calor da hora

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CELESTE MOREAU ANTUNES

calor da hora



solta

Galope JĂşlia Rocha, Ramos Isabel Ramos Monteiro, Calor da hora Celeste Moreau Antunes



C. M. A.

calor da hora


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Manhã

cachorros e gatos vão se deitar no jardim naquele lugar cratera de terra na grama minha mãe aponta: – um dia eu vou cavar, ver o que encontro. um anjo de cócoras sem relógio observa e sabe que ela não vai cavar

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milhares de índios jovens se suicidam atrofiados nas margens das rodovias o sabiá come a ração do cachorro a beleza é um barco sem âncora não domino a língua não possuo a casa a mãe não é minha os bichos não são de estimação


Um pouco atrás

caminho entre a resistência e a resignação afrouxo o cabo de guerra com passos pra frente neblina espessa céu branco caminho sempre um pouco atrás da reconciliação

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Tarde

pastilhas valda cigarros, olhos acinzentados meu pai assina cheques sentado na cama de pernas de Ă­ndio parece meu filho gel, gilete geleca geladeira piso em pedras preciosas passo de gigante bola de carne e osso pinga pinga pinga

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årvores de natal vamos celebrar? como Ê leve meu corpo de criança desliza no camarim


Pego sua mĂŁo

pego sua mĂŁo e beijo de leve meu pessimismo ĂŠ alegre o consolo silencioso das coisas sem carisma: , o conselho silencioso das coisas devotas: vamos viver o dia a dia ver o que acontece

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Noite

cinco doses pra você pra mim, uma seu coração é íngreme quero escalar eu sinto muito não sinto muito por sentir muito nos deitaremos sem a moral sem dosar o amor máscaras de oxigênio cairão eternamente uma após a outra restaremos queimando de lucidez

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Assim

sĂł pra chegar no calor da hora que espera por mim como um anjo bom esse calor da hora em que dou trabalho para pĂ´r sapato e minha irmĂŁ espera no carro pronta para a quadrilha e eu me rendo depois de fazer birra e me sinto protegida dentro do meu sapato

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Ano velho

O ano velho pega a televisĂŁo no colo dentro da banheira o ano novo vai no funeral sem dinheiro de pijama tem dez cĂĄries sorri para todos assobia, imita os passarinhos se soubesse cantar estaria cantando ainda nĂŁo descobriu que reencarnou

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Que me lembra

o mato que nasce na terra incendiada a criança com remorso escondida no escuro o cachorro agoniado no matagal virando lobo demolição devagar do passado do futuro lamento dos bichos que perdem seu par carcaça achada no mar o amor

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Sombra

eu chegarei depois distraĂ­da pela moita aĂŠrea do jasmim sentada sem desejo em silĂŞncio

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Água

A mulher se debatia uma, duas três vezes peixe sem água mas mulher nasce e morre mulher e da água não se escapa nunca

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Relance

sua ponta de nariz (me) aponta e desaponta (-me)

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Sonho de consumo

queria te ter em miniatura e te ver, te tocar, sentir o seu cheiro estar sempre com você mesmo sem te ver, te tocar ou sentir o seu cheiro o volume no bolso da calça seria a minha certeza bastaria esticar os dedos e sentir o seu minúsculo couro cabeludo

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Cont a got as

In despair My mother had A fit of laughter I kept serious She cried

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2011


Condenada

o que vai ser de mim estava condenada a vocĂŞ agora estou condenada ao mundo

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Meia Est ação

Então eu e meus irmãos um lugar perdido entre afeto e franqueza um pé na neve o outro na areia caímos sorrindo levantamos chorando de novo de novo de novo

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Café da manhã

quando carne eu era pouco

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você

pra

comeu crua vi muito mim


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Ouça

sangue tem cheiro de chave chave tem gosto de sangue se vocĂŞ chupar

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Anoitece

eu sinto muito duas mãos tocam minhas coxas sinto muito, sobem como se fossem minhas as mãos sinto muito sinto muito sinto tanto duas mãos apertam meu tórax marcam minhas costelas como se marcam vacas o fantasma me pegou só me resta ceder virar ar ou apodrecer e você me diz que a mesma mão quando chega a noite espreme seu coração íngreme

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Ingênua e sentiment al

não sou a Barbie veterinária

posso me tornar

não sou a Madame Bovary

você se apaixona por que ama a pessoa ou por que ela te ajuda no que você precisa? puta pergunta escrota e todo mundo faz

espantalho que olha a barriga

revelar-me virá com mil sentimentos

o nicho da infância explodiu

a poesia me dá preguiça ouça a voz dos mortos, vivos

restei com uma tatuagem de chiclete ainda quero ver os quadros com a mão não sou uma pessoa cínica

