Bateira «ilhava»

Page 1

«ilhava» A bateira lagunar com que os «ilhos» escreveram «história»


A bateira ílhava1

Sob o ponto de vista histórico, a ílhava – também apelidada de ilho – foi a embarcação que serviu ao pescador de Ílhavo para satisfazer uma irrequietude sôfrega. A de dar resposta a um desassossego permanente, numa ânsia de aventura em procura de locais onde pudesse fainar no mar, já que a laguna – a circunstância destas gentes diferentes – a partir de certa altura já pouco lhe poderia proporcionar. A partir de meados do século XVIII2, a contaminação das águas advinda da deficiente comunicação da laguna com o mar impedindo a sua renovação, trouxe como consequência, não só o desaparecimento da fauna piscícola, como a interrupção da produção salina. Que eram até ali – conjuntamente com o bacalhau – as maiores fontes de onde provinha o sustento das gentes de uma região que teimava em afirmar-se no panorama económico-social do país. Num curto período subverteram-se e ensombraram-se todas as promessas que o período áureo do Séc. XV (e princípio do Séc. XVI) parecia conter em que a prosperidade alcançada excedeu todo o sonho que ao princípio era lícito esperar de um panorama geográfico à partida tão inóspito e desinteressante. Perante a situação generalizada de penúria que se fez sentir em meados de setecentos, a que acrescia o espectro da morte provindo das pestilências que o inquinamento das 1

Este texto é o Capítulo 4, revisto e aumentado, do livro de Senos da Fonseca, Embarcações que Tiveram Berço na Laguna, publicado pela Papiro Editora, em 2011. 2

Rocha e Cunha (1939) define mesmo a data de 1750 para o início da grande crise.


águas3 provocava4, e se teria abatido com brutalidade inusitada sobre as populações indefesas, foi tempo de migrar em procura de desafios mais recompensadores ainda que mais arriscados. Num primeiro impulso saltaram da laguna com a ílhava abandonando a pesca interior e ou a apanha do moliço, e trouxeram-na para a borda do mar, varando-a no areal que estava ali (mais) à mão – em S. Jacinto –, perto da Senhora das Areias. Nessa primeira investida meteram-lhe a bordo a arte do chinchorro5, já então conhecida e praticada nas águas interiores. Tratava-se de uma técnica piscatória de cerco e arrasto que vinha de longe no tempo, e mostrara ser uma das mais aptas para a apanha generalizada das espécies lagunares. Mas cedo se constatou que o chinchorro na borda do mar não tinha dimensão que permitisse fazer o lanço lá mais para fora, nos longes, em águas onde o mar parecia coalhado de uma espécie – a sardinha6 – que se viria a tornar um dos principais elementos da dieta alimentar das camadas economicamente mais débeis do país.

Fig. 1 – Os bateirões na borda do mar

São conhecidas desde 1600 notícias7 de que, pelo menos os ovarinos, já pescavam na borda do mar alando o chinchorro atado à cinta, sendo referenciadas companhas rudimentares constituídas por mais de 200 pescadores para esse desígnio. 3

Luís Cipriano (pai de José Estêvão) escreveria: “ (…) remover a estagnação que entretendo a humidade e fornecendo eflúvios deletérios na origem da insalubridade (…) fez morrer um considerável número de humanos”. 4

Ferreira Neves referindo as “Memórias Sobre a Vila de Aveiro, 1687” de Cristóvão Pinho Queimado, transcreve: “esta villa padece o achaque das maleitas que na quadra da primavera e o Outono, fazem adoecer muita gente e em alguns anos morrem muitas pessoas, o que é atribuído às águas encharcadas (…) que produzem exalações nocivas” (1937: 99). 5

Chinchorro – ver Lopes, 1975: 217.

6

No séc. XIV o clima da Europa sentiu uma mudança radical. Se os terrenos cultiváveis se reduziram a um terço pela impraticabilidade de os trabalhar, no mar verificaram-se migrações das espécies em procura de águas mais quentes. Terá sido esse esfriamento das águas dos mares do norte que conduziriam a sardinha até latitudes tão baixas, no caso o litoral atlântico português, séculos depois (XV/XVI). 7

Desde o Séc. XVII que se fala das companhas de chinchorros na zona de S. Jacinto/Espinho (Pe. Aires Amorim, 1999:21).


