ramos

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ISABEL RAMOS MONTEIRO

ramos



solta

Calor da hora Celeste Moreau Antunes, Galope JĂşlia Rocha, Ramos Isabel Ramos Monteiro



I. R. M.

ramos


parte um


Salsinhas do jardim, parem de me ameaรงar com sua morte prematura!

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Ao calor do sol e da lua estouraríamos numa explosão única e audível possíveis seriam escamas ou asas. Então, por que pernas?

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Uma câmara de vácuo seria bem-vinda pois o mundo não silenciou ao meu estrondo

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apelo pela pele

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Quantos eus cabem em Deus?

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, e o mar entrou voluptuosamente, afoito e violento, engolindo menino engolindo mar.

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acme

Em branco estado pleno caibo perfeitamente em meu corpo e subitamente, num ardido grunhido, dele me descolo. Era sobre o prazer que falávamos e foi por ele que, (de fôlego preso) águasas caí ram.

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Choque entre dois ou mais corpos, uma tropa deles: camisas no chão! cadernos nas árvores! mãos aos céus! E os cavalos enormes, fortíssimos, robustos, viris, desavisados. Rédia curta: não há galope em tamanha concretude.

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Quem és tu, Mariana? Já de longe ouço mares e Marias, Anas; tens amores? Viro homem em teu nome para desejo sem culpa de boca, falo, ânus. Nua: Anas não sanam. Ana, não somos, em suma, não somo, não sou Mariana.

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sem viver contrariado

Enfim, há o silêncio do interior de textura densa, sol e horizonte a poder ver e perder de vista. O dar-se conta do estrondo por debaixo da pele pela falta dos ruídos, pela música dos pássaros, meu estado comprimido; armadura pesada sendo deixada pelo caminho da casa. Ao despir-me, corpo em contato com o vento, percebo a fadiga que foi carregar-me até aqui: a cidade grande não cabe em mim nem eu silencio no vazio.

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Não bastasse as entranhas dei verbo olhos coluna, ar e fôlego despi-me em reverência a tantos olhos esbugalhados suplicantes de tanto muito tanto de tato fico carente em casa fico doente na cama, só.

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Curioso: o que plaina é o chão debaixo dos pés, airplane é casa feita de tijolos. eu: bee zummmmm! Mel nada: amarga ácida cítrica impossível conter a careta. Quem plaina em pleno solo de repente num tropeço bobo se vê olhando o céu tendo o concreto em contato com corpo. Curioso: é assim que me contorno.

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O embate bruto com um objeto concreto faz com que eu, de repente, me sinta existente também como um objeto duro. Pela dor se faz contorno e concretude para além da efemeridade da carne que pensa. Osso, tão duro quanto muro, tão quina quanto encontro de dois, tão rígido quanto o que pode, de súbito, esfacelar, resta verbo?

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lógic a

Porque todo desejo é forte demais para realizar-se, porque o que me olha é caolho. Porque a solidão é minha familiar escolha, sento-me e ouço a voz dos anjos, porque música arrebata. Porque vi uma ruga na testa, sinto envelhecer o caule em terra infértil, porque rugas do tempo não devem ser preenchidas. Porque comunicar parece tarefa impossível, só verso e nunca prosa, sozinha me verso, porque estamos fora de moda, porque me interesso em porquês, finjo calma a toda troca, porque espero que não cheguem ao final deste, minto, minto muito, para inebriar quem possa entrar, porque sou quase translúcida e meu coração salta por você que quase não sabe o que sente, por mim que não sei como ainda, vou me retirando ao futuro, grande já presente, em gerúndio contínuo e redundante, indo, que me cabe bem, obrigada.

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In other mood I felt like falling in other language just fighting to find out other words with other sounds to sound me different to say me whispering to calm (me) down on stairs on stars on stage one´s self Such thing just happens someone is lost souls are in dust so sing me in a swing all I, bet-bat, better stop me in you.

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mai chai para e com Dirceu M.

My mai chai, tea from Thailand, soft and slow and so indecipherable and how beautiful and how hard to taste more I smell of it it drifts away. My mai chai, how oriental! Little eyes that she hides. I thought that I knew you but never imagined that you were uncatchable, no, My mai chai is myself and it hurts.

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Um bom-dia! descuidado para dizer que encontros somente mediados por recursos tecnológicos, feliz ano novo!, eu disse, mesmo sabendo que os anos se mostram felizes e tristes, como têm que ser, com a vida damos e desejar nos cabe. Férias e noites de bom sono ajudam a digerir, devo sempre aconselhar-me. Terão a delicadeza de me receber, afirmo e indago. Mesmo ano novo, não é de mim formatar fins nem começos, mas não quero chegar atrasada ao encontro, não quero levar adiante o que causou a dor de outrora. No que me apresenta em branco, no branco em que pulei ondas, tomei chuva e me inundei em mar, resta o frescor e o balanço salgado, e tudo o que pude deixar mar afora, e transformar maradentro.

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.

foi enxergar no foram que fraquejaram acelerou o o cinza vinho como fizesse e morta de

tantas

dado cores em que tantas

um

estĂ´mago as o verde dos olhos de amarelo da da de minhas se cada novo romper corte na restei de ser

dia

me

presente: vibrantes desbotava. tantas embrulhou, pernas, coração. hoje, flor, cidade, unhas, objeto pele eu. cansada atravessada


Meu pote de cerâmica caiu. . Aos meus olhos em pânico mostrou-se um rasgo, uma fenda. depois outra e outra, outra, até que superfície desertou. Pude ver o que antes era imaginado: a cor do barro seco. Agora se esfacela nos meus dedos no acariciar de seu bojo. Quero reparar: botar cola passar cuspe forçar minha fôrma antiga. Revolto pote, se mostra desconjuntado, retalhado, do avesso. euvaso, em expansão do vazio, busco artesão cuidadoso, mão leve, silêncio e calma. Façamos beleza dos cacos.

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janela

Olhos semi-cerrados formam-se aos poucos contornos sob luz tímida de outro canto. Aqueles dois sapatos posicionados ao meu lado são testemunhas do meu caminhar até aqui, com pernas próprias. Olhos entreabertos refaço as imagens da cidade amanhecendo. Pelos meus olhos passam tantos e molham os meus nos seus vejo e não vejo apagam-se contornos nos cachos do cabelo bagunçado gotejam comigo a serenidade da cidade, o que em mim, de mim serena. Arregalem-me, olhos para que luz de outro canto adentre.

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Na magreza pouca pele entre nós é possível sentir meu pulso. O seu pausa, o meu voo.

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clear

Olho paro o dia de dentro que ĂŠ noite quente e ando ardendo sem pudores para palavras.

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pretere

Deixam de te olhar e você finge uns dois balançar de ombros largados num respiro final. Finalizado. Você estampa um sorriso amarelo, produz gargalhadas regadas a álcool, acelera o passo duro, o corpo duro, os olhos duros. Prefere não comentar. Quer colocar o coração num pote grande, com cubos de gelo, para sentir o frescor. – Prefere não comentar? – Prefiro.

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Queria escrever em letras garrafais, com jatos gordos de tinta preta, num muro ainda branco, uma palavra bem grande. Para tirar do corpo e me atirar no muro em cima de palavrĂŁo, vazar preto do Ăłdio embate mudo duro na carne.

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Se boca com palavras se palavra com boca se dentadas se grunhidos se sussurro na lĂ­ngua restam outras na boca outros. Se dizer faz gritar em silĂŞncio, calo-me. E entĂŁo, ouve?

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Peço: alguns quilômetros de trilhos para o coração que descarrila. espaço e tempo espaço e tempo (e também: pernas novas e fôlego ao corredor cansado sol para a mulher que madruga pele pele pele, um suspiro)

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das agulhas

Entre uma agulha e outra: – Como você sente a vida? – Como assim? – Assim: como você sente a vida? – Ai! E um monte de sons (que me dizem somente do soar da língua na boca) e duas risadas, signo claro, sem mais explicações... Como pode minha dor promover o seu riso? É assim que sinto a vida.

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Os outros estão velhos, eu não estou. – Desculpe, Eu não está!