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estou preocupada com meus amigos mais doçura menos angústia você está sendo irônico? não


O humor

o humor não consegue enfiar suas mãos sujas na calcinha da violência pelo menos ele tenta

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Coqueiro

não é o vento que balança as folhas as folhas dão licença pro vento passar

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Evolução e amar é diminuir eu não tinha peitos e queria usar a parte de cima do biquíni perto das pernas dos adultos nós peixes bêbados de cloro cardume em perfeita comunhão veio o tempo assalariado veio com um megafone disse que liberdade é mostrar os peitos

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sonho com sereios banidos escamas de água, rostos roubados rastejando pra dentro de roupas secas


Princípios

posso driblar a honestidade e dormir em cima dela lavar meus olhos me vestir com suas roupas estar grávida dela ser explorada por um milhão de filhos ter ossos de aspirina efervescente convenientes

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e ao inverso desvendar a voz dela no ar andar de quatro em marcha ré até ver um lampejo rápido e suficiente do seu rosto limpo acordado sob mim


A flor da pele

O que me toca O que te toca O que estรก Ao nosso Alcance Nos toca

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A Poesia é Gorda

vou escrever sobre galinhas sem cabeça crianças sem pena que queriam cortar a cabeça da galinha ver pra que lado o corpo ia lado direito era sim lado esquerdo – não sugeri jokempô optamos por comer pintinhos mexidos vontade de agarrar a gorda cortar sua cauda ver pra que lado se arrasta

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Não terminou comigo

não terminou comigo ninguém termina com ninguém suicidou-se o amor nossas mãos levavam um móvel muito pesado e a sua soltou deixei a casca da banana me escorregar a cobra trocou sua pele todinha overdose ressaca vacina o móvel me leva feliz e sozinha

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Alívio

as respostas virão no banho mais tarde ao olhar os pés ou não virão o alívio de não enfrentar o que não é possível

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Pena

piscina sem água você cai e quebra seu lindo precioso protegido pescoço

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Escrever

pôr a mão no fogo

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Life is a Stranger in the Day ou Mind ab ove Matter com Bruna BatalhĂŁo

canguru bebĂŞ bicicleta marido e tudo pode desabar de qualquer momento em qualquer momento de qualquer forma em qualquer forma

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Prazer

Entender não é tolerar Perdoar não é esquecer Viver é Viver prazerosamente devagar sem você Prazerosamente divagar sem você

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A dor

a dor nos deixa humildes a felicidade nos deixa doces me deixo plagiar esse dizer evangélico que circula na internet ou subvertêlo a dor nos deixa doces a felicidade nos deixa humildes

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também plagio os conselhos da minha mãe não há nada puro purinho às vezes quando espreme ao invés de sair vai mais pra dentro (apenas porque é assim mesmo)


Aquele

não pode ser outro comprado repetido substituto tinha que ser aquele que foi doado perdido estragado desprezado morto que enfim não está mais lá as crianças choram os adultos choram aquele sorvete lápis maquiagem balde que o mar levou aquela vez que eu não disse aquilo

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eu subi a montanha com meu tênis branco e meu namorado queria ver coisas novas do alto tive certeza que subíamos em ritmos diferentes achei que meu tênis ficou feio e velho na volta mesmo depois de lavar e só por hoje ser hoje eu queria meu tênis branco lavado e abraçar o ex namorado


Ida

Sempre vai cumprimentar os bebês e crianças pequenas Ignora um pouco os adultos Não gosta de condescendência Chorou muito ao ser tosada Fez uma cara diferente ao ver um manequim da janela do carro Apoia seu queixo no meu pulso quando mexo no freio de mão Ama a Zezé por isso morde a cabeça dela

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Divórcio

A consciência a consequência irmãs siamesas esperando a operação na mesa Ingenuamente a louça quebrou e não é mais ingênua e não é mais louça Amaremos mesmo assim? Sua voz não é mais límpida do que as outras todas

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Madrugada

seu namorado entrou no meu quarto colocou meus pés no seu colo tirou meus saltos me cobriu apagou a luz fechou a porta e voltou pro seu quarto eu bebia esquecimento não sabia quem eu era mas não sabia apagar a luz mas me senti em casa 49


1997


Bruxa

bruxa redonda bruxa quadrada quando a bruxa estรก apaixonada ela fica mal-humorada