Desde logo esta faina na beira-mar se deparou com um problema que foi, necessário e urgente, resolver. A utilização de bateiras (muito embora de dimensão apreciável) levantava toda uma série de limitações que o incremento deste tipo de pesca, na beiramar, vinha pôr a nu: – as embarcações usadas não reuniam as condições ideais (segurança e capacidade) para um desempenho eficaz. Com elas, o dar o lanço, só poderia ser praticado quando o mar estivesse sossegado 8, aquietado, mansarrão, o que restringia a intensidade da faina. A quantidade de peixe recolhido com estas artes reduzidas estava longe das potencialidades que se anteviam perante os cardumes que povoavam o mar. Na costa de S. Jacinto, datam de 17559, as referências às primeiras companhas ali fixadas10. Tudo leva a supor que teriam utilizado, já então, um outro tipo de embarcação, entretanto criado e aqui desenvolvido – o meia-lua –, embarcação com uma forma singular que abordámos no citado livro Embarcações que Tiveram Berço na Laguna, Capítulo 6. p. 177. Perante estas indiciações, e não havendo prova documental que o prove em absoluto, somos levados a concluir que a utilização da ílhava com o chinchorro – uma arte menor – teria sido certamente anterior à data atrás referida11, em que se teria consumado o aparecimento do, por muitos designado – em nosso entender não rigorosamente –, barco da xávega. Depressa teriam os pescadores da borda concluído que o bateirão de mar não respondia eficazmente às exigências de uma pesca intensiva. Este tipo de embarcação só se poderia fazer ao mar em condições muito especiais, quando não se verificasse quebra (pancada) da vaga, significativa, de modo a permitir lançar as redes nas águas, entre a rebentação e o mar12. Estas eram redes varredouras13 que seriam de reduzida dimensão para pesca, à borda, num tempo em que só o trabalho braçal era utilizado para sua recolha. Antecipando em muito, o momento em que se passou a usar a tracção animal – o que viria a acontecer na Companha de Manuel Firmino, na Costa de S. Jacinto, em 188714. Mas se ali, na borda, os atributos das bateiras não eram os ideais, cedo se descortinou que com uma derivação inspirada nas suas linhas, embora reduzindo-lhe as suas dimensões, o Douro15 oferecia, sazonalmente, as safras do sável e da lampreia. E aí, as bateiras lagunares tinham as características certas para cabal desempenho do pretendido. Era apenas coisa de mudar para lá as mesmas, levando tralhas e fatico, suficientes, para

8

Sousa, João Leite, vigário de Ovar, em 30 de Abril de 1758 dá-nos conta dessa dificuldade.

9

Ver Fonseca, Senos da, Capítulo 6, o Barco do Mar, do livro Embarcações que Tiveram Berço na Laguna, 2011:177. 10

Ver Fonseca, 2007: 242.

11

D. João Frederico Teixeira de Pinto (1959) refere que “no ano de 1600 já os pescadores andavam constituindo como agora em companhas, com os seus capelães, com a diferença de pescarem com as artes pequenas a que se chamavam chinchorros” (ver Oliveira, 2004). 12

A palavra mar tinha aqui um significado de águas depois da rebentação.

13

Artes que percorriam com o saco o fundo arenoso, puxadas para terra, pelos càlões das mangas.

14

A companha de Manuel Firmino resultou da fusão das companhas a Enxada e a Canária, que teriam ficado em S. Jacinto (ver Fonseca, 2009: 39). 15

Rezende, 1944:195.


a safra. Deslocaram-nas desde logo para a Afurada16 onde se fixavam durante as épocas de pesca, aí constituindo colónias de dimensão assinalável, profusamente referenciadas ao longo dos séculos XVIII e XIX.

Fig. 2 – Postal ilustrado de ílhavas e chinchorras17 na Afurada

Teria sido dessa sua fixação na referida zona, e da sua utilização na captura do sável, que adviria a confusão de, muitas vezes, a ílhava ter sido identificada com a designação de saveiro18, hábito que mais tarde se estendeu a outras embarcações, como foi o caso do saveiro19 (meia-lua), da Caparica, que pescava na borda do mar. Tomando outros rumos, desta vez para sul, para mais longe, os ílhavos da laguna levaram a sua bateira, instrumento precioso de trabalho, para a beira da embocadura do Tejo20 onde assentaram arraiais, muitas das vezes acompanhados pelas famílias que assim participaram, elas também, nessa aventura migratória a que já se designou como a diáspora dos ílhavos, e que nós julgamos mais correcto designar por diáspora das gentes da laguna. Chegados logo se dispersaram pelas praias ribeirinhas onde vieram a constituir singulares colónias, deixando um referencial no cardápio das actividades piscatória centradas naquele rio, capítulo importante com direito a página própria no historial das actividades Tejo, tamanha foi a sua dimensão identitária e tão significativa se veio a mostrar a sua influência sobre os restantes comparsas.

