Revista Seleta - 2ª edição

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SELETA - m煤sica da amaz么nia

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ESCOLA MELHORA A VIDA, MELHORA O MUNDO. O GOVERNO

Escola Barão do Rio Branco, em Belém, está sendo restaurada

Obras da Escola Anísio Teixeira, Marabá

Escola Deuzuita Pereira de Queiroz, Redenção

Restauração da escola centenária Antônio Lemos, em Santa Izabel

Escola Marivalda Pantoja, Ananindeua

Escola Tecnológica de Vigia

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Quadra de esportes na Escola Mário Brasil, Garrafão do Norte


DO ESTADO QUER MELHORAR A ESCOLA.

Escola Liberdade, Marabá

Escola N. Senhora de Fátima, Abaetetuba

Escola Estadual Rio Tapajós, Santarém

260 escolas sendo reformadas em todo o estado. Escolas prontas e ampliadas. Novas escolas sendo construídas. Seis escolas indígenas entregues e mais sete em construção. Onze escolas tecnológicas com obras avançando. Professores com Plano de Cargos e Carreira, recebendo um dos cinco maiores pisos salariais do Brasil. Prédios históricos sendo restaurados e ganhando acessibilidade, como o Barão do Rio Branco e o Instituto de Educação do Pará - IEP, em Belém, e o Antônio Lemos, em Santa Izabel. Para fazer o maior investimento já realizado na nossa Educação, o Pará fez o que nenhum outro estado brasileiro havia feito: foi ao Banco Interamericano de Desenvolvimento buscar recursos para melhorar a qualidade do ensino. O desafio é ter uma escola boa, professores capacitados e uma gestão escolar eficiente. É ter cada vez mais empresas, professores, pais e alunos, unidos num grande Pacto pela Educação do Pará. Todos juntos para elevar os resultados do IDEB em 30%, num prazo de cinco anos. Também na Educação, o Pará está em obras. E a maior delas, com certeza, é construir um futuro de muitas oportunidades para nossas crianças e jovens.

TRABALHO EM TODO CANTO PRA TODA NOSSA GENTE.

www.pa.gov.br

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Jards Macalé Mallu Magalhães

Lobão

Com 10 anos de atividade no mercado cultural e musical a Se Rasgum Produções já realizou mais de 200 eventos com a apresentação de centenas de shows com bandas nacionais e internacionais. Além dos eventos e projetos realizados desde 2003, a produtora idealizou e produziu 8 edições do Festival Se Rasgum, um dos eventos independentes mais importantes do país que conecta a música produzida na Amazônia para o Brasil e para o mundo. With a 10 years trajectory in the music concert business Se Rasgum Produções has promoted more than 200 events between concerts and music festivals, including Brazilian and foreign bands. Besides the concerts and other cultural projects, it has produced eight editions of Se Rasgum Music Fest, one of the most important independent festivals of Brazil, know by it’s role in revealing the Amazonian music to Brazil and to the world.

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Pinduca

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O

L A V I T S FE GUM

ASto de 2014 SEe R agos

20 a 23 d

appa s a w i h c S Teatro as c o D s a d Estação Hangar Belém - PA

serasgum.com.br facebook.com/serasgum flickr.com/serasgum youtube.com/serasgum twitter.com/serasgum

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expediente / staff list Direção Executiva / executive producer Marcelo Damaso / Renée Chalu contato@revistaseleta.com.br Editor-chefe / editor in chief Marcelo Damaso [editor@revistaseleta.com.br] Editor-assistente / editor Elvis Rocha Projeto gráfico e diagramação / art director & layout developer Anna Leal Produção de pautas / producer Ricardo Silva Lohana Schalken Produção CD / CD producer Luiza Borges Ná Figueredo (Ná Music) Textos e fotos / texts and photos by Clemente Schwartz, Leonardo Fernandes, Marcelo Damaso, Rafael Guedes, Renato Chalu, Thiago Araújo, Taiana Laiun, Tylon Maués e Vladimir Cunha Publicidade e marketing / advertising and marketing publicidade@revistaseleta.com.br Revisão / adjustment Ana Clara Matos Tradução / translation Rafael Miranda e Gareth Jones Idealização / created by Se Rasgum Produções   Tiragem / circulation 2.000 cópias Periodicidade / periodicity Semestral

Revista Seleta - Música da Amazônia #2 abril/2014 6

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editorial / editor’s letter Ao Mestre com carinho

Além de editar esta revista, a produtora Se Rasgum Produções tem como carro chefe, sua grande matéria prima, o Festival Se Rasgum – que tem uma matéria bacana nesta edição. O festival tem oito anos. Começamos movidos por uma demanda grande de artistas paraenses que queríamos que contracenassem com brasileiros. Desde então, muita coisa interessante chamou a atenção para nossa região. Tem sido assim há alguns anos e desta demanda nasceu a Revista Seleta, que chega agora ao segundo número. Desde a segunda edição do festival, em 2007, passamos a incluir atrações internacionais a cada ano. Uma das coisas que atraía esse povo para Belém era usar a palavra mágica “Amazônia”. Muitos reduziram seus cachês e facilitaram sua vinda, achando que poderiam fazer um “check” em suas listas de lugares pitorescos. E muitos também se surpreenderam ao saber que Belém é um centro

To ‘Mestre’, with love

urbano, com música urbana boa, no pop e no heavy metal – que também estão nesta edição. Nossa capa traz um cara que reúne todas estas características, tanto do caboclo amazônico, quanto do maluco beleza da cidade grande. Mestre Laurentino é um velhinho de 90 anos que, veja só, lançou em 2014 seu primeiro disco. Ele não faz carimbó, guitarrada ou brega. Ele faz rock, toca gaita e, no palco, causa inveja a Iggy Pop. Às vésperas do fechamento desta edição, Laurentino deu entrada na UTI em estado grave de saúde. Com o coração apertado mandamos a revista para a gráfica, ficando apenas com o desejo de melhoras e de que prestamos uma grande homenagem ao Mestre. Curtam nosso CDzinho. Marcelo Damaso (Editor)

Besides editing this magazine, the flagship and main raw material of Se Rasgum Produções is the Se Rasgum Festival, which gets a neat feature in this edition. The festival is eight years old. When we started, there was a strong demand for artists from Pará, whom we wanted to costar alongside artists from the rest of the country. Since then, many interesting things attracted attention to our region. It has been like this for some years, and the same demand gave birth to Seleta magazine, which now appears in its second edition.

when they found out Belém is an urban center that produces good urban music both in pop and heavy metal, both of which also featured in this edition.

Since the second year of the festival, in 2007, we began to add international attractions every year. One of the things that brought all these folks to Belém was the use of a magic word: Amazonia. Many artists reduced their fees and their trip here was facilitated by the fact they could tick off one more place on their list of picturesque destinations. And many of them were also surprised

In the final days of work on this edition, Laurentino was taken to an intensive care unit with a serious health condition. With our hearts in our mouths, we sent the magazine to print wishing only that our ‘Mestre’ recovers – and knowing we paid a warm tribute to him.

Our cover features a guy that embodies it all, from the Amazonian caboclo to the wild dude from the big city. ‘Mestre’ Laurentino is an old-timer aged 90, who – check this out – released his first album in 2014. He doesn’t play carimbó, guitarrada or brega. He is a rocker who plays the harmonica and would make Iggy Pop jealous on stage.

Enjoy our little CD. Marcelo Damaso (Editor)

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Equipe /

Who we are Marcelo Damaso (editor-chefe / editor in chief)

Jornalista, produtor e (agora) escritor. Em 2014, lança seu primeiro romance, chamado “Iracundo”. Já trabalhou como editor de cadernos de cultura, polícia e esportes em jornais de Belém. Na música, toca baixo na banda The Baudelaires e é DJ. Há mais de 10 anos fundou a Se Rasgum Produções. // Journalist, producer and (now) author, this year Marcelo releases his first novel, ‘Iracundo’. He has previously worked as a culture, crime and sports editor at Belém’s newspapers . Musically, he plays bass in the band The Baudelaires, and is a DJ too. He founded Se Rasgum Produções more than 10 years ago

Renée Chalu (produtora executiva / executive producer)

Publicitária e produtora. Trabalhou como produtora de RCTV em uma das maiores agências de publicidade do Pará. Faz parte do grupo de fundadores do bloco de carnaval de rua Filhos de Glande. No cinema, trabalhou como produtora em filmes como “Araguaya, Conspiração do Silêncio” e “Origem dos nomes”. É diretora executiva da Se Rasgum Produções. // Advertiser and producer, Renée has worked as a radio, cinema and TV producer in one of Pará’s largest ad agencies, and is a founding member of the street carnival bloco Filhos de Glande. In cinema, she worked as a producer on movies such as ‘Araguaya, Conspiração do Silêncio’ and ‘Origem dos Nomes’. Renée is Executive Director at Se Rasgum Produções.

Elvis Rocha (editor / editor)

Jornalista. Trabalha há 16 anos como colaborador de jornais, sites e revistas de Belém. Editor da Revista Gotaz (www.gotaz. com.br), especializada em Artes Visuais; mantém o bissexto www.cantodorei.wordpress.com. Pai da Nina. Sonha com uma vida feliz como programador de rádio ou taxista. // A journalist, Elvis has been working for 16 years, writing for newspapers, sites and magazines from Belém. Editor of the magazine Gotaz (www.gotaz.com.br), which specializes in visual arts, he also runs the not so frequent blog www.cantodorei.wordpress.com. Father of Nina, Elvis dreams of a happy life as a radio programmer or cab driver.

Luiza Borges (produtora / producer)

Assistente de produção e jornalista. Edita o site shakeit.me, sobre moda. Luiza já escreveu sobre música para sites especializados e ataca de DJ de indie rock em festas com gente bonita, meninas maquiadas e garotos magros. Tem um baixo em casa e continua sem tocar nada. // Production assistant and journalist, she edits the fashion website shakeit.me. Luiza has written about music for specialized sites and also DJs at indie rock parties with lots of beautiful people, girls with heavy make-up and skinny guys. She has a bass at home but still doesn’t know how to play a single note on it.

Lohana Schalken e Ricardo Silva (produtores / producers)

Dois jovens produtores de Belém, que já trabalharam com de tudo um pouco – do tecnobrega ao metal – e ajudaram na Seleta #2. Ricardo começou, Lohana terminou. Hoje estão à frente da produtora independente Xaninho Discos Falidos. // Two of Belém’s young producers, they have worked with a bit of everything from tecnobrega to heavy metal, and helped produce this second edition of Seleta – Ricardo started, Lohana finished it. They are now in charge of the independent production company Xaninho Discos Falidos.

Vladimir Cunha (repórter / reporter)

Jornalista, documentarista e goleiro. Colaborou com as revistas Rolling Stone, Billboard, Bizz, Piauí, Herói e Sexy. Foi diretor e roteirista da série “Brasil Total” e co-diretor da série “Discoteca MTV”. Dirigiu o documentário “Brega S/A” e a série “Brasileirão Petrobras”. Nunca largou a paixão por gibis, cultura pop, ufologia, ciência fringe etc.. Continua planejando viagens para lugares estranhos. //Journalist, documentarian and goalkeeper, Vladimir has collaborated with magazines like Rolling Stone, Billboard, Bizz, Piauí, Herói and Sexy. He was the director and writer of the series ‘Brasil Total’ and co-directed another series, ‘Discoteca MTV’. Vladimir directed the documentary ‘Brega S/A’ and the football series ‘Brasileirão Petrobrás’. He never gave up on his passion for comics, pop culture, ufology, fringe science etc. and continues planning his trips to weird destinations.

Tylon Maués (repórter / reporter)

Jornalista, trabalha há doze anos nos jornais Amazônia e O Liberal, de Belém. Tem reportagens publicadas nas revistas Living, Leal Moreira etc.. Trabalhou na assessoria de imprensa em sete das oito edições do Festival Se Rasgum – e na oitava virou o repórter favorito de Tom Zé. É o único que ainda cita o finado blog Ressaca Moral em seu portfólio. Sua maior alegria no último ano foi a filha Berenice. // Journalist who has been working for 12 years at the Belém newspapers Amazônia and O Liberal, Tylon also has articles published by magazines like Living and Leal Moreira. He worked as press agent in seven of the eight editions of Se Rasgum Festival – and became Tom Zé’s favorite reporter during the last one. Only person who still cites the defunct blog Ressaca Moral in his portfolio, his biggest joy in recent times was the birth of his daughter Berenice.


Rafael Guedes (repórter / reporter)

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pará - UFPA, com passagem por jornais e revistas. Trabalhou em produções audiovisuais locais e foi responsável pela Coordenação de Comunicação do Festival Se Rasgum. Atualmente é roteirista do departamento de On Air do National Geographic Channel Latinoamérica, em Buenos Aires. // A Journalism graduate at UFPA, Rafael has worked in newspapers, magazines, local audiovisual productions and was also in charge of coordinating Se Rasgum Festival’s communications. He is currently writing scripts at National Geographic Channel Latin-America’s On Air department in Buenos Aires.

Leonardo Fernandes (repórter / reporter)

Morou alguns anos na Austrália. Há cinco se dedica ao jornalismo cultural, em Belém. No seu trabalho, um retrato inusitado da capital paraense: de transexual cantora de melody a shows de grindcore feitos na sala de uma casa, das pregações de Inri Cristo nas ruas da Cidade Velha às invenções culinárias do chef Ofir Oliveira. // After a few years living in Australia, Leonardo has been working for five years in Belém’s cultural journalism. In his work, he portrays an unusual aspect of Pará’s capital, from a transsexual techno-melody singer to live grind-core performances in someone’s living room, from Inri Cristo’s sermons on the streets of Belém to the gastronomic creations of chef Ofir Oliveira.

Clemente Schwartz (repórter / reporter)

Natural de Bragança (PA), onde reside atualmente, Clemente é jornalista há mais de 20 anos. Escreveu sobre música e ajudou a criar uma cena musical brega nos anos 90 em Belém, como produtor e assessor de imprensa. Fã de David Bowie, Angela Ro Ro e Barão Vermelho, Clemente também é cantor e já pertenceu a um dos grupos lendários do rock paraense, a banda Solano Star. // A native from Bragança, where he currently resides, Clemente has been a journalist for more than 20 years. He has written about music and helped create Belém’s brega scene from the 1990s, when he worked as a producer and press agent. A David Bowie, Angela Ro Ro and Barão Vermelho fan, Clemente is also a singer and was a member of Solano Star, one of Pará’s legendary rock bands.

Renato Chalu (fotógrafo / photographer)

Fotógrafo e cineasta. Vencedor do 2º Grande Prêmio do Arte Pará 2010 e do Prêmio Tim Lopes. Dirigiu o documentário “Estação da Saudade”, sobre Mestre Laurentino. Fez câmera no documentário “Notícias da Terra do Meio”, sobre o assassinato da missionária Dorothy Stang, e foi diretor do DVD “EletroFunkDubSocial”, da banda Coletivo Rádio Cipó, da qual também faz parte como guitarrista. // Photographer and moviemaker, Renato won the 2nd Grand Prize at Arte Pará 2010 and the Prêmio Tim Lopes award. He directed the documentary ‘Estação da Saudade’, about Mestre Laurentino; was camera operator on the documentary ‘Notícias da Terra do Meio’, about missionary Dorothy Stang’s murder; and was director of the band Coletivo Rádio Cipó’s DVD ‘EletroFunkDubSocial’, in which he also plays guitar.

Formada em jornalismo, mas especializada em fotografia e brigadeiros. Morou em Paris e Londres e atualmente vive em Belém, dividindo seu tempo entre a fotografia e a administração de sua Brigaderie, local apropriado para fãs de chocolate, brigadeiros, cupcakes e outros quitutes. É dona do Bigo, Valentina, Gucci e Chanel. // HA Journalism graduate who specializes in photography and chocolate brigadeiros, Taiana lived in Paris and London and came back to Belém to alternate her time between shooting photos and managing her Brigaderie business, a heaven for any enthusiast of chocolate, brigadeiros, cupcakes and other delicacies. She’s also the mother of pets Bigo, Valentina, Gucci and Chanel.

Thiago Araújo (fotógrafo / photographer)

Fotografou boa parte da cena cultural do Pará nos últimos cinco anos, entre movimentos culturais tradicionais e a cena musical contemporânea. Ao lado do jornalista Ismael Machado, foi vencedor do Prêmio Vladimir Herzog de jornalismo. Além de fotógrafo, de vez em quando ataca de clown e exerce sua veia teatral. // Thiago has photographed a large slice of Pará’s cultural production over the last five years, from traditional cultural movements to the contemporary musical scene. Alongside journalist Ismael Machado, he won the Vladimir Herzog Journalism Award. Besides working as a photographer, he sometimes acts as a clown and puts his theatrical veins to work.

Anna Leal (direção de arte - diagramação / art director & layout developer)

Formada em Design pela UEPA e especialista em Imagem e Sociedade pela UFPA. Agora toca seu próprio escritório, Anna Leal Design Studio, onde está o InmaAwards em leituras e publicações impressas, premiação mundial que recebeu em 2013. Tem lembranças das aulas de piano na infância e adolescência, mas sua alma permanece no britpop de Blur, Oasis e Pulp. // After graduating in Design at UEPA, and a post-grad degree in Image & Society at UFPA, Anna now runs her own Anna Leal Design Studio, where she displays her InmaAward from 2013 for the global category ‘Readership/Usage of the Print Publication’. She still remembers piano classes from her childhood and teenage years, but her soul remains in the Britpop played by Blur, Oasis and Pulp.

Foto: Thiago Araújo

Taiana Laiun (fotógrafa / photographer)


Ă­ndice / contents

O velho da harmonia The old man and the harmony

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O trampolim da diversidade Trampoline of diversity

22 É pop, maninho! It’s pop, buddy!

30 O hitmaker The hitmaker

36 O chefe da banda The bandleader

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Metal na selva Metal in the jungle

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Pavulagem desse coração A cocky-hearted bull called Pavulagem

64 Salve, São Benedito Hail, Saint Benedict

72 Batuque muito além A beat far beyond

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CD Seleta

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Mestre Laurentino, o sacana exemplo da natureza de Deus

The old man and the harmony ‘Mestre’ Laurentino, deviant example of God’s essence 12

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por Marcelo Damaso | Fotos Renato Chalu

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A

té os sete anos, João Laurentino da Silva passou a infância em Ponta de Pedras, cidade da Ilha do Marajó, no estado do Pará. O pequeno Laurentino perdeu a mãe muito cedo, sendo criado pelo avô e tendo uma infância como a de outro garoto qualquer, correndo solto pelas ruas da cidadela onde nasceu – às 0h30 do dia 1º de janeiro de 1926. Até que a generosidade e amparo de uma família tradicional, os Palmeira, na capital Belém, o trouxe para o seio do bairro do Reduto, centro da cidade, onde teve a oportunidade de crescer junto aos nomes e sobrenomes de uma elite que habitava os belos casarões na travessa Rui Barbosa, local em que ele se criou e “fez muita bandalheira”, pegou umas meninas e viveu uma juventude divertida que ele relembra claramente com um sorriso sacana no rosto. Criado numa família de 15 filhos, Laurentino ainda teve espaço. Cinco já foram, e o velho Laurentino prevalece em sua gratidão, que até hoje não largou, e sempre frequenta a casa dos irmãos da família que o adotou. Cresceu no bairro do Reduto, onde passa pelas ruas falastrão e contando história sobre aquelas esquinas, ruas, casarões antigos e prédios novos que um dia abrigaram figurões da cidade, como o maestro Carlos Gomes. Pelas ruas do Reduto, ele lembra das meninas da época, mas fala de sua primeira esposa Elza Freire da Silva, que conheceu em Belém e com quem teve 10 filhos. Teve mais seis filhos no outro casamento, totalizando 16 filhos e dezenas de netos, que ele já até perdeu a conta. Elza faleceu em 2008, aos 79 anos, quando Laurentino já estava em seu segundo casamento. Morou com Elza no bairro da Cremação, o mesmo em que se casou. O velho não fala de amor. É reservado em relação ao assunto e tem montado no quadro de sua memória histórias que não o fazem suspirar por um grande amor esquecido no passado – ou faz parecer desta forma, sem distinguir se é a discrição de seus segredos ou se prefere a imagem que criou de ser um tremendo fanfarrão. “Naquele tempo era só sacanagem”, prefere sintetizar assim. Seu amor pela vida e o bom humor são características que chamam a atenção em poucos minutos de conversa. “O senhor é a história dessa cidade, né?” “Pourra...”, responde em falsete. E conta de uma fábrica de sabonetes no bairro do Reduto, que um dia já fez perfumes e sabonetes cheirosos, mas que hoje só tem “cheiro de p***”, e gargalha mostrando que a galhofa é sempre algo presente em suas lembranças e na forma como descreve

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U

ntil aged 7, João Laurentino da Silva spent his childhood in Ponta de Pedras, a town on the island of Marajó in the state of Pará. The little Laurentino lost his mother very young and was raised by his grandfather. He had a childhood like any other boy, running freely through the streets of the small town where he was born, on the first hour of the first day of 1926. And such was life, up until a kind and supportive traditional family – the Palmeiras – brought him into the bosom of the Reduto neighborhood, in downtown Belém. There, he had the opportunity to grow up amongst the elite who lived in the beautiful townhouses along Rui Barbosa. It was here that he was brought up, getting into plenty of mischief and chasing girls. He recalls this fun youth vividly, with a naughty grin. Raised in a family with 15 children, he still had his own space. Five of these siblings have already passed away, and the old Laurentino still maintains an unrelinquished gratitude, and always returning to the homes of his adopted kin. Today he passes through Reduto telling many stories of the streets and their corners, old townhouses and newer buildings that, once upon a time, housed the city’s big names, such as maestro Carlos Gomes. He recalls the girls of those bygone days on the streets there, but also talks about his first wife, Elza Freire da Silva, who he met in Belém and with whom he had 10 children. Another 6 were born in his next marriage, a total of 16 kids and dozens of grandchildren – so many that he has already lost count. Elza passed away in 2008, at 79 years old, when Laurentino was already in his second marriage. He had lived with Elza in the Cremação neighborhood, where they also got married. This old-timer does not talk about love and is reserved on the subject. The stories he has gathered in his mind do not dwell upon any long lost love from the past. Or at least this is the impression he gives – leaving us unaware as to whether this is due to his discrete demeanor, or because he prefers the image of the tremendous ladies man that he created. He prefers to wrap it up as being “all hot fun and games” in those days. His love of life and good temperament are traits that will shine out after just a few minutes in his presence. “You are the history of this city, aren’t you, sir?” “Daaaaamn”, he answers in falsetto. And then tells a tale about a factory in Reduto that once produced sweet smelling perfumes and soaps, but today it only smells of @$%&*#. He chuckles and shows that this cheeky deviance is something that is always present in his portrayal of these memories of his past, his city and his life. “I like to fool around, but I never messed with drugs. I’m not crazy. I won’t eat what ain’t good for me.”


seu passado, a cidade e sua vida. “Eu gosto de uma bandalheira, mas nunca usei droga. Não sou doido, não vou comer uma comida que eu sei que não presta.” Trabalhou na Real Aerovia, que posteriormente foi comprada pela Varig. “O dono era o Seu Irineu Gomes, um pretinho assim como eu. Naquela época, como hoje em dia, eles tinham muito preconceito com o negro. Então o comandante Irineu Gomes tinha esse negócio de ponte aérea e trabalhava com mais alguns sócios. Uma vez ele pegou dinheiro emprestado da mãe, foi jogar pra tentar fazer mais dinheiro, e perdeu. Depois pediu novamente emprestado e tentou mais uma cartada, só que aí ele ganhou e comprou a empresa de aviação dos sócios. Demitiu todo mundo que tinha preconceito com ele por causa da cor. E foi assim que fui trabalhar com ele.” Sua trajetória na empresa aérea durou cerca de 20 anos, desde o cargo de mecânico de aeronave até chefe da casa de lanche, algo que conta com muito orgulho. Depois, montou a Demolidora Sansão, da qual os filhos agora tomam conta. “Por que Sansão? Porque foi quem destruiu o templo dos filisteus. Ele brigava com o exército, fez o diabo”, diz, esbanjando conhecimento. Laurentino já derrubou com uma marreta o Grande Hotel, prédio emblemático do centro de Belém, a Fábrica Palmeira e a casa do maestro Carlos Gomes. “Não tinha um demolidor pra botar em mim”, lembra, rememorando os apelidos sacanas de sua equipe: “Pé de Légua”, “Cara de Mucura”, “Waldick Soriano” etc NA MELODIA O conhecimento geral sobre música e a noção geográfica de Laurentino impressionam. Fala sobre Niccolò Paganini e Stradivari com particular intimidade. Pergunto se ele gosta de música e se é o que ele mais ama na vida e ele responde dando de ombros: “Gosto.” Repetindo, Laurentino não fala muito de amor. Laurentino reverencia o gaúcho Edu da Gaita (morto em 1982) como o maior tocador de harmônica de boca do mundo. Ainda que sua influência venha do rock, consequentemente influenciado pelo blues, seu universo particular criou seus heróis dentro de fronteiras brasileiras. É da mesma forma que ele enxerga sua atividade como astro do rock mais velho do mundo, dispensando a existência de outros vovôs doidões. Ele se diz o maior roqueiro do mundo.

