DIVULGAÇÃO
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AS DEZ MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO “O maior mérito de toda a campanha deflagrada pelo Ministério Público é o que se vê expresso no art. 64, § 7º, do Projeto de Lei nº 4.850/2016, dispondo sobre a obrigação do Ministério da Educação, em conjunto com a Controladoria-Geral da União, em desenvolver medidas e programas de incentivo, em escolas e universidades, voltados ao estudo e à pesquisa do fenômeno da corrupção, à conscientização dos danos provocados pela corrupção e à propagação de comportamentos éticos. A palavra “corrupção” vem do latim corruptus, é a deterioração, o podre, o que se deixou estragar. As origens da corrupção devem ser pesquisadas e estudadas por todos, tanto aquela que se realiza com ousadia no campo da ilicitude quanto a que se esconde na sombra da legalidade.” POR SERGIO R DO AMARAL GURGEL
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m 2015, os procuradores da República que atuam na Operação Lava Jato, com o apoio da Procuradoria-Geral da República, lançaram uma campanha intitulada “Dez Medidas Contra a Corrupção”. A iniciativa envolve um conjunto de providências visando alterar a legislação vigente para prevenir e reprimir o desvio de conduta dos agentes públicos e daqueles que de qualquer forma se beneficiam dos atos de improbidade administrativa ou dos crimes funcionais. Nesse sentido, foram propostos uma série de anteprojetos de lei que promovem a criação de novos tipos penais, aumento das penas para determinados crimes, bem como a inclusão de alguns deles no rol dos crimes hediondos, entre outras inovações nas esferas penal e extrapenal. Em paralelo ao processo legislativo em curso, o Ministério Público Federal vem se empenhando na publicidade das propostas, a fim de ganhar o apoio popular, fator que minimizaria as chances de engavetamento no Congresso Nacional, como poderiam desejar os seus opositores. Com relação à adesão da maioria do povo brasileiro, a meta já tinha sido alcançada antes mesmo de qualquer manifestação ministerial. O agravamento da crise econô-
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mica que o país vem enfrentando, associado ao empenho dos meios de comunicação em divulgar sucessivos escândalos envolvendo a cúpula do governo – sem entrar no mérito sobre a existência de algum tipo de motivação política – permite ao cidadão comum estabelecer a relação de causa e efeito entre esses dois grandes infortúnios. Seja parado em um sinal, na conversa com taxistas, nas salas de reunião das grandes empresas ou nos corredores da Justiça, nota-se o mesmo desalento quanto à inutilidade de qualquer intervenção a ser promovida pelo governo, legítima ou ilegítima, no sentido de retomar as rédeas da economia sem que haja um intransigente combate à corrupção em todas as suas formas de manifestação. A falta de escrúpulos por parte da administração pública e daqueles que dela se locupletam não é particularidade do nosso tempo, nem tampouco da sociedade brasileira. É bem verdade que a sensação daquele que se aventura no estudo da história do Brasil é a de realizar um minucioso exame dos autos de um inquérito policial, e não poderia ser diferente, se levarmos em consideração o processo de colonização que nos deu origem, no qual a colônia deveria ser tão corrupta quanto à metrópole. Não
há como negar que o projeto de concepção da sociedade brasileira tenha dado certo. A Coroa portuguesa teria ficado muito orgulhosa se pudesse ver seus descendentes nas terras ultramarinas ocupando a posição de quarto país mais corrupto do planeta – segundo o índice de corrupção divulgado pelo Fórum Econômico Mundial – perdendo apenas para outras nações que, do mesmo modo, plagiam seus algozes, como Chade, Bolívia e Venezuela. Os países conhecidos como representantes do “primeiro mundo”, que muito se beneficiaram e continuam se prevalecendo das práticas autodestrutivas dos seus vizinhos subdesenvolvidos, estimam que, atualmente, a corrupção já movimente cerca de três trilhões de dólares, correspondente a 5% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, sem levar em conta a atividade do narcotráfico que, na ausência da corrupção jamais prosperaria, e atinge, isoladamente, a cifra de dois trilhões de dólares, de acordo com o último relatório divulgado pela ONU. Este número equivale a 3% de tudo o que se produz e é consumido no planeta em um ano, ou a quatro vezes o PIB da Argentina e quase dez vezes o da Colômbia. Para completar esse triste quadro de degeneração, há de acrescentar