16

Em 1725 e 1759 pescavam sáveis e lampreias, no rio Douro e sua foz, 262 indivíduos. (Amorim, Inês, 1997: 506). 17

Chinchorra foi, também, a designação dada a uma das bateiras lagunares, com comprimento que atinge os 9 m, que por utilizarem essa arte, dela tomaram o nome. 18

Saveiro foi designação generalizada dada às embarcações de bicas curvas, e fundo plano.

19

Lopes, 1975: 148.

20

Ver Fonseca, Senos da, Capítulo 7, o Varino, do livro Embarcações que Tiveram Berço na Laguna, 2011:203.


Fig. 3 – Gentes da laguna na faina em Peniche (inícios séc. XX)21

Ali chegados, embarcaram na ílhava a rede da tarrafa22. Tratava-se de uma arte de pesca utilizada por uma parelha de embarcações que varria, à superfície, o cardume da sardinha, recolhida para uma delas. Com a referida arte conseguiam-se assinaláveis e copiosas capturas, tornando possível o acesso da sardinha a todos os bolsos, mesmo das populações de menores recursos. E dada a boa resposta da espécie ao suporte da salga, suportando períodos longos de conservação, a sardinha viria a tornar-se hábito alimentar por excelência, da dieta alimentar das camadas populares, chegando ao interior do país para onde era conduzida pelos mercantis23, num historial preenchido por uma infindável série de malhadinhas, tep-tep com os seus burricos por caminhos excomungados, roçando os pedregulhos, cruzando riachos atrevidos, em recovagem nocturna para que de manhã, ao canto da cotovia, mesmo antes do sol se alevantar para correr com o negrume da noite, a bela e gorda sardinha da nossa costa se apresentasse às gentes da serrania augadas da iguaria.

Fig. 4 – Parelha de ílhavas na tarrafa24

21

Fotografia extraída do livro de Rocha Peixoto (1990).

22

Tarrafa: ver Castello Branco, 1981: 124.

23

Mercantis eram negociantes de peixe que o enviavam para o interior do País, utilizando para o efeito o serviço dos almocreves. 24

Imagem extraída do livro de Castello Branco, 1981: 41.


Os ílhavos chegados a Belém, e ou a Paço d’Arcos, cedo se estenderam pelos espraiados que iam até Cascais.

Fig. 5 – Fotografia do fotógrafo real, Joaquim N. Possidónio da Silva, em 186225CPF

De princípios do séc. XX, conseguimos este postal picotado do Aquário Vasco da Gama, em Algés-Dafundo, recolhido no Google. Imagem que lança alguma confusão, que mistura um pouco os dados referentes a esta embarcação. Apelida o modelo de barco moliceiro da região de Aveiro, arma-o com um sarilho, à proa, o que faz supor que poderia «andar ao berbigão» … mas, do que não temos dúvida é que a estrutura do modelo é de uma bateira ílhava.

25

Fotografia extraída da Revista Especial. Sábado, de aniversário, nº 470, de 2 a 8 de Maio de 2013.


Fig. 6 – Bilhete postal (início do séc. XX) relativo ao Aquário Vasco da Gama

E saltando para a outra banda, fixaram-se na Trafaria. Em todos estes locais edificaram agregados piscatórios (colónias) de apreciável dimensão, muito característicos nos usos e costumes, trancados à aculturação com o exterior. Esta singular preservação de usos, trajes, falas e costumes, foi característica e especificidade mantidas pelo longo período de quase dois séculos, em que varinos26 daqui saídos e seus descendentes27, permaneceram por aquelas bandas.