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Laurentino worked at Real Aerovia, an airline company that was eventually acquired by Varig. “The owner was Irineu Gomes, a black fella just like me. In that era, just like today, there was a lot of prejudice against blacks. Commander Gomes had this flight business and worked with a few more partners. One time he borrowed some cash from his mother and gambled it to try to make more, but lost. Later, he asked for more money to try and play another hand. This time he won, and bought the airline company from his partners. He fired all the employees who had been prejudiced towards because of his color. And that was how I ended up working for him”. Laurentino spent around 20 years at the company, starting as an airplane mechanic and going on to become head of the canteen, a story he tells with great pride. After this, he set up his demolition company Sansão, which his offspring now run. When asked why he chose the name Sansão (Samson), he replies with boastful knowledge: “He was the man who destroyed the temple of the Philistines. He fought the army and raised hell”. With his sledgehammer, Laurentino knocked down the Grande Hotel, en emblematic building in central Belém, as well as the Palmeira factory and maestro Carlos Gomes’s house. “There wasn’t a better demolisher than me”, he recalls, remembering the witty nicknames some guys in his crew had: ‘Big Foot’, ‘Rat Face’, ‘Waldick Soriano’ etc.

IN THE MELODY Laurentino’s general music knowledge and geographical awareness are impressive. He talks about Niccolò Paganini and Stradivari with particular insight. When asked if he likes music and if it is what he loves most in life, he responds with a casual shrug of the shoulders: “I like it”. Again, Laurentino does not talk a whole lot about love. He reveres the gaúcho Edu da Gaita (died 1982) as the best harmonica player in the world. Even though Laurentino’s influences come from rock, with a consequent blues influence, the heroes of his personal universe come from within Brazilian borders. And in this light, he sees himself as rock’s oldest star, ignoring the existence of other crazy grandpas around the world – he calls himself ‘the greatest rocker in the world’. Any disputing of this claim is left to the researchers and pesky folks. This is our old-timer’s own story, a man who embodies rock’s deviance, its acidic lyrics, its attitude and a stage presence that would make Iggy Pop reconsider his (approaching) retirement.


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Discordar disso é para os pesquisadores e chatos de plantão, aqui a história é do velho, que tem a sacanagem do rock, as letras ácidas, atitude de roqueiro e uma postura de palco que faria Iggy Pop repensar sua (já próxima) aposentadoria. Laurentino tem um disco inteiro gravado com composições suas, entre elas tem “O rock da aranha”, “São Paulo”, “Morena brasileira”, “Vale de São Francisco” e a já popular “Lourinha Americana”, que foi regravada pela banda pernambucana Mundo Livre S/A, com quem ele fez um show histórico no primeiro Festival Se Rasgum, em Belém, em 2006. “Lourinha americana”, posteriormente, ganhou videoclipe junto ao Coletivo Rádio Cipó, a banda que o revelou para o Brasil. Depois, Laurentino passou a se apresentar com sua própria banda, Os Cascudos, projeto montado para um programa especial de rádio pelo produtor Beto Fares, mas que ganhou vida própria após apresentações inesquecíveis. Os Cascudos têm nas guitarras João Lemos (Molho Negro) e Camillo Royale (Turbo), o baixista Elder Effe e o baterista Junhão (Projeto Secreto Macacos). “Nunca tive aula de música, essa é a natureza de Deus”, explica o dom da gaita. Gaita não, harmônica de boca – ele sempre corrige. É certeiro ao lembrar da primeira música que tocou com harmônica de boca: a marchinha “A Jardineira”, de Benedito Lacerda e Humberto Porto. Quando tinha uns 20 e poucos anos, estava na plateia da rádio PR5 e assistiu a uma dupla chamada Isaac e Naon tocar o instrumento de sopro. Sua mãe de criação, como ele costuma chamar, o presenteou com uma gaita alemã em sua juventude. É sua maior relíquia, sua princesinha. Leva a harmônica apenas para ocasiões especiais, seja entrevista na TV, rádio ou impresso. Caso haja um clique fotográfico, o close será sempre de sua alemãzinha. Tenta explicar a diferença entre gaita e harmônica de boca usando exemplos nem sempre bem sucedidos, mas vence quando fala que harmônica é sinônimo de harmonia. Em sua carreira com o Rádio Cipó, se apresentou em alguns festivais brasileiros como Festival MADA, em Natal; Goiânia Noise Festival e numa extensa turnê pelos palcos do Sesc de São Paulo, capital e interior. Se apresentou também em Londres e Paris com Rádio Cipó e Dona Onete, que pertencia ao combo quando foi redescoberta junto com Laurentino. Dona Onete, aliás, se tornou grande amiga dele após anos de convivência no mesmo barco que os revelou para novas gerações, após suas descobertas já tardias pela idade, mas não pelo sentimento da música que deu, a cada um dos dois velhinhos, uma nova razão para viver. Sobre o reconhecimento e a carreira de músico trilhada depois de certa idade, Laurentino fala sem crises ou grandes medos 18

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Laurentino has a whole album recorded with his compositions, such as ‘O Rock da Aranha’, ‘São Paulo’, ‘Morena Brasileira’, ‘Vale do São Francisco’ and the already popular ‘Lourinha Americana’, which has been re-recorded by the Pernambuco band Mundo Livre S/A, with whom he put on a historical concert in 2006, at the first edition of the Se Rasgum Festival in Belém. ‘Lourinha Americana’ (which means ‘American Blondie’) was then made into a music video together with Coletivo Rádio Cipó, the band that exposed him to the nation. Following that, Laurentino began performing with his own band, Os Cascudos, a project established for a special radio program by producer Beto Fares, but which ended up leading a life of its own after some unforgettable shows. Os Cascudos is formed by guitarists João Lemos (from the band Molho Negro) and Camillo Royale (Turbo), bassist Elder Effe and Junhão (Projeto Secreto Macacos) on the drums. “I’ve never had a music lesson. This is something from God”, he explains about his harmonica gift. Well, actually a mouth organ, not a harmonica – as he always corrects. Laurentino is precise in his recollection of the first song he played with a mouth organ: the carnival march ‘A Jardineira’, by Benedito Lacerda and Humberto Porto. When he was in his twenties, he was in the audience at PR5 radio and watched the duo Isaac and Naon play this instrument. His stepmother, as he calls her, gave him a German harmonica when he was young. It is his oldest relic, his little princess. The musician takes it with him only on special occasions, like TV, radio or press interviews. In case somebody snaps a picture, the closeup will always show his German baby. He tries to explain the difference between a harmonica and a mouth organ using examples that are not always that successful, but he wins the round by declaring that the word ‘harmonica’ comes from ‘harmony’. In his career with Radio Cipó, Laurentino performed in Brazilian festivals like the Festival MADA, in Natal; the Goiânia Noise Festival, in Goiânia; and in an extensive tour of the stages at SESC venues around the state of São Paulo. There were also concerts in London and Paris with Radio Cipó and Dona Onete, who was part of this combo when she was rediscovered alongside Laurentino. Dona Onete, by the way, became a great friend of his after being in the same boat together for many years. This was the very same boat that revealed them to new generations. They may well have been discovered late on in their lives, but their musical passion, still intense, gave each old-timer a new reason to live. On the subject of getting recognized and developing a musical career at an advanced age, Laurentino talks comfortably and without fear about the loss of another one of the great masters of Pará’s music: Verequete. He laments his death and the fact that he died poor, but does not seem to expect much more for himself either. He found out about Verequete’s death whilst on the Paris subway with singer Nazaré Pereira, who gave him the news. ‘Mestre’ Laurentino fondly remembers his most recent shows with Os Cascudos, like at the Feira da Música de Fortaleza, in Ceará, in August 2012. There, he received a standing ovation from an audience with an average age of 20-25 and his name was spread around SELETA - música da amazônia

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sobre a perda de outro grande mestre da música paraense, Verequete. Lamenta a morte dele e o fato de ter morrido pobre, mas não parece esperar outra coisa para si mesmo. Estava num metrô de Paris com a cantora paraense Nazaré Pereira, que o acompanhava e deu a notícia. Mestre Laurentino relembra com carinho os shows mais recentes com sua nova banda, Os Cascudos, como na Feira da Música de Fortaleza (CE), em agosto de 2012. Lá, ele foi ovacionado pela plateia de uma média de 20 a 25 anos e seu nome circulou pelo evento como uma das apresentações mais impressionantes e viscerais. Laurentino mora em Outeiro, distrito de Belém, em sua casa de madeira, com a esposa e 19 cachorros, todos batizados por seu humor safado: “Esfrega a bunda na tua cara”; “Te entope”; “Te mija nas costas”; “Teu nome”; “Te enfinca” etc. Todos os dias, ele vai e volta de Belém de ônibus ou lotação. Em sua cabeça lúcida e de memórias vivas, milhões de pensamentos acesos transitam em uma hora de viagem para ir e outra pra voltar. O que se passa na cabeça do velho? Só ele sabe e talvez seu sorriso frequente e o astral sempre alto apontem para certa gratidão. Coleciona homenagens, medalhas, se gaba de ter arrancado bons 20 minutos se apresentando no Domingão do Faustão, ter conhecido a Europa, viajado o Brasil inteiro, ter sido aplaudido efusivamente em apresentações importantes e, o melhor, saber que deixou sua digital na recente história da música brasileira. N.E: Até o fechamento desta edição, Laurentino estava internado na UTI de um hospital de Belém em estado grave de saúde, em decorrência de pneumonia.

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the event as one of its most impressive and visceral performances. Laurentino in the Outeiro district of Belém in a wooden house, with his wife and 19 dogs, each named with a touch of his naughty humor, translated along the lines of “Butt-rubber”, “Glutton”, “Pantwetter”, “Your name”, “Stay Here” etc. He goes backwards and forwards downtown everyday by public transport. In a lucid mind full of living memories, millions of vivid thoughts come and go during the two hour-long round trip. What exactly goes on in the old man’s mind? Only he knows. Maybe his beaming smile and the easy-go-lucky attitude indicate some sort of gratitude. He piles up the homages and medals, and boasts about having been on air during a good 20 minutes of a live Sunday show on Brazil’s main TV channel, about having traveled to Europe and all over Brazil, about having been applauded emotionally after important shows, and, best of all, about knowing he left his footprint in the recent history of Brazilian music. (Ed.) At the time this edition went to print, Laurentino was in the intensive care unit of a Belém hospital, with a serious health condition caused by pneumonia.


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Trampoline of diversity How the Se Rasgum Festival built its identity and gambled on the diversity of the local music scene, thus becoming one of the main showcases for music made in Pará and Brazil 22

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Trampolim da diversidade Como o Festival Se Rasgum construiu sua identidade e apostou na diversidade da música paraense para se tornar uma das principais vitrines para a música feita no Pará e no Brasil Por Rafael Guedes Fotos Arquivo Se Rasgum SELETA - música da amazônia

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Tom Zé (SP)

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uando a dupla Réu & Condenado subiu ao palco do Café com Arte na noite de 5 de março de 2005, suando às bicas e destilando um pop debochado, a casa ainda deixava para trás algumas incertezas sobre a sua vocação, perdida entre o intento gourmet das saladas batizadas com nomes de personalidades e a possibilidade de crescer como casa de eventos. Aquela era a primeira apresentação de uma banda nacional em uma festa com o selo da Dançum Se Rasgum Produciones, até então um bando descompromissado de garotos que, sem poder escutar seus artistas preferidos na noite da capital, decidiram armar seu próprio esquema. E ainda que o local estivesse cheio, houve quem torcesse o nariz para aquela estranha mistura de stand up comedy e Kiss, como a dupla goiana gostava de se definir. Era a primeira aposta da produtora na música independente, um nicho até então ignorado pelas produtoras tradicionais e pela grande imprensa em Belém. As festas se tornaram quinzenais e abriram espaço para uma série de bandas locais e nacionais, apresentando ao público novidades do cenário brasileiro e do rock paraense, que ainda ensaiava a ruptura com alguns preconceitos de estilo e com a necessidade de se estabelecer outros eixos. A iniciativa serviu para estreitar laços com a cena local, com produtores e artistas nacionais e com outras cenas, capitalizados na saída do inferninho do agora antológico Café para os palcos de um grande festival em 2006. Batizado na origem como Se Rasgum no Rock, o Festival reuniu naquela edição diversas bandas paraenses, algumas promessas nacionais de então e artistas consagrados como Mundo Livre S/A, Cachorro Grande e Wander Wildner. Em 2008, com a música

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hen the duo Réu e Condenado got on stage at Café com Arte on the night of March 5th 2005, sweating like fountains and spewing out their debauched pop, the place was still shaking off some uncertainties about its purpose, lost between a gourmet venture to serve salads named after celebrities and the possibility to grow as a music venue. That was the first performance by a national band under the flag of Dançum Se Rasgum Produciones, back then run by a crew of uncompromising youngsters who, unable to watch their favorite bands perform live in their home town of Belém, decided to take matters into their own hands. And even though the venue was packed, there were still those who turned their noses up at that whacky mix of stand up comedy and Kiss, which was how the duo from Goiás liked to define themselves. It was their first bet on independent music, a niche ignored until then by Belém’s traditional producers and mainstream media.

paraense em plena efervescência, o Festival encontrou seu nicho na novidade, na originalidade, nos talentos da cultura popular e essencialmente na diversidade, introduzindo o tecnobrega – peça então impensável para um festival de rock independente – e agregando forças do hip hop, do pop, do carimbó, do experimental e das guitarradas. O “No Rock” havia ficado, definitivamente, para trás. Paralelamente, o conceito de música independente já se reinventava como a representação própria da nova música brasileira e de sua relevância artística, cultural e econômica. Em oito anos de Festival Se Rasgum e eventos paralelos, já passaram por Belém 90 bandas de 17 estados brasileiros e de quatro países, além de um número muito maior de shows de artistas paraenses e DJs. Por seus palcos já rolaram encontros como Pinduca com Fernanda Takai, Dado Villa-Lobos com Los Porongas, Odair José com Dead Lover’s Twisted Heart e Gang do Eletro com Gaby Amarantos. As guitarradas encontraram um novo público, o tecnobrega experimentou empatia e resistência e novas bandas paraenses ganharam a oportunidade de se apresentar para um público profundamente conectado com a música, profissionais do mercado e nomes tidos como referência no jornalismo cultural do país. Somando forças com produtores locais e representantes de outros segmentos do mercado musical, o Festival ampliou suas bases, emergindo como um dos mais importantes e interessantes do país segundo a crítica especializada. Ajudou a revelar talentos locais e contribuiu para a profissionalização do mercado, agregando uma programação fixa de painéis, debates e oficinas que respondiam a uma necessidade prática de entender a música como uma

The parties became fortnightly and made room for a series of local and national bands, presenting to the public new names not only from the national scene, but also from local rock, which was still attempting to put an end to some style prejudices and the need to establish other channels. All this served to strengthen bonds with the local scene, with national producers and artists, and with other scenes, capitalizing on the change from the now mythical hell hole of Café com Arte to the stages of a large festival in 2006. Originally baptized as ‘Se Rasgum no Rock’, that first edition of the festival brought together several bands from Pará and some national hopefuls, alongside well established names like Mundo Livre S/A, Cachorro Grande and Wander Wildner. In 2008, with the Pará scene now in full swing, the festival found its unique space in the realms of novelty, originality, popular talent and above all... diversity. It introduced tecnobrega – something unthinkable

Mundo Livre S/A e o final inesquecível da primeira edição, em 2006 Mundo Livre S/A and the unforgettable ending of the first edition, in 2006

Bonde do Rolê e o circo da baderna Bonde do Rolê going nuts on stage

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das forças motrizes da cultura, capaz de gerar dividendos à cena – sejam eles econômicos ou de ordem artística – e a seus personagens. A essas trocas se podem somar as iniciativas de caráter ambiental, o espaço para criadores de moda e gastronomia locais e a parceria com outros coletivos. As Seletivas e sua posterior interiorização trouxeram a oportunidade para bandas aspirantes e o incentivo através de prêmios em produtos – arte para seus discos, ensaio fotográfico, horas de ensaio em estúdio e gravação de músicas – para o desenvolvimento de suas carreiras. O Se Rasgum acompanhava então a tendência de surgimento de festivais em todo o país e teve a oportunidade de dialogar com eles, participando de iniciativas em rede e de uma troca de experiências mais significativa. Sobretudo porque Belém já avançava sobre a ideia de que sua música tinha potencial para ultrapassar as fronteiras e permitir que a cidade se enxergasse como a cena mais promissora do país. “Hoje, os festivais independentes são, sem dúvida, a melhor plataforma de promoção de bandas e artistas junto ao público”, opina o produtor cultural Paulo André, realizador do festival pernambucano Abril Pro Rock, um dos pioneiros nesse segmento. Para ele, o Se Rasgum acompanha o fortalecimento da cadeia da música ocorrido nos últimos 20 anos, dentro da qual os festivais desempenham um papel importante ao reconfigurar as rotas percorridas pelos artistas e bandas que, de outra forma, não circulariam em regiões como o Norte e o Nordeste. “O processo de formação de público não é via internet. Ela é um suporte, uma ferramenta, mas os shows ao vivo, a circulação, isso é o mais importante do processo. O show de uma banda em um festival tem repercussão

20 vezes maior, e nacionalmente, do que mais um show naquela cidade.” Outro ponto destacado pelo produtor é a diversidade musical e a originalidade dos ritmos dessas regiões, uma espécie de capital cultural que dá base a festivais como o Se Rasgum. “A diversidade musical é fundamental nos festivais. Desde a sua primeira edição, o Abril Pro Rock coloca cultura popular na sua grade de programação e apoia esse diálogo da música tradicional com a contemporânea. Acompanho a cena musical do Pará há tempos. O Brasil é complicado mesmo, e demorou pra que os seus nomes ganhassem o país. E não é porque Belém virou a nova Recife. É porque é um estado riquíssimo musicalmente, com muita identidade e diversidade, que o Brasil redescobriu e ‘re-entrou’ no mapa da música pop brasileira”, comenta. “Não tem essa história de nova Recife. É Belém, é a música do Pará merecidamente ganhando o país. Não é hype.” “O Se Rasgum é facilmente o mais importante festival da região Norte e certamente um dos mais quentes do Brasil”, afirma o produtor musical Carlos Eduardo Miranda, atento observador da cena musical brasileira e, em especial, a paraense. Conhecido tanto por seu trabalho à frente do selo Banguela – que revelou bandas importantes do rock brasileiro, como Raimundos – quanto por seu trabalho como produtor musical e como jurado do programa Astros, Miranda considera que a posição geográfica da capital paraense, aliada à programação do Se Rasgum, acabaram contribuindo para a formação de uma proposta inovadora. “Não apenas pela proximidade equatorial, mas pela ousadia incendiária de sua programação. Sem contar que mantém sempre acesa a chama da música diversa, chova ou faça sol no estado do Pará.”

Seletivas Se Rasgum

Tulipa Ruiz (SP)

Marku Ribas (MG)

Odair José (GO)

Média de 100 bandas inscritas a cada edição. Das Seletivas já participaram artistas conhecidos do público paraense, como Felipe Cordeiro, Strobo, Bruno B.O. e Juca Culatra, entre muitos outros. A partir de 2011, a Se Rasgum expandiu a iniciativa, levando as Seletivas até a cidade de Marabá, no sul do Pará, buscando novas sonoridades no interior do estado. Average of 100 bands entered in each edition. Artists now well known to the public of Pará have already participated in the Seletivas, such as Felipe Cordeiro, Strobo, Bruno B.O and Juca Culatra, along with many others. From 2011 onwards, Se Rasgum expanded this initiative, taking the Seletivas to the city of Marabá, in the south of Pará, searching for new sounds in the interior of the state. 26

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Ben Kweller (EUA)


until then at an independent rock festival – and also combining forces like hip hop, carimbó, experimentalism and guitarrada. The word ‘rock’ in the festival’s name had now been left behind for good. On a parallel with this, the concept of independent music was reinventing itself as the very representation of new Brazilian music and its artistic, cultural and economic relevance.

Toni Soares (PA)

In 8 years of the Se Rasgum Festival and its related events, 90 bands from 17 Brazilian states and 4 countries have played in Belém. On top of this there has been an even bigger number of shows by artists and DJs from Pará itself. Its stages have seen encounters like Pinduca with Fernanda Takai, Dado Villa-Lobos with Los Porongas, Odair José with Dead Lover’s Twisted Heart and Gang do Eletro with Gaby Amarantos. Guitarrada has found itself a new crowd. Tecnobrega has experienced both empathy and rejection. New local bands have won the opportunity to present themselves to audiences that have a profound passion for music, as well as to industry professionals and journalists seen as references in the nation’s cultural media. Joining forces with local producers and representatives from other sectors of the music business, it has expanded its base and emerged as one of the most important and interesting festivals in Brazil in the eyes of the specialized critics. It has also helped to unveil local talent and contributed to the professionalization of the market, adding a fixed schedule of panels, debates and workshops in response to the practical need to understand music as one of the driving forces of culture, able to pay economic and artistic dividends to the scene and its characters. To these exchanges, we could also add environmental initiatives, areas for fashion designers and local cuisine, and partnerships with other collectives. The Seletivas (band audition circuit) and their subsequent phases in smaller local cities give aspirational bands the opportunity to develop their careers, stimulating them with prizes such as artwork for their albums, photo sessions, studio time for rehearsals and recording.

Soatá (DF)

Se Rasgum was part of a festival emergence trend around the country and had the opportunity to talk with those behind them, participating in networking initiatives and a more meaningful exchange of experiences, especially because Belém was already convincing itself of the idea that its music had the potential to break through the boundaries and allow the city to be seen as the most promising scene in the country. “Today, the independent festivals are, without doubt, the best platform for the promotion of bands and artists to the public”, says cultural producer Paulo André, organizer of a festival in Pernambuco state called ‘Abril Pro Rock’, one of the pioneers in this field. To him, Se Rasgum accompanied the strengthening of the musical chain that has occurred over the last 20 years, within which festivals play an important role in reconfiguring the route taken by bands and artists who otherwise would not circulate in regions like northern and north-eastern Brazil. “No band develops its audience through the internet. The web is a support system, a tool, but the live shows, the movement, this is the most important part of the process. A band playing at a festival has a repercussion 20 times greater, and on a nationwide level, than just one more regular concert in that city”.

Mallu (SP)

Another point highlighted by the producer is the musical diversity and originality of the rhythms of these regions. It is a kind of cultural capital that underpins festivals like Se Rasgum. “The musical diversity is fundamental in the festivals. Since its first edition, Abril Pro Rock has put popular culture in its lineup and supports this dialogue between traditional and contemporary music. I’ve followed the Pará music scene for a long time. Brazil is really complicated, and it took a while for Pará to establish its name nationally. And it’s not that Belém has become the new Recife. It’s because it is in an ultra rich state musically, with a lot of identity and diversity, that Brazil rediscovered this region and ‘reentered’ it on the map of Brazilian popular music”, he states. “There’s no tale of a new Recife. It’s Belém; it’s Pará’s music deservedly winning over the nation. It’s not a hype.” “Se Rasgum is easily the most important festival in the northern region, and certainly one of the hottest in Brazil”, says the music producer Carlos Eduardo Miranda, a keen observer of the Brazilian scene and, particularly, of Pará. Known for his work as leader of Banguela – a label that revealed important Brazilian rock bands like Raimundos – as much as for his work as a music producer and judge on the TV program ‘Astros’, Miranda feels that the geographical location of Pará’s capital, together with the festival’s lineup, ended up contributing to the formation of an innovative product. “It’s not just its closeness to the equator, but the burning boldness of its setup. And not to mention that this flame of diverse music never goes out, rain or shine, in the state of Pará.”