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ultimamente não tem tido tempo último que não seja primeiro que não seja emergencialmente hoje ultimamente não dá tempo nem de sentir mesmo assim sinto muito

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você fez quarenta anos e eu fiz quarenta poemas

Desajuste no peito nos pequenos gestos nos olhares trêmulos desajuste do sono do cheiro da cama um sem fim nem começo efêmero respiro suspiro quente calor na nuca frio da barriga um presente da grande ausência do olhar que me despe

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Redonda compõe o céu no chão, redondos olhos eu compondo com ela me recomponho me recoloco e convoco sua luz redonda ela me olha assim eu aqui de olhos miúdos, de olhos molhados, de longe vejo: redondo tudo, o mundo, oras! – Lua, volto a encher! 37


A chuva derrete minh’alma e não para de c h over

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E então, mais um furação, desses que eu desejei calada, fingindo não desejar,

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de nĂŁo saber sei que jĂĄ estamos todos bem cansados. Na verdade, nĂŁo sei.

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Ruídos idos quantos ruídos, quantos vivos, ruídos novos, ó quantos ruídos ruins. Raros ruídos, de rochas, de falta de tom. Roa-me, roer-se, rua! As minhas unhas que não se roa nenhuma porque roer é só por dentro. Romper é só por dentro. E é todo ilusão.

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morrer

Ao acordar com a britadeira da construção ao lado percebi que aqui era também toda britadeira de modo que, no primeiro bocejo, comuniquei-me ao mundo. As pedras se esfacelam e eu tento catar os cacos, olhar os vácuos e me reintegrar. Depois de um dia de coração na boca, parece que morro um pouquinho. Quantas mortes numa vida. Na sombra daquele lugar antigo que diz muito do que não foi possível dizer. No sol macio de outono que me faz desejar flores de ipês (amarelo) nostalgia, nostalgia, de toda a mesmice, ela mesma. Translúcido vidro (do que foi), ele mesmo, existindo (e embaçando a minha visão) eu mesma sendo quantas mortes numa vida.

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Minha avó secou (e o esguicho do jardim e as flores da primavera) Das flores secas da sua flor tão seca do coração o silêncio tomou lugar.

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Do doce da torta às palavras dos poemas, do picote do ingresso do cinema à futilidade da minha geração. Eu quero poder me ser, sem ferir ninguém.

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parte dois


Passa pelas frutas em direção aos legumes, apalpa dois tomates, vai em direção às pêras, coloca três na sacola. Passa pelos biscoitos e para em frente aos chás, corre os olhos de baixo para cima, de cima para baixo, volta nos biscoitos, olha os integrais, segue em direção ao frango. Olha os formatos, os orgânicos, procura pelo salmão, hoje não tem, vai em direção ao iogurte. Deixa as pêras perto do arroz. Sai de mãos vazias porque a cabeça estava muito cheia.

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Eu estou em cinco minutos, indago e afirmo e também se em linhas cabem um eu se eu é eus e que coisa inacreditável é que são minhas mãos que escrevem neste papel, e será que tem alguma caligrafia igual a minha e não é que hoje eu vi uma senhora no ônibus que me fez gelar o estômago porque era a minha mãe mais velha, e era ela, e ela me olhou e sorriu e disse que era eu.

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Orquídea, flor que não cabe no vaso euquídea.

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Sonhou, sonhou muito, vai de ônibus para anotar: tiro o capacete vestido de noiva moto, marcha à ré no lugar da primeira marcha hoje são pessoas que controlam o semáforo que controla os carros com seus apitos. A miopia confundiu PRAÇA RAMOS ANHANGABAÚ com ACLIMAÇÃO Se pegar A N A R O S A chegará mais 49


rápido mas o outro deixa na esquina Se o sol incide, consegue ver as camadas de corais e pedras a palheta do amarelo ao rosa e os peixes o fundo do mar é um abismo seu reflexo no vidro mostra o vinco entre as sobrancelhas logo de manhã a mulher sai falando alto que é um absurdo o homem e a carranca da gente toda os dentes apertados na boca o ar que entra ardendo se o sol não bate é só daqui até ali o peixe grande some a palheta esconde a cor. Rosa, aqui tudo é preto e vermelho passa pelo cinza Polícia Farol traseiro Bancos Concessionárias Mas hoje, o semáforo estava apagado, eram só apitos sopro sem cor código no corpo.

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c asa de stella

Foram catar as coisas da avó que esmorecia no hospital dos velhos. Ela pisou no chão quente e marrom, aquele mesmo que tinha brincado de encaixar os pés; a fôrma era de fechadura. Olhou a prateleira de livros empoeirados, amarelados, lidos. Quis levar todos, abriu um e dentro dele eram flores secas que saíam, deixando impresso nas páginas o amarelado de flores que um dia flores, agora desenho e forma seca. Catou os de literatura, achou umas vinte cópias de um mesmo conto com rabiscos. A vó deve ter querido ser escritora também. Levou para casa e passou a anotar nos seus com fé. Os livros lidos eram lidos e tinham a marca dela, a flor de agora, um dia ela seca.

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NĂŁo posso com o mar nĂŁo pode comigo

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: e então a escrita começou inscrita na pedra. E que coisa mais extraordinária essa coisa que o texto fica (na pedra) à medida em que você escreve. Que depois de muitos anos você se relê e parece que aquela voz é de outrem. Esse espaço do pensamento ao gesto dos dedos no datilografar dos teclados ou nas curvas da caligrafia. Essa coisa de que cada um tem sua letra, cada um tem sua voz e isso não é questão de estilo; é um monte de sinapses neuromotoras (que por equações misteriosas do cosmos faz com que um nunca fique igual ao outro, e de repente eu trombei com meu marido nas ruas de Barão Geraldo) que traçaram este caminho particular que fez da minha letra pequena, a do meu pai rasurenta, a da analista, gravíssima. E depois disso tudo, dizem que nos compreendemos. E daí que essa coisa de que a compreensão deve estar nos autos, ipsis litteris, é uma grande bobagem porque ao percorrer cada rasura da letra do meu pai, sinto pontadas de dor nos olhos e no fundo da minha coluna. Só aceito literalmente se for de corpo inteiro: palavra corpo; daí que a comunicação é apenas uma hipótese, sem corpo a palavra é nada. Porque acabo de comprovar a teoria do Henri, o francês: o lance todo é o que a linguagem (do meu pai) faz comigo e não o que dizem suas frases.

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Amor, uma dorzinha me atravessa o peito e ĂŠ sempre vocĂŞ na fissura.

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Socorri uns dois sobressaltos ao longo do dia. Achei que tinha desaprendido a escrita depois de tê-la estudado a fundo: quando penso sobre a minha própria respiração tenho a tendência de perder o ar. É preciso respirar fundo mas não conhecer-se do mesmo modo. Hoje li um texto antigo que estava embaralhado nos meus arquivos do Word e não reconheci a autoria. A pasta dizia que era meu, fui até o fim da página para constatar minha assinatura. Achei o texto bom. Não sei se é bom ou se é só diferente dos meus e por isso julguei bom, pois soa como uma voz de outrem e com quem eu aprendi alguma coisa, como um olhar refrescado sobre algo antigo. Não me lembrava que tinha pensado sobre o bico do meu seio direito. O texto podia ser sobre o seu seio, eu não notaria; acreditaria se não reconhecesse, depois de algum esforço, que era mesmo o meu ritual do banho e o seio direito. Aí me lembrei. Faz tempo que não olho para o meu bico do seio direito sob essa perspectiva. Vou colocar o texto ali embaixo. Veja se acha bom também. Gostei muito de ver senhores e senhoras dançando sob teto de zinco e luz de outono, nos seus melhores estilos, sobre tacos de madeira e saltos altos. As imagens não saem da minha cabeça. E sobre isso não consigo escrever muito. Talvez tivesse que filmar, ou pegar na sua mão e te levar lá na Zona Sul (teria que ser de ônibus). Sentamos numa mesa dessas de ferro, com toalhas de plástico e balas de hortelã e olhamos o circuito anti-horário dos passos no salão. Você escolhe um casal para olhar; o de camisa vermelha com a de flor na cabeça, por exemplo, aqui, bem pertinho. Vai seguindo e percebe que eles vão se distanciando,

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ficam bem perto do palco, lá longe, e depois voltam a se aproximar. Viu? Desenharam um círculo. Não é bonito?