. Fig. 7 – Postal ilustrado de ílhavos no Tejo

1. Chegada ao Tejo

Em 1770 os ílhavos já tinham construído uma capela na Costa da Caparica, edificada como habitualmente, em tábuas e colmo 28. Sendo referida a chegada dos mestres Joaquim Pedro e José Rapaz, os demiurgos do povoamento daquela praia. Facto reconhecido pela Câmara de Almada que viria a atribuir a duas ruas da localidade os seus nomes. Em 1870 haveria já 307 famílias ali instaladas, a grande maioria idas da laguna. No processo movido pela Inquisição, a Filinto Elísio, iniciado em 1778, pode ler-se ser este notável poeta29 filho de um casal de pescadores30, ido de Ílhavo. Daqui se pode concluir, sem margens para qualquer dúvida, que em meados do século XVIII já essas gentes se tinham fixado por aquelas bandas. Esta referência documental, se outras não 26

Varino era a identificação pela qual se conheciam as gentes idas da laguna, de singular vivência mesmo quando deslocadas, perfeitamente distinguíveis, na fala e no trajo. Ver Fonseca, Senos da, Capítulo 7, o Varino, do livro já citado, 2011:201. 27

Uma característica destas gentes era a enorme prole que geravam: “um a mamar e outro já no ventre”.

28

Arcos,1972.

29

Filinto Elísio (Pe. Francisco Manuel do Nascimento) foi um notável poeta – um dos maiores poetas do séc. XVII na opinião de Alexandre Sanè, um verdadeiro renovador da língua portuguesa – que teve de se exilar em Paris perseguido pela Inquisição, depois da Viradeira (queda do Marquês de Pombal). 30

Filinto era filho de Manuel Simões, fragateiro real e da pescadeira Maria Manuel, naturais de Ílhavo.


houvesse, desde logo nos elucida sobre a presença daquelas gentes no Tejo, e do seu inseparável instrumento de trabalho – a ílhava – num período longínquo da história, coincidente com o período de penúria lagunar em que se verificou, praticamente, o desaparecimento de toda a vida (piscícola e salífera) em que até ali aquela era pródiga. Mas certo é que existem muitas outras referências. Por exemplo, Baldaque da Silva 31 no seu livro Estado Actual das Pescas em Portugal, escrito em 1891, salientava que “no século passado” – portanto séc. XVIII – a emigração de gentes da laguna de Aveiro para Lisboa, “era já consistente”. Do terramoto de 1755 são referidos trabalharem nessa data, em Lisboa, 200 pescadores da laguna, sendo certo de que haveria notícias de que “nenhum teria morrido no infausto acontecimento”. Uma “guerra” entre varinos e pescadores de Alverca e Alhandra, em 1819, teria merecido do rei D. João VI a ordenança para apreensão, aos prevaricadores, das suas redes, “quando aqueles entrassem na barra do Tejo”32. De 1833 pode consultar-se o registo de, no Tejo, se encontrarem a pescar no saveiro Rio Tejo, na referida data, os ílhavos Francisco Bichão e Joaquim Fernandes Matias 33. Em 1855 escrevia-se34 que muitos ilhavenses, murtoseiros e vareiros, “tinham tido uma safra abundante” em Lisboa e, por isso, se anunciava que no referido ano “vêm para Ílhavo, Murtosa e Ovar, muitos contos de réis”. Por estas e outras razões (inseridas com mais prolixidade no Capítulo 7 do citado livro), poderemos fixar os meados do referido séc. XVIII como data provável para a chegada dos ílhavos ao Tejo. A partir daí verificar-se-ia um notável crescimento das colónias então constituídas, que se reforçaram durante o séc. XIX, por lá se mantendo (em número assinalável) até à primeira/segunda década do séc. XX. Altura em que o desafio da pesca nos mares do Norte, de novo, os veio inquietar, lançando-lhes irrecusável repto, altieiro. Para uma significativa parte dos migrantes a ida para Lisboa era sazonal. Deslocavamse na devida altura, no Outono, depois de terminada a safra na beira-mar, chamados pelos contratantes, os mercantis. Eram estes que adiantavam a soldada e lhes facilitavam telhado e sustento. Apresentavam-se em data combinada em Lisboa, para isso seguindo a pé pela beira-mar, que era o caminho mais curto, mas e também, o mais seguro. A temporada terminava depois do Entrudo. Dependendo do resultado da pesca, o que sobrava depois de reembolsado o abonador das despesas, era dividido em quinhões. O arrais era o responsável, e, por isso, quando a sorte era arredia, por lá ficavam de penhor a embarcação e as artes. Muitos pescadores optavam, então, por restar por aquelas bandas – principalmente se a safra não tivesse sido farta – embarcando noutras companhas. Uns aproveitavam a safra do sável; outros empregavam-se no tráfego marítimo local. E assim foram surgindo as colónias de ílhavos, gente endurenta, de trabalho e sacrifício, afoutada, em que a rudeza dos gestos e palavras contrastava com a agilidade felina dos corpos fluidos.

31

Silva, 1891.

32

Amorim, 1970: 94.

33

Arquivo Geral da Marinha, exemplar nº 718, citado por Aires Amorim.

34

Amorim, 1970.


“Filhos da onda, gentes de energia sem limites, obstinados no olhar desafiador às profundezas do mar que os parecia endrominar” num chamamento patético em batidela continuada à aldraba da porta descaída do seu palheirito de abrigo, sortilégio inquietado.

Fig. 8 – Palheiros típicos da gente da borda

Em alguns casos levavam consigo a família, entregando às mulheres a escolha e venda do peixe capturado. Uma vez sedimentados na beirada ribeirinha, constituíam grupos muito avessos a influências, misturas, e ou a hábitos, e costumes, estranhos. Estes agregados, verdadeiras colónias de deslocados, faziam alarde de uma cultura específica, peculiar e muito singular, muito diferente da dos grupos circundantes acolhedores, com os quais, verdadeiramente se não integravam, de todo. Muitos dos seus filhos, já nascidos pelas freguesias ribeirinhas lisboetas, foram registados na freguesia de Santa Maria de Belém, Algés, Pedrouços, e em outras (Vila Franca, Oeiras, etc.), pela impraticabilidade de virem à terra mãe fazê-lo, pois era tradição, cumprida por muitos daqueles migrantes, virem apenas a Ílhavo, uma vez por ano, precisamente por altura da festa erecta ao orago S. Pedro (no mês de Junho de cada ano), padroeiro do pescador da borda, “olheiro” que os seguiu litoral abaixo. Que era o primeiro símbolo a assinalar a chegada destas gentes, pois mal arribados logo se apressavam a erguer-lhe altar para o colocar aonde compareciam, diariamente, ainda o sol não despertara, para recolhida veneração. Eram “templos” muito toscos e simples, barraquitos escorreitos de tabuado encostado por cujas frinchas entrava e assobiava o vento, quando indisposto, tão só resguardo bastante para acolher o orago – que se queria recolhido mas não alheado dos temporais que se faziam sentir no exterior. A sua dimensão importava pouco já que a fé daquelas gentes manifestava-se mais no mar aberto, olhos e preces postos no céu – que entre paredes de desobriga 35. Certo é não se ficaram por perto da barra do rio, pois logo nele se embrenharam, subindo-o à procura de novos pousios, locais adequados para a safra do sável, espécie piscícola muito apreciada que por isso justificava empenho no emprego de novas artes. Porque embora pescado também na borda do mar, era de melhor qualidade quando capturado no interior dos rios, na época da desova. Assim, há notícia de colónias fixadas lá para os lados da ribeira da Azambuja, pescando nos baixios postos a descoberto pelas 35

Fonseca, 2007: 295.


marés. E indo mais a montante atingiriam Vila Franca de Xira em 1825, tendo por ali deixado marcas indisfarçáveis (nos costumes e nos registos) da sua presença. De que é exemplo a Rua dos Varinos. Mas e também no legado de técnicas da construção de embarcações fluviais, facilmente identificáveis nas formas das ainda hoje usadas pelos derradeiros avieiros36, últimos “borda d’água” que ainda espalham as suas artes de pesca pelos canais do Tejo, na região de Vila Franca. Em 1880 Baldaque da Silva 37 afirmava (já) a presença de 30 ílhavas a pescar na embocadura do Tejo, embarcando 450 tripulantes, representando colónias de mais 2.000 habitantes. Número significativo, se tivermos em conta a densidade demográfica (activa) da sua região de origem.

Fig. 9 – Avieiro

2. A ílhava, embarcação dos sécs. XVII/XVIII ao séc. XX

Não existe nenhum exemplar da ílhava que tenha resistido ao tempo. Nem existem registos que permitam, com total segurança, fazer a sua reconstituição. De uma maneira mais ou menos correcta, ultimamente, têm sido feitos esforços, que justificam referência e registo. Existe no Museu de Marinha, na “Colecção Seixas”, um modelo de um barco ílhavo cujo plano pertence ao desenhador e modelista, Luís António Marques, que fez parte da oficina de H. M. Seixas, de 1926 a 1948, tendo trabalhado no referido museu, até à morte, pelos anos 90 do século passado. Imagina-se que terá tido oportunidade de ter observado uma das últimas ílhavas deixadas pelo Tejo. Com base nos mesmos planos, o Capitão Marques da Siva produziu um modelo, na escala de 1/25, para a

36

Gentes da praia de Vieira de Leiria que no início do séc. XX se fixaram no rio Tejo.