El Cuarteto de Nos (URU)

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NORTE / North A Euterpia (PA) A Trip To Forget Someone (PA) Aeroplano (PA) All Still Burns (PA) Álibi de Orfeu (PA) Alma Livre Sound System (PA) Antcorpus (PA) Arraial do Pavulagem (PA) Arthur Espíndola (PA) Arthur Nogueira (PA) Attack Fantasma (PA) Babyloyds (PA) Bruno B.O. (PA) Caburé (PA) Circuito Floresta Sonora (PA) Clepsidra (PA) Clube de Vanguarda Celestial (PA) Coletivo Rádio Cipó (PA) Cravo Carbono (PA) Curimbó de Bolso (PA) Delinquentes (PA) Destruidores de Tóquio (PA) Dharma Burns (PA) DJ Maluquinho (PA) Dona Onete (PA) Elder Effe (PA) Enquadro & Marcel Barretto (PA) Felipe Cordeiro (PA) Félix & Los Carozos (PA) Filhos de Empregada (PA) Fragor (PA) Hebe & Os Amargos (PA) Gaby Amarantos & Tecnoshow (PA) Gang do Eletro (PA) Godzilla (AP) Inverso Falante (PA) I.O.N. (PA) Juca Culatra & Power Trio (PA) Juca Culatra & Cristal Reggae (PA) Johny Rockstar (PA) Jolly Jocker (PA) La Pupuña (PA) Laurentino & Os Cascudos (PA) Laurentino Style (PA) Los Porongas (AC) Madame Saatan (PA) Malachai (PA) Manoel Cordeiro e Os Desumanos (PA/RJ) Maquine (PA) Massa Grossa (PA) Mestre Solano (PA) Mestre Vieira (PA) Metaleiras da Amazônia (PA) Mezatrio (AM) Mini Box Lunar (AP) Molho Negro (PA) Monomotor (PA) 28

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Já passaram pelo Festival

Who has played the Festival

Mostarda na Lagarta (PA) Mr. Jungle (RR) Nelsinho Rodrigues (PA) Nó Cego (PA) Norman Bates (PA) Os Caçulas daVila (PA) Os Velocípedes (PA) Paris Rock (PA) Paulo Luamin (PA) Pianuts (PA) Pinduca (PA) Pio Lobato (PA) Pirucaba Jazz (PA) Pro.eFX (PA) Projeto Charmoso (PA) Projeto Secreto Macacos (PA) Quimera Porfia (PA) Rennegados (PA) Retaliatory (PA) Sambiose (PA) Sequestrodamente (PA) Sevilha (PA) Sincera (PA) Som do Pau Oco (PA) Sonora Iqoaraci (PA) Stereoscope (PA) Stereovitrola (AP) Stigma (PA) Stress (PA) Strobo (PA) SuperJack (PA) Suzana Flag (PA) Telaviv (PA) Telesonic (PA) The Baudelaires (PA) Tonny Brasil (PA) Toni Soares (PA) Turbo (PA) Uaná System (PA) Ultraleve (PA) Vinil Laranja (PA) Zueira de Fumanchú (PA)


NORDESTE / North-East Amp (PE) Cidadão Instigado (CE) Cordel do Fogo Encantado (PE) Eddie (PE) Lucas Santtana (BA) Montage (CE) Mundo Livre S/A (PE) Música Magneta (PA/PE) Nação Zumbi (PE) O Garfo (PE) Otto (PE) River Raid (PE) Superoutro (PE) Sweet Fanny Adams (PE) Totonho & Os Cabra (PB) Tom Zé (BA) Vivendo do Ócio (BA) Wado (AL)

SUL / South Astronauta Pinguim (RS) Apanhador Só (RS) Bidê ou Balde (RS) Bonde do Rolê (PR) Cachorro Grande (RS) Comunidade Nin-Jitsu (RS) De Falla (RS) Frank Jorge (RS) Graforréia Xilarmônica (RS) Krisiun (RS) Tom Bloch (RS) Wander Wildner (RS)

SUDESTE / South-East Arcanjo Ras (SP) Digital Dubs (RJ) Autoramas (RJ) Dubalizer (SP) Babilak Bah (MG) Emicida (SP) Bárbara Eugenia (RJ) Fusile (MG) Bazar Pamplona (SP) Gork (SP) BNegão & Os Seletores de Hell’s Kitchen Project (MG) Frequência (RJ) Iconili (MG) Cabaret (RJ) Jards Macalé (RJ) Cabruêra (PB) Lê Almeida (RJ) Canastra (RJ) Leoni (RJ) Cérebro Eletrônico (SP) Lobão (RJ) Conjunto Musical do Amor (RJ) Kassin (RJ) Curumin (SP) Mallu Magalhães (SP) Dead Lover’s Twisted Manacá (RJ) Hearts (MG) Marcelo Jeneci (SP)

CENTRO-OESTE E DF / Central-West & DF Dado Villa-Lobos (DF) Lafusa (DF) Macaco Bong (MT) Móveis Coloniais de Acaju (DF) MQN (GO) Odair José (GO) Plebe Rude (DF) Vanguart (MT)

Marku Ribas (MG) Matanza (RJ) Milocovik (SP) Moptop (RJ) Mukeka Di Rato (ES) Pato Fu (MG) Pélico (SP) Pequena Morte (MG) Radiotape (MG) Ras Bernardo (RJ) The Feitos (RJ) Thiago Pethit (SP) Tokyo Savannah (SP) Tulipa Ruiz (SP) Velhas Virgens (SP)

OUTROS PAÍSES / Other Countries Alex Minoff (EUA) Ben Kweller (EUA) Cuarteto de Nos (Uruguai) Hablan Por La Espalda (Uruguai) Los Peyotes (Argentina) Maia Vidal (França) Nashville Pussy (EUA) Shout Out Louds (Suécia) The Slackers (EUA) 29



É pop, maninho Na terra da mistura, há os que rezam convictos na boa e velha cartilha pop Por Leonardo Fernandes Fotos divulgação

It’s pop, buddy! Even here in this mixed up musical land, there are firm believers in the good old pop recipe SELETA - música da amazônia

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arcel Barretto faz música assobiável de tão pop. O artista de sorriso largo e abraço fácil parece compor como quem faz amigos: está sempre disposto a agradar. Disponíveis em sua página na internet estão várias canções como a balada “Em Casa” – em que sua voz mansa e o dedilhar do violão evocam imagens familiares como o paparico da mãe, a comidinha da vó – e a instrumental “Funkyfellas”, black music com clima de jam session: teclado a la George Clinton, guitarra wah-wah e baixo cheio de groove. “Conversa entre mim e eu” pode ser definida como a mais “experimental” - além de flertar com a música eletrônica, a letra tem um quê de surreal: “Hoje vai ter farra, vou me visitar/ puxar duas cadeiras, uma pra mim, outra pra eu/ mim e eu, mim e eu”. “A minha frustração de não ter uma banda foi o que começou a dar a cara pro meu trabalho solo. Se tornou um diferencial. Grava voz aqui, guitarra acolá. No estúdio, arrisquei até na bateria, baixo, teclado. Juntava tudo no computador com ajuda de um programa de edição, como se fossem peças de lego. Um amontoado de diferentes gostos e preferências que se encaixavam de alguma forma”, compara o cantor e compositor de 25 anos. Aparentemente, o estilo de Marcel é formado por blocos de todas as cores e tamanhos. Nascido em Toulouse, na França, a mãe musicista foi sua primeira influência, apresentando a ele o violão, quando ainda era criança. Aos 16 anos ele começou a carreira, se apresentando com o grupo de reggae Sevilha. De lá pra cá, se apresentou com nomes como MG Calibre, Teatro Mágico, Dona Onete, João Lemos (Molho Negro) e Sammliz (Madame Saatan), além de ter lançado dois discos como guitarrista do viajandão Juca Culatra & Power Trio. Só uma peça fica fora do trabalho: a música regional. E isso faz toda a diferença, garante. “Nos últimos anos, a música paraense ficou muito marcada por um determinado tipo de som: ela é tecnobrega, carimbó,

guitarrada, Gaby Amarantos, Felipe Cordeiro. Pra ser sincero eu acho linda essa influência local. Mas é uma coisa que não me apetece muito. Não cresci ouvindo isso, entendeu? Sou um boyzinho de apartamento, na moral, sacou? Minha formação é Iron Maiden, Spice Girls, Smash Mouth, Pet Shop Boys”, aponta. Nada típico O lado “world music” da música paraense não é novidade. Músicos como Nazaré Pereira, Nilson Chaves e Vital Lima foram os pioneiros nesse processo de misturar influências globais e tradição já na década de 1980, lembra o radialista e produtor musical Beto Fares. Todavia, a evidência que a música regional vem tomando nos últimos tempos acaba não dando o merecido destaque a artistas com propostas diferentes, como é o caso do pop rock. “O Pará virou a bola da vez graças ao seu sotaque. Não se trata de um momento de mesmice. É um período que nós estamos nos descobrindo, nos avaliando. Mas a gente não pode se esquecer que antes mesmo do boom do rock brasileiro, Belém já produzia nomes como Stress, considerado o pioneiro do heavy metal no país. Com a internet e a consolidação de uma cena independente, bandas como Eletrola, Stereoscope e Suzana Flag se diferenciaram justamente por fazer uma música pop competente e descompromissada, bem distante da sonoridade amazônica”, explica Beto. “Fanzine”, álbum de estreia do Suzana Flag lançado em 2003, mostrou que era possível fazer pop rock no Pará sem soar como música típica paraense. Como o título sugere, o disco é uma declaração de amor dos músicos a ídolos como Belle and Sebastian e Pato Fu. “O Suzana foi formado em Castanhal [munícipio paraense a 68 quilômetros de Belém]. O forte na cidade era o brega, o forró. Parecia que a gente vivia numa bolha. Não sabíamos o que tava rolando em Belém. A voz da era muito parecida com a da Fernanda Takai, as minhas linhas de baixo têm muito de Pixies e Teenage Fanclub. Os jornalistas falavam que a gente fazia algo diferente do que tava rolando. A gente só queria tocar e se divertir”, lembra Elder Effe, músico e compositor, um dos fundadores do grupo formado há onze anos. Gravado no quintal da casa do guitarrista Joel Melo, “Fanzine” foi improvisado em dois aparelhos Mini-Disc e um teclado eletrônico fazendo as vezes de bateria. A primeira tiragem de 500 cópias foi lançada em CD-R, prensada em um PC. Mesmo precário, o trabalho garantiu o título de banda revelação ao Suzana no prêmio London Burning, em 2004. A banda se apresentou em festivais como Abril Pro Rock (PE), Bananada (GO) e Goiânia Noise (GO). Além de gravar participação no disco “Tributo a Odair José”, com nomes como Pato Fu, Paulo Miklos e Mundo Livre S/A. “O resultado [do ‘Fanzine’] não foi lá essas coisas, mas acho que a vontade de fazê-lo e o valor sentimental das canções o transformaram em um disco de sucesso. Acho que foi uma questão de identificação com os fãs, de termos letras que falam do nosso cotidiano e das coisas que a gente acredita”, afirma o guitarrista.

Elder Effe


Suzana Flag M

arcel Barretto makes pop music so catchy that you will find yourself whistling it. The artist with the big grin and huggable nature seems to write music in the same way he makes friends – always eager to please. Several of his songs are available on his website, like the ballad ‘Em Casa’ – in which his mellow voice and guitar picking evoke familiar images such as momma’s pampering and grandma’s homemade food – and the instrumental ‘Funkyfellas’, a soul track laid down with a jam feel: keyboards à la George Clinton, wah-wah guitar and groovy bassline. ‘Conversa Entre Mim e Eu’ (which means something like ‘a chat between myself and I’) can be defined as his most experimental – besides flirting with electronic music, the lyrics have a touch of surrealism: “There’ll be a party today, I’ll visit myself/pull up two chairs, one for me, one for I/myself and I, myself and I”. “My frustration about not having a band was what started to shape my solo work and make me stand out. Recording a voice here, a guitar there. In the studio, I even took a shot at drums, bass and keyboard. I put it all together on the computer with a mix program like they were pieces of Lego, a heap of different tastes and preferences that somehow fitted”, relates the 25-year old composer. Evidently, Barretto’s style is composed of Lego bricks in all colors and sizes. Born in Toulouse, France, his musician/ musicologist mother was his first influence, introducing him to the guitar when he was still a child. At 16, he began his career with the reggae group Sevilha. From then until now, he performed with the likes of MG Calibre, Teatro Mágico, Dona Onete, João Lemos (Molho Negro) and Sammliz (Madame Saatan), along with having been the guitarist on two records by the trippy Juca Culatra & Power Trio. Only one thing is kept out of his sound: the regional music of Pará. And this makes the whole difference, he guarantees. “In the last few years, the music from Pará was heavily marked by a certain sound: tecnobrega, carimbó, guitarrada, Gaby Amarantos, Felipe Cordeiro. To be honest, I find this whole local influence beautiful, but it’s not something that really grabs me. I didn’t grow up listening to this, know what I mean? Seriously, dude. I’m a condo boy, get my drift? My

roots are Iron Maiden, Spice Girls, Smash Mouth, Pet Shop Boys “, he points out. Far from typical The ‘world music’ side of Pará’s music is nothing new. Musicians like Nazaré Pereira, Nilson Chaves and Vital Lima were already pioneers in blending tradition with global influences back in the 1980s, recalls the radioman and music producer Beto Fares. Nevertheless, the spotlight that regional music has been under lately ends up denying artists with different aesthetical approaches, like pop rock, the attention they deserve. “Pará became the hot ticket thanks to its accent. This isn’t something we’ve witnessed before. This a time of selfdiscovery, self-evaluation. But we can’t forget that even before the Brazilian rock boom, Belém was already breeding acts like Stress, considered a national heavy metal pioneer. With the internet and the solidification of an independent scene, bands such as Eletrola, Stereoscope and Suzana Flag stood out precisely due to their competent and uncompromised pop music, miles away from the Amazonian sound”, explains Fares. ‘Fanzine’, the 2003 debut album of the band Suzana Flag, showed it was possible to make pop rock in Pará without sounding like the typical local music. As the title suggests, the record is a declaration of love from the band to their idols, such as Belle and Sebastian and Pato Fu. “Suzana Flag was formed in Castanhal (a Pará town located 68 kilometers out of Belém), where brega and forró ruled the roost. It was like we lived in a bubble. We didn’t know what was going down in Belém. Suzanne’s voice was very much like Fernanda Takai and my basslines have a lot of Pixies and Teenage Fanclub. Journalists said we were doing something different from what else was going on. We only wanted to play and have fun”, recalls Elder Effe, musician, composer and a founder of the band set up 11 years ago. Recorded in guitarist Joel Melo’s backyard, ‘Fanzine’ was improvised on two Mini-Disc systems and using an electronic keyboard for the drums. The first run of 500 copies was

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Marcel Barretto Com a saída de Elder Effe e Daniel Coutinho em 2007, os membros restantes - Joel, a vocalista Suzanne May e o baterista João Ricardo - entraram em recesso por dois anos até o lançamento do segundo álbum, “Souvenir”. Eles podem não contar mais com o status de “grande aposta do rock nacional” como antigamente, mas ninguém perdeu o bonde da história, de acordo com Joel. “Não estamos mais de olho no mercado e sim nos fãs espalhados pelas mídias sociais e nos shows que fazemos. Infelizmente não existe fórmula comprovada pro sucesso, mas tem espaço pra todo mundo, é só correr atrás. É importante ter algo a dizer pra essas pessoas e nós temos”, define. Além do Pop Se a partir da geração do Suzana Flag o pop amazônico se aproximou do britpop e do indie rock, novas bandas como La Orchestra Invisível vêm expandindo o gênero para caminhos ainda mais inusitados. Em seu mais recente trabalho, o EP virtual “Tratado do Vazio Perfeito”, de 2012, o grupo aposta na nostalgia. O álbum é influenciado pelo psicodelismo dos anos 1960, evocando uma atmosfera sombria e existencial, em canções que falam sobre paixão e dor, sonho e realidade, juventude e morte. “No nosso último EP a gente está um pouco mais noturno. Mas não que a gente seja uma banda totalmente melancólica. Em primeiro lugar somos uma banda pop. Fazemos música com refrão, para as pessoas cantarolarem”, analisa o guitarrista e vocalista Marcelo Kahwage. O background de Marcelo é um lado mais pesado do rock. Ele começou a carreira nos anos 1990 como vocalista da finada Caustic, formada na onda do grunge. Atualmente, o músico ainda integra o Dharma Burns, com influências de indie e post rock, e o grupo de powerpop The Baudelaires. Entretanto, é com o som pouco convencional do La Orchestra Invisível que vem ganhando destaque. Criado em 2009, o grupo composto por Larissa Xavier nos vocais, guitarra e teclados; Cezar Sousa no baixo; e Daniel Souza na bateria, foi selecionado

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para participar da Mostra Terruá Pará 2013, projeto criado pelo governo do Pará com o intuito de divulgar a produção musical local para o resto do país. “À primeira vista, a gente pode pensar que a música regional empurrou o pop rock pro underground em Belém. Mas eu vejo de uma forma diferente. Se a música paraense ganhou os holofotes, acho que se abre uma oportunidade de todo mundo mostrar seu som, não importa que estilo seja. Mas por outro lado, tem um certo lado heróico de ser underground. Não que eu seja um cara fechado, mas eu acho que esse lado underground do rock é uma tradição”, defende o artista. Visão empresarial Na opinião de Elder Effe, se a parcela pop rock da música paraense ainda enfrenta dificuldade para ganhar projeção, isso se dá em partes pela falta de profissionalismo do mercado. “É a postura da galera. Uma postura típica de banda aqui de Belém. Cara, já é subentendido que banda toca de graça. Que o contratante quando faz um orçamento pra um festival, pra qualquer coisa, ele paga o porteiro, segurança, quando ele chega lá no último da lista, a banda, ele diz: a banda a gente negocia”, critica. Após sua saída do Suzana Flag em 2006, o músico integrou bandas como Ataque Fantasma e Johnny Rockstar até enveredar pela carreira solo com o disco “As Crônicas do Bandido”, de 2012. Com um pé na música folk e outro no blues, o CD valoriza o violão e o piano, com guitarras bem discretas. No trabalho conceitual, Elder encarna o bandoleiro solitário que dá nome ao disco, disparando pra todos os lados em suas crônicas travestidas de letras. “Eu tive um monte de banda e sempre foi muito difícil. Pensei que o caminho natural era ser solo. Além de estética, é uma questão de autossuficiência. Meu próximo plano é lançar um vinil. Não sei quando vou realizar. Porque meu projeto solo precisa de uma postura empresarial. Eu já entendi isso há muito tempo, sabe? Eu tenho poucos fãs, mas os que eu tenho têm uma conexão real com a minha música. É um patrimônio que dura mais”, conclui o paraense de 33 anos.


produced on a PC and released on CD-R. Despite being a budget record, the album won Suzana Flag the title of breakthrough act in the 2004 London Burning awards. The band performed in festivals like Abril Pro Rock (Pernambuco), Bananada (Goiás) and Noise (Goiás). In addition to this, they featured on the album ‘Tributo a Odair José’, alongside the likes of Pato Fu, Paulo Miklos and Mundo Livre. With the departures of Elder Effe and Daniel Coutinho in 2007, the remaining members (Melo, singer Suzanne May and drummer João Ricardo) took a two-year break until releasing ‘Souvenir’, their second album. In Melo’s words, although they may have lost their old status of ‘the hot newcomers of Brazilian rock’, things carried on regardless.

Marcel Barretto soundcloud.com/marcelbarretto Suzana Flag suzanaflag.com.br La Orchestra Invisível soundcloud.com/laorchestra-invis-vel Elder Effe soundcloud.com/eldereffe

“We’re no longer worried about the market, but about our fan base on the social networks and our shows. Sadly, there’s no proven formula for success, but there’s a scene for everybody. You just have to go out and get it. It’s important to have something to say, and we do”, he explains. Beyond Pop If Amazonian pop grew more similar to Britpop and indie rock with Suzana Flag’s generation, new bands such as La Orchestra Invisível have been taking the genre down even more unusual paths. In their most recent work, the 2012 virtual EP ‘Tratado do Vazio Perfeito’, the band took a gamble on nostalgia. The record is influenced by 1960s psychedelia, evoking a somber and existential atmosphere in songs that talk about passion and pain, dream and reality, youth and death. Guitarist and singer Marcelo Kahwage’s background leans towards the heavier side of rock. He began his career in the 1990s as the singer of the now defunct Caustic, formed during the grunge wave. Currently, the musician is also in the indie and post rock influenced Dharma Burns, and power popsters The Baudelaires. However, it is with the unconventional sound of La Orchestra Invisível that he has been getting most attention. Formed in 2009, the band is composed of Larissa Xavier on vocals, guitar and keyboard; Cezar Sousa on bass; and Daniel Souza on drums. They were chosen to be part of the Mostra Terruá Pará 2013, a project created by the Pará state government to showcase the music produced locally on a national level. “At first sight, we may think that regional music pushed pop rock to Belém’s underground, but I see it in a different light. If the music from Pará has gained the spotlight, I think this creates a showcase opportunity for everybody, regardless of style. But on the other hand, there’s a kind of heroic side to being underground. It’s not that I’m against new ideas, but it’s the tradition for rock to be underground”, argues the artist.

Business Vision According to Elder Effe, if the pop rock portion of Pará’s music still struggles to gain momentum, part of the reason is a lack of professionalism in the market. “It’s the way everybody is, the typical way our bands behave. It’s already assumed that bands here play for free; that the contractors, when planning the budget for a festival or whatever, pay for the doorman, the security and then, when they get to the end of the list, there’s the band, and they say: ‘we can negotiate with these guys’”, he criticizes. After his departure from Suzana Flag in 2006, the musician played in bands like Ataque Fantasma and Johnny Rockstar until venturing off on his solo career with the album ‘As Crônicas do Bandido’, in 2012. With one foot in folk music and the other in the blues, the record evolves around the acoustic guitar and the piano, with very discrete electric guitars. In this conceptual work, Effe incarnates a lonesome outlaw who shoots chronicles masked as lyrics, giving the album its name. “I’ve been in a bunch of bands and it’s always been real hard. So I thought the natural path was to go solo. It’s not only aesthetics, but self-sufficiency too. My next plan is to put out a vinyl. I don’t know when that’ll happen. My solo project demands a business attitude and I’ve known this for ages, you get me? I don’t have many fans, but the ones I do have are really connected to my music. It’s an asset with a longer life span”, concludes the 33-year old musician from Pará.

La Orchestra Invisível


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O HITMAKER Com músicas gravadas por Reginaldo Rossi, Leonardo e Calypso, Tonny Brasil é o responsável por 8 entre 10 bregas conhecidos dos anos 1990 em diante

Tonny Brasil is the man behind 8 out of 10 famous brega songs from 1990 until now, with songs recorded by Reginaldo Rossi, Leonardo and Calypso por Marcelo Damaso Fotos: Taiana Laiun

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A música “I won’t let you down”, do Ph.D, despertou em Tonny a paixão pela música romântica Ph.D’s song ‘I won’t let you down’ awakened Tonny’s passion for romantic music

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elém, anos 1980. Um garoto com isopor de picolé caminha à tarde pelo centro da cidade, próximo às Docas do Pará, e passa em frente a um restaurante chamado Samambaia, na Praça Kennedy. Lá, a banda Os Panteras passava o som para o show que faria logo mais, à noite. A música era “I won’t let you down”, do Ph.D, que tomou de assalto os ouvidos e a sensibilidade do pequeno vendedor de picolé. Ele ficou ali, parado, vendo a banda tocar o clássico do pop britânico e, mesmo sem entender inglês, mergulhou no romantismo. Esperou que acabasse a passagem de som, subiu no ônibus do grupo e desde então tudo mudou para ele, que virou um faz-tudo da banda, desde o “garoto do lanche” até a limpeza do estúdio, tudo isso para aprender técnicas e truques do que viria a ser seu caminho. O garoto cresceu e virou Tonny Brasil, o grande hitmaker do brega paraense, autor de diversos sucessos da banda Calypso e de boa parte do que ficou marcado nos corações bregueiros como as maiores pérolas do estilo dos anos 1990 em diante – além de ter um de seus maiores sucessos, a canção “Leviana”, regravada por Reginaldo Rossi e Leonardo. Trinta anos depois, Tonny estava de volta ao local onde fitou pela primeira vez a execução de uma canção romântica ao vivo por uma banda. Na ocasião, ele já representava uma das apostas de redescoberta do Festival Se Rasgum, em sua sétima edição, tocando para um público em que se misturavam hipsters moderninhos e uma garotada sem preconceito e atenta às suas raízes. No palco, Tonny Brasil não conseguiu tocar durante uma hora nem 1/3 de suas canções que se tornaram populares no Pará.

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elém, 1980s. One afternoon, a boy with a cooler full of popsicles strolls through the city center, near the harbor, and passes by a restaurant called Samambaia, at Praça Kennedy. Inside, the band Os Panteras was soundchecking for a show that evening. The song was Ph.D’s ‘I Won’t Let You Down’, and it launched an assault on the ears and the feelings of our little street seller. He stood frozen watching the band play this classic British pop song, wallowing in its romanticism even though he did not understand a single word of English. He waited for the end of the soundcheck, hopped on the band’s bus and, since then, everything changed for him. He became the band’s errand boy, and was assigned a variety of tasks, from buying snacks to cleaning up the studio, all in exchange for learning the ropes of what would become his future. The boy grew up and became Tonny Brasil, the big brega hitmaker from Pará, who composed several of the band Calypso’s successes and of a large chunk of the tunes that beat in the hearts of brega fans and the genre’s biggest gems of the 1990s until now. Not to mention having one of his top hits, the song ‘Leviana’, rerecorded by Reginaldo Rossi and Leonardo. Thirty years later, Tonny was back at the venue where, for the first time, he had caught sight of a romantic song being played live. By that time, he was already one of the Se Rasgum Festival’s bets on ‘rediscovered’ artists, playing at its seventh edition, to an audience in which trendy hipsters blended with a bunch of kids who were unprejudiced and tuned in to their roots. On stage, during an hour of concert, Tonny Brasil did not even get through a third of the songs that became popular in Pará.