BICO DO SEIO C O M O TR AN S PO RTAD O R D E ÁG UA Uso o bico do seio direito como transportador de água. Um riachinho chega à calcinha no ritual de lavagem diária. É pelo chuveiro que vem a água benta – esse aparato elétrico deve ter uns quatro anos no mínimo, e as gotas chegam dispersas aos cantos do quadrado do box. O ritual é o mesmo em toda água, para driblá-la e catar em concha-de-mão, para ver a cor dela, do seio ao fundo do lago. Hoje inaugurei o sono da tarde no sofá da sala. Um vento frio entrou pela janela e gelou meus pés. Você, ausente, não pode buscar a manta no maleiro e eu me convenci a tornar a dormir.

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met a sonho

Vista de cima: Árvore caída. Apoiada por outras, se equilibra fora do chão, reinando. A vista do todo é tão imponente que o olho não quer focar o detalhe. Não se sabe se foto ou pintura. Um movimento na árvore, o olho faz força e vê a mulher sentada sobre o tronco, quase camuflada de tão acoplada. É minúscula. Vista de frente: Ela tem cabelos pretos e olhos azuis. Foi seu cabelo que denunciou o movimento do vento. Não é foto nem pintura. Está ligeiramente fora de foco. Insiste em permanecer fora de foco por mais que o olho se mexa um pouco para direita, um pouco para esquerda. O foco está entre ela e o que a cerca. Fica indistinto o corpo do mundo. O lacrimejar dos olhos oscila entre derramar e secar, ela fala ininterruptamente, um sorriso trêmulo, o sangue cora e recua em sua face. Não se escuta de quê fala. O quadro é mudo. 57


Na sala de embarque, tudo o que eu mais queria era que a ambulância chegasse logo, médicos, soro, remédio, que me levassem logo ao hospital, eu estava morrendo. Na fila de embarque, tudo o que eu mais queria era que ele ficasse de fora, o avião ia cair, eu sabia, e quem deveria morrer era só eu. Dentro do avião eu só podia esquentar a minha barriga com as mãos, estômago, intestino, coração, de vez em quando as minhas nas mãos dele, o marido ao meu lado. Olhos fechados. Olhos abertos num imenso azul por todos os lados, acho que morrer é assim, eu falei, imenso azul por todos os lados, nossas alianças se chocaram, tec-tec, um barulho de alerta, ei! estamos vivos!, você piscou um olho para mim, eu pisquei de volta. Então é mentira? Mas e esse gosto de sangue que não me sai da boca? Durante o pouso, eu só queria que o avião freasse logo e quando freou, eu só queria sair correndo para encontrar. Mas a porta não abre e eu sabia que o outro avião colidiria conosco e não nos salvaríamos, era inevitável. E de passinho em passinho a fila começou a andar, e passamos pela porta. E então eu já podia correr. Na saída, o carro era da irmã, os pais não estavam, demora ainda umas 5 horas do interior para cá. No caminho, a vinte e três de maio estava vazia no primeiro de maio, o céu de são paulo também de brigadeiro, também muita luz e eu não tiro esses óculos escuros por nada. Atenção aos sinais vermelhos e amarelos, cuidado com as setas, talvez eu sobreviva. Quanto tempo é de São Francisco até aqui? Quanto falta para que todos cheguem para velar meu corpo? Você pisca para mim? tec-tec. Você me aceita? Posso fechar os olhos só um pouquinho? Mãe, posso ainda um colo? 58


IpĂŞ me sabe setembro me colhe desaprendi a ler os sinais da cidade atravessei as ruas como quem fura ondas num fĂ´lego depois da sequĂŞncia de sete, calmaria setembro me brota sobrevivi:

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Vim para debaixo do edredom a lua cresce e eu, parece que mĂ­nguo.

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cinco poemas da noite


I Há duas orquídeas de ponta-cabeça suas raízes ao céu, tuas mãos ao alto. Onde eu? Cá olho-te, me encolhes tonto e tua pálida respiração não vê. Onde nós? O gosto de sangue na boca adverte o perigo: não seremos! Quando é ontem. Hoje, nada anda. (De longe olha-me e tua enérgica ereção não crê).

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II

Terra Ăşmida: os vermes em movimento, minha saliva no chĂŁo.