37

Silva, 1891: 132.


Exposição Diáspora dos ílhavos, em Agosto de 2007, de muito interesse e fidedignidade38.

Fig. 10 – Modelo executado pelo Capitão Marques da Silva

No modelo, por nós assumido, baseámo-nos no seguinte material informativo: 1- Documentos fotográficos (figs.7 e 11), escolhidos entre vários, como aqueles que melhor mostram a embarcação de perfil.

Fig. 11 – Bateiras ílhavas varadas em Cascais. (Colecção Seixas)

É este, em nossa opinião, o documento de onde melhor se podem retirar os pormenores que ajudam a definir, com algum rigor, as suas formas geométricas. Pelo menos, de um modo muito aproximado. 2- Outras informações – talvez as mais elucidativas 39 – sobre este tipo de barco podem ser recolhidas em Manuel de Castello Branco 40 que fala das “embarcações que todos os anos vinham daquelas paragens – da região de Aveiro – fazer temporadas de pesca nas águas de Cascais”. 38

O autor tinha também mandado construir um modelo, na escala 1/27 (fig.19). As diferenças maiores entre estas versões foram comentadas em http://teralampada.blogspot.com/ do dia 12.08.2007. Eventualmente, conforme os construtores, não terá havido duas ílhavas perfeitamente iguais e terão sofrido algumas evoluções, com o decorrer dos anos. 39

De meu pai recebi toda uma quantidade de informação sobre o hábito de meu avô alugar uma ílhava para ir com a família ao S. Paio. A sua descrição sobre o tipo de barco foi perfeita, elucidativa. 40

Branco, 1981: 41-42.


Fig. 12 – ílhavos no Tejo

Verificamos – sem margem para dúvida, se ainda a tivéssemos – que a embarcação é idêntica às das fotografias anteriormente reproduzidas. Esta embarcação era movimentada:

Fig. 13 – Disposição da tripulação na ílhava

– Ora por dois remos a que davam braço seis homens, em cada um: três remadores de pé, ao punho, virados para vante a jeito de empurrar; e três, também à proa, virados para ré a alarem pelo cambão (cabo que para o efeito anda amarrado ao punho do remo). – Ora através de uma vela de pendão41, amurada no mastro ou à borda42. O mastro, ligeiramente inclinado a ré, ajustado na pia da coicia, encostava a uma reentrância do traste, apertado com galindréu. Esta vela de pendão teria sido, 41

Este tipo de vela quadrada vinha de tempos remotos e teria sido usada, provavelmente, nas embarcações chinesas. Tratava-se de uma vela que veio substituir os remos, envergada por meio de invergues de uma só volta, numa verga cruzada horizontalmente, de bombordo a estibordo, com as escotas presas à amura e a adriça (que a levantava) à bancada. 42

As velas de pendão amuravam ora à proa; ao mastro; ou à borda, de acordo com os ventos dominantes.


admitimos, a precursora da vela de amurar à proa com bolinão, utilizada já em fins de oitocentos, pelos moliceiros43.

Fig. 14 – ílhava, no transporte, navegando à vela e a remos

A ílhava era tripulada pelos já referidos remeiros (doze), embarcando mais três homens (e o arrais) para a rede, num total de quinze/dezasseis tripulantes.

Fig. 15 – ílhava a remos 44(gravura de Castello Branco)

Fig. 16 – ílhava, no carreto, navegando à vela na Ria de Aveiro45

43

A vela do moliceiro foi desenvolvida tendo por missão permitir excelentes condições de bolina, em ventos fortes. 44

Note-se o remo ao cambão e a disposição da tripulação, no total de quinze.

45

Nota-se a evolução da vela, que nesta embarcação amura (já) à proa, e calca ao pé do mastro.


Fig. 17 – Supostamente, à esquerda, uma ílhava na Ria de Aveiro (Postal cedido por PHC)

Fig. 18 – ílhava preparando-se para a faina46

Em 1890 uma bateira deste tipo custaria 20$000 réis. Em Ílhavo o preço indicado, em 1864, para uma bateira de mar era de 15$000 réis. Destas informações, elaborámos a reprodução à escala desta embarcação de largo historial, para uma eventual recuperação museológica. Toda negra embreada a pez negro, ela foi o instrumento da diáspora dos ílhavos fora de portas, – na grande safra no Tejo. Tomámos como base as dimensões principais, que Castello Branco nos indica:

46

Comprimento

---------------

13,75 m

Boca

---------------

2,50 m

Pontal

---------------

0,60 m

Remos

----------------

2

Cor

----------------

preta

Notar o aumento do pontal por intermédio de uma falca (fixa).


3. Sugest천es recolhidas do modelo


Fig. 19 – Modelo de ílhava à escala 1/27

A visualização material do modelo à escala, da bateira, dá-nos um manancial de sugestões. Pensamos ser interessante, sobre as mesmas, exercer algumas reflexões: 1- A embarcação induz desde logo a ideia de ter estado na base de inspiração da criação do moliceiro (Cap. 5). 2- A confirmar esta ideia existem diversas referências de, a ílhava, ter sido, não só utilizada nas actividades da pesca, mas também, vulgarmente (muito) utilizada na recolha de moliços na laguna47. Não lhe faltam características fundamentais para o bom desempenho de tal tarefa: cala muito pouca água (cerca de 20/30 cm), tem o bordo baixo e é dotada de vela auxiliar, fundamental para ajudar no arrasto das ervagens lagunares. 3- A sua borda baixa (pontal 0,60 m) poderia, nessa actividade, ser ainda mais baixa, pois a falca fixa, exibida no modelo, apropriada para a pesca no mar, poderia ser falsa em certas utilizações específicas (por exemplo na apanha de moliço). Na ílhava, a vela era apenas utilizada para as popas (ventos pela ré). Na utilização da apanha do moliço (sécs. XVII/XVIII) feita em locais próximos da margem, ao arrolado, na borda (e não ainda para os grandes transportes, norte-sul, na laguna), era perfeitamente satisfatória a vela de pendão ao mastro ou à borda. Na arte da tarrafa, tal vela era apenas um auxiliar para chegar, ou regressar, ao local de pesca. A ílhava usava seis remadores ao remo: três ao punho e três ao cambão. Isso exigiria uma posição de remar muito típica que mais tarde foi utilizada nos meia-luas, da xávega. Por isso o seu interior teria que ter uma lógica funcional especial, dada a dimensão da boca, incluindo para isso as estribeiras para posicionamento (fincamento) dos remadores de pé. O velame de pendão, servia, como já referimos, apenas para as popas. Era por isso baixo o seu mastro (2,5 – 3 vezes, a boca); a verga (também conhecida por invergue) 47

Ver Fonseca, Senos da, Capítulo 5, o Moliceiro, do livro Embarcações que Tiveram Berço na Laguna, 2011:103.


era muito longa (3,5 vezes a boca). Prendia à amura de barlavento aquando da popada cheia, oferecendo a maior superfície possível à acção do vento. O encosto da verga ao mastro (pela troça48) era feito a 1/3 do extremo anterior daquele, o que permitiria uma armação (quase) como se tratasse dum pano redondo. Sem valuma, bolinão ou esteira49 – para afinação – mas com rizos50, a vela incipiente da «ílhava» foi – tudo o indica – a clara inspiradora da vela do «Moliceiro». Neste, havendo necessidade de uma performance vélica já evoluída de modo a permitir a adaptação da embarcação às bolinas cerradas, foram sendo introduzidos novos aspectos de ajustes permanentes da vela às amuras de navegação. Necessidade que se veio impor pela intensa procura do moliço na região dos lagos das gafanhas, pródiga nos herbáceos lagunares e cuja apanha obrigaria a longos percursos. A borda da «ílhava» era certamente suficientemente forte para fixar o cabo ao calão da arte, quando utilizada na tarrafa. Teria por isso, certamente, draga interior de reforço à borda, embora não constituindo, ainda, borda de correr. A «ílhava» foi usada como bateira do mar, tendo trabalhado na sua pancada, antecedendo nesse labor o «Barco do Mar» das artes grandes. Para isso, a «ílhava», tinha de ser forte de estrutura, com pontal superior ao actual «Moliceiro». Neste, a especificidade da sua missão obrigou a limitar a altura do bordo tendo em vista reduzir o esforço no acto de levantamento do ancinho carregado, a fim de o meter dentro da embarcação. Na «ílhava» o problema era diferente. Nesta embarcação existiria, pois, uma borda falsa51 fixa, sobreposta sobre o bordo, aumentando-lhe o pontal. Poderia, em alguns casos, ser sobre esta colocada uma falca móvel. A vela da «ílhava» não teria calcadeira. Ou pelo menos um verdadeiro calcador, pois que o ponto de amura, na esteira, a vante, seria móvel. O bolinão, pouco necessário já que não se bolinava no sentido exacto do termo era muito empírico e fixado muito a meio da testa52 da vela, servindo quase que exclusivamente para a puxar para vante. Os remos com cerca de 10 m de comprimento, tinham a particularidade de ser do tipo cágado: – a pá era direita, aposta e pregada sobre a vara (de eucalipto) que terminava no punho. Podiam ser accionados53 pelo punho, ou pelo cambão. Existia um outro cabo – a soca – ligada (para ré) à estribeira mais próxima, com o fim de evitar que o remo fosse impelido para vante, demasiada e inesperadamente (por efeito de uma vaga) e fosse bater no peito do remador sentado. Como referimos anteriormente, a «ílhava» utilizava já as estribeiras para que os remadores de pé (de frente para a proa) fincarem os pés. Na borda da embarcação existiam uns cabeços, nas amuras a ré, destinados a passar laçada dos cabos de alar a rede da tarrafa.