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Tonny Brasil é um dos maiores compositores do brega paraense, desde que começou seu processo de composição e gravou o primeiro disco aos 21 anos. Quando garoto, antes de montar sua primeira banda, Tonny já mostrava um talento nato para rimas e poemas. Foi premiado com o terceiro lugar em um concurso de poesia nacional patrocinado pela Nestlé. Graças à dedicação aos estudos, conseguiu sair da escola municipal, fez uma prova e conseguiu uma bolsa para estudar em um dos colégios mais tradicionais de Belém, Gentil Bittencourt. “E numa dessas feiras de cultura eu tinha que participar de alguma forma. Ou era aquilo ou virar atleta e ir para o lado do esporte.” Mas seguindo sua veia pop, ao invés de se entregar ao estilo que o consagrou, foi primeiro para o rock e virou baixista da banda Éter na Mente, contemporânea a nomes como Violeta Púrpura e Mosaico de Ravena. Foram longos passos para sair do papel de baixista de rock nacional para um dos inventores do tecnobrega, alcunha que diversos DJs, produtores e músicos defendem como sua em tempos de Gaby Amarantos e Gang do Eletro estourando Brasil afora. Quando foi trabalhar no estúdio da banda Os Panteras, Tonny passou a compreender os processos mais técnicos da produção musical e observava cantores gravando composições de outros artistas. “Meu sonho era que um deles gravasse uma música minha. Mas eles, obviamente, preferiam outros nomes mais conhecidos, que já tinham gravado outras músicas, como o Jorge

Since he began his creative journey and recorded his first album at 21 years old, Tonny Brasil has been one the greatest composers of Pará’s brega genre. As a kid, before forming his first band, Tonny already showed an innate talent for rhymes and poems, leading him to win third place in a national poetry competition sponsored by Nestlé. Thanks to dedication to his studies, he managed to leave a smaller public school, take an exam and get a scholarship to study at Gentil Bittencourt, one of Belém’s most traditional schools. “I had to take some part in one of these cultural fairs. Either that or become an athlete and get into sports”. Following his pop blood, instead of embracing the genre that would consecrate him, he got into rock first and became the bassist of the band Éter na Mente, a contemporary of the likes of Violeta Púrpura and Mosaico de Ravena. It was a long voyage to go from a rock bassist to one of the creators of tecnobrega, a title that many DJs, producers and musicians claim as their own in an era in which Gaby Amarantos and Gang do Eletro are taking the nation by storm. When he went to work at Os Panteras’s studio, Tonny picked up the more technical processes involved in musical production and observed singers recording songs by other artists. “My dream was for one of them to record a song of mine. But they obviously preferred other better-known names that had already recorded other tracks, like Jorge Benner and other guys who already did that. So I, myself, decided to record one of my songs to see whether they’d pay attention to me, and it was then that I recorded ‘Lana’, which was the first fully electronic one with this brega feel, and considered the first tecnobrega song”.

Benner e outros caras que já faziam isso. Então eu mesmo resolvi gravar uma música minha para ver se eles me davam atenção, e foi quando gravei ‘Lana’, que foi a primeira música toda eletrônica com essa pegada brega, considerada o primeiro tecnobrega.” A música fez um grande sucesso na época, foi quando as pessoas começaram a prestar atenção em Tonny Brasil. O próximo passo foi trabalhar no estúdio AM Produções, de Mário Freitas, onde participou de produções dos grandes ícones do brega pop paraense, como Roberto Villar, de quem produziu os discos “A nuvem” e “Majestade sabiá”. “Depois comecei a ter contato com vários artistas dessa geração e conheci um rapaz, um guitarrista branquinho, chamado Cledivan, hoje conhecido como Chimbinha, da banda Calypso. A partir daí viramos amigos, tive contato com mais artistas dessa área. E então eu fui me aprofundando mais nessas gravações eletrônicas. E como tinha um custo muito alto pra gravar com uma banda inteira, esse tipo de gravação facilitou e barateou a produção musical. Foi quando arrumei também um problema pra mim, pois começaram a me chamar de ‘Desemprega músico’, de ‘Assassino da música paraense’, ‘Químico’...”, relembra, rindo da situação. Nos anos 1990 ainda não havia a facilidade que se tem hoje em dia com softwares de gravação. Era uma música eletrônica gravada com sintetizadores interligados através de midi. E desse processo saiu uma de suas parcerias mais emblemáticas, com Nelsinho Rodrigues.

‘Lana’ was a big hit at the time, and marked the moment in which people started to pay attention to Tonny Brasil. The next step was to work at Mário Freitas’s AM Produções studio, where he took part in productions by the greatest icons of Pará’s popular brega scene, like Roberto Villar, for whom he produced the albums ‘A Nuvem’ and ‘Majestade Sabiá’. “After that, I started to become more involved with artists from that generation. I ended up meeting a guy, a very white guitarist, called Cledivan, who’s now known as Chimbinha, from the band Calypso. From then on, we became friends and I was in contact with more artists from the scene. Then, I got deeper into those electronic recordings. Since it was too expensive to record with a full band, this kind of recording made our production process easier and cheaper. It was also when I got myself into trouble, since people started to call me ‘Musician Terminator’, ‘Pará’s Music Assassin’ and ‘Chemist’”, he grins. In the 1990s, there was still not the easiness that is found nowadays with recording software. It was electronic music recorded with synths interconnected through MIDI. This process gave birth to one of Tonny’s most emblematic partnerships: Nelsinho Rodrigues. “Nelsinho was a huge partner for a long time. It was really something to transform that nasty voice and compose for him”, he chuckles. “And because I had a home studio, I started to study Nelsinho and soon realized he manages to be one of the few artists from here who is able to sing as many romantic songs as deviant and humorous ones, and with the same skill. He goes from ‘Gererê’ to ‘Baladeira’ to ‘Caprichos’. He’s an interpreter of extremes”. SELETA - música da amazônia

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“Nelsinho foi meu grande parceiro por muito tempo. Foi algo difícil transformar aquela ‘voz de taquara rachada’ (risos) e compor pra ele. E como eu tinha um home studio, comecei a estudar o Nelsinho. E depois vi que ele consegue ser um dos poucos artistas daqui que consegue cantar tanto música romântica quanto a sacanagem e o humor, com a mesma facilidade. É de ‘Gererê’ e ‘Baladeira’ a ‘Caprichos’. Ele é um intérprete de extremos.” BALADAS INTERNACIONAIS Na hora de citar cinco artistas internacionais que o influenciaram, Tonny nomeia Elvis Presley, Little Richards, Rolling Stones, Queen e Nat King Cole como seus ícones. Dos brasileiros, vai de Roberto Carlos, Reginaldo Rossi, Legião Urbana, RPM e Paralamas do Sucesso. A mistura bem dosada, com pitadas das influências latinas (como o zouk) resulta no tipo de música que se tornou a cara de Tonny Brasil. Ao observar o que acontecia dentro dos estúdios onde se criou, ele percebeu que existem os compositores e os versionistas. “Eu prefiro sempre fazer uma música original inédita do que fazer uma versão. Eles têm facilidade pra isso, que eu sempre admirei, mas hoje em dia não tenho mais isso. No nosso meio temos poucos compositores, temos mais versionistas. Eu prefiro compor músicas inéditas”. No entanto, Tonny é o responsável por várias versões em português de músicas estouradas no pop mundial, como sua versão de “Believe”, da Cher, que no Pará se tornou o clássico “Existe vida após o amor”. “Havia aquela falsa ilusão do artista paraense de que o que a gente grava aqui só fica aqui, mas isso não existe. Essa versão que fiz de ‘Believe’ ficou muito conhecida com o Edson Vale interpretando, e depois virou até uma versão gospel. Na época, eu cheguei a receber uma notificação da Warner por causa da Cher. Mas como o CD oficial do Edson Vale não chegou a ser comercializado e o disco não saiu, ninguém recolheu direitos autorais pela versão e, por isso, não teve problema.” O ESTILO BREGA “Muita gente pergunta o que eu faço e eu costumo falar que o que faço é realmente o tecnobrega, que é toda e qualquer música no estilo brega, onde na produção não se precisa de um baterista, mas uma batida eletrônica. Eu não gosto muito de me chamar de ‘pai do tecnobrega’, mas acho que já sou reconhecido como o criador do estilo.” Ele sabe que as pessoas correm atrás do criador desse estilo que tem se espalhado por todo o Brasil e mundo afora, mas poucas pessoas sabem que o criador do estilo ainda está na ativa. Atualmente, Tonny se diz muito satisfeito com o sucesso que seu sobrinho Marcos Maderito tem feito com sua Gang do Eletro. “Eles deram outra cara para o estilo, colocaram a música eletrônica paraense, de fato, como um ritmo mundial, como o mais novo som mundial.” Tonny esteve desde o começo na carreira de Maderito, o “Garoto alucinado”. Tinha uma banda chamada Banda Bundas, que já se assanhava pelo tecnobrega com músicas

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International ballads Asked to cite five international artists who have influenced him, Tonny names Elvis Presley, Little Richards, The Rolling Stones, Queen and Nat King Cole as his icons. For the Brazilian ones, he picks Roberto Carlos, Reginaldo Rossi, Legião Urbana, RPM and Paralamas do Sucesso. This well-stirred mix, with bits of Latin influence, like zouk, results in the kind of music that became Tonny’s trademark. When observing what was going on inside the studios where he raised himself, he realized the difference between the composers and the ‘versionists’. “I always prefer to create my own brand new stuff than to make a version of someone else’s. Some people are good at that and I always admired them, but I’m not into this these days. In our business, there are a few composers, but many ‘versionists’. I’m more into composing original material”. Tonny, however, is responsible for many Brazilian versions of global pop hits, such as his version of Cher’s ‘Believe’, that in Pará became the classic ‘Existe Vida Após o Amor’. “Artists in Pará always had the false illusion that what we record here never leaves the state, but it’s not like that at all. My version of ‘Believe’ got very famous with Edson Vale interpreting it and afterwards there was even a gospel version. At the time, I even received a warning from Warner because of Cher. Since Vale’s official CD wasn’t commercially released, nobody picked up copyrights for the version and, because of that, there was no problem”. Brega style “Many people ask me what I do and I usually say that what I really make is tecnobrega, which is any brega song that, in its production, doesn’t need a drummer, but an electronic beat. I don’t like to call myself ‘the father of tecnobrega’, but I think I’m already recognized as the creator of the style”. He knows that people seek out the originator of the sound that has been spreading across Brazil and worldwide, but not many know that the creator of the style is still alive and kicking. Currently, Tonny says he is very satisfied with the success that his nephew Marcos Maderito is having with his group Gang do Eletro. “They changed the face of the style and really set Pará’s electronic music as a world rhythm, the freshest global sound”. From day one, he has been part of the ‘Freaky Boy’ Maderito’s career. Tonny had a band called Banda Bundas, which was already sniffing around tecnobrega with naughty songs like ‘Chumbinho’ and ‘Pirateiro’. Besides Éter na Mente, Banda Bundas and Os Panteras, which he also joined later, Tonny Brasil played with the groups Banda Amazonas and Banda Laser, and with Ana de Oliveira, a singer who now has a gospel career. But when he launched his solo career as Tonny Brasil, he signed with the label Gema, from São Paulo. In 1997, he met Luiz Nascimento, who was the DJ at a nightclub called Olê Olá, and together they formed Açaí Machine (now making their comeback). Among so many musical projects that keep him busy with his potent voice and good looks, Tonny lives off the royalties from the many songs he wrote for bands like Calypso, who recorded 27 tracks written by him. “Not very long ago, I was stuck inside some contract issues with AR Music, an editing house from here in Belém who cheated lots of people. They confiscated Kim Marques’s songs and tried to


“Eu não gosto muito de me chamar de ‘pai do tecnobrega’, mas acho que já sou reconhecido como o criador do estilo” I don’t like to call myself ‘the father of tecnobrega’, but I think I’m already recognized as the creator of the style

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sacanas como “Chumbinho” e “Pirateiro”. Além de Éter na Mente, Banda Bundas e Os Panteras, em que posteriormente também fez parte da formação, Tonny Brasil tocou com a Banda Amazonas, Banda Laser e com Ana de Oliveira, uma cantora que hoje segue carreira no gospel. Mas quando se lançou solo como Tonny Brasil foi contratado pela gravadora Gema, de São Paulo. Em 1997 conheceu Luiz Nascimento, que era o DJ de uma casa chamada Olê Olá, e com ele montou o Açaí Machine que agora está de volta. E em meio a tantos projetos musicais que o mantêm na ativa com seu vozeirão e visual de galã, Tonny vive dos direitos autorais de muitas músicas que escreveu para bandas como a Calypso, que gravou 27 composições de sua autoria. “Até um tempo eu estava preso a algumas coisas de contrato com uma editora daqui de Belém, AR Music, que passou a perna em muita gente. Confiscou músicas do Kim Marques, tentou confiscar as minhas, mas eu consegui ir atrás e fazer com que não confiscassem. Eu sobrevivo disso, é com essa renda que pago minhas contas.” “É muito raro um artista de brega fazer todo o processo oficial com ISRC e tudo mais. Muitos artistas hoje em dia não têm mais como fazer dessa forma. Atualmente meu show é sozinho ou com o Açaí Machine, com quem faço um repertório de músicas antigas, de 15 anos atrás. Você viu como aconteceu no Festival Se Rasgum, um festival com outro tipo de público, todo mundo cantou junto. Em baile da saudade, quando vamos tocar, a gente vê jovens também dançando brega como no comecinho do movimento Brega Pai d’égua. Público que vai pra dançar música antiga, flashback. É curioso porque são músicas que não tocam no rádio, não sei como conheceram, mas eles estão lá dançando, curtindo”, se surpreende e fica feliz com o rumo que as coisas tomaram em sua carreira musical. Ele conta que nunca almejou ser um grande astro da música. Na época em que começou, seu desejo era ver as pessoas cantando música paraense, que o público realmente curtisse o que era feito no Pará. “Nos anos 90 a gente ouviu tudo nos trios elétricos, a música baiana imperava. Hoje em dia se escuta música paraense. Tu vê aqueles carros na praia de Salinas com o sonzão poderoso e o que eles estão ouvindo? Hein? O bregão, meu amigo! A parada explodiu do jeito que era pra explodir. Atualmente os artistas desse meio estão mais interligados, não tem mais (tanto) aquele egoísmo. Hoje as pessoas sabem que na unidade é que as coisas acontecem. Falam do Calypso que não dá oportunidade e tudo mais, mas eu acho que eles dão sim, e muita. Eles cavaram a oportunidade deles e abriram as portas para a música paraense. Hoje a gente vê a imprensa brasileira ligada na música paraense porque a conhece através da Gaby Amarantos, da Gang do Eletro. Daí eles querem saber se tem mais, e é claro que tem e com novos sabores.” E é de chefs como Tonny Brasil que a música paraense serve seu banquete tão diversificado, seja com influência de baladas do pop internacional ou do zouk e jovem guarda, no resultado servido com tecnobrega, carimbó, guitarrada e o brega.

do the same with mine, but I managed to go after them and block it. This is how I make my living; I pay my bills with this”. “It’s very rare for a brega artist to bother with this whole ISRC process and stuff. Many artists today aren’t able to do it like that anymore. Right now, my shows are solo or with Açaí Machine, with whom I play an oldschool repertoire from 15 years ago. You saw how it was at the Se Rasgum Festival, an event that had a different kind of audience, but everybody sang along. When we play at a baile da saudade (popular nostalgic dance event playing retro songs), we see young people also dancing brega songs as if we were back at the beginning of the Brega Pai d’Égua movement. People go there to dance old songs, flashbacks. It’s funny because those aren’t songs played on the radio. I don’t know how they know them, but they’re there dancing, enjoying themselves”, he is surprised and happy with the way things have turned out in his musical career. He says his goal was never to become a big music star. When he began, his wish was to see people singing songs from Pará and that the audience could really enjoy what was being done here. “In the 1990s, we heard everything from those trios elétricos and the music from Bahia was king. Nowadays, we listen to our own music. You see those cars at the beach in Salinas with super powerful sound systems and what are they listening to, huh, buddy? Our dear brega! The thing exploded like it was meant to. Lately, the artists from this scene are more interconnected and that old selfishness is not so common. Today, people know that coming together is what makes things happen. They talk about Calypso, saying that they don’t offer opportunities and so on, but I think they do offer them, and plenty. They opened their own doors as well as many others later for the music from Pará. We now see Brazilian media turned on to our music because they know it through Gaby Amarantos, through Gang do Eletro, and they want to know if there’s more of it. Of course there is, and in a whole bunch of flavors. And it is from the kitchens of master chefs like Tonny Brasil that Pará’s music dishes up such a diversified banquet of brega, tecnobrega, carimbó and guitarrada, all spiced up with influences from international pop ballads or zouk and jovem guarda.

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O chefe da banda Manoel Cordeiro, o inventor do brega paraense Por Vladimir Cunha Fotos Renato Chalu

The Bandleader Manoel Cordeiro, inventor of Pará’s brega music

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anoel Cordeiro pertence a um clube seleto: o dos artistas que podem se orgulhar de ter criado um estilo musical. Um não, dois. Ele não só ajudou a forjar as bases do brega paraense dos anos 1980, como também foi uma das mentes por trás da lambada, estilo criado em Belém do Pará e que ganhou o Brasil e o mundo através da figura do cantor Beto Barbosa. Após cinco anos como músico de estúdio e produtor musical, Manoel conheceu o sucesso como artista quando lançou a banda Warilou. Formada pelos mesmos músicos que gravaram com ele os hits do brega paraense entre 1983 e 1988, ela rapidamente se tornou uma das grandes apostas do mercado fonográfico brasileiro, sendo derrotada, posteriormente, pelos problemas pessoais de Manoel Cordeiro e pelo rolo compressor da axé music.

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anoel Cordeiro belongs to that elite club of artists who can be proud of having created a musical style. Not one, but two. He not only helped forge the brega of the eighties, but was also one of the minds behind the lambada, a style created in Belém and that conquered Brazil and the world via singer Beto Barbosa. After five years as a session musician and producer, Cordeiro gained success as an artist with the launch of his band Warilou. Formed by the same musicians who recorded with him the brega hits between 1983 and 1988, Warilou quickly became one of the biggest hopes of the Brazilian record industry, eventually being defeated by Cordeiro’s own personal problems and by the steamroller of axé music.

Quase 20 anos depois de se retirar da indústria, Manoel voltou aos palcos para se tornar uma das figuras mais interessantes e ativas da música paraense. Além de tocar com o filho, o músico Felipe Cordeiro, prepara um disco em parceria com o produtor musical Liminha, responsável por alguns dos discos mais importantes do pop brasileiro.

Almost 20 years after retiring from the industry, Cordeiro got back on stage to become one of the most interesting and active figures on local music scene. Besides from playing with his son, local musician Felipe Cordeiro, he is preparing an album in partnership with producer Liminha, who is responsible for some of the most important Brazilian pop albums.

O bate-papo foi em um bar da Zona Portuária da cidade. Exatamente o tipo de lugar que, nos anos 1980, tocava as músicas que Manoel produziu e compôs durante toda a vida. Nada mais apropriado.

Our conversation took place in a bar in the town’s harbor district, exactly the type of place that, in the eighties, used to play the back catalogue of songs he produced and composed. As appropriate as it gets.

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Como tu te meteste nessa história de música? Eu nasci em Ponta de Pedras, mas com quatro anos eu fui pra Macapá. Com 11 anos eu ganhei um violão e meu pai começou a me ensinar. Com 13 anos eu já tocava ao vivo e com 18 fui tocar com o Ely Farias. Ele foi tocar em Macapá e o tecladista dele não foi. Foi quando ele me convidou para entrar na banda dele e acabei vindo para Belém. Cheguei a gravar um disco de carimbó com ele, em 1973. Só que, dois anos depois, a minha mãe morreu e eu entrei para o Banco do Brasil, pois era arrimo de família. Nesse tempo eu dei uma parada e só voltei a tocar em 1983, numa banda de baile, a Realce. Foi quando a minha mulher ficou grávida do Felipe (N.E. Felipe Cordeiro, músico paraense) e eu recebi o convite do Alípio Martins para montar uma banda para acompanhar músicos em estúdio, gravando com eles. Foi quando a lambada começou a aparecer. Nós gravamos muito, de 1983 até 1990. Mas eu lembro de tu me dizendo que, logo de primeira, tinhas recusado o convite do Alípio. Quando o Alípio me chamou eu estava gravando o “Frutos”, do Alcyr Guimarães, um disco de MPB. Fui logo dizendo: “Não vou gravar brega, porra. Tá doido?”. Só que, logo depois, veio a notícia da gravidez da minha mulher (risos). Aí eu pensei: “É, vamo gravar brega que o bicho tá pegando” (risos). Alípio era um gênio. Ele tinha sacadas de timbres, de letras, de levadas, de composição. Ele ficava horas e horas até acertar o timbre que queria. Mesmo naquela pobreza toda de quatro, oito canais? Mesmo naquela pobreza. Ele ficava procurando, metia pedal de chorus no teclado, fazia o diabo até achar o som exatamente como ele queria. Essa foi a minha grande escola de produção. A Gravasson tinha sido feita em 1982 e em 1983 o Carlos Santos estourou com “Quero Você”. Então gerou-se uma cultura de gravar em Belém com músicos paraenses. A gente gravava

basicamente lambada - que ainda não era um gênero por si só, mas uma mistura de zouk, merengue e cacicó - e brega. Pelo o que se conta era um sistema de produção muito engenhoso. O Carlos Santos armou um lance muito interessante. Ele tinha o estúdio pra gravar, a rádio pra tocar, a distribuidora pra colocar os discos nas lojas e a rede de lojas para vender os discos. E quando a gente vendia mais de 30 mil discos ele passava essa distribuição para um selo nacional. No caso a Polygram. Tinha a minha equipe - Eu, Neca, Sagica e Barata -; a equipe do Guru, que era a banda Trânsito Livre; e a equipe do Dedê, que tava começando e gravava muito brega regional. A gente gravava as coisas mais suingadas e ele os bregas tradicionais. Como era a rotina de vocês? A gente gravava que nem doido. Começamos com quatro canais, depois passamos para oito. Depois rolou uma mesa de 16 e uma de 24. Aí o som já não prestou mais. Era muito sofisticado (risos). Em oito era incrível. Era um som bem mais compacto, com certos vazamentos que davam um charme e uma identidade para o som. Acho que era porque, devido à pouca quantidade de canais, a gente tinha que gravar valendo, ao vivo. Foi essa falta de recursos que nos obrigou a sermos criativos e o que nos levou a criar uma identidade própria. Nós chegamos a fazer seis discos por semana. Quase um por dia (risos). E esse som? Como é que o brega paraense foi forjado? Foi tudo muito espontâneo. Quando a gente pensava em fazer o brega a gente pensava no iê-iê-ê, na Jovem Guarda. Lambada era cumbia, merengue... A gente ia pegando essas coisas, esses ritmos, esse jeito de tocar e ia juntando uma coisa na outra. A gente não ensaiava. O cantor mostrava as músicas dele e íamos experimentado ritmos e levadas até chegar em algo que nos agradasse. E o nosso método de produção era todo voltado pra fazer as pessoas dançarem. Então era a soma do talento e das influências musicais de pessoas que tocavam juntas 12 horas por dia, sete dias por semana. Era. Mas era também uma necessidade de mercado, de sobrevivência. Havia uma pressão das gravadoras e dos selos para que a gente vendesse, pelo menos, 30 mil discos de cada artista. Não era arte. Tanto que o Alípio proibia acordes dissonantes nos arranjos (risos). Foi aí que eu, que vinha da MPB, fui me ligar que existia um outro tipo de música: música pra vender. Nesse processo, qual foi o disco mais bem-sucedido? “Quero Você”, do Carlos Santos. Não só porque vendeu muito, um milhão e meio de cópias, mas porque abriu espaço para toda uma leva de artistas que vieram depois. Esse eu não gravei. “Quero Você” foi gravado pela orquestra do Guilherme Coutinho. “Quero Você” é uma produção típica do Alípio, que trouxe a versão original da Guiana e disse: “Bora fazer igual. É pra copiar igualzinho”. Deu até problema depois porque os caras souberam do sucesso que a música fez e vieram atrás, mas o Carlos acabou negociando com eles: eles autorizavam o uso e ele lançava uma série de discos deles e de outros artistas do Caribe aqui. Foi quando surgiu a série “Lambadas Internacionais”. Era tudo roubado… Essa história da cópia só foi acabar quando lançamos o Beto Barbosa. “Adocica” foi um negócio 100% paraense. Qual a importância de “Adocica” para a música paraense? Foi a nossa grande virada. O engraçado é que eu odiava “Adocica”. Acredita que eu fiz de tudo pra tirar essa porra do disco? (risos) Mas por quê?! Porque a música era muito feia, rapaz! Já tínhamos feito onze bases pro disco. Todo mundo de saco cheio, aí ele vem tocar essa música