outras práticas ilícitas como a falsificação, o tráfico de pessoas, o tráfico de petróleo e o tráfico de vida selvagem. Por essa razão, há quem diga que o dinheiro movimentado pela corrupção já esteja inserido na economia mundial e a cessação de suas atividades acarretaria um verdadeiro colpaso financeiro global, mais devastador do que a Crise de 1929. Verdadeiro ou não o prenúncio do caos, não há como negar que a corrupção tornou-se um câncer em evolução rumo à metástase, afetando quase todas as instituições do mundo. Enquanto isso, o Ministério Público brasileiro busca, por intermédio da legislação, reverter essa crise moral no cenário nacional. A magnitude do problema que envolve a corrupção no Brasil e nos demais países serve para que se atribua ao Ministério Público o justo crédito por tomar a iniciativa de enfrentá-la, sem entrar no mérito se as respectivas propostas teriam ou não o condão de atingir essa pretensão. Mais louvável ainda a atitude daqueles que não apenas se preocupam em extirpar esse mal da nossa sociedade, como também buscam fazê-lo em total respeito e harmonia ao ordenamento jurídico vigente, sem prejuízo aos direitos e garantias individuais. Do Projeto de Lei nº 4.850/2016, de autoria do deputado Antônio Carlos Mendes Thame, que materializa e concentriza as medidas de combate à corrupção propostas pelo Ministério Público Federal, podemos destacar aspectos relevantes, outros redundantes, e alguns, lamentavelmente, aviltantes. Não há quem se mostre a favor do enriquecimento ilícito, salvo aquele que tenha enriquecido ou favorecido algum ente querido ao arrepio da lei. Todavia, se opor a essa prática não significa apoiar a tipificação desse fato como crime. Se o enriquecimento é originado da prática de algum delito, deve o agente por este responder, considerados os seus efeitos como um post factum impunível, evitando, assim, a violação ao princípio do non bis in
idem. Além do mais, não se pode definir um crime sem que nele esteja revelada uma conduta clara e determinada em sua descrição. O aumento das escalas penais de certos crimes funcionais, como os de peculato, inserção de dados falsos em sistema informatizado, concussão, excesso de exação qualificado, corrupção passiva e corrupão ativa, além do crime de estelionato – que mesmo sendo contra o patrimônio pode atingir o erário – merece uma série de críticas que devem ser ponderadas pelo legislador. A primeira delas no sentido de não se deixar levar pela crendice popular de que a incidência da prática criminosa seja inversamente proporcional à rigidez da pena. Além disso, não cabe ao legislador usar o clamor público como medidor para o encrudescimento das sanções penais, mas sim os parâmetros lógicos e racionais da ciência criminal. Aliás, vale lembrar que se dermos ouvido aos discursos proclamados nas ruas, faltará corda para o enforcamento de todos sobre os quais recaia mera suspeita do cometimento de qualquer infração penal. Para aqueles que pregam mais penas, devemos perguntar se estariam dispostos a pagar mais impostos para a construção de presídios e manutenção do sistema carcerário, que hoje abriga a quarta maior população carcerária do mundo, somente perdendo para a Rússia, China e Estados Unidos, obviamente, pelo fato de possuírem uma densidade demográfica significativamente superior. E o mais grave sobre esse aspecto está na desproporção entre as penas dos crimes em tela e de outras de maior gravidade. Quando, por exemplo, estabelecemos uma escala penal de quatro a doze anos para o crime de peculato, equiparamos a sua potencialidade lesiva à do crime de lesão corporal seguida de morte. Nesse sentido, pode-se afirmar que a conduta de subtrair um computador da repartição pública (o projeto de lei não faz distinção quanto ao valor do prejuízo causado à administração pública para efeito de aplicação da pena) passaria a ser tão grave quanto agredir a vítima com a intenção de ferir o seu rosto, causando-lhe a morte culposamente, e a pena máxima cinquenta porcento mais grave do que a conduta do agente que decepa o órgão genital de sua vítima, praticando, assim, o crime de lesão corporal gravíssima. Trata-se de flagrante desrespeito ao princípio da individualização da pena, que impõe a proporcionalidade da pena diante do bem jurídico tutelado. A criação do instituto do chamado “teste de integridade”, que permite ao poder público induzir o servidor à prática de um ato ilícito apenas para averiguar sua idoneidade, deveria ser repensado pelo Ministério Público, pois não se coaduna com o nosso ordenamento jurídico e foge totalmente aos anseios da sociedade no sentido de erradicar a corrupção, punindo aqueles que vêm se entregando a essa execrável rotina. Não pode haver interesse do Estado em inculcar na mente das pessoas o desejo de praticar crimes apenas para puni-las. Em primeiro lugar, porque a própria condição social do indivíduo pode torná-lo mais vulnerável às atividades delituosas que poriam fim a situação financeira desprivilegiada, sem contar que o Brasil já possui um índice de delinquência muito aci-