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III

primeiro poema longo

Era o calor percorrendo a espinha uma vibração na pele, nas bochechas e disse: – é o quentor que quer ganhar da vida E o sono pretejou tudo. – é o prazer da entrega e agora o não mais não mais agora da vida ganhar agonia dum sopro quente hálito-de-amanhecer era o pavor percorrendo a espinha não mais. Era para onde? O banho-todo-dia

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creme barba terno sapato era a-gente-toda-banho-todo-dia creme terno sapato era um sujo orgulho como o hálito do amanhecer eram os esconderijos mijo, sangue, sêmem a vida era um bafo quente verão do interior era vergonha da vida insistindo era o inodoro percorrendo as galerias ar condicionado era o parto sem choro a dança sem corpo era a bailarina sobre pontas o suor proibido o cabelo contido, a dor disfarçada. Mas o barulho dos ônibus, britadeiras, o bafo quente do escapamento, subterrâneo repentino, estouro no bueiro, o rio ousa insistir alago-me num rio preto d’onde vim. Guarda-chuva a luta corporal ganha instrumento buzina, bala, cassetete e escudo.

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Era parar de olhos fechados e ouvir a esquina e não saber se verde, vermelho ou amarelo era a cor sem ordem era um passo descalço cinza, cinza, cinza eram máquinas de sirene eram golpes na espinha mas o pôr-do-sol e sabiás da madrugada o sexo do vizinho a lua encoberta o lixo o artigo definido: o homem a mulher.

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IV

segundo poema longo

Falou uma cascata e ficou imóvel pois que uma cascata não se fala e a noite ficou surda cega noite dia juntos eles dizem sim como se houvesse consenso dos órgãos revirados da boca amargada. Recolheu-se e grunhiu que uma fala não se diz o movimento não ralenta. Fez dos olhos uma tela preta: ouvido nariz boca

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todos os buracos do corpo são negros e sábios Falou em vento e não ventou pois quem fala não move. Sacudiu o corpo soltou os cabelos pisou devagar como quem pisca forte abriu-se em criança sorriu pois quem é não está.

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V

Longe a vista foge lugar nenhum poeta mudo.

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parte um Para quem onde sabe chego. Para onde, quem sabe, chego. Para quem chega e me parte. pág. 4 à 42

parte dois Para Stella, estrela que estala, que me iluminou com olhos de artista e se calou como um oráculo – pelo mistério. pág. 43 à 58

cinco poemas da noite pág. 59 à 67


conversa

“Se ele não se conhecer” – é a resposta do cego Tirésias a Liríope quando ela pergunta sobre o destino de seu filho: a condição para que ele se mantenha vivo, diz o oráculo, é essa. Porém Narciso não resistiu: encarou seu rosto no lago, hipnotizou-se por ele, e por isso se tornou para nós esse personagem que se apaixona pela própria imagem refletida na água, e que se condena a afogar-se em si mesmo. Eu conheci a Isabel quando trabalhei em um festival de dança, e por isso frequentei a oficina ministrada por ela: era uma dançarina. Sempre admirei as dançarinas como se fossem as pessoas mais bem resolvidas que existem. Depois encontrei a Isabel na universidade, porque acompanhei o curso de minha orientadora e a observei, da ponta da sala, assistindo às aulas: era uma estudante. Lembro até hoje de um dia em que a percebi chorando diante do texto que havia sido distribuído, e em silêncio guardei o seu choro comigo. Aí um dia Isabel me procurou perguntando se eu poderia ler o seu livro e, quem sabe, escrever algo a respeito: era uma poeta. Fiquei surpresa e contente quando chegaram nas minhas mãos os seus livros encadernados; Isabel já era muitas coisas e na verdade ainda não nos conhecíamos. Antes de começar a lê-la, pensei sobre isso: que engraçado ter encontrado Isabel nesses contextos tão diferentes, e ter conversado tão pouco ou quase nada com ela, e agora ter comigo essas palavras suas que ela disse ainda não ter mostrado para praticamente ninguém.


O erro da interpretação moderna de Narciso – como disse o autor que eu estudo e diante do qual vi Isabel chorar – é que nós nos fixamos na ideia da paixão que ele tem por si mesmo: como se o maior problema residisse no fato de que esse homem se deslumbrou com a própria beleza, hipnotizou-se pela autocontemplação. Mas não foi essa a condenação de Tirésias: o problema não era apaixonar-se por si, mas conhecer a si mesmo. E o que significa se conhecer? Narciso vê seu reflexo, a sua sombra: é por isso que se perde e afoga. Conhecer-se, nesse caso, quer dizer criar uma imagem de si e fixar-se nela. Tornar-se apenas si mesmo. Talvez seja essa fixidez da identidade aquilo que hoje chamamos de ego. Foi um privilégio ler os poemas da Isabel sem conhecê-la muito bem: através dos versos, eu compunha e decompunha uma pessoa sem contornos muito claros, que se formava e desmanchava em poucos instantes. E logo percebi que era mesmo essa a questão que as palavras debatiam: um ir e vir de fora para dentro de si, de dentro para fora, num movimento constante de tentativas de identificação e identidade que nunca conseguiam se concluir. Quantos eus cabem em Deus? Aos poucos, me dei conta de que a própria Isabel também não se conhece muito bem. Caibo perfeitamente em meu corpo/ e subitamente,/ num ardido grunhido,/ dele me descolo. Aquele homem perdido na frente do lago não coube em seu corpo, pois acreditou que uma sombra externa


na água era também ele; mas tampouco soube descolar-se de si, já que se prendeu na única coisa que passou a interessá-lo: a si mesmo. Morta de cansada de ser atravessada, Isabel é muitas coisas, mas nunca é Narciso: suas tentativas de penetrar-se e afastar-se me parecem, muito mais do que a vontade de se conhecer, o desejo de se espalhar pelo mundo, de ver o mundo desfazendo as imagens formadas de si para agarrar-se a outras que, logo depois, perdem-se também. Ela se perde e nos perdemos, e deve ser por causa disso que nós acabamos nos encontrando. Vejo e não vejo/ apagam-se contornos/ nos cachos do cabelo bagunçado/ gotejam comigo/ a serenidade da cidade,/ o que em mim,/ de mim/ serena. Deve ser também por isso que o seu livro, a que me apeguei como se fosse também uma pessoa que me acompanha e que vai se transformando à medida que passam os dias, se chama ramos: ele não é Isabel, nem procura ser, mas tem o seu sobrenome, que por acaso é essa palavra que cresce e se ramifica, sem nunca se tornar uma coisa só. Ramos são estruturas que, a partir de um eixo vertical, crescem horizontalmente para todos os lados, dividindo-se cada vez mais e ganhando mais folhas. Eu compondo com ela, o livro se desmancha em seus tantos espaços que abrem e fecham, e que nunca chegam a uma forma final: é um livro que enche junto com a Lua, porque não se conhece.


Poder se ser, sem ferir ninguém: penso na imagem que ficou, de Isabel chorando na frente do texto impresso na sala de aula da faculdade. Para mim ela é o contrário daquela de um homem vidrado em seu reflexo: parece antes uma mulher que se dissolve diante das palavras que lê, que vai com as lágrimas perdendo as partes do corpo numa dança entre os seres e tornando-se também texto no meio do mundo – tanto que virou livro. Leda Cartum é escritora, tradutora e roteirista. Publicou os livros As horas do dia – pequeno dicionário calendário, 7Letras (2012) e O porto, Iluminuras (2016). É mestre em literatura francesa pela USP.


Isabel Ramos Monteiro nasceu em São Paulo em 1984. Viveu no interior paulista, nas cidades de São José do Rio Preto e Campinas até 2008. Formada em dança pela Unicamp atua em grupos de dança contemporânea. Formou-se em letras na Universidade de São Paulo em 2016. Ramos é seu primeiro livro.

título

Ramos

ISBN

978 85 922095 2 0

edição revisão projeto gráfico

Júlia Rocha João Reynaldo e Sílvia Rocha Estúdio Rubi

tiragem

140 exemplares

e.seloeditora@gmail.com É selo de língua – solta. São Paulo 2017



solta

ISBN 978-85-922095-2-0

Amor, uma dorzinha me atravessa o peito e ĂŠ sempre vocĂŞ na fissura.


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