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“Em 1983 o Carlos Santos estourou com ‘Quero Você’. Então gerou-se uma cultura de gravar em Belém” In 1983 Carlos Santos exploded with ‘Quero Você’. So, this generated a recording culture in Belém using local musicians How did you get into this music thing? I was born in Ponta de Pedras, but moved to Macapá aged 4. At 11, I got hold of a guitar and my dad started to teach me how to play. At 13, I already played live and, at 17, got to play with Ely Farias. He was in Macapá for a show, but his keyboardist couldn’t make it. That was when he invited me to join his band and I ended up coming to Belém. In 1973, we recorded a carimbó album together, but, two years later, my mom died and I had to get a job at Banco do Brasil, since I was now the man of the house. At this point, I stopped playing for a while and only picked things up again in 1983, in a dance hall band called Realce. It was when my wife was pregnant with Felipe and I was invited by Alípio Martins to form a band to play with musicians in the studio, recording with them. This was when lambada began to emerge. We recorded a lot from 1983 to 1990. But I remember you telling me that, at first, you had turned down Alípio’s invitation. When Alípio called me, I was recording ‘Frutos’, by Alcyr Guimarães, an MPB (acronym for Brazilian popular music) album. Right that second, I said: “Damn, I won’t do brega. Are you nuts?” But, soon after, I got news my wife was pregnant (laughs). Then I thought: “Yup, let’s record this brega ‘cos times are tough”. Alípio was a genious. He had a grasp of timbre, lyrics, pace, composition. He’d spend hours and hours trying to find the right timbre. Even in that poor four or eight channel situation of yours? Yes, even then. He kept on searching, put a chorus pedal on the keyboard, did everything in hell ‘til he found the exact sound he wanted. These were my big production lessons. Gravasson had been operating since 1982, and in 1983 Carlos Santos exploded with ‘Quero Você’. So, this generated a recording culture in Belém using local musicians. Basically, we recorded lambada – which wasn’t yet its own genre, but a mix of zouk, merengue and cacicó – and brega. By all accounts, it was a really ingenious production system. Carlos Santos put together a really interesting thing. He had a studio to record the discs, a radio to play them, a distributor to get them into the market and a chain of stores to sell them. When we sold more than 30 thousand records, he passed on this distribution to a national label. In this case, Polygram. I had my crew – myself, Neca, Sagica and Barata; Guru had his, which was the guys from Trânsito Livre; and Dedê, who was just beginning and recorded lots of regional brega, also had his. We recorded the more upbeat numbers and they stayed with the more traditional brega tunes. How was your routine? We recorded like mad men. We started on 4 channels and

later passed to 8. After that, we got a 16 and a 24 channel recording desk, but then the sound got messed up. It was too fancy (laughs). With 8, it was amazing. It was a much more compact sound, with some flaws that gave a charm and identity to it. I think since we had very few channels, we needed to record the real deal, live. It was this lack of resources that forced us to be creative and what led us to create our own identity. We got to the point of recording 6 discs per week. Almost an album per day (laughs). And how about that sound? What was it that forged our brega? It was all totally spontaneous. When we thought about doing brega, we thought of the ‘yeah-yeah-yeah’, of Jovem Guarda. Lambada was cumbia, merengue… We picked up this stuff, these rhythms, this way of playing, and mixed one thing into the other. We didn’t rehearse. The singer showed us his songs and we went on experimenting rhythms and paces ‘til we got to something that pleased us. And our method of production was totally focused on making people dance. So it was a combination of talent and musical influences of people who played together 12 hours a day, seven days a week. Yes, but it was also a market, a survival need. There was pressure from the recording studios and labels for us to sell at least 30 thousand albums by each artist. It wasn’t art. Proof of this was that Alípio forbid us to play dissonant chords (laughs). It was only then that I, who came from MPB, clicked that there was another type of music: music purely for sale. In this process, what was the most successful record? ‘Quero Você’, by Carlos Santos. Not only because it sold like hot cakes, a million and a half copies, but also because it opened up the doors for a bunch of artists who came afterwards. I didn’t record this one. ‘Quero Você’ was recorded by Guilherme Coutinho’s orchestra. It is a typical Alípio Martins’s production, who brought the original version from Guyana and said: “Let’s do it the same. We need to copycat it”. It even made a problem later because those guys found out how successful the song was and came after us, but Carlos ended up negotiating with them: they authorized its use and he released a series of their and other Caribbean artists’ records here. That was when the ‘Lambadas Internacionais’ series appeared. It was all stolen… This copy thing would only end when we launched Beto Barbosa. ‘Adocica’ was something 100% made in Pará. What is the importance of ‘Adocica’ to the music of Pará? It was our big turning point. The funny thing is that I hated ‘Adocica’. You believe I tried everything possible to get this damn song off the album? (laughs) But why?! Because the song was ugly as hell, man! We had already made 11 base tracks for the album. Everybody fed up, and then he comes with this horrible song. I said: “Damn, man, let’s take this thing off the record”. But I couldn’t convince the rest of the guys. We recorded the base, SELETA - música da amazônia

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horrível. Eu disse: “Porra, bicho, vamo tirar isso do disco”. Só que eu não consegui convencer a galera. A gente gravou a base, passou para um cassete e eu levei para o hotel. De manhã eu chamei o Martinez, um maestro espanhol com quem eu fazia os arranjos de metais. “Martinez, vê o que tu faz com essa música. Vê se melhora essa porra”. Fomos pro estúdio e o Beto enchendo o saco: “Cadê Adocica? Cadê Adocica?”. E eu dizendo que tava esperando o Martinez chegar com os arranjos de metais. Quando ele chega, manda essa: “Porra, maestro, eu não senti nada”. Aí eu pensei num golpe: vamo gravar todos os metais, menos os de “Adocica”. A gente manda os metais embora e, quando o Beto chegar, a gente diz que não rolou. O Beto chega (perguntando): “Cadê Adocica?”. E eu: “Beto, deixa essa música pro próximo disco, bicho” (risos). Foi uma confusão tão grande por causa de “Adocica” que eu chamei o Martinez de novo. Mandei ele pegar o trompete e fazer a tônica, a terça e a quinta. Somamos tudo, enchemos de eco, colocamos ela como a última música do disco e deixamos pra lá. Só que, na mixagem, o técnico de som esqueceu de colocar a terça. A música ficou pior ainda do que já era (risos). Quatro meses depois, recebo uma ligação do Beto: - Mano, nosso disco tá estourado. - Paidégua, Beto! - Vou tocar no Maracanã, no Natal da Xuxa. - Qual música? - ADOCICA! Rapaz, quando eu vi cento e poucas mil pessoas cantando aquela porra eu pensei: “Eu nunca mais duvido de nada”. E como tu te sentiste quando percebeste que quase sabotaste um dos maiores hits da tua carreira como produtor? Pois é! Até hoje eu conto essa história. Acho que pra ver se eu diminuo a minha culpa (risos). Se dependesse só de mim ela nunca seria gravada (risos). Mas continuo achando ela uma música muito ruim. Aliás, nessa mesma época a música paraense teve uma outra virada com “Ao Pôr do Sol” (N.E. música interpretada pelo cantor Teddy Max e o maior hit do brega paraense), que também não ia ser gravada. O Teddy Max era um cantor de MPB e era compadre do Pinduca. Ele queria gravar um disco e foi pedir pro Pinduca produzir. O Pinduca disse que topava, desde que fosse um disco de brega. O problema é que “Ao Pôr do Sol” era uma bossa-nova e o Pinduca encasquetou que ela tinha que virar um brega. O Teddy ficou apavorado, com medo de falar pro Firmo (Cardoso), autor da música. Naquela época, brega era considerado coisa de pobre, de última categoria. No final o Pinduca convenceu o Teddy e o Teddy convenceu o Firmo. E eles gravaram. Uma gravação meio troncha, porque brega não era a praia nem do Pinduca e nem da banda dele. Foi um lance meio “errado” e muito despretensioso que se transformou num clássico. É engraçado como todas essas histórias são marcadas por despretensão e intuição. Falo isso porque acho essas características

muito presentes no modo como a gente vive aqui em Belém. Acho que essa é a resposta para muita coisa que acontece aqui, sabia? Esse nosso estado de espírito, de curtição e de brincadeira, é uma das nossas características mais fortes. A primeira imagem que vem na minha cabeça são as pessoas nos salões, nos terreiros, dançando. Ciscando o salão todo. É um jeito despojado, descontraído. A gente, às vezes, perde os fundamentos técnicos, mas ganha no suingue, na alma. É uma música que trabalha imagens e sentimentos muito específicos: a zona portuária, o baixo meretrício, a sacanagem, o bom humor. Isso é muito rico e especial. Esse talento de criar em forma de som as imagens e os sentimentos que constituem o imaginário de toda uma cidade. Quando a gente fazia isso ninguém pensava nessas coisas. A gente estava se divertindo. Claro que o dinheiro era o mais importante. Ainda assim tudo aquilo que nós produzimos e gravamos tem um pouquinho da gente. Era um negócio, mas era também a nossa vida e a nossa percepção da cidade na qual a gente vivia. A gente tinha muito orgulho de entregar esses produtos e de ver o quanto eles eram aceitos pelo povo. Foi essa classe que permitiu que essa indústria se desenvolvesse. Não só no Pará, mas em todo o Brasil. O Nordeste sempre foi um grande consumidor dos nossos discos. O interior da Bahia era onde a Gravasson mais vendia disco. Até mais do que Belém. Além da Bahia e Belém, onde mais essa música tocava? O Ceará é o maior avalizador dos movimentos musicais paraenses daquela época. Ao ponto dos cantores cearenses virem gravar com a gente em Belém. Tem muito sucesso do brega que as pessoas acham que são de Belém, mas que foram criados por cearenses: “Tchau, Tchau, Amor”, “Amor, Amor, Amor” e muitas outras. Recife também consumia muito as nossas coisas. Eu queria que tu me falasses do Carlos Santos e do Alípio Martins. Cara, o Carlos Santos é uma figura fundamental nessa história toda. Ele viabilizou uma coisa que, naquela época, era muito difícil: gravar um disco. Ele sistematizou e facilitou a produção musical paraense. Antes dele ou você gravava no Recife ou no Rio e em São Paulo. Disco independente então era uma utopia. Sujeito que fazia isso tinha que ser doido. Você não faz ideia do quanto isso era caro. E o Alípio? Era gênio. Foi deportado dos Estados Unidos pro Brasil e foi morar com a irmã no Rio. No Rio foi expulso da casa pela irmã e voltou para Belém. Ele chegou aqui muito quebrado, topando qualquer coisa. Lembro dele, com aquela capanga debaixo do braço, indo de estúdio em estúdio atrás de trabalho. Foi quando pintou a ideia do estúdio e o Alípio teve a ideia de roubar a música dos caras lá da Guiana. “Quero Você”. Aí eles acertaram e começaram a ganhar

“A gente tinha muito orgulho de entregar esses produtos e ver como eles eram aceitos pelo povo, e não só no Pará” We were very proud to deliver these products and to see how much acceptance they had amongst the masses. It was these people who allowed this industry to develop. Not just in Pará, but all over the country SELETA - música da amazônia

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dinheiro. Foi um sucesso atrás do outro: “Garota”, “Onde Andará Você’... Todas estouradas. Eu continuo achando, até hoje, que ele foi o cara mais criativo e visionário dessa turma toda. Talvez em parte pela loucura dele… Principalmente por causa dela. O Alípio era doido de pedra (risos). Era rock’n’roll de verdade. Ele tinha um negócio de querer mostrar aquela bunda branca pra todo mundo (risos). Uma vez, na saída do Colégio Nazaré (N.E. Um dos mais tradicionais de Belém do Pará), ele entrou no fusca do Wandernine, um guitarrista que tinha aqui, e passou lá na frente mostrando a bunda com o Wandernine dirigindo (risos). Um tempo depois ele entrou na boate Pagode Chinês nu, enrolado num jornal, e foi pra pista de dança (risos). No fundo a música que ele fazia era a cara dele. O Alípio era muito esperto. Por exemplo: ele ia te produzir e tu mostravas a tua música pra ele. Se ele achasse bonita ele dizia: “É o seguinte, Vlad, vou fazer essa voz guia aqui pra ti pra tu ficar esperto. Segue ela que tu vai cantar bonitinho”. Já fazia a guia no tom de voz DELE (risos). Quando tu ias gravar ficava uma merda (risos). Aí ele te convencia a não gravar a música… Seis meses depois varava nas rádios: (cantando) “Lá vai ele com a cabeça enfeitada…”. Essa eu vi (risos). E a banda Warilou? Toda vez que rolava gravação em São Paulo as pessoas perguntavam por que a gente não gravava um disco. Até que a Roberta Miranda disse: “Vocês podiam gravar essa banda de vocês”, e o diretor da gravadora começou a insistir com isso. E eu disse: “Eu topo, mas se você deixar eu fazer do meu jeito. A gente pega essa banda e junta com mais três backing vocals que eu conheço de Belém”. Ele topou. Nessa eu resgatei o Ronery, um compositor lá de Macapá que tava esquecido, e saí ligando pra todo mundo. Em meia-hora a banda tava fechada. Dois dias depois tava todo mundo em São Paulo gravando o nosso primeiro disco. O nome surgiu como? A gente terminou o disco e eu fui falar com o diretor da gravadora: “O disco tá pronto, mas a gente ainda não tem nome”. Ele veio logo: “Como não tem nome? Não é Warilou, porra? Já fiz até o contrato” (risos). “Como é que tu escreveste ‘Warilou’ no contrato?”, eu perguntei, “W-A-R-I-L-O-U... que diabos é isso, já?”. Aí ele me disse que era um negócio que a gente falava no estúdio, que ele tinha ouvido e gostado. O pior é que a gente nunca falou isso. Não era Warilou. Era tipo uma escala cantada que eu fazia quando queria que alguém tocasse uma determinada passagem. Não dava nem pra escrever aquilo, era tipo “bororou”, uma coisa assim. Só que ele entendeu “Warilou” e gostou do nome. Ficou. Era até melhor do que o nome que a Roberta Miranda sugeriu: Banda Carisma. Mas esse ninguém gostou. Parecia coisa de evangélico (risos). E o resto da galera? Quando eu falei pro resto da banda que o nosso nome ia ser Warilou todo mundo veio pra cima de mim: “Mas que porra é essa?”. Eu disse: “Olha, eu também não sei, mas taí uma boa oportunidade pra gente conceituar”. A gente tinha uma música que foi um jingle de um candidato a senador, que recusou a música. Aí pegamos ela e trocamos “senador” por “Warilou” (risos). A música estourou. É um arranjo muito louco. Abre com um solo de violão flamenco e com a galera cantando a melodia do refrão. Essa melodia era a guia dos metais. Só que ficou tão bonito que a gente acabou deixando. Nós vendemos muito. Fizemos todos os programas de TV. Todo mundo queria show do Warilou. Depois veio “Luz do Mundo”, que foi outro estouro.

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Foi nessa época que começaram os teus problemas com o álcool e a as drogas? O meu problema mesmo era com o álcool. Eu começava a achar que podia tudo. Aí vem um uisquinho, uma carreirinha de pó e assim vai. Era uma mistura explosiva, cara. Foi quando as coisas começaram a dar errado pra ti? Não. As coisas começaram a dar errado mesmo quando veio o axé. As casas foram fechando, as bandas sumindo, os selos falindo. Não havia mais mercado para a música local porque os grupos de comunicação locais só investiam em micareta. Isso foi algo que foi me tirando de eixo, acabando com a minha inspiração. Assim foi até que em 95 parei de beber. Foi quando fui pra Macapá. E passei dez anos recolhido. Como era ver esse rolo compressor do axé passando por cima de tudo e tu, uma pessoa que chegou a dar as cartas no mercado da música popular, olhando tudo de fora? Eu só pensava em reagir. Eu queria incentivar as pessoas a consumir música paraense. Mas não rolava. Não entendia porque ninguém mais valorizava as coisas que nós fazíamos. As coisas começaram a mudar no meu reencontro com o Felipe, que andava afastado de mim, inclusive musicalmente. Quando eu vi o que o Felipe estava fazendo eu percebi que tinha jogo pra mim ali. E foi nessa retomada que eu me encontrei novamente como músico. Por coincidência no mesmo momento em que a música paraense estava começando a ser valorizada no Brasil e no mundo. E foi também quando caíram essas barreiras entre o rock e a música popular e as pessoas passaram a curtir todos os estilos. Inclusive a música que eu fazia nos anos 80. Tu achas, então, que tu estás no melhor momento da tua carreira? Com certeza, mano. Hoje eu tenho um público que entende o que eu faço e tenho liberdade total para fazer as coisas que eu gosto. Não tem mais a indústria. Acabou a pressão para vender, para fazer sucesso. Ninguém tá no meu pé e eu faço o que eu quero. Não podia ser melhor.


put it onto a cassette and I took it to the hotel. In the morning, I called Martínez, a Spanish maestro with whom I did the brass arrangements. “Martínez, see what you can do with this song. See if you can make this thing smell better”. We’re in the studio and Beto is whining: “Where’s ‘Adocica’? Where’s ‘Adocica’?” And there’s me saying I was waiting for Martínez and the brass arrangements. When he arrives, he comes out with this one: “Listen, maestro, I didn’t feel anything”, which gave me an idea: “Let’s record all the brass, except the one in ‘Adocica’. We send the brass section home and then, when Beto arrives, we say it didn’t work out”. Then Beto turns up asking: “Where’s ‘Adocica’?” And me: “Beto, leave this song for the next album, man” (laughs). This thing with ‘Adocica’ created such a big fuss that I had to call Martínez again. I told him to get the trumpet and play the keynote, the third and the fifth. We added everything up, filled it with reverb, stuck it on as the last track on the album and forgot about it. In the mixing, however, the sound engineer left the third out and the song got even worse (laughs). Four months later, I got a call from Beto: - Bro, our record is a hit. - Awesome, Beto! - I’m gonna play at Maracanã, for Xuxa’s Christmas program. - Which song? - ADOCICA! Oh, boy, when I saw a hundred and something thousand people singing that damn song, I remember thinking: “I’ll never doubt anything again”. And how did you feel when you realized you almost sabotaged one of the biggest hits of your career as a producer? Yeah... I still tell this story to this day. I think I do this to try and ease my guilt (laughs). If it was up to me, it would never have been recorded (laughs). I still think it’s a dreadful song. By the way, at this same moment, Pará’s music had another turning point with ‘Ao Pôr do Sol’ (Ed.: song performed by singer Teddy Max and Pará’s biggest brega hit), which also nearly didn’t get recorded.

Teddy Max was an MPB singer and he and Pinduca were big pals. He wanted to record an album and asked Pinduca to produce it. Pinduca said he was up for it, as long as it was a brega album. The problem is that ‘Ao Pôr do Sol’was bossa-nova and Pinduca was dead set that it had to be turned into brega. Teddy freaked out, afraid to tell Firmo Cardoso, author of the song. At that time, brega was seen as low-class, a bottom feeder. Eventually, Pinduca convinced Teddy and Teddy convinced Firmo. And they recorded it. It was a pretty average track, since brega was neither Pinduca’s nor his band’s thing. It was a bit of a ‘wrong’ and unpretentious shot that ended up becoming a classic. It’s funny how all these stories are stamped with unpretentiousness and instinctiveness. I say this because I think all these characteristics are very present in the way we live here in Belém. I think that’s the answer to many things that happen here, you know? This state of mind of enjoyment and playfulness is one of our strongest characteristics. The first image that comes into my mind is the people dancing in the dance halls and terreiros, floating around all over the place. It’s a relaxed and laid-back attitude. We sometimes lose in the technical aspect of things, but always win with our groove and soul. It’s music that works with very specific images and feelings: the docks, the red-light district, the deviance, the humor. This is very rich and special. This talent of translating this whole group of images and feelings into sound is what makes up the mindscape of a city. When we did this, nobody thought about any of this. We were having fun. Of course money was most important. Yet, everything we produced and recorded has a bit of us inside it. It was business, but it was also our lives and our perception of the city in which we lived. We were very proud to deliver these products and to see how much acceptance they had amongst the masses. It was these people who allowed this industry to develop. Not just in Pará, but all over the country. The north-east has always been a big consumer of our records. The interior of Bahia was where Gravasson sold most discs. Even more than here in Belém. Besides Bahia and Belém, where was this music playing the most? Ceará is the top endorser of the musical movements happening in Pará at that time. It got to a point where their singers came to Belém to record with us. There are many brega hits that people think are from Belém but which were created by Ceará’s artists, like ‘Tchau, Tchau, Amor’, ‘Amor, Amor’ and many others. Recife also consumed a lot of our stuff. I wanted you to tell me about Carlos Santos and Alípio Martins. Man, Carlos Santos is a fundamental character is this whole story. He enabled something that, at that time, was very difficult: to record an album. He systematized and facilitated our local production. Before him, you either recorded in Recife or in Rio and São Paulo. An independent record, even more so, was a utopia. Anybody who tried to do this was a lunatic. You have no idea how expensive this was. How about Alípio? A genious. He was deported from the United States to Brazil and went to Rio to live with his sister. There, he was kicked out of home by her and came back to Belém. He was still broke when he got here and was up for anything. I remember him carrying that bag of his under his arm, going from studio to studio looking for work. It was when the idea of the studio arose and Alípio thought about stealing ‘Quero Você’ from the guys in Guyana. They hit the bullseye SELETA - música da amazônia

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and began making money. It was one hit after the other: ‘Garota’, ‘Onde Andará Você’… All smash hits. Up until now, I still think he was the most creative and imaginative of the entire posse. Maybe partly due to his craziness… Especially because of it. Alípio was absolutely insane (laughs). He was truly rock ’n’ roll. He had that habit of wanting to show off his white ass to the whole world (laughs). Once, on the way out of Colégio Nazaré (Ed.: one of Belém’s most traditional schools), he entered in a VW Beetle belonging to Wandernine, an old guitarist we had here, and passed by the school with his ass out the window while Wandernine drove (laughs). Soon after, he went naked to the Pagode Chinês nightclub, wrapped up in a newspaper, and hit the dance floor (laughs). At the end of the day, his music was totally him. Alípio was very clever. For example: he would produce you and you showed your material to him. If he thought it was nice, he would say: ‘It’s like this, Vlad, I’ll do this guiding voice for you here so that you can get it right. Just follow it and you’ll sing pretty cute”, but he did this voice in HIS tone. When you went to record, it would suck (laughs). Then he’d convince you not to record the song. Six months later, it would appear on the radio: (singing) ‘Lá vai ele… com a cabeça enfeitada’. I witnessed this one (laughs). And the band Warilou? Everytime there was a recording in São Paulo, people asked why we didn’t record our own album. Then, Roberta Miranda said: “You could record this band of yours”, and the director of the studio started to insist on it. And I said: “I’ll do it, but only if you let me do my thing. We’ll take this band and add three more backing singers I know from Belém”. He agreed. For this one, I rescued Ronery, a forgotten composer from Macapá, and went on calling everybody. Half an hour later, the band was finalized, and two days later all of the guys were in São Paulo to record our fist album. How did the name arise? We finished recording the album and I went to speak with the director: “The record is done, but we still don’t have a name for us”. He retorted: “How come no name? Isn’t it Warilou, damn you? I’ve even written the contract!” (laughs). I asked him how he had spelled ‘Warilou’ in the contract and said: “W-AR-I-L-O-U… What the hell is it, by the way?” Then he told me it was something he had heard us say in the studio that he liked. And worse still, we never said that. It wasn’t Warilou. It was some kind of vocal scale that I used to do when I wanted somebody to play a certain piece. That thing couldn’t even be written down. It was like “bo-ro-ro”, something like that. But the guy understood ‘Warilou’ and liked it. It stayed. It was better than the name Roberta Miranda had suggested: Banda Carisma. Nobody liked this one. It seemed like some gospel band (laughs).

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And the rest of the guys? When I said to the rest of the band that our name was going to be Warilou, everyone jumped on me: “But what the hell is this?” And I said: “Look, folks, I don’t know either, but here is a good opportunity for us to conceptualize it”. We had a song that was a jingle for a Senate candidate, but he refused it. We took it and exchanged the word “senator” to “Warilou” (laughs). The song was a hit. It has a crazy arrangement. It opens with a flamenco guitar solo and the guys singing the chorus melody. This melody guided the brass, but it was so beautiful that we ended up keeping it. We sold a lot. We did all the TV programs. Everyone wanted a Warilou show. ‘Luz do Mundo’ came next and was a hit too. It was during this time that your problems with drugs and alcohol began? My problem was actually with alcohol. It made me start to think I could do whatever I wanted. Then comes a whisky, a line of coke and on we go. It was an explosive mix, man. It was when things began to spiral out of control for you? No. Things started to go really wrong when axé music came along. The venues were closing, the bands vanishing, the labels going bust. There was no longer a market for local music because the local media groups would only invest in axé parties. This was something that was disturbing me, destroying my inspiration. That was it, until I quit drinking in 1995. It was when I went to Macapá and spent ten years in withdrawal. How was it to see the axé music machine bulldozing over everything, and you, as a man who had become an influential figure in the popular music industry, stuck on the sideline? My only thought was to react. I wanted to encourage people to consume our local music, but couldn’t make it happen. I didn’t understand why nobody valued the things we did. Everything started to change when I reencountered Felipe, who had been a bit distanced from me, including musically. When I saw what he was doing, I realized there was a chance for me to get back in the game. And it was during this return to action that I found myself again as a musician. Coincidentally, at the same time as when Pará’s music was beginning to be valued across Brazil and abroad. And it was also when those barriers between rock and popular music were falling and people were enjoying all styles, including the music I made in the eighties. So you think you are experiencing the best period of your career? Absolutely, brother. I now have an audience that understands what I do and I have total freedom to do what I feel like. There’s no more industry, no more pressure to sell and be successful. Nobody’s on my back and I can do what I want. It couldn’t be better.


