A educação na telinha. Profissão mestre, São Paulo, v.16, n.185, p.26-30, fev./2015.

Page 1


Hugo Barreto, secretário-geral do Fundação Roberto Marinho, falo do importância do televisão no educação brasileiro

, de conhecimento geral que a televisão ocupa lugar importante na preferência dos brasileiros. É o segundo eletrodoméstico mais presente nas casas do Brasil, fazendo parte de 95% dos lares, segundo dados do Censo 2010 do

E

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por ser tão popular, a TV também está presente no processo ensino-aprendizagem. O maior destaque nessa área é o Telecurso, iniciativa da Fundação Roberto Marinho existente desde 1978. No Salamundo

2013, o secretário-geral da fundação, Hugo Barrete, palestrou sobre o programa e a importância da televisão na história da educação. Na oportunidade, ele conversou com a Profissão Mestre sobre o tema. Confira a entrevista a seguir. Profissão Mestre fell0reiro 2015


Profissõo Mestre: A televisõo é uma dos mídias de maior alcance no Srasil. Qual é o suo importância no educa~õo? Hugo Sarreto: Em um país com

"Nosso programa, de certa maneira, oferece acesso ao nível de excelência educacional brasileira"

uma escala tão grande de território, com locais tão disperses. a possibilidade de a televisão ser uma parceira da educação me parece não apenas um caminho óbvio, como obrigatório. Quando analisamos a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, observamos que o televisor é o segundo eletrodoméstico mais presente nos lares brasileiros. O primeiro é o fogão e o terceiro, por incrível que pareça, é o refrigerador, apesar de sermos um país tropical. Esse é outro indicador da presença da televisão e do modelo de TV aberta, livre e gratuita que o país adotou há muitas décadas, desde a origem da televisão no Brasil. Profissõo Mestre: E qual é o papel desempenhado pelo Te/ecurso nesse cenário? Sarreto: Trata-se de uma ofer-

ta do conteúdo curricular formal pela televisão, baseada na reforma da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nos anos de 1970, a qual passou a oferecer possibilidades de ensino por correspondência, rádio ou televisão. Portanto, o Telecurso se inicia, naquele momento, como uma oferta de ensino livre, de manhã cedo, para que aqueles que fossem tentar retomar os estudos naquela modalidade de suplência pudessem ter mais chances de sucesso, conforme algumas premissas de se utilizar o potencial da televisão para alcançar o aluno esteja ele em casa ou até mesmo em sala de aula -, visto que algumas escolas já pegavam o sinal

de TV e o inseriram, em alguns casos, na própria unidade. A televisão virou quase uma janela para o mundo real, o cotidiano e o contexto do mercado de trabalho. O Telecurso foi assim por algumas edições até que, em 1995, começamos a perceber e receber uma demanda dos sistemas públicos para o programa "aterrissar", por assim dizer, na sala de aula - ou seja, deixar de ser um programa de educação a distância, como ele era até então, e se tornar uma metodologia de ensino para os sistemas públicos. Com o Telecurso 2000, em 1995, criamos uma metodologia que denominamos de metodologia telessala. na qual o Telecurso se constitui não apenas como material institucional de vídeos e materiais impressos, mas algo que se articula na lógica de uso em sala de aula, com a presença do professor, pressupondo que ele, com seus alunos, seja um animador do processo de aprendizagem, em que incorpora as diferentes experiências dos alunos como uma base de construção desse conhecimento coletivo. Profissõo Mestre: Como é feito o produ~õo do Te/ecurso? Sarreto: A diferença está no de-

senvolvimento dos conteúdos curriculares das aulas das várias disciplinas. Elas são elaboradas por núcleos de excelência de diferentes universidades brasileiras: a Física do ensino médio é desenvolvida pelo Departamento de Física da Universidade de São Paulo (USP), do professor Ernesto Hamburguer; a Química também é da USP, com a professora Reiko Isuyama; Biologia é com o professor Nélio Bizzo. na época do Departamento de Biologia da USP; Matemática é com o Departamento de Matemática da


ENTREVISTA

PUC-Rio [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro], que ajudou a criar o curso todo; História é com a UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], que tem um núcleo muito forte dedicado à História no Brasil. O Telecurso acaba oferecendo ao professor uma possibilidade de extinguir aquela imagem de detentor do saber, de dominar tudo em todas as disciplinas, para ele se focar em sua missão, que é a de construir a aprendizagem dos alunos em sala de aula. O Telecurso, portanto, passa a se articular com ele por meio dos vídeos e dos materiais impressos. É aí que o programa se expande de maneira vertiginosa, como uma metodologia educacional de sala de aula, mas com a mediação tecnológica da televisão. Ou seja, a televisão continua presente, mas ela está na sala de aula como um elemento importante desse processo. A aula com a metodologia do Telecurso começa com o grupo de alunos assistindo a um vídeo de 15 minutos, extremamente contextualizado, no qual os conteúdos são aplicados em situações de vida ou de mercado de trabalho. Buscamos quebrar também a fragmentação do currículo, trabalhando mais uma forma transcultural entre todas as disciplinas e com base na vivência do aluno. Um dos slogans do Telecurso é "dando oportunidades iguais a quem a vida deu caminhos diferentes". Essa é uma dimensão muito importante, pois é com essa perspectiva que o Telecurso foi desenvolvido pelas universidades que representam a elite do universo educacional brasileiro, mas quem o utiliza [o curso] é a base da pirâmide, os alunos problemáticos, com dificuldades, desatendidos.

As escolas muitas vezes são estruturadas sem saber como lidar com esse universo de jovens, que é muito relevante, o que acaba sendo quase um paradoxo: no Brasil, muito se fala sobre a democratização do acesso físico [às escolas], e o nosso programa, de certa maneira, oferece acesso ao nível de excelência educacional brasileira que talvez esse contingente mais carente jamais chegasse a ter. Isso é muito interessante como modelo. Profissão Mestre: O senhor pode citar casos em que a televisão tenha contribuído para a melhoria do desempenho dos alunos? Sarreto: Há alguns cases. No es-

tado do Acre, nos períodos dos governadores Jorge Viana [1999 a 2007] e Binho Marques [2007 a 2011] - o qual foi secretário de Educação do Jorge -, nosso programa ajudou a corrigir a defasagem [dos alunos]. Nós tínhamos 6,3 de cada 10 alunos do estado com pelo menos dois ou três anos de retardo, de repetência. Tínhamos também escolas muito seriadas, sem professores que pudessem dar conta de mais de uma série, o que criava uma dispersão: cada escola cuidava de algumas séries, e os alunos tinham que se locomover [para outras escolas para completar os estudos]. Hoje (depois de alguns anos com o Telecurso) a taxa de defasagem idade-série no estado caiu de 6,3 para 3 alunos, e na capital e em seus núcleos urbanos caiu para 2,2. Isso foi muito bom. Eu lembro que o governador Jorge me ligou e disse: "Nossa, Hugo. o nosso programa aqui no estado é voltado para esse aluno que tem dificuldade; no entanto, os alunos que es-

tão na idade adequada também querem ingressar, porque eles não têm alguns dos materiais que vocês disponibilizam pela televisão, que são muito originais". Ou seja, o aluno, mesmo tendo um professor ótimo, não tem aquela janela de olhar para o mundo, olhar para a geografia e a história de outros países, com imagens e material sofisticado, e tudo articulado por esses professores que desenvolveram os cursos com outros profissionais de comunicação. Profissão Mestre: O que o senhor destaca na história do programa? Sarreto: Os primeiros programas

foram feitos por Sílvio de Abreu. que hoje é um autor famoso de novelas, Carlos Lombardi ete. O Fernando Meirelles, diretor do filme Cidade de Deus, foi responsável, com os educadores, por toda a criação do Telecurso 2000, na parte relativa à televisão. O Telecurso acaba sendo um celeiro para profissionais de telecomunicação e educadores, que já têm vasta e larga experiência, mas acabam mudando sua visão de mundo a partir do curso. Outro fato que me chama a atenção é que o uso da educação a distância e esse tipo de linguagem estão no universo da formação de terceiro grau, mas não no Brasil. Acabamos usando isso na educação básica por causa dessas características, dessa relação com a televisão que o Brasil tem. Só outro país, o México, que eu saiba, tem experiência parecida com a brasileira, chamada de Telesecundaria, de dimensões importantes e que alcança o país inteiro, a qual foca a educação básica, não o ensino superior. ProfiSsõo Mestre fevereiro

20 15


Profissão Mestre: Como essa experiência da televisão em sala de aula pode ajudar o professor que hoje se vê com a internet tão presente no ambiente escolar? Barreto: Devemos olhar para o

"Devemos olhar para o aluno e vê-Io como um portador de um repertório, de um conhecimento"

aluno e vê-lo como um portador de um repertório, de um conhecimento. Não existe mais a possibilidade daqueles que sabem e não sabem, em um processo hierárquico da qualidade do saber. Claudio de Moura Castro falou [no Salamundo] de cada um aprender fazendo e errando. Ao se compreender isso, a internet é um ambiente de articulação e mobilização desse jovem, desse aluno, no sentido de estabelecer formas colaborativas de trabalho. A própria internet - e até mesmo a televisão -, no início, eram unidirecionais. Hoje há uma mudança de paradigma na internet e até mesmo em cursos como o Telecurso, em que há a mediação tecnológica. Existe um modelo muito relacíonal, no qual o professor, sabendo lidar com isso, amplia sua perspectiva de conhecer e reconhecer sua clientela e entender suas questões, seu repertório, seu vocabulário e seu modo de estar no mundo. Profissão Mestre: Quais são os próximos passos para a educa~ão mediada pela televisão, considerando-se a questão de que não é mais uma comunica~ão unidirecional? Sarreto: O Telecurso já tem núme-

ros expressivos e formou seis milhões de brasileiros de 1995 até aqui, possibilitando que eles retomassem os estudos. O desafio é radicalizar ainda mais um princípio do próprio programa, que é o de romper as paredes da escola e os limites do calendário pa-

ra os processos de estudo. Essa ruptura da relação espaço-tempo foi fundamental. Agora, aliás, essa ruptura é ainda maior, porque não se tem mais um modelo sequencial, com certa hierarquia no processo. A internet cria essa coisa mais ubíqua e desordenada, a qual estamos tentando entender e compreender. Estamos conversando com a Fundação Lemann e a Khan Academy para tentar uma acoplagem dos conteúdos do Telecurso com o que eles estão fazendo. Estamos conversando também com outros parceiros na área da internet. O grande desafio é encontrar modelos nem tão seriados, nem tão fechados em si mesmos. Estamos em uma fase em que já temos todos os conteúdos na internet. O canal do Telecurso no YouTube tem 5 milhões de visualizações. Há até um canal "pirata", com mais de 20 milhões de visualizações (pois está na plataforma há mais tempo do que nós), do qual tiramos a marca, mas deixamos o conteúdo, pois achamos bom que ele esteja sendo distribuído. Estamos também na Globo.com com um canal de educação e na biblioteca virtual da USP, em que estão todos os conteúdos do Telecurso. Ou seja, a disponibilização já existe, mas é pouco ainda. As plataformas de utilização e articulação em ambientes virtuais, muitas vezes dedicadas a projetos pedagógicos específicos, são o que nós estamos mais interessados em buscar e desenvolver nesse momento .•


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.