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Cuidado

não pertenço a você mal pertenço a mim vou amarrar sua gravata você, fechar meu colar e nos viraremos assim

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A ironia

a ironia de ser você a única pessoa que sabe como faço uso abusivo das palavras nunca e sempre nas minhas ansiosas quentes estranhas falas

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Jabutic abeira

parou de crescer coloquei muita ĂĄgua foi para o seu bem sacudiu-se das folhas cortei seus galhos foi para o seu bem agora anĂŁ nua amputada eterna boia me olha

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Engatinho

no escuro atrás de uma pepita sou um bebê e gosto do lacre amassado do marlboro porque é dourado e do anel da lata de refrigerante porque é prateado engatinho no escuro e caço tesouros inoportunos com sucesso

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Sing to me

passo os dedos no corrimão de um castelo sujo de uma história antiga não sou o que me ameaça I’ll listen care full y

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Líder

daqui pra frente serei líder determinada sorridente pontual meus comandos vibrarão como um raio luz no caos sem focinheira de dó só ré mi fá sol lá a cadela será um ser mais feliz

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A poesia

a poesia não gosta de mim eu não gosto dela mas nos esbarramos nas festas e aí às vezes transamos

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2015

pág. 5

2006

pág. 15

2008

pág. 18

2009

pág. 20

2011

pág. 22

2012

pág. 26

2014

pág. 31

2016

pág. 37

1997

pág. 49

2017

pág. 51


conversa

A poesia no calor dos tempos No livro Calor da hora, a essência da matéria criativa é o tempo. Em diálogo com a primeira obra literária que publicou no ano de 2013, a ficção Para quando formos melhores, Celeste Antunes elege a passagem dos anos como elemento central para uma apreensão poética do mundo. A partir de uma compilação de poemas realizados no decorrer de duas décadas, escritos pela autora entre as idades de 6 a 26 anos, Calor da hora é um espantoso convite à imersão nos intrincados tecidos do tempo, nas impressões subjetivas de um “eu” feminino face às tumultuadas condições relacionadas à trajetória existencial. Da infância à fase adulta, passando pelas crises da identidade e pelos afetos contraditórios que marcam o período da adolescência, os poemas presentes no livro convocam a uma partilha das experiências, a um mergulho visceral na multiplicidade de sentimentos que brotam do indivíduo em meio aos desajustes contínuos do viver. Com versos curtos e sem rebuscamentos passadistas de linguagem, em um estilo enxuto no qual a arritmia poética traduz as ambiguidades do sentimento e as desordens emocionais distantes das certezas definitivas, Celeste Antunes lança o leitor para o olho do furacão existencial, para uma imersão quase sem rodeios nas camadas inconstantes do viver. Em proximidade com traços estilísticos de Wislawa Szymborska, autora polonesa


que nos últimos anos ganhou traduções no Brasil, os poemas inseridos em Calor da hora partem recorrentemente de aspectos triviais do existir, de um episódio corriqueiro ou de um objeto banal, transformando-os em matéria pulsante para uma apreciação mais ampla dos afetos existentes no mundo, das dores e dos prazeres que percorrem continuamente o ser durante a sua trajetória existencial. Uma brincadeira infantil, uma cena proveniente da televisão, uma conversa com o pai, a relação amorosa ou a arrumação da casa, imagens cotidianas e universais, situações enfrentadas por todos nós, tornam-se o fio condutor das encruzilhadas subjetivas que Celeste Antunes partilha acerca das diferentes fases do viver. Ao deparar-se com os versos, o leitor se reconhece não apenas neste trivial, mas especialmente nas complexidades emocionais que emanam do texto. O eu-lírico – e seria mais justo falar em eu-lírica – é como nós: a cada passagem do tempo, a cada período do existir, nossos sentimentos se modificam, nossas impressões se alternam, demonstrando o quanto somos seres em mutação constante, identidades em aberto e que nunca alcançam uma condição definitiva de completude. Em nossa jornada, somos quebradiços e fragmentados. A cada temporalidade, no calor de cada hora, diante das experiências diversas e imediatas do viver, mudamos o modo como enxergamos a vida. No livro de Celeste, este é o aprendizado sentimental, aprendizado


valiosíssimo: existir é um saboroso jorro emocional, de perdas e ganhos, de desejos e rupturas, que aproveitamos de fato ao compreender o impossível da completude. Não há temor, nesta jovem autora, em traduzir o inevitável de nosso estilhaçamento. No livro Calor da hora, o percurso existencial começa com uma série de poemas escritos em 2015, quando a autora encontrava-se por volta dos 24 anos de idade. Redigidos no início da vida adulta, pós-adolescência, o conjunto inicial de versos introduz uma temporalidade tomada por crises, por impressões dilacerantes provenientes de uma eu-lírica à deriva diante das múltiplas inquietações do existir. Em contraposição à infância, que nessas poesias emerge como memória nostálgica, passado de onde brotam sensações de uma segurança já desaparecida, o presente é campo minado, território repleto de estranhamentos e de empecilhos que impedem a concretização de projetos existenciais e o alcance de uma estabilidade emocional. As fissuras sentidas pela eu-lírica nesse momento de sua trajetória, traduzidas nos inúmeros versos compostos por tormentos e desacordos em relação ao mundo cotidiano, resulta em um estilo poético recheado de ambivalências, atravessado por imagens antagônicas em conflito e que nunca conseguem conciliarse no interior do texto literário. No cerne dessas angústias, povoado por sensações de crise ininterrupta e de fragmentação identitária, encontra-se o poema “Um pouco 64


atrás”. Como em boa parte do conjunto escrito em 2015, esta poesia é construída por polos binários de oposição, imagens discordantes que transparecem as dificuldades da eu-lírica em sua impossibilidade de afirmar-se como sujeito no mundo. Mutante e dilacerada, ela encara o viver como neblina espessa e céu branco, como nuvens carregadas e céu aberto, restando um lugar de estranhamento, distante do aprazível, localizado entre assumir resistências ou aceitar resignações. Em meio às binaridades pouco reconfortantes, tradução do olhar em profundo desajuste, uma pergunta flutua, faz-se continuamente presente, como no caso do poema “Pego sua mão”: poderá o afeto sobreviver mesmo diante do caos existencial, do revés das grandes expectativas e da perda de uma aposta romântica? Na soma de todos esses sentimentos, desse poço sem fim das ambiguidades, partilham-se impressões resultantes de um tempo específico, de um calor da hora identificado como o ano de 2015. O livro, no entanto, levará o seu leitor a outros momentos na trajetória subjetiva da eu-lírica. Com um salto repentino, uma espécie de flashback existencial, assim que finda a primeira série de poemas somos lançados para uma década no passado, para o contexto de 2006, momento no qual a autora tinha apenas 15 anos de idade. Vertiginosa, inclusive por estarmos despreparados para a viagem no tempo, a elipse quebra a forma poética anterior,


faz irromper um estilo diferente, de versos ainda mais curtos e diretos, nos quais os antagonismos inconciliáveis dão lugar a impressões claramente assertivas do mundo. Essas relíquias subjetivas do passado, qual um baú que se abre após anos fechado, pertencem à mesma eulírica, à mesma feminilidade em deriva, porém trazem sentimentos relacionados a outra temporalidade, a um período que antecede as encruzilhadas agônicas da vida adulta. A partir da mudança operada pelo corte seco, surgem poemas de juventude que desnorteiam por sua tendência a compor olhares mais absolutos, a instalar os advérbios “nunca” e “sempre” como tradução sentimental do existir. O tom predominantemente ambíguo de antes dá lugar agora a um viés mais categórico, de estilo afirmativo, refletindo as impressões de um “eu” ainda vivendo em sua adolescência. Em “Água”, o feminino é simbolizado como um inescapável debater nas águas. Em “Sonho de consumo”, escrito em 2008, o desejo de juventude, desejo irrealizável de posse, é a transformação do outro em miniatura, em objeto que posso sempre carregar comigo e que nunca esteja longe das minhas mãos. Conforme o livro avançar nos anos, trazendo poemas escritos em 2009, 2011, 2012 e 2014, aos poucos redescobriremos a eu-lírica das contradições e dos dilaceramentos de 2015. Em especial nas poesias “Meia Estação”, “Ouça”, “Anoitece”, “Ingênua e sentimental” ou “Evolução”, as impressões absolutas já cederam lugar, novamente, às derivas das oposições binárias. 66