A primeira vez no palco

Criador do carimbó elétrico, Ely Farias conta como conheceu o parceiro Manoel por Marcelo Damaso Fotos Taiana Laiun

Manoel’s first time The mind behind carimbó elétrico (electric carimbó), Ely Farias tells us how he met Manoel Cordeiro

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y Farias é o homem do carimbó elétrico. Reverenciado como criador do estilo pelo próprio Pinduca – em rede nacional no programa O Clube do Bolinha, durante os anos 80 – Ely conta que se baseou nas raízes do carimbó (Mestre Lucindo, Verequete) defendendo, inclusive, que o carimbó não veio exatamente de Marapanim, mas de Vigia. “Em 1972 eu estava com a banda formada, tocando carimbó com guitarra, baixo, teclado etc., e aquilo mexeu com a sociedade paraense, com a juventude. Participei de diversos movimentos juvenis, até que veio ao meu encontro um gênio chamado Manoel Cordeiro. Sou padrinho dele. Manoel morou em casa. E de lá ele seguiu a vida dele”, conta Ely. O ano foi 1973, quando Ely Farias estava lançando seu segundo LP de carimbó. Foi convidado a fazer dois shows em praça pública em Macapá junto com sua banda, comandada por ele na voz e guitarra e formada por Neilton, Edna e Elza nos vocais de apoio, Celival no baixo e o maestro Tynnoco Costa no teclado. No dia da viagem, com toda a banda no aeroporto prestes a embarcar para Macapá, Ely recebe a notícia de que o tecladista Tynnoco não viajaria com a banda por conta de uma briga com a esposa que fez com que ele perdesse os óculos de grau. Tynnoco não enxergava um palmo à frente sem óculos e, por conta disso, não enxergaria uma tecla de seu instrumento. Chegando a Macapá, Ely e sua banda foram recebidos pelo assessor do governador que, àquela altura, já sabia do acontecido. Ely disse


que ele chegaria para o segundo show, mas o assessor disse logo: “Dá teu jeito, amanhã é o teu segundo show aqui. O show de hoje tem que ter. E te digo mais, pra tu veres o sol redondo de novo vai ser difícil, porque esse governador que te trouxe é brabo. Vais ver o sol quadrado o resto da tua vida”. Diante da ameaça pitoresca, Ely disse para a banda fingir que o Tynnoco não existia, esquecer do teclado e tocar o que sabia. “Uma vez eu tinha visto de longe um cara tocando guitarra em Macapá, num estádio lá. O cara tocava muito. Jimmy Hendrix e Santanna eram fichinha perto dele. Lembro que fiquei impressionado, mas não cheguei perto para saber quem era”. Às 22h começou o baile, a banda subiu ao palco sem o Tynnoco, com a recomendação de fazer tudo menos o teclado, embora tenham deixado o instrumento plugado para caso acontecesse o milagre de Tynnoco aparecer em cima da hora. De cima do palco, Ely vê um moleque na plateia, cheio de espinhas no rosto. O técnico de som só entrava no palco quando estava tudo pronto pra banda tocar. Ele chegou com Ely e disse “tem um rapaz aí que soube que o Tynnoco não veio e quer te ajudar”. Ely, impaciente, sabia que não poderia admitir na banda alguém que não havia ensaiado com eles. “Um cara desses não vai pegar o que a gente está tocando aqui”.

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n the world of carimbó elétrico, Ely Farias is the man. Revered as the creator of this style by the one and only Pinduca on national TV, in a program called ‘O Clube do Bolinha’ during the 80s, Farias says his foundations were the roots of carimbó (Mestre Lucindo, Verequete) and argues that the rhythm did not entirely come from Marapanim, but from Vigia. “In 1972, I had already formed my band, playing carimbó with guitar, bass, keyboard etc, and that caused a stir in Pará’s society, amongst the youngsters. I took part in several youth movements until the day I got to meet this genius called Manoel Cordeiro. I’m his godfather. He lived with me at home and, from there, he followed his path”, Farias recalls. The year was 1973, when Ely Farias was releasing his second carimbó LP. He was invited to play two shows in a public square in Macapá, together with his band, that had him on lead vocals and guitar; Neilton, Edna and Elza on backing vocals; Celival on bass; and the maestro Tynnoco Costa on keyboard. On the day of the trip, with the whole band in the airport ready to leave for Macapá, Farias received news that his keyboardist could not travel with the band due to an argument with his wife in which he ended up losing his glasses. Without them, Costa was blind as a bat and, because of this, he would not even be able to see the keys of his instrument. Upon arrival in Macapá, Farias and his band were received by the governor’s advisor, who, by that point, already knew what had happened. Farias explained that the keyboardist would be there for the second show, but the official immediately replied: “Get on with it. Your second show here is tomorrow and today’s show has got to go on. And I warn you: if you want to live to see another day, you’d better make it happen, because you don’t joke with this governor who brought you here”. After such a peculiar threat, Farias told his band to pretend that Costa did not exist, forget about the keyboard and just play. “I once saw from afar, in a stadium, a guy playing guitar in Macapá,

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Foi quando, em uma dessas subidas ao palco, o técnico de som clareou a lembrança de Ely: “Ele é aquele guitarrista que tu tinhas visto uma vez tocando no estádio”. Passou-se quase uma hora de enrolação para começar o show. Desconfiado, por ser um moleque e por saber que ele tocava guitarra e nunca havia tocado um teclado, Ely resolveu arriscar e chamou o garoto, que foi para o teclado. Ele baixava o volume no começo, olhava para o braço da guitarra de Ely e pegava a harmonia. Na segunda vez, já com o volume alto, entrava tocando. No final, o garoto parecia que tinha tocado teclado a vida toda, deixando todos da banda e da plateia impressionados. Era o jovem Manoel Cordeiro, com 17 anos. Depois do show, Manoel contava a Ely que o sonho dele era ir morar em Belém, e que ele adorava o trabalho de Ely Farias e a forma com que ele eletrificou o carimbó. Ely telefonou para a esposa e disse que ele ia levar um garoto para morar com eles por um tempo. Comprou a passagem e o trouxe. Foi quando Manoel Cordeiro desembarcou no Pará. “Décadas depois, em 2012, Manoel reaparece na minha casa e me convence a gravar novamente. Eu fui maestro dele, e agora ele é meu maestro. Produziu um EP e tocou comigo nas seis músicas inéditas.”

and he played like hell. Jimi Hendrix and Santana were nothing next to him. I remember I was impressed, but didn’t get close enough to know who he was”. At 10pm, the event began and the band went on stage without Costa, planning to play their songs without the keyboard, although the instrument was plugged in and ready to go just in case a miracle occurred and the keyboardist appeared last minute. From up on the stage, Farias saw a kid in the crowd with a face full of pimples. The sound engineer would only go on stage right when the band was about to play. There, he approached Farias to say: “there’s a kid over there that knew Tynnoco isn’t coming and he wants to help you”. Farias was impatient, knowing he could not allow someone in the band who had not rehearsed with them. “A guy like this isn’t gonna pick up on what we’re playing here”. It was then, on another trip to the stage, that the sound engineer jogged Farias’s memory: “He’s that guitarist you saw that time playing at the stadium”. There was almost an hour of this toing and froing before the show could begin. Farias was wary because he was a kid and also because he knew he played guitar, but had never played keyboard. However, he finally decided to take the risk, call him up and put him on the keyboard. At first, he kept his volume low, looked at the neck of Farias’s guitar and picked up the harmonies. Next, now with the volume turned up, he played at full steam. By the end, the boy looked like he had been playing keyboard his whole life, leaving both the band and the crowd in awe. It was the young Manoel Cordeiro at 17 years old. After the show, Cordeiro would tell Farias that his dream was to live in Belém and that he loved Farias’s work and the way he had electrified the sound of carimbó. Farias called his wife and told her he was bringing a boy to live with them for a while. Then, he bought the ticket and brought him. This was how Manoel Cordeiro arrived in Pará. “Decades later, in 2012, Manoel reappears at my home and convinces me to record again. I was his maestro and now he is my maestro. He produced my EP and played with me on all six new songs”.


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na selva Ser metaleiro em Londres, Berlim ou Helsinque é tão verdadeiro como em Belém e na região amazônica, onde a dificuldade de shows e produção se dilui em meio a bandas lendárias e produtores headbangers apaixonados por Vladimir Cunha Fotos Taiana Laiun

Metal in the jungle Being a metalhead in London, Berlin or Helsinki is just as real in Belém and Amazonia, where the struggle with shows and productions is reduced by the existence of legendary bands and passionate headbanger producers 58

Djair,- da banda Antcorpus // Djair, from the band Antcorpus SELETA música da amazônia


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á para dizer exatamente qual foi o momento. Foi em “2 Minutes to Midnight”, quando Bruce Dickinson subiu nas caixas de retorno e, do alto de seu 1,67 m, gritou: “Scream for me Belém. Scream for meee Beléééém!”. Não que isso seja novidade. Há anos a banda repete o mesmo truque, exatamente do mesmo jeito. O que muda é apenas o nome da cidade. Mas para os onze mil fãs de Belém do Pará era a cidade deles. De certa maneira, era como se a banda estivesse fazendo aquilo pela primeira vez.

Iron Maiden em Belém foi a realização dos sonhos molhados de qualquer metaleiro do Norte do Brasil. Deu até para esquecer, e perdoar, os anos de shows com som ruim, palcos apertados, fitinhas mal gravadas rodando em micro systems caindo aos pedaços, discos caros e aquelas fitas VHS com imagens esverdeadas de algum show de Ozzy Osbourne no começo dos anos 80. Mesmo que a voz de Bruce Dickinson não seja mais lá essas coisas. Mesmo que eles venham fazendo o mesmo disco há mais de vinte anos. E já que estamos falando de conquistas simbólicas, fez todo sentido, portanto, que o show de abertura tenha ficado com o Stress, esse cultuado e controverso ícone do metal brasileiro. Criada na segunda metade dos anos 70, a banda começou no Colégio Moderno tocando covers de “rock pauleira”, a trinca Black Sabbath/Led Zepellin/Deep Purple, só para, na virada da década, aderir à New Wave of British Heavy Metal (NWOBHM), movimento que deu ao mundo bandas como Saxon, Iron Maiden, Def Leppard etc. O barato é quando você se liga que o Stress não foi um imitador e, sim, um contemporâneo de todas essas bandas. Com todas as idiossincrasias da época, o som que a banda fazia era o mesmo que estava rolando na Europa naquele momento. Como uma banda da região mais atrasada de um país de Terceiro Mundo, e ainda por cima sob uma ditadura militar, conseguiu essa proeza é um mistério que somente Roosevelt Bala, o vocalista, pode explicar. “Éramos um grupo muito pequeno e os discos eram muito caros. Algo em torno de cem reais hoje”, explica Bala em uma conversa à beira da piscina do Hilton Hotel Belém, local escolhido por ele para a entrevista. “Se ouvia falar que tinha um roqueiro lá na Cremação, ia lá com teus discos de rock pra trocar e ouvir um som juntos. Mas para a nossa turma, a que formou o Stress, os discos eram acessíveis porque o Leonardo Renda, nosso tecladista, era de família rica e viajava muito. Então tínhamos os discos na mesma época que os europeus.” A cabeça do Stress podia estar no East End Londrino, de onde, naquele momento, o Iron Maiden liderava a nova onda do metal britânico.

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e can nail down the exact moment. It was during ‘2 Minutes to Midnight’, when Bruce Dickinson got up on the monitors and, from the dizzy heights of his 1.67m figure, belted out: “Scream for me Belém! Scream for me Beléééééém!” It is not that this was anything new. For years the band has been doing this same stunt, exactly the same way. The only thing that changes is the name of the city. But for the 11 thousand fans from Belém do Pará, it was their town. To them, it was as if the band was doing it for the very first time. Iron Maiden playing in Belém was a wet dream come true for any metalhead in northern Brazil. It was even possible to forgive and forget all those years of concerts on cramped stages, awful sound, bad cassette recordings playing on decrepit ministereos, expensive records and those old VHS tapes with burnt out images of some Ozzy Osbourne show from the beginning of the eighties. Even if Dickinson’s voice is no longer what it used to be. Even if they have been recording the same album for more than 20 years. And whilst on the subject of symbolic victories, it makes total sense, therefore, that the opening slot belonged to Stress, a controversial cult icon of Brazilian metal. Created in the latter half of the 1970s, the band started up at Colégio Moderno, where they played heavy metal covers from the Black Sabbath/Led Zeppelin/Deep Purple triad, and then later, at the turn of the decade, embraced the New Wave of British Heavy Metal (NWOBHM), a movement that gave the world bands like Saxon, Iron Maiden, Def Leppard etc. The fun bit is when you realize that Stress was not a mere imitator, but in fact, a contemporary of all those bands. With all the idiosyncrasies of that era, the band’s sound was the same that was going on in Europe back then. How a band from the most stuck behind region of a Third World country, and on top of that, under a military regime, accomplished such a feat is mystery that only Roosevelt Bala, the vocalist, can explain: “We were a tiny bunch and records were really expensive. Something like US$ 50 in today’s money”, explains Bala during a poolside conversation at the Belém Hilton, the place he chose for our interview. “If you heard about a rocker in a different neighborhood, like Cremação, you would go there with your records to swap them and listen to some stuff together. But for our crew, the guys who formed Stress, the records were more accessible because Leonardo Renda, our keyboardist, was from a rich family and traveled a lot. So we had the music at the same time as Europeans”. Stress’s heart could well have been in London’s East End, where, right then, Iron Maiden was leading the new wave of British metal. However, the band was still trapped in Belém, a city with a

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No entanto, a banda ainda estava presa em Belém, uma cidade de percepção difusa, dominada pela disco music. Era 1979. Sem opções, os roqueiros da cidade passavam o dia no cinema, sessão após sessão, tocando air guitar, cantando junto, bebendo vinho quente e fumando maconha. Ao final da última sessão do dia, as pessoas estavam, literalmente, empilhadas umas nas outras. Beto Fares foi uma dessas pessoas. Anos mais tarde criaria o Balanço do Rock, programa de rádio da Cultura FM voltado quase que exclusivamente para o público de metal local. Mas, naquela época, as suas preocupações eram as mesmas de qualquer outro roqueiro de Belém do Pará: trocar discos, ouvir um som e garimpar informações nas poucas revistas que chegavam às bancas da cidade. Beto explica que o metal paraense realmente começou com o Stress. O público, inicialmente, era restrito. Mas foi crescendo exponencialmente. Ao ponto da banda, sozinha, colocar mais de seis mil pagantes durante uma única noite em um ginásio local. Segundo ele, foi só uma questão de tempo para que as pessoas da plateia começassem a ter vontade de montar as suas próprias bandas. Mas o que ninguém esperava é que o Stress acabaria em 1987. Conflitos internos, escolhas ruins, diferenças musicais, a lista clássica de desgraças do mundo do rock. E que os anos 80 veriam uma onda de radicalização que mudaria para sempre o heavy metal e tornaria obsoletas as bandas da nova onda do metal britânico. A virada do thrash “Em Belém, o thrash foi o que pegou”, explica Beto Fares. “Era o estilo que realmente mobilizava as pessoas e que ocupou um espaço no metal paraense que ficou vago após o fim do Stress. A ponto de uma banda como o Black Mass, que tinha só uma demo muito da sua mal gravada, colocar 600 pessoas num show. Uma fitinha. É o que restou do Black Mass. Mas a banda lotava as casas por onde passava. A mesma coisa com o Morfeus e o Retaliatory, a primeira banda de metal de Belém formada por pessoas que não eram filhos de rico ou da classe média.” Em 1988 o metal estava por cima em Belém. A bravata na época era que a cidade, supostamente, abrigava 180 bandas do estilo. Ainda que fosse verdade, boa parte não passava de espasmos barulhentos e sem criatividade, feitos por músicos sem um superego realmente funcional. “Acho que havia mais boa vontade do que qualidade”, recorda Fernando Souza Filho, fundador da banda DNA e ex-editor da revista Rock Brigade. “Havia uma cena muito forte, mas não havia um movimento, como muita gente acreditava naquela época. Não havia ideologia, só paixão.”

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André “Bocão”, produtor e dono da loja Distro Rock André “Bocão”, producer and owner of the Distro Rock store SELETA - música da amazônia


fragmented perception and dominated by disco music. It was 1979. With no choice, the city’s rockers spent the whole day at the movies, session after session, playing air guitar, singing along, drinking warm wine and smoking weed. By the end of the last movie of the day, people were literally piled up on one another. Beto Fares was part of this crowd. Years later, he would create Balanço do Rock, a radio show on Cultura FM dedicated almost exclusively to the local metal scene. But, around then, his worries were the same of any other rocker from Belém: to swap records, listen to some music and dig out information from the few magazines that hit the city’s newsstands. Fares explains that Pará’s metal really began with Stress. The audience, at first, was limited. However, it grew exponentially, to the point at which Stress alone attracted six thousand punters during a single evening in a local hall. According to him, it was only a matter of time before the fans themselves began wishing they could form their own bands. But what no one expected was that Stress would split up in 1987. Internal conflict, bad decisions, musical differences… the classic crisis list of the rock world. And that the 80s would witness a wave of radicalization that would forever change heavy metal and make obsolete the new wave of British metal bands. Thrash’s turning point “In Belém, it was thrash metal that caught on”, explains Fares. “It was the style that really mobilized people and that occupied the empty space in our metal scene that was caused by Stress’s break up. To the point where a band like Black Mass, that only had one really badly recorded demo, attracted 600 people to a show. A single cassette. That’s all that was left from Black Mass. But they filled venues wherever they played. It was the same deal with Morfeus and Retaliatory, Belém’s first metal band that was formed by guys who weren’t rich or middle class”. In 1988, metal had taken off in Belém. The brag of the day was that the city was supposedly home to 180 metal bands. Even if it was true, a large chunk was nothing more than noisy non-creative spasms made by musicians lacking a really functional superego. “I think there was more good intention than quality”, recollects Fernando Souza Filho, founder of the band DNA and former editor of Rock Brigade magazine. “There was a strong scene, but there wasn’t a movement, like a lot of people believed at the time. There was no ideology, just passion”. The ‘Metal City’ dreamt up by Souza Filho and transformed by him into DNA’s biggest hit would only last a few years, falling into ruin in 1993, when the third instalment of the Rock 24 Horas Festival was turned into a war zone and music was replaced by brawls. On one side, Belém’s street gangs; on the other, the military police and Roosevelt “Bala”, da lendária Stress Roosevelt “Bala”, from the legendary Stress

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A “Cidade Metal”, sonhada por Fernando e transformada por ele no maior hit do DNA, duraria apenas alguns anos, vindo a ruir em 1993, quando a terceira edição do festival Rock 24 Horas se transformou em uma praça de guerra e a música foi substituída por pancadaria. De um lado, as gangues de rua de Belém. Do outro, a PM e os integrantes da Gang Mexicana, empresa contratada para fazer a segurança do evento. O rock – e mais especificamente o metal, o punk e o hardcore – caiu em desgraça, associado para sempre à violência gratuita que chocou toda uma cidade. O tempo agora era outro. O sertanejo, a axé music e as micaretas haviam chegado. Demorou dez anos para que o metal paraense voltasse a ter alguma relevância e Belém superasse o trauma do Rock 24 Horas. André Bocão – produtor de shows e dono de uma loja especializada em som pesado – aponta a primeira metade dos anos 2000 como o início da terceira onda do metal local. É quando, afirma ele, o interesse no aspecto mais extremo do gênero ressurgiu. E pequenos produtores se organizaram para colocar Belém no circuito nacional de shows. Celebridades underground como Krisiun, Angra e Ratos de Porão volta e meia tocam nas casas de show da cidade. E, ainda que sejam do segundo escalão do thrash metal, Vader, Hirax e Destruction já começam a dar as caras por Belém. É preciso, no entanto, estar preparado para lidar com todo tipo de bobagem. Como a insistência de músicos locais em emular os piores aspectos do black metal norueguês, um estilo notório pelo satanismo de araque e por sua associação com o Nazismo,

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Beto Fares, radialista e um dos maiores conhecedores da cena pesada da região The radioman Beto Fares, one of the greatest experts on the region’s heavy scene SELETA - música da amazônia

o Nacional Socialismo e aquelas elucubrações eugênicas que faziam a alegria dos teóricos do Terceiro Reich. Por outro lado, novatos como Warpath e Scream of Death apontam caminhos interessantes para o metal local enquanto os velhos de guerra DNA, Stress e Retaliatory continuam por aí. Um novo sopro metaleiro Mas é de cidades sem nenhuma tradição roqueira e totalmente fora do circuito de shows que surgem os nomes mais interessantes do metal amazônico, que hoje em dia não se limita mais à cena de Belém. De Boa Vista, Roraima, vem a Yekuana, um agrupamento thrash metal com letras em português e temática punk. O som é pesado e as apresentações têm tanta frustração e raiva que a impressão que dá é que os membros da banda têm um colapso nervoso por show. Em Parauapebas, cidade do sul do Pará que vive em torno de uma mineradora multinacional, o Antcorpus carrega a bandeira da cena de uma banda só. As letras são em português e o som e o visual parecem saídos de uma realidade paralela na qual o ano de 1987 nunca terminou e o Slayer se tornou mais popular que os Beatles. Ao mesmo tempo, o Amapá dá ao mundo o estranho agrupamento death-thrash-macumbeiro Matinta Perêra, que, espertamente, trocou o satanismo das bandas europeias pelos arquétipos mais expressivos dos cultos afro-brasileiros. Mais uma vez é o thrash metal quem define os rumos do som pesado do Norte do Brasil. Para os novos e velhos nomes do metal amazônico, a luta continua.


members of Gang Mexicana, the company contracted to provide the event’s security. Rock – and more specifically metal, punk and hardcore – fell into disgrace, now permanently associated with the gratuitous violence that shocked an entire city. Times had now changed. Brazilian country music, axé and the micaretas had arrived. It took ten years for the local metal scene to regain some relevance and for Belém to overcome the trauma of Rock 24 Horas. André Bocão, an event producer and owner of a shop specializing in heavy music, points out the first half of the 2000s to be the beginning of the third wave of local metal. According to him, this was when the interest in the genre’s most extreme side reappeared. And small producers organized themselves to stick Belém back on the national concert circuit. Underground celebrities such as Krisiun, Angra and Ratos de Porão pop up to play local venues. And, despite being part of thrash metal’s second echelon, Vader, Hirax and Destruction are already beginning to show up in the city. Regardless of this, it is necessary to be prepared to deal with all kinds of stupidity, like the insistence of local musicians to emulate the worst aspects of Norwegian black metal, a style notorious for its phony Satanism and its association with the Nazis, National Socialism and all those eugenic digressions that made Third Reich theorists so happy. On the other hand, newcomers like Warpath and Scream of Death could lead the local metal scene down interest-

ing paths, whilst war veterans like DNA, Stress and Retaliatory are still around. A new breath of air for heavy metal But it is from towns that have no rock tradition whatsoever and are completely off the circuit, that the most interesting names of Amazonian metal come from nowadays, far beyond the limits of Belém’s scene. From Boa Vista, in the state of Roraima, comes Yekuana, a thrash metal collective with lyrics in Portuguese and a punk theme. Their sound is a heavy one and their shows have such anger and frustration that it gives the impression that the band members have one nervous breakdown per show. In Parauapebas, a city in southern Pará which revolves around a multinational mining company, the band Antcorpus carries the flag of this one-band scene. Their lyrics are in Portuguese and their music and appearance seem to have come from a parallel reality in which 1987 never ended and Slayer became more popular than the Beatles. At the same time, another Amazonia state, Amapá, presents the world with the weird deaththrash macumba collective Matinta Perêra, which, in a wise move, swapped the satanism of European bands for more expressive archetypes from Afro-Brazilian cults. Once more, it is thrash metal who defines the direction of the heavier sounds from northern Brazil. For both the new and old names of Amazonian metal, the battle continues.

