Benoliel, nascida em Manaus. Casou-se com Rosa Barki, da proeminente família sefardi da Trípoli Italiana. Jornalista e advogado, Rubens adquiriu projeção brasileira pelos oito anos de trabalho na BBC de Londres, sob o nome de Rubens Amaral. Braço direito do jornalista Roberto Marinho, Rubens foi o primeiro diretor da prestigiosa TV Globo.
Mais numerosos, os judeus de origem marroquina que se estabeleceram na Shel Guemilut Hassadim foram, aos poucos, assumindo os quadros Rabino Isaac Benzaquen, líder espiritual da Sinagoga Shel diretivos da antiga sinagoga. Entre as Guemilut Hassadim novas famílias marroquinas, citamos foi um conciliador dos participantes das duas os Benzaquen, os Levy, os Bensussan e os Pinto. sinagogas, em uma mesma rua, construídas por Hoje, a sinagoga é conduzida pelo Rabino Isaac judeus libaneses de Sidon e de Safed, no bairro Benzaquen, formado em 1968 pela Yeshivá do étnico da região leste de São Paulo. Sarraf mantinha Rabino Chefe do Império Britânico, Chacham Dr. contatos próximos com seus parentes, nascidos em Salomon Gaon, de Londres. A entrada desses novos Belém do Pará, participantes da Sinagoga da Rua imigrantes permitiu a volta das canções com a Abolição. característica musicalidade marroquina. A sinagoga sefardi de São Paulo recebeu também O texto contou com o apoio de Samuel Elis Azulay os imigrantes marroquinos, refugiados da II Grande Benoliel, Presidente do Conselho Sefaradi do Rio de Guerra. Preocupados com o antissemitismo expresso Janeiro e das irmãs Barki, Rosa B.Israel e Matilde pela imprensa e pelas tropas nazistas, sediadas no B. Menasce. Norte da África, grande número de judeus de antigas comunidades buscou emigrar, pois era corrente que * A autora é historiadora e doutora em História “os nazistas estavam preparando os fornos para os Social (USP). judeus do Marrocos”. Entre os que se estabeleceram em São Paulo, 49
CRÔNICA
DE VOLTA ÀS ORIGENS
Por Elias Salgado
A tradicional festa judaico-marroquina da Mimuna. É celebrada na última noite de Pessach. Em Israel, tornou-se uma das mais populares festividades do país
Sim que esta sentença/afirmação é um lugar comum. Mas a história que queremos narrar, ou seja ,os fatos que ela enseja, de comum não têm nada
50 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 16 - ABRIL 2020
Último luach Shaná organizado pelo tzadik Jacob Azulay z’l
H
Há alguns meses, Beit Yaacov-Ribi Meir. assumiu o cargo de - Elias, não sei se tu sabes rabino da histórica que eu tive o kavod (honra) comunidade marrana de de assumir, como rabino, Belmonte, em Portugal, e a kehilá de Belmonte, em sua sinagoga, Beit Eliahu, Portugal. Teu irmão David um jovem oriundo da coesteve conosco realizando o munidade de Manaus, com meldado de Rosh Hashaná formação numa Yeshivá e Yom Kipur. Eu queria este de Jerusalém. Seu nome: ano organizar o calendário Avraham Franco Elbaz. judaico da comunidade e Acontece que nós, judeus vou precisar da editora para daquela comunidade, soformular e executar esta mos de origem marroquina, missão. Será o primeiro na grande maioria, expulsos calendário em Portugal. da Península Ibérica. Pronto, foi o suficiente para Quando li a notícia de que este cronista se emocionar e ele assumiria o posto, logo O chacham Eliezer Elmaleh (Lázaro em seguida entrar em euforia. tentei imaginar o estado de Salgado)z”l, líder espiritual, e um dos Pensei várias coisas e em espírito em que o novo rapioneiros na organização da kehilá de várias pessoas nesta ordem: bino se encontraria. Acertei Manaus. Era um chazan, mohel, shochet e caramba, mas que kavod!, sofer. “na mosca”. A notícia eu li no meu irmão David, este às vésperas de Yamim Nosim um grande editor de raim (Ano Novo Judaico e calendários judaicos; no Iom Quipur, Dia de Jejum) saudoso Ribi Jacob Azulay e fiquei eufórico! E mais (z’l) , o guia espiritual de ainda quando Ribi Avraham nossa comunidade por convidou meu irmão David várias décadas, também ele para assumir como chazan, um mestre dos calendários. os meldados (orações canEm Ribi Isaac Dahan, nosso tadas) das Grandes Festas, atual Sheliach (emissário) naquela histórica esnoga. Tzibur e Chazan; e, claro, Ontem recebi uma mensaem meu querido avô