A surpresa, porém, é que o livro de Celeste Antunes não termina aqui, nessa devolução aos sentimentos inconciliáveis de 2015. Se a primeira elipse desloca o leitor em direção ao passado, às impressões subjetivas e ao estilo poético presentes na adolescência, uma segunda viagem no tempo, rumo ao contemporâneo, nos levará à trajetória da eu-lírica após 2015, aos anos imediatamente posteriores às experiências mais dilacerantes do “eu”. Os poemas de 2016 e 2017, conjunto escrito pela autora entre os 25 e 26 anos, surpreendem não apenas por uma nova modificação estilística na forma poética, pois agora os versos surgem com expressões mais cruas e endurecidas, mas espantam também por conter um feminino menos atingido pelas crises subjetivas, disposto a potencializarse em meio a um mundo adulto onde predominam fragmentações identitárias e cinismos de toda ordem. Embora os eixos temáticos prossigam próximos aos anteriores — com rupturas amorosas, erotismos culposos, derivas do existir e rememorações da infância —, a eu-lírica da nova série de poesias, após descer ao inferno das inúmeras tormentas, surge agora com traços menos românticos, cada vez menos ingênua, indisposta com os próprios descompassos emocionais de antes. Trata-se de um novo calor da hora, de um novo tempo, de um acúmulo visceral de experiências que dotam a subjetividade feminina de um desejo de potência. A marca desse último conjunto


não parece ser a redenção após as crises, o encontro de uma felicidade possível, mas a sabedoria existencial de compreenderse mulher forte, de entender que neste mundo opressivo faz-se necessária a construção de um “eu” menos enfraquecido e vacilante. Se os primeiros tempos compunham impressões adolescentes entre o “nunca” e o “sempre”, se o segundo momento gerava sensações de deriva e de paralisias doloridas, o terceiro rebenta como desejo de força, de afirmação em meio às fissuras incontornáveis do existir. O efeito dessa redefinição do olhar encontrase em poemas como “Alívio”, composto por afirmações mais endurecidas, no qual a eu-lírica aceita que algumas respostas são impossíveis de alcançar. Em “Pena”, no qual um precioso e lindo pescoço é quebrado sem lamentações. Ou naquele que é um dos mais pungentes da série, “Prazer”, no qual a eu-lírica, além de ressaltar o deleite de viver sem o outro, aparentemente o ser amado, ainda anuncia: “Entender não/ é tolerar// Perdoar não/ é esquecer”. Em Calor da hora, a passagem do tempo, como matéria-prima da poesia, convida a embarcar nas múltiplas camadas da subjetividade em transformação, nos fluxos eternamente mutáveis do ser. A sensação deixada pelo livro ao fim de sua leitura, ao alcançarmos o ano de 2017, é que o percurso sentimental da eu-lírica, com todas as suas alterações de olhar e de estilo em relação ao mundo e ao feminino, está longe de se encerrar. Uma das qualidades da obra de Celeste Antunes é 68


deixar a impressão de que essa jornada do “eu” nunca terminará efetivamente, uma vez que outras temporalidades e experiências surgirão no futuro, no pós-escrito. O aprendizado sentimental da personagem, embora chegue apenas até 2017 nas páginas da obra literária, prosseguirá até o fim de seus dias, com novas mudanças de sensibilidade em decorrência de outros calores da hora que virão. Esse é um dos pontos de maior valor deste livro: lembrar que o “eu”, na impossibilidade de uma completude definitiva, modifica-se continuamente no fluxo do existir. Para Celeste Antunes, escrever poemas, como ela anuncia a certa altura, é “pôr a mão no fogo”. No caso dessa jovem autora, criar literatura não é alcançar o aprazível, o Belo ou a tranquilidade. Escrever é um ato para enunciar as encruzilhadas do afeto, as tormentas do existir, os deslocamentos e as derivas do humano. Não à toa, a página de encerramento de Calor da hora, como manifestação dos anseios autorais da escritora, contém os seguintes versos: “a poesia/ não gosta/ de mim// eu não/ gosto/ dela// mas nos/ esbarramos/ nas festas// e aí/ às vezes/ transamos”. Reinaldo Cardenuto é doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP, é professor de História do Cinema na FAAP (SP). Em 2016, dirigiu o documentário Entre imagens (intervalos) e lançou o livro Antonio Benetazzo, permanências do sensível. Atualmente, atua como docente temporário no curso de Audiovisual da USP.


Celeste Moreau Antunes nasceu em São Paulo em 1991, onde mora. Atualmente é estudante de comunicação e de música. Em 2010 escreveu e dirigiu a peça teatral Fermento. Em 2013 lançou o romance Para quando formos melhores – editora 34, e dirigiu o curta-metragem Fogo baixo. Este é seu primeiro livro de poemas.

título

Calor da hora

ISBN

978 85 922095 3 7

edição revisão projeto gráfico

Júlia Rocha João Reynaldo Estúdio Rubi

tiragem

140 exemplares

e.seloeditora@gmail.com É selo de língua – solta. São Paulo 2017



solta

ISBN 978-85-922095-3-7

ouça

sangue tem cheiro de chave

chave tem gosto de sangue

se vocĂŞ chupar


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