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Pavulagem desse coração

De brincadeira para poucos, Arraial do Pavulagem se tornou um dos cartões de visita da cultura paraense Por Tylon Maués Fotos Thiago Araújo

A cocky-hearted bull called Pavulagem Originating as a bit of fun for just a few people, Arraial do Pavulagem has become one of Pará’s top cultural calling cards


Júnior Soares e Ronaldo Silva, cabeças do grupo que virou sinônimo de valorização da cultura do estado Júnior Soares and Ronaldo Silva, heads of the group that has become a synonym for the value of the state’s culture 66

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m pelo menos três oportunidades por ano, nos meses de março, junho e outubro, de 30 a 40 mil pessoas se reúnem por algumas ruas do centro de Belém para acompanhar o cortejo do Boi Bumbá mais famoso da capital paraense, o arrastão do grupo Arraial do Pavulagem. São momentos marcantes do calendário cultural da cidade que, em quase três décadas, já se tornaram parte do que se considera belenense. Tendo à frente cinco músicos, mais os brincantes do Batalhão da Estrela (percussionistas, dançarinos e manipuladores de bonecos e adereços), a banda arrasta a multidão até a Praça da República, o coração da cidade, atrás de música, diversão e ritmos que o público está acostumado a ouvir desde que se entende por gente, em qualquer região do estado. Esses milhares de pessoas se diferem muito dos que, em 1987, começaram a acompanhar uma trupe formada por amigos artistas que resolveram se juntar para tocar canções tradicionais da cultura paraense. Hoje, a brincadeira se tornou o maior arrastão representativo cultural do Pará. São 26 anos de consolidação de um projeto que, a priori despretensioso, virou um dos marcos das festividades locais. “Em nosso primeiro show no (teatro) Waldemar Henrique, eram umas 30 pessoas no palco, quase tanta gente quanto na plateia”, lembra o músico Júnior Soares, que ao lado de Ronaldo Silva, é remanescente desses primeiros momentos. Hoje, a banda é formada também por Marcelo Fernandes

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(guitarra), Rubens Stanislaw (baixo), Edgar Júnior, Rafael Barros e Franklin Furtado (percussão). Do fim da década de 80 para cá, foram oito discos, culminando, em 2003, na criação do Instituto Arraial do Pavulagem, organização da sociedade civil, autônoma e sem fins lucrativos, que desenvolve ações de educação cultural na Amazônia. De acordo com Ronaldo Silva, a criação do Instituto foi um passo natural e necessário para que o grupo pudesse planejar com mais tranquilidade suas ações, sem falar na possibilidade de ampliar o trabalho além das apresentações e cortejos. “O Instituto é uma ferramenta jurídica para fazer convênios, trabalhar com leis de incentivo. Acho que esse é o caminho para quem quiser trabalhar com cultura nessa amplitude.” O Instituto tem como sede um antigo casarão no Boulevard Castilhos França, em frente à Praça dos Estivadores. Economista de formação, coube a Júnior Soares formatar o Instituto. Tanto ele quanto Ronaldo incorporaram o viés ecológico como uma das prioridades. “Tivemos que pensar em financiamento para, por exemplo, fazer um arrastão na rua. Como poderíamos nos aperfeiçoar com voluntariado? Então, criamos o Instituto para estabelecer convênios, para poder captar recursos e financiar a brincadeira. Não queremos só tocar, mas ser autossustentáveis e não destruir as vias onde passamos. Se estamos querendo qualidade, buscamos projetos que nos deem condições de trabalhar durante o ano, ter um horizonte estabelecido.”

n at least three occasions per year, in the months of March, June and October, between 30-40 thousand people gather on some streets in downtown Belém to follow the most famous of the mythical bull boi-bumbá parades in the state capital, known as the ‘Arrastão do Arraial do Pavulagem’. They are highlights of the city’s cultural calendar and, in almost three decades, have become part of what is considered to be truly ‘made in Belém’. Led by five musicians, in addition to the revelers from Batalhão da Estrela (percussionists, dancers and puppeteers), the band hauls the crowd along until Praça da República, in the heart of the city, with music, fun and rhythms that the audience has been listening to as long as anybody can remember, anywhere in the state.

From the end of the 1980s until now, there were eight albums, culminating with the creation of the Instituto Arraial do Pavulagem in 2003; a civil, autonomous and non-profit organization that develops cultural education initiatives in the Amazon. According to Silva, the creation of this institute was a natural and necessary step for the group to be able to plan its actions more easily, not to mention the possibility of expanding their work beyond the presentations and parades. “The institute is a legal vehicle used to establish partnerships and work with incentive laws. I think this is the way for who wants to work with culture on this scale”. Instituto Arraial do Pavulagem is headquartered in an old townhouse on the Boulevard Castilhos França, facing Praça dos Estivadores.

This crowd of thousands is very different to those who, in 1987, began to follow a troupe formed by artist friends who had decided to get together to play traditional songs from Pará. Today, this little prank has become the state’s ultimate cultural parade. It has been 26 years consolidating a project that began with no ambitions, but which now has become of the highlights of the local festivities. “In our first show at the Waldemar Henrique theater, we had about 30 people on stage, almost as many as were in the audience”, recalls the musician Júnior Soares, who, alongside Ronaldo Silva, is a witness from those first chapters. Today, the band also includes Marcelo Fernandes (guitar), Rubens Stanislaw (bass), Edgar Júnior, Rafael Barros and Franklin Furtado (percussion).

As an Economics graduate, it was Soares’s task to set up the institute. Both he and Silva incorporated an ecological inclination as one of the priorities. “We had to think, for instance, about financing a street parade. How could we improve our work by recruiting volunteers? So, we created the institute to establish partnerships through which we could obtain resources and finance our adventure. We don’t want to just play, but to be self-sufficient and to not destroy the streets where we parade. If quality is our aim, we look for projects that allow us to work all year around and to have a set goal”. The institute was born with an objective: to foster pedagogical


Os arrastões são realizados durante todo o ano e levam milhares de brincantes às ruas de Belém The arrastões are organized all year round and bring thousands of revelers to Belém’s streets

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O Instituto surgiu com o objetivo de fomentar ações pedagógicas de análise e gestão sobre os hábitos culturais e o cuidado das pessoas com o meio em que vivem. “Qual o grau de comprometimento com o futuro que nós, como coletivo, temos realmente? Para a gente, a floresta em pé é muito importante. Somos trabalhadores da arte e praticamos cultura todos os dias da semana, seja fazendo música ou pensando no problema do lixo, por exemplo. A prática cultural nas ruas é um termômetro para a segurança social”, diz Ronaldo. COMEÇO No início, depois de ser um grupo basicamente com músicas tradicionais, o Arraial passou a levar para seu repertório todas as influências que seus membros tinham como artistas. Esta mudança acarretou uma aproximação com outros públicos, mais acostumados com expressões pop do que com folguedos de raiz. É o que cita o historiador José do Espírito Santo Dias Júnior, especialista em Estudos Culturais da Amazônia, classificando o Arraial como uma fonte de atração para pessoas que passaram a se interessar pelos ritmos tradicionais com que, anteriormente, tinham apenas um vago contato. “O bumbá deixou de ser domínio exclusivo das classes populares nos subúrbios e passou a atrair outros segmentos sociais. É o caso do Arraial do Pavulagem, que atrai adeptos de outros segmentos sociais que costumeiramente não brincavam nem apreciavam o folguedo do boi.” Inicialmente “Arraial do Boi Pavulagem do teu Coração”, por apenas tocar toadas de boi, foi evoluindo de acordo com a inclusão de outros ritmos no cenário musical paraense, até chegar a seu patamar atual. Júnior Soares lembra que a identificação com o tradicional do começo chegou a criar uma resistência quando novos ritmos foram incluídos, que só foi vencida com o tempo. “Para chegarmos a essa identidade sonora foi um laboratório constante, muitas vezes com reações contrárias do grupo. Muita gente achava que seríamos sempre um grupo

actions for the analysis and management of cultural habits and to increase environmental awareness. “How deeply are we really committed to our collective future? To us, a healthy forest is very important. We work with art and are involved with culture every day of the week, whether that’s making music or trying to solve our garbage issues, for example. The cultural actions on the streets are a thermometer for social security”, says Silva. The beginning In the beginning, after being a mostly traditional musical group, Arraial expanded its repertoire to include all the influences that its members had as artists. This shift brought them closer to new audiences, more familiar with pop than roots. That is what historian José do Espírito Santo Dias Júnior, an expert in Amazonian Cultural Studies, says when he classifies Arraial as a source of attraction for people who became interested in traditional rhythms with which they had previously only a vague contact. “Bumbá stopped being dominated exclusively by the suburban masses and started to attract other parts of society. This is the case of Arraial do Pavulagem, which attracts fans from social classes that, customarily, wouldn’t play or enjoy folguedo do boi traditions”. Initially, since it only played boi-bumbá tunes, the group was called Arraial do Boi Pavulagem do Teu Coração, and from that evolved according to the inclusion of other regional rhythms, until reaching its present state. Soares recalls that this association with its early traditions generated some resistance when new rhythms were being added, and this was only overcome with time. “Finding this musical identity has been an ongoing experiment, which on many occasions prompted negative reactions from the group. Many people thought we would always be a traditional group. The first reaction was about the guitar and mixing in reggae. Little by little, we were able to gather support from people and showed we’re not a regional band”.


tradicional. A primeira reação foi à guitarra, à mistura ao reggae. Aos poucos conseguimos trazer essas pessoas para junto da gente e mostramos que não somos um grupo regional.” Hoje, os arrastões se dividem com o do começo do ano, o “Cordão do Peixe Boi”, que abre o calendário anual de atividades do Arraial com uma concepção ligada à memória dos antigos cordões de bicho. Nas festividades vem o mais tradicional, o “Arrastão do Boi Pavulagem”, representando a quadra junina e que é realizado nos mesmos moldes atuais há 13 anos. Em outubro, o cortejo que homenageia Nossa Senhora de Nazaré, durante o Círio – maior festa religiosa do país e uma das maiores romarias católicas do mundo – destaca o lado profano da manifestação, o da “Canoa Rainha das Águas”, no mesmo dia da romaria fluvial da festividade. Nesses cortejos, além dos milhares de admiradores do trabalho, vão os que procuram o Instituto como forma de iniciação em matizes culturais e lapidação do conhecimento que já possuem. Segundo Ronaldo, um congraçamento do que acabou sendo o principal objetivo dos amigos que se reuniam para tocar para eles mesmos, sem imaginar no que aquelas sessões de Boi Bumbá resultariam. “Sempre achamos muito legal que o Arraial, que se transformou num canal de visibilidade, continuou assim não só para quem está envolvido diretamente nele, como também para outros que buscam um meio de mostrar seu trabalho. Caminhando e melhorando, sempre.”

Today, the parades have the company of another one, ‘Cordão do Peixe Boi’, that occurs at the beginning of the year and opens Arraial’s annual calendar of activities with a concept more related to the memory of the old cordões de bicho. In the festivities, the more traditional ‘Arrastão do Boi Pavulagem’, representing the typical Brazilian June festivals, has been performed in the same way for 13 years. In October, a parade called ‘Canoa Rainha das Águas’ honors Our Lady of Nazareth during the Círio, the largest religious festivity in Brazil and one of the biggest Catholic processions in the world. It highlights the event’s profane side and takes place on the same day as the Círio’s traditional river pilgrimage. These parades gather not only thousands of Arraial’s admirers, but also those who seek the institute as a way of initiation into the cultural movement and to refine their knowledge of it. According to Silva, all this is a celebration of what ended up being the main goal of friends who gathered to play just for each other, without ever imagining what those boi-bumbá sessions would turn into. “We always thought it was really cool that Arraial, after becoming a form of showcase, continued like this not only for those who are directly involved with it, but also for others, who look for a way to exhibit their work. Keep on going, keep on improving, always.”


O nome original “Arraial do Boi Pavulagem do Teu Coração” foi escolhido porque o boi não tinha a figura do tripa, o brincante que veste o boi de pano e faz a evolução do bumbá, que fica embaixo da fantasia e é o responsável pelos movimentos durante a apresentação. “Era um boi pequenino, mais um adereço que ficava fixo numa tala. Daí ele virou pavulagem. Na fala do paraense, pavulagem significa pessoa orgulhosa, metida a besta. Esse boi sempre foi abusado, mesmo, desde o nascimento”, diz Júnior Soares. Discografia 1995 – Gente da Nossa Terra 1996 – Sotaque de Reggae Boi 2001 – Arrastão do Pavulagem 2002 – Folias do Marajó 2003 – Arraial do Pavulagem Ao Vivo 2004 – Música do Litoral Norte 2005 – Rota da Estrela 2013 – Céu da Camboinha Na internet arraialdopavulagem.org

The original name ‘Arraial do Boi Pavulagem do Teu Coração’ was chosen because this boi-bumbá parade did not have a character called tripa, a reveler who dresses up as the bull and performs the bumbá dances by standing inside the costume and controlling all its moves during the performance. “It was a small bull, more like a prop attached to a stick. From this, it became ‘pavulagem’. For the locals, this is a word used for someone with a bit of a flamboyant and cocky attitude. Since he was born, our bull has always been a cheeky one”, says Soares. Discography: 1995 – Gente da Nossa Terra 1996 – Sotaque de Reggae Boi 2001 – Arrastão do Pavulagem 2002 – Folias do Marajó 2003 – Arraial do Pavulagem Ao Vivo 2004 – Música do Litoral Norte 2005 – Rota da Estrela 2013 – Céu da Camboinha Online: arraialdopavulagem.org

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Hail, Saint Benedict The need for social activity and leisure amongst the slave population gave birth to the most significant festivity in the region of Bragança 72

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Salve, São Benedito

Da necessidade de socialização de escravos nasceria a festividade mais significativa da região bragantina por Clemente Schwartz Fotos Thiago Araújo

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a necessidade de socialização e lazer de escravos do final do século XVIII nasceria uma das mais tradicionais festividades paraenses. A Festividade de São Benedito, no município de Bragança, é a manifestação religiosa e folclórica mais significativa da região, e a cada ano atrai milhares de turistas para apreciar o espetáculo da Marujada, dança introduzida pelos negros para louvar seu santo dileto. Apesar do período culminante da festividade ir de 18 a 26 de dezembro, os rituais se iniciam com o nascer do novo ano e se estendem por meses até a grande festa. No dia 1º de janeiro começa tudo, com a missa celebrada às 6h, na Igreja de São Benedito, seguida da cerimônia da troca de bastões do juiz e da juíza. Os preparativos para a festa, no entanto, começam muito antes. Em meados de abril, são realizadas as saídas das comitivas dos campos, das praias e das colônias, em peregrinação por suas respectivas áreas. A Irmandade de São Benedito foi fundada em 03 de setembro de 1798, por 14 escravos, para suprir a carência de sociabilidade e lazer. Em agradecimento à farta colheita e também aos patrões, por terem permitido implantar a irmandade, os escravos apresentaram pela primeira vez, no dia 26 de dezembro do mesmo ano, a dança da marujada, de liderança feminina, no entorno da Igreja de São Benedito.

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he need for social activity and leisure amongst the slave population at the of the 18th century gave birth to one of Pará’s most traditional festivities. In the town of Bragança, the Festividade de São Benedito (Festival of Saint Benedict) is the region’s most significant religious and folkloric manifestation. Each year, it attracts thousands of tourists to come and appreciate the Marujada spectacle, a dance introduced by negroes to praise their beloved saint. Although the peak period of the festivities is between December 18th to 26th, the rituals begin with the birth of the new year and extend for four months up until the big event. On January 1st everything begins with a mass celebrated at 6am in the Igreja de São Benedito (Saint Benedict Church), followed by the ceremonial exchange of scepters between the judges. The preparations for the festival, however, begin much earlier. In midApril, the comitivas (small committees) leave for their pilgrimage around the fields, beaches and settlements, according to each respective area. The Irmandade de São Benedito (Brotherhood of Saint Benedict) was founded on September 3rd 1798 by 14 slaves to overcome the lack of sociability and leisure. To give thanks for the rich harvest and also to their masters, who allowed them to establish the brotherhood, on December 26th of that same year, in the area surrounding the church, the slaves presented the female-led Marujada dance for the first time.

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JUIZ E JUIZA DA FESTA / The festivity’s male and female judges Até o início do século XX, a responsabilidade pela realização da festa era inteiramente do juiz e da juíza. A partir de então, além da simbologia do cargo, os dois passaram a ter compromisso efetivo com o patrocínio e a coordenação do “Almoço do Juiz” e o “Almoço da Juíza”, que são realizados alternadamente a cada ano, nos dias 25 e 26 de dezembro. A demanda de promesseiros interessados no exercício do cargo simbólico faz com que os devotos aguardem em média de cinco a oito anos.

Until the dawn of the 20th century, the male and female judge were entirely responsible for the organization of the festivity. After that, besides the symbolic importance of the role, the two judges acquired the effective commitment of sponsoring and coordinating the ‘Almoço do Juiz’ and ‘Almoço da Juíza’ (Judge’s Luncheons), which occur on December 25th and 26th respectively. The high demand of candidates interested in exercising this symbolic duty means these devotees need to wait between five and eight years to do so.

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ESMOLAÇÕES / Esmolações

As comitivas de esmolação são grupos de peregrinos que percorrem três regiões distintas: os campos, as praias e as colônias. Cada uma possui dois porta-bandeiras que seguem sempre à frente do grupo. Ao se aproximarem de uma casa a ser visitada, os porta-bandeiras fazem movimentos típicos: ondulam o pavilhão com a imagem do santo, ora para um lado, ora para outro, cruzam os mastros, e em seguida abaixam e erguem as bandeiras reverenciando os devotos que aguardam em frente à residência. O trajeto das comitivas é previamente agendado. Durante o dia, fazem diversas visitas, que duram cerca de 20 a 30 minutos, cantando, em latim caboclo, um trecho da Ladainha de São Benedito. À noite, os tambores anunciam o início da louvação com a Ladainha de São Benedito completa, além de outras orações. Ao amanhecer, a comitiva dos campos sai de Bragança, passando por Tracuateua, até as comunidades de Mirasselvas e Tauari, no município de Capanema. A comitiva das praias visita todas as comunidades litorâneas de Bragança, se estendendo até Carutapera, no Maranhão. A outra comitiva peregrina por todas as vilas localizadas ao longo das rodovias do Cacoal do Peritoró e Dom Eliseu, que interligam as colônias bragantinas. A comitiva das praias chega ao porto de Bragança somente no dia 8 de dezembro, em romaria fluvial vinda da comunidade do Camutá, onde está localizado o Mirante de São Benedito. Após darem prosseguimento às rezas e ladainhas em residências de diversos bairros, as comitivas levam de volta as imagens à Igreja de São Benedito, onde permanecem até abril do ano seguinte, quando recomeçam as esmolações.

MARUJADA / Marujada

Principal elemento folclórico da Festividade de São Benedito, a marujada é uma dança na qual a mulher ocupa papel de liderança, contrariando os costumes do século XVIII, tempo em que a manifestação foi introduzida. A marujada tem à frente a “capitoa”, responsável por iniciar e encerrar a dança. A primeira “capitoa”, cujo nome não consta em documentos, foi escolhida pela Irmandade de São Benedito no período inicial da festividade. De acordo com o estatuto da entidade, somente a “capitoa” pode indicar sua vice que, em caso de morte, será sua sucessora.

The comitivas de esmolação are pilgrimage groups who pass through three distinct regions: the fields, the beaches and the settlements. Each comitiva always has two flag-bearers at the front of it. On the approach to visit a house, the flag-bearers perform a typical routine: they wave the flag displaying the image of the patron saint from one side to the other, cross their flagstaffs and finally lower and raise the flags to salute the devotees waiting in front of their homes. The route of the comitivas is scheduled in advance. During the day, several visits are made and each one lasts 20-30 minutes. The people sing excerpts of the Litany of Saint Benedict in pidgin Latin. In the evening, the drums declare the opening of the worship with the full Litany of Saint Benedict and other prayers. By daybreak, the field comitiva leave Bragança, passing through Tracuateua and reaching the communities of Mirasselvas and Tauari, in the town of Capanema. The beach comitiva visits all of Bragança’s coastal communities all the way down to Carutapera, in the state of Maranhão. The other comitiva goes on a pilgrimage through all the villages located along the Cacoal do Peritoró and Dom Eliseu roads, which connect the local settlements. Each comitiva is formed by 13 devotees who pledged to serve in gratitude to Saint Benedict. The members of the comitivas remain involved with the pilgrimages for nearly 9 consecutive months. After completing hundreds of visits in each of their areas, the field and settlement comitivas begin their return to Bragança in November. The beach comitiva only arrives at the port of Bragança on December 8th, after a river procession starting at the community of Camutá, where the Mirante de São Benedito is located. After proceeding with the prayers and litanies at homes in various neighborhoods, the comitivas bring back the ornamental figures to the Igreja de São Benedito, where they remain until April of the following year, when these rituals restart.

The main folkloric element at the Festividade de São Benedito is the marujada. In contrast to the customs of the 18th century era in which this manifestation was inaugurated, it is a dance led by women. In its front role, the marujada has the ‘capitoa’ (a ‘she-captain’), responsible for opening and closing the dance. The first capitoa, whose name is not documented, was chosen by the Irmandade de São Benedito back in the early days of the festivity. In accordance to their institutional statute, only the capitoa can nominate her deputy, who will succeed her in case of death.

MÚSICA E DANÇA / Music and dance As danças que compõem a marujada são a roda, o retumbão, o chorado, o xote, a mazurca, a valsa e a contradança, executadas ao vivo pelo grupo regional da marujada com os seguintes instrumentos: rabeca, banjo, tambor e reco-reco. Nessas danças, o papel dos homens é invertido: quem tira o cavalheiro para dançar é a maruja. E no contexto, uma das brincadeiras mais frequentes das mulheres é fingir convidálos para dançar e em seguida disfarçar a menção num lampejo irônico e cheio de bom humor.

The dances that form the marujada are the round-dance, retumbão, chorado, xote, mazurka, waltz and contra-dance, performed live by the regional marujada group with the following instruments: fiddle, banjo, drum and reco-reco. In these dances, the male role is reversed: it is the maruja woman who asks the gentleman to dance. In this setting, of the most popular pranks is when they pretend to invite the man to dance, offering him their hand, only to pull it away in a sudden, but humorous and ironic gesture, pretending like they had never asked.

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TRAJES / Costumes

A valorização da mulher na marujada também pode ser constatada na vestimenta. A roupa das marujas é notoriamente mais rebuscada que a dos homens. A beleza do traje das marujas começa pelo chapéu, que tem como base um modelo tradicional feito de palha, revestido em papel laminado dourado. Na parte superior, é adaptada uma estrutura vazada de arame fino, onde pequenos chumaços de penas brancas de pato são presos e arrematados com um detalhe em dourado ao centro. A aba dourada é decorada com espelhos e vidrilhos. E na parte de trás, dezenas de fitas em várias cores vivas completam a originalidade da indumentária. O modelo de blusa das marujas é semelhante ao adotado nos demais rituais de origem afro-brasileira. Confeccionadas em tecido de algodão, com mangas curtas e enfeitadas com babados, que realçam em contraste com a grande quantidade de colares de cores berrantes usados por sobre o tecido branco.

ALVORADA / The dawn

A alvorada de São Benedito marca a abertura da programação oficial da festividade. Desde as 4h da madrugada do dia 18, uma sequência de fogos espaçados, porém ininterruptos, anuncia o início de mais uma festividade. Às 5h, a marujada sai do Teatro Museu da Marujada, dançando retumbão ao som do regional, em direção ao Largo de São Benedito. Em seguida, dançam a roda em torno da igreja, simbolizando um abraço figurado, enquanto, paralelamente, três queimas de fogos completam o ritual que oficializa o início de mais uma festividade.

The value of the female role in the marujada is also evident through their costume: the maruja’s clothes are notoriously more elaborate than the men’s. The beauty of the female costume is found first in their hats, which are based on a traditional model made of straw and covered with a laminated gold paper. Its upper part is made of a hollow wire structure with small bunches of white duck feathers, each with a golden brooch in the center to top it off. The golden brim is decorated with mirrors and glass beads. On the back, dozens of multicolored ribbons complement the originality of the costume. The style of blouse is similar to that used in other rituals of afro-Brazilian origin, tailored in cotton fabrics, with short sleeves adorned with frills that enhance the contrast with the many boldcolored bands draping over the white blouse.

Saint Benedict’s dawn marks the opening of the festivity’s official schedule. On December 18th from 4am onwards, a periodical, but continuous firework display announces the beginning of yet another year’s event. At 5am, the marujada departs from Teatro Museu da Marujada (Marujada Theater Museum) on route to Largo de São Benedito (Saint Benedict Church Square) dancing retumbão to regional music. Next, they perform a round-dance circling the church, representing a pretend embrace, while, at the same time, three firework spectacles complement the ritual that officially inaugurates another annual festivity.

NOVENAS E DANÇAS / Novenas & dances De 18 a 25 de dezembro, as novenas e a dança da marujada são as tradicionais atividades da programação noturna. Durante a temporada, há também extensa programação cultural com shows musicais, exposições de arte e venda de artesanato.

From December 18th to 25th, the nine-day novena and the marujada dance are the traditional activities of the evening schedule. During the season, there is also an extensive cultural program with musical shows, art exhibitions and handcraft fairs.

DIA DE SÃO BENEDITO / Saint Benedict’s day O Dia de São Benedito é comemorado em 26 de dezembro. Neste dia, a festividade chega ao ápice, iniciando com a tradicional missa na igreja de São Benedito, às 8h. Em seguida, marujos e marujas dançam até as 12h, no Teatro Museu da Marujada. Às 12h, com o encerramento da dança, a marujada se dirige em cortejo para o tradicional almoço do dia 26, ofertado por um dos juízes da festa. Às 16h, a procissão sai da igreja percorrendo quatro quilômetros das principais ruas do centro de Bragança, chegando ao mesmo local de partida por volta das 18h30, quando milhares de marujos e marujas fazem um cordão de isolamento, abrindo espaço para a passagem do andor em direção ao palco onde é celebrada Missa Campal. A programação do dia se encerra à meia-noite com a marujada dançando a roda em torno da igreja, repetindo o mesmo ritual de abertura, que configura um abraço simbólico. Em seguida, os marujos e marujas entram na igreja para louvar e agradecer. A festividade termina oficialmente no dia 31, após a apresentação da dança da marujada no barracão, das 20h às 11h30.