Eliezer gem do jovem rabino. Era Elmaleh/Lázaro Salgado noite de Mimuna , última (z’l), de quem herdamos, noite de Pessach e ele a inina família, o amor às ciou com a carinhosa e tão coisas da tradição judaicorepresentativa saudação de marroquina-sefardita. nossa tradição judaico-marAi, Sabah, (vovô) como eu roquina, em nosso dialeto, gostaria de tê-lo conhecido! a haquetía: “YA MIMON, Se bem que é como se o YA SHALOM, YA BAvras, sua imensa alegria e entusiasBARTEBAH!!! BUENA SALI- mo. Senti-me outra vez em casa, tivesse, certo? DA DE PÁSCUA”. na minha querida kehilá de Ma- Olha você aqui, em quase tudo que Era fácil perceber, em suas pala- naus, lá na minha saudosa esnoga, eu penso, sinto e faço. 51
PELO NOSSO PORTAL
Boa tarde, Elias. Como vai? Elias, lendo seu livro encontrei algumas informações sobre o antissemitismo que os judeus sofreram em território amazônico. Em certo momento você faz menção sobre o movimento cabano e que no período houve uma campanha muito grande contra os judeus, o que você descreve como “movimento Antijudaico muito sério”. Gostaria de saber se consigo informações de jornais que mostram essa aversão aos judeus nesse período da cabanagem e que mostre que houve uma motivação antijudaica no movimento cabano. Abraços. Atenciosamente,
Parabéns pela publicação da revista Universo Sefarad. Um primor de edição. Raquelita Athias
Aldilene Morais
Muito obrigado pelas informações. Farei os devidos contatos. Aproveitarei com certeza a oportunidade de ter conhecido vosso site para seguir as pesquisas e informações. Shalom e Shanah Tovah,
Chris Haddad
Prezado Sr Elias: Sei que já recebeu a cópia fotográfica de toda a caderneta. È um material riquíssimo, não é verdade? Tem muitas possibilidades de uso e certamente estará exposta na vitrine sobre a Amazônia no Museu Judaico, como um material inédito. Gostaria de saber se o sr tem algum interesse em realizar algum projeto com a referida caderneta. Um abraço,
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Roberta Sundfeld Diretora Executiva do Museu Judaico
Bom dia senhor, Obrigada pela dica. Li a revista, porém não consegui identificar a matéria que fala do meu bisavô DIOGO DE CARVALHO PINTO DE SOUSA, como fundador da primeira Sinagoga Sefaradita Shevet Haim em Belém/PA. Na internet consta que essa matéria está na Revista Amazônia Judaica - edição 13, de setembro de 2018. O senhor poderia me mostrar o caminho das pedras ou alguma informação sobre a minha pesquisa? Com os melhores cumprimentos.
Ana Mello Borges
Caro Elias, boa tarde! Devido alguns compromissos, ainda não tive tempo de enviar o texto e as imagens sobre a pesquisa dos imigrantes judeus como havia dito. Em alguns dias voltarei a rotina e enviarei pra você. Ah, sobre a possibilidade de publicação do livro, ainda estamos levantando fundo para isso.e, estou no aguardo da dissertação da professora Amélia. Abraços, Cássia Benathar.
Shalom Sr. Elias! Acabei de receber do Correio o livro “Identidade e Tradição” Gratidão
Francisca A. F. Grenzer
Bom dia! Sim, estou produzindo um artigo sobre o antissemitismo e lendo seu livro, eu e a professora Alessandra encontramos referência sobre o antissemitismo e a Cabanagem, algo que nos gerou curiosidade sobre a temática. Grata por sua disponibilidade e informações. Abraço.
Aldilene Morais
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MENSAGENS
Parabenizamos o Portal AJ pelos 10 anos de fundação e desejamos a todos Pessach Sameach Anne, Jaime e José Benchimol Rebeca, Joshua, Benjamin e Daniel Neman
Felicitamos o Portal AJ por seus 10 anos de criação e desejamos a todos Pessach Sameach Isaac Azulay e família
54 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 16 - ABRIL 2020
Desejamos ao Portal AJ vários outros 10 anos de atividades e a todas as famílias Chag Cherut Sameach Família Amsalem
Parabéns Portal AJ pelos 10 anos de atividades e Pessach Kasher VeSameach le Kol Am Israel Sergio Benchimol e família
Felicitamos o Portal AJ por seus 10 anos na preservação do judaísmo da Amazônia e desejamos a todos Pessach Sameach Lia, Cris e Fé Lattman-Weltman 55
1810 2020
JUDEUS NA AMAZÔNIA
210 ANOS DEPOIS
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