48

Ver Cap. 5 – O «Moliceiro».

49

Ver Cap. 5 – O «Moliceiro».

50

Ver Cap. 5 – O «Moliceiro».

51

Falca é uma tábua, menos espessa, móvel ou fixa, destinada a permitir uma melhor defesa à vaga.

52

A testa é a face trapezoidal da frente da vela.

53

Nestas bateiras de mar, o tipo de accionamento dos remos, foi um precursor do mais tarde utilizado no «Meia-Lua».


O leme era de xarolo. A sua forma exacta – se acompanhava a curva da popa, ou abria na porta mergulhando mais para atrás – é difícil de conjecturar. Pois que sendo só utilizado nas navegações à popa, a sua acção era muito menos decisiva para o governo da embarcação. E por isso seria muito mais reduzido que o depois utilizado no «Moliceiro». A estrutura resistente da embarcação era constituída por cavernas e braços de cavernas. O castelo de proa era de pequenas dimensões, bem diferente do que iria aparecer no «Moliceiro» que servia para dormitório da tripulação. Na «ílhava», a parte da proa coberta tinha apenas a utilidade para recolha de roupas e outros acessórios, não para pernoita. Claramente, a «ílhava» era uma verdadeira bateira de mar. De dimensão muito apreciável (13,75 m) e bordo relativamente elevado (0,6 m)54, era substancialmente poderosa se comparada com as que mais tarde (Séc. XX) foram referidas como «bateiras interiores». Que não eram mais do que embarcações da laguna, não ultrapassando os 8 – 9 m, apenas em alguns pontos da costa deslocadas para a borda do mar (Torreira, Mira, Buarcos e Cova) para aí serem utilizadas como «robaleiras». As designações dos componentes estruturais da «ílhava» não diferem das utilizadas no «Moliceiro», e têm uma forte componente de influência normanda 55: mastro, leme, bordo, carlinga, ostague, escota, rise, içar, bolina, etc. Dado o «Moliceiro» ser, em nossa opinião, uma evolução da «ílhava», optámos por no capítulo dedicado àquele (Cap. 5), nele indicar com mais pormenor a funcionalidade dos referidos componentes. A designação de «Saveiro» (do salaveiro, árabe), adveio, como acima dito, da utilização de uma embarcação similar, mas de menor dimensão, na safra daquela espécie piscícola, no Douro, Tejo e Sado. Fig. 20 –

4. Planos Geométricos (2D)

56

Das considerações anteriores, resultou o plano geométrico de formas, que se pode visualizar, na escala 1/30, do anexo.

54

Esta questão do pontal relativamente alto foi resolvida com a concepção do «Moliceiro», em que a actividade de levantamento e da recolha dos ancinhos era mais intensa, obrigando a uma diminuição do pontal para 0,45 m. 55 56

Cortesão, Jaime, in «Descobrimentos Portugueses», Vol. I, p. 182, ed. Imprensa Casa Moeda – Lisboa. Ver DVD anexo do citado livro.


Fig. 21

5.

57

Ver DVD anexo.

Planos GeomĂŠtricos (3D)57


Figs. 22, 23 e 24

(Imagens retiradas dos plano 3D,incluídos no livro 58)

58

Fonseca,Senos da « Embarcações que Tiveram Berço na Laguna, 2011:103»


«ílhava»


«ílhava»


«ílhava»



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.