Saint Benedict’s Day is celebrated on December 26th. On this day, the festivity reaches its climax, starting off with the traditional 8am mass at the church. Next, marujos and marujas dance until noon at Teatro Museu da Marujada. At noon, with the closure of the dance, the marujada heads in procession to the traditional lunch of the day, offered by one the festivity’s judges. At 4pm, the procession departs from the church covering 4 kilometers of the main streets of downtown Bragança, arriving back where it started from at around 6:30pm, when thousands of marujos and marujas make a human chain to isolate the area through which the ornamental saint will pass towards the stage where an open air mass is celebrated. The day’s program is rounded up at midnight with the marujos performing a round-dance circling the church, repeating the same ritual from the opening, that makes up a symbolic embrace. Next, marujos and marujas enter the church to worship and to thank the saint. The festivity officially ends on the 31st after the presentation of the marujada dance from 8pm to 11:30 am at the festival’s depot.

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A beat far beyond Manari rejects the label of ‘folklore band’ to build an ever more diverse care 80

Paturi, Márcio e Nazaco: há dez anos pesquisando ritmos e sons da Amazônia Paturi, Márcio and Nazaco: ten years researching Amazonia’s rhythms and sounds SELETA - música da amazônia


Batuque muito além

Manari rejeita rótulo de grupo folclórico para construir uma carreira cada vez mais diversa Por Leonardo Fernandes Fotos Taiana Laiun / divulgação

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O

curimbó, tambor típico do carimbó paraense, é talhado no tronco da árvore, formando uma peça maciça. Devido ao tamanho, o instrumento é tocado rente ao chão, como se o músico estivesse montado. Outra coisa que pesa é sua tradição, nascida da mistura das culturas indígena, africana e europeia. Nas mãos do Manari, a batida grave do curimbó serve de base para o tecnobrega “Tecnoíndio”, do segundo e mais recente álbum do grupo, “Manari” (2012). Contando com a participação do DJ Waldo Squash, da Gang do Eletro, a música ainda tem influências do marabaixo, ritmo religioso oriundo do Amapá. “É música eletrônica feita de forma analógica. Criamos todas as batidas com instrumentos de percussão. Não é à toa que o tecnobrega é conhecido como ‘batidão’. É batuque, é música negra, é música paraense. Igualzinho ao carimbó”, define Kleber Benigno, que integra o trio de percussionistas, formado ainda por Márcio Jardim e Nazaco Gomes. Criado há dez anos como um projeto de pesquisa dos ritmos paraenses, o Manari apresenta no álbum mais recente um trabalho marcado pela música eletrônica, com participações dos DJs Dolores, Marcelinho da Lua e MAM. Aparentemente, uma década de profundas mudanças para o grupo, que abandonou as faixas instrumentais que deram a cara da estreia “Braços da Amazônia” (2002), para arriscar em músicas cantadas por eles e parceiros, como Gaby Amarantos (“Amor Exótico”) e o carioca Pedro Luís (“Hã O Quê”). Nem o nome escapou da mudança e passa a ser assinado Manari, sem o “Trio” do começo da carreira. O trabalho ainda flerta com os ritmos caribenhos, como em “Santeria Cubana”, que caiu nos ouvidos do guitarrista mexicano Carlos Santana, despertando seu interesse em gravá-la. Também há espaço para misturas inusitadas, como o samba e carimbó, originando o híbrido “Sambarimbó”, que descamba até pro hip hop. “O Manari é um grupo de percussão. A gente não é um grupo folclórico. Quando a gente resolveu pesquisar a música da Amazônia, nem o pessoal daqui tinha referência. Agora, dez anos depois, nosso leque de interesses se expandiu. Brega, tecnobrega, dub, nada disso foge da nossa essência, sempre primamos pelo experimentalismo”, defende Nazaco. Ironicamente, no começo da carreira do trio, a música regional estava longe de ser aceita como referência. No conservatório Carlos Gomes, na capital paraense, local onde os músicos se conheceram e passaram a tocar juntos, o interesse pela música popular era motivo de chacota. “A academia não se interessava pelo assunto, o conservatório também não. Tinha uma professora nossa que eu ‘pegava corda’ com ela. Ela dizia: ‘Vocês são porcos da noite. Só querem ficar nessa lama.’ Mas a gente enveredou pra música popular porque foi onde a gente começou. Na casa do Márcio tinha uma casa de samba, que era o ‘Morro do Macaco’. Minha formação é o rock, na adolescência trabalhei por três anos como roadie do Mosaico de Ravena”, revela Kleber. O Manari acabou sendo formado fora do Brasil, quando Kleber, Márcio e Nazaco ainda faziam parte do grupo Percussão Brasil e foram se apresentar em Montreal, no Canadá. “Fomos convidados pra participar de um festival de música latina. O repertório era composto por música brasileira na sua maioria e reservamos uma pequena parte pros ritmos paraenses. Vimos que o carimbó, samba de cacete, deixou os caras de queixo caído pela sonoridade diferente e bem particular”, lembra Nazaco.

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PESQUISA Com a ajuda de uma bolsa de pesquisa do Instituto de Artes do Pará (IAP) no valor de R$ 15 mil, os músicos deram início ao estudo de um ano que culminou no “Braços da Amazônia”. A pesquisa abrangeu viagens a municípios paraenses, como Cametá, onde registraram junto às comunidades quilombolas ritmos como o samba de cacete e o banguê; e Marapanim, cidade considerada berço do carimbó. Para localidades distantes, como foi o caso de Alenquer, a 700 quilômetros da capital paraense, eles tiveram uma ajudinha da tecnologia. “Como estávamos com um orçamento apertadíssimo, muito da nossa pesquisa foi feita com o acervo de fitas de videocassete do IAP. Foi através de um desses vídeos que a gente conheceu o marambiré, no quilombo de Pacoval, uma dança religiosa, em homenagem ao rei e a rainha da comunidade. Foi lá que vimos a caixa de marambiré e criamos o nosso modelo. Nós tivemos que confeccionar grande parte dos instrumentos que usamos”, conta Kleber Benigno. “Existe um estereótipo em relação à cultura amazônica: apenas a matriz indígena é levada em conta. Ela é importante e merece ser valorizada sim, mas existem outras facetas. Por exemplo, quem diria que na música paraense ia ter castanholas? No retumbão tem. A maioria dessa cultura é transmitida de forma oral. A gente teve o cuidado de botar tudo no papel, gravar”, aponta Nazaco Gomes. REFERÊNCIA As pesquisas alçaram o Manari ao posto de um dos principais grupos do Brasil quando o assunto é percussão e ritmos amazônicos. Já tocaram com Chico César, Naná Vasconcelos, Fafá de Belém, Felipe Cordeiro, Luê, Dona Onete, Sebastião Tapajós e Madame Saatan. No Brasil, fica difícil nomear um festival de percussão do qual não tenham participado, sem contar as apresentações em países como Estados Unidos, Portugal, França e Guiana Francesa. “Apesar de ficarmos sem gravar material próprio por um tempo, nunca paramos de produzir. Estamos sempre fazendo participações, gravando em estúdio. A Fafá é um exemplo disso. Nossa parceria começou em ‘Braços da Amazônia’. Ela foi a única cantora do CD. ‘Sou madrinha dos Manari’, ela disse. E realmente é. Abriu muitas portas, tocamos na Europa com ela. Por isso eu digo que o novo disco é uma forma de agradecer as parcerias, os amigos que fizemos na estrada. Já tocamos em rave com o Marcelinho da Lua. A Gang do Eletro e a Gaby já são quase da banda de tanto que a gente toca junto no Terruá Pará (espetáculo patrocinado pelo Governo do Estado, com edições no Rio de Janeiro, São Paulo e Belém)”, diz Benigno. Mas uma coisa não mudou com o passar do tempo: o interesse do Manari em divulgar a cultura local. Ao lado do músico e produtor Marco André, criaram o CaBloco Muderno, misto de banda, bloco de carnaval e projeto social. A iniciativa oferece oficinas de percussão e confecção de instrumentos para os moradores do bairro da Pedreira, periferia de Belém. “O legal é que junto com as crianças também vêm os pais, que já gostam e começam a tocar também. Eles acabam sendo multiplicadores – e essa é nossa pretensão maior, na verdade. A nossa contribuição é que essa música seja escutada em todo o Brasil e lá fora, né? Nós somos apenas mais um instrumento para a divulgação desses ritmos”, afirma Kleber Benigno.


“Quando a gente resolveu pesquisar música da Amazônia, nem o pessoal daqui tinha essa referência” When we decided to research Amazonian music, not even the people here had this reference

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urimbó, the typical drum from Pará’s carimbó, is carved in the log of a tree, forming a thick piece. Because of its size, the instrument is played close to the ground as if the musician was mounted on it. Another heavily rooted aspect surrounding the instrument is its tradition, born from the combination of indigenous, African and European cultures. At Manari’s hands, curimbó’s bass beat works as the foundation for the tecnobrega song ‘Tecnoíndio’, one of the tracks on the band’s second and most recent album, ‘Manari’ (2012). With the special contribution from Gang do Eletro’s DJ Waldo Squash, the song is also influenced by marabaixo, a religious rhythm originated in the state of Amapá. “It’s electronic music, analogically made. We created all the beats using percussion instruments. There’s a reason for tecnobrega to be known as batidão (big beat). It’s a beat, it’s black music and, just like carimbó, it’s music from Pará”, defines Kleber Benigno, one of the percussion trio members, which also includes Márcio Jardim and Nazaco Gomes. Created 10 years ago as a research project about Pará’s rhythms,

Manari, in this most recent album, presents a work that is strongly influenced by electronic music, with guest performers like DJs Dolores, Marcelinho da Lua and MAM. Apparently, it has been a decade of profound changes for the band, who abandoned the instrumental tracks that characterized their debut album ‘Braços da Amazônia’ (2002) to take risks in songs that are sung by them and also by partners like Gaby Amarantos (‘Amor Exótico’) and the carioca Pedro Luís (‘Hã O Quê’). Not even the band’s name escaped from the revamping – now, they are only ‘Manari’, without the word ‘Trio’ from the beginning of their career. The work also flirts with Caribbean rhythms, like in ‘Santería Cubana’, a track that ended up in the ears of Mexican guitarist Carlos Santana, who showed interest in recording it. There is also space for unusual fusions, like samba and carimbó originating the hybrid ‘Sambarimbó’, that ends up embracing even hip hop. “Manari is a percussion band. We’re not a folklore group. When we decided to research Amazonian music, not even the people here had this reference. Nowadays, ten

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Glossário Manari

Manari’s glossary

Conheça alguns dos ritmos registrados pelo grupo de percussionistas

Meet some of the rhythms registered by the percussion band:

Samba de cacete – Original das comunidades quilombolas do município paraense de Cametá, o gênero ganhou o nome devido às baquetas de madeira usadas no curimbó para dar marcação à música. Marabaixo – Natural do estado do Amapá, o Marabaixo faz parte das festividades da Santíssima Trindade e do Divino Espírito Santo. O principal instrumento é a caixa de marabaixo. Retumbão – O retumbão é a primeira e mais importante dança da Marujada, festividade em devoção a São Benedito, no município de Bragança, no Pará. “O nome retumbão vem do repique dos tambores usados na festa”, explica Nazaco. (Leia mais sobre a Marujada na matéria da página 72) Marambiré – De acordo com Kleber Benigno, o marambiré é como os quilombolas do município de Alenquer, no baixo Amazonas, comemoram a Folia de Reis. São utilizados na festa bumbos, ganzá e reco-reco.

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Samba de cacete – Originated in the quilombola communities from the town of Cametá, Pará, this samba subgenre got its name from the wooden drumsticks used to play the curimbó drum that marks the beat of the music. Marabaixo – Originally from the state of Amapá, the rhythm is part of the Holy Trinity and Divine Holy Ghost festivities. Its main instrument is the marabaixo snare drum. Retumbão – The first and most important dance at Marujada, a festivity devoted to St. Benedict in the town of Bragança, Pará. “The name retumbão comes from the repique of the drums played during the festivity”, explains Gomes. (Read more about Marujada on page 72). Marambiré – According to Benigno, marambiré is how the quilombolas from the town of Alenquer, in the lower Amazon region, celebrate Three Kings Day. In the festivity, people play bass drums, ganzá and reco-reco.


years later, our range of interests has expanded. Brega, tecnobrega, dub, none of these escape from our essence, since we always prioritized experimentalism”, advocates Gomes. Ironically, in the beginning of the trio’s career, regional music was far from being well seen as a reference. At Carlos Gomes conservatory, in Pará’s capital, where the musicians met and started playing together, the interest for popular music was the laughing stock. “Scholars showed no interest about it and neither did the conservatory. We had a professor who always wound me up. She used to say ‘you guys are like nocturnal pigs who don’t want to leave this mud behind’, but we engaged in popular music because it was where we came from. At Márcio’s home, there was a samba house called Morro do Macaco. My roots are in rock music. As a teenager, I worked for three years as a roadie for Mosaico de Ravena”, reveals Benigno. Manari ended up being formed outside of Brazil, when Benigno, Jardim and Gomes were still members of the group Percussão Brasil and went to Montreal, Canada, for a show. “We were invited to play in a Latin music festival. The repertoire was composed mostly of Brazilian music and we set aside a small part for Pará’s rhythms. We noticed that the distinct and very particular musicality of carimbó and samba de cacete left the people there jawdropped”, recalls Gomes. RESEARCH With the help of a research scholarship from Instituto de Artes do Pará (IAP) worth the equivalent of US$ 6,000, the musicians began their one-year study, which resulted in ‘Braços da Amazônia’. This research included trips to Pará’s municipalities, like Cametá, where the trio registered rhythms like samba de cacete and benguê in the quilombola communities, and Marapanim, considered the cradle of carimbó. For more distant places, like Alenquer, 700 kilometers away from the state capital, they got a little help from technology. “Since we had an extremely tight budget, much of our research was done with the IAP’s videotape collection. It was in one of those videos that we got to know marambiré, a religious dance which honors the king and the queen of the community in the Pacoval quilombo, and the marambiré snare drum, from which we created our instrument. We had to make most of the instruments we use ourselves”, explains Benigno.

“There’s a stereotype regarding Amazonian culture: only the indigenous matrix is considered. Of course it’s important and has to be valued, but there are other facets. For instance, who would say that Pará’s music would embrace castanets? Well, retumbão did. This culture is mostly oral, but we took the care of writing everything down and recording it”, points Gomes. REFERENCE The research lifted Manari to the position of one of the most important Brazilian groups regarding percussion and Amazonian rhythms. They have already played with the likes of Chico César, Naná Vasconcelos, Fafá de Belém, Felipe Cordeiro, Luê, Dona Onete, Sebastião Tapajós and Madame Saatan. In Brazil, it is hard to mention a percussion festival which they are yet to take part in, not to mention their shows in countries like the United States, Portugal, France and French Guyana. “Despite having spent some time without recording our own music, we never stopped playing. We’re always involved in something, recording in studios. Fafá’s case is an example of that. Our partnership began in ‘Braços da Amazônia’. She was the lone singer on the album. Fafá once said she’s Manari’s godmother, and she really is. She opened many doors for us and we played in Europe with her. That’s why I say that the new album is a way of acknowledging our partnerships, the friends we made on the road. We’ve played in a rave with Marcelinho da Lua. From playing together so many times at Terruá Pará (a spectacle sponsored by Pará’s government presented in Rio de Janeiro, São Paulo and Belém), Gang do Eletro and Gaby are almost part of our band”, says Benigno. One thing, however, has not changed over time: Manari’s interest in spreading the word about our local culture. Alongside musician and producer Marco André, they created CaBloco Muderno, a mix of a band, carnival group and social project, in an initiative that offers percussion and instrument-manufacturing workshops to the people from Pedreira, a poorer neighborhood in Belém. “The nice thing is that not only the kids come, but their parents as well, people who already like music and also begin playing it. They end up being the ones who multiply it, and that is, actually, our biggest aspiration. We contribute by allowing this music to be heard all over the country and abroad, don’t we? We’re just one more instrument for spreading these rhythms”, states Benigno.

Além da busca por novos ritmos, os músicos investem no trabalho social com crianças da periferia de Belém Besides searching for new rhythms, the musicians invest in social work with kids from Belém’s poorer districts SELETA - música da amazônia

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CD Seleta Laurentino Laurentino precisa apenas de uma harmônica para mostrar porque, em quase nove décadas de vida, construiu a merecida reputação de lenda da música paraense. Redescoberto pela nova geração da música local, montou um grupo de rock (Laurentino e os Cascudos) e viaja por aí munido de sua gaita, sua sacanagem e suas ótimas ideias. // Laurentino only needs a harmonica to show why, in almost nine decades of life, he gained a well-deserved reputation as a musical legend in Pará. Rediscovered by the new generation of local artists, he set up his rock band Laurentino e os Cascudos and travels around armed with his harmonica, deviance and great ideas.

Elder Effe Elder Effe apareceu para a música como integrante do Suzana Flag. Após sair da banda em busca de novos horizontes, montou outros grupos, tocou em projetos paralelos até se redescobrir como compositor recentemente, na carreira solo. Talento nato para melodias e com um timbre facilmente identificável, é nome obrigatório para quem quer saber por onde anda o pop paraense da última década. // Elder Effe appeared on the music scene as a member of the band Suzana Flag. After leaving the group in search of new horizons, he set up other bands and played in side projects until recently rediscovering himself as a composer in his solo career. With a natural born talent for melodies and an easily recognizable timbre, he is a must for anyone who wants to find out what Pará’s pop music has been up to over the last decade.

Marcel Barretto Marcel Barretto é um jovem veterano da cena paraense. Guitarrista das bandas Sevilha e Juca Culatra Power Trio, lançou-se há não muito tempo em voo solo e já emplacou músicas nas rádios da cidade com seu som cheio de lirismo, referências ao cotidiano e sacadas sonoras bem resolvidas. // Marcel Barretto is a young veteran of the Pará scene. Guitarist in the bands Sevilha and Juca Culatra Power Trio, he has not been flying solo for that long and has already had several of his songs break onto the local radios with a style full of lyricism, everyday references and well-resolved musical insights.

Suzana Flag No começo dos anos 2000, o Suzana Flag foi o sopro de renovação para quem aspirava um pop genuíno produzido em terras paraenses. Anos depois, dois discos gravados, Joel Melo e Suzanne May mantêm viva a fórmula apoiada em guitarras, canções bem feitas, letras inteligentes e arranjos espertos. // In the early 2000s, Suzana Flag was a fresh breath of air for those who sought genuine pop music produced within Pará’s territory. Years later, with two albums recorded, Joel Melo and Suzanne May keep the formula alive with guitars, well-made songs, intelligent lyrics and smart arrangements.

La Orchestra Invisível Liderada por Marcelo Kahwage e Larissa Xavier, La Orchestra Invisível faz parte da novíssima geração do rock paraense. Com dois EP´s lançados, a banda se estabeleceu com rapidez na preferência de quem ainda acredita que a fonte de onde saíram Beach Boys, Beatles e Teenage Fanclub está longe de secar. Tudo em excelente português. // Led by Marcelo Kahwage and Larissa Xavier, La Orchestra Invisível is part of the brand new generation of Pará’s rock. With two EPs released, the band has quickly established themselves as a favorite for everyone who still believes that the fountain from which the Beach Boys, Beatles and Teenage Fanclub came from is far from dry. Everything sung in an excellent Portuguese.

Toni Soares Toni Soares é uma amostra perfeita da combinação entre regional e universal. Com suas raízes bragantinas e o olhar sempre atento ao que rola pelo planeta, consolidou-se como um dos melhores compositores de sua geração. É retumbão, é eletrônica, é inovação batucando na mesma toada. // Toni Soares is a perfect sample of the blend of regional and universal. With his Bragança roots and a savvy gaze at everything happening around the globe, he has solidified his name as one of the best composers of his generation, with retumbão, electronic music and innovation beating out the same rhythm.

Arraial do Pavulagem O Arraial do Pavulagem já é, há anos, uma referência. Além do trabalho pela preservação da memória cultural paraense, o grupo, capitaneado por Júnior Soares e Ronaldo Silva, mantém suas pesquisas para produzir o som que arrasta multidões // Arraial do Pavulagem has been a reference for years. Beyond their work preserving Pará’s cultural heritage, the band fronted by Júnior Soares and Ronaldo Silva continues its search for the sound that gathers crowds and excites all the events they promote in the state capital. 86

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Ronaldo SIlva Ronaldo Silva já era figura carimbada da música paraense muito antes de criar, junto com Júnior Soares, o Arraial do Pavulagem. Levou para o grupo suas referências nascidas da curiosidade sobre ritmos populares da região e seu talento para canções que grudam à primeira audição. // Ronaldo Silva was already a well-known figure in Pará’s music well before creating Arraial do Pavulagem along with Júnior Soares. He brought to the group influences born from his curiosity for the region’s popular rhythms and a talent for songs that stick in our heads the first time we hear them.

Manoel Cordeiro A história da música paraense das últimas décadas passa inevitavelmente por Manoel Cordeiro. Músico que ajudou a forjar o brega paraense dos anos 1980, liderou a banda Warilou nos anos 1990 e, após um hiato de anos, voltou à ativa junto com o filho, Felipe Cordeiro, para conquistar uma nova geração com sua guitarra suingada e inventiva. // The history of Pará’s music over the last decades inevitably passes through Manoel Cordeiro. A musician who helped forge the local brega of the 1980s, he led the band Warilou in the 1990s and, after several years of hiatus, returned to action with his son Felipe Cordeiro to conquer a new generation with his groovy and inventive guitar.

Ely Farias Se Pinduca disse, quem irá contestar? Ely Farias é um dos pais do carimbó elétrico paraense. Sem muito alarde, construiu uma carreira de respeito e até hoje é citado como influência por figuras como o próprio Pinduca e o parceiro Manoel Cordeiro, que começou a carreira como sideman de Farias em apresentações em Belém e arredores. // If Pinduca says it, who can argue? Ely Farias is one of the fathers of Pará’s carimbó elétrico. Without much ado, he built a respectable career and, up until today, is cited as an influence by the likes of Pinduca himself and his own partner Manoel Cordeiro, who began his career as Farias’s sideman in his shows across the region.

Manari Fruto de um trabalho de pesquisa sobre os ritmos amazônicos, o trio Manari há tempos foi muito além do rótulo. Paturi, Nazaco e Márcio Jardim a cada novo trabalho incorporam sons, testam novas parcerias e esgarçam os limites de sua música. A base ainda é a mesma, mas o resultado é, a cada nova apresentação, mais rico e mais diversificado. // The fruit of a research project about Amazonian rhythms, the Manari trio has broken from this tag a long time ago. With each new work, Paturi, Nazaco and Márcio Jardim incorporate sounds, test new partnerships and push the limits of their music really hard. Their base is still the same, but the result gets richer and more diverse each time they play.

Tonny Brasil Não há um baile da periferia de Belém que não deva a Tonny Brasil momentos inesquecíveis. Inventor do tecnobrega, o compositor vem há anos embalando romances e fazendo dançar com sua música, feita à base de referências tiradas do centro nervoso da cultura local. É pra requebrar e cantar fácil, ou seja, artesanato pop dos finos. // There is no dance event in Belém’s poorer neighborhoods that does not owe Tonny Brasil for some unforgettable moments. Inventor of tecnobrega, for years the composer has provided the soundtrack to romance, making people dance with music rooted in sounds taken from the core of local culture. It makes you cut a rug and sing. In other words, pop craftsmanship at its finest.

Stress Os pioneiros do metal brasileiro. Capitaneado por Roosevelt Bala, o Stress foi o primeiro grande nome do rock paraense. Num tempo em que as distâncias eram muito maiores, viajou o país inteiro angariando fãs com seu som rápido, pesado e em par de igualdade com o que rolava de melhor no heavy metal feito ao redor do mundo. // The pioneers of Brazilian metal. Captained by Roosevelt Bala, Stress was the first big name in Pará’s rock. In a time when distances were way greater, they traveled across the country gathering fans with their fast, heavy sound, on a par with the best heavy metal from around the world.

Antcorpus Riffs pesados, letras em português e referências aos clássicos do thrash mundial. Esse é o Antcorpus, banda paraense que, em pouco tempo de carreira, solidificou uma reputação de respeito perante o público ligado em metal, que lota as apresentações do estilo a cada final de semana nas quebradas da capital paraense. // Heavy riffs, Portuguese lyrics and influences from classics of global thrash metal. This is Antcorpus, a band from Pará who, with a short career, solidified a respected reputation amongst metal followers, a crowd that packs shows every weekend in the pits of the state capital. SELETA - música da amazônia

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