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ma do que se poderia considerar tolerável. Não é por um acaso a indignação popular, quando o governo brasileiro se recusa a extraditar criminosos. O cenário atual da criminalidade no país nos permitiria até mesmo a exportação de transgressores da lei, se isso fosse juridicamente possível, para quem fizesse questão de abrigá-los. Como se não bastasse, há ainda quem sustente a criminalização do agente público que sucumbir ao malfadado teste de integridade, fazendo com que o crime impossível, em razão da atuação do agente provocador, se torne possível, devendo o Supremo Tribunal Federal rever o disposto na Súmula 145. Caso o referido instituto venha a ser contemplado, a sociedade brasileira viverá um verdadeiro estado policial no qual a presunção de culpa disseminará o medo e a desconfiança, superando o que atualmente vem ocorrendo entre interlocutores em conversa telefônica. O número de grampos em curso é tão exorbitante que logo chegará o dia em que o cidadão sentirá medo até de pedir pizzas por telefone. Entre as proposições também não se pode deixar de ressaltar a alteração das regras sobre prescrição estabelecidas pelo Código Penal. A fundamentação baseia-se no fato de muitos processos serem encerrados em razão dos efeitos do tempo, agindo sobre o jus puniendi estatal. Ocorre que o instituto da prescrição foi criado não apenas para dar aos imputados antes, durante ou depois do processo um mínimo de segurança jurídica, mas para que o Estado seja rápido na apuração dos delitos. Não há quem duvide ser a administração pública a principal responsável pela morosidade dos procedimentos criminais. Desde o período colonial, o Brasil não consegue se livrar das amarras de um modelo extremamente cartorial, no qual quase tudo precisa ser escrito, protocolado, reconhecido, assinado, juntado, remetido, concluso e publicado. Não foram os indiciados e acusados que instituíram e perpetuaram o excesso de formalismo. Com raras exceções, em homenagem ao princípio do favor rei, os recursos e ações autônomas de impugnação disponibilizadas ao acusado se estendem à acusação, e assim o faz quando lhe convém. Aliás, nada mais contraditório do que a pretensão de se criar, além de tantos já existentes, um recurso exclusivo para o titular da ação penal, voltado apenas para impugnar a concessão de ordem em habeas corpus. Como redundantes podem ser apontadas os atos jurisdicionais voltados para o confisco de bens provenientes de crimes, à ampliação das hipóteses de prisão preventiva, aos mecanismos de proteção para quem fornece informações às autoridades sobre a prática de crimes e à alteração da redação de alguns dispositivos pertinentes ao sistema de nulidades. Na legislação penal pátria em vigor, elaborada em 1941, estão disciplinadas as medidas assecuratórias, entre elas o sequestro de bens móveis e imóveis sobre os quais haja suspeita de terem
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sido adquiridos com os proventos da infração; a possibilidade de decretação de prisão preventiva para garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e asseguração da aplicação da lei penal, servindo ao juízo para conter o continuismo na prática da corrupção, bem como a dilapidação do patrimônio por ela obtido e fuga dos seus autores; e a preservação dos atos processuais que não foram contaminados por outro eivado de vício insanável. Na legislação extravagante temos ainda a Lei nº 9.807/1999 (Lei de Proteção à Testemunha) e a Lei nº 12.850/2013 (Lei de Organização Criminosa) que dispõem sobre a proteção das pessoas que colaboram com os órgãos que atuam na persecução penal no combate ao crime. Nada mais revelador da eficiência dos institutos processuais vigentes para o desmantelamento das associações e organizações criminosas que operam no âmbito da corrupção do que o sucesso da Operação Lava Jato. A Polícia Federal cumpriu com sucesso todos os mandados judiciais, as denúnicas foram devidamente recebidas e os processos tramitaram rapidamente à margem do risco da prescrição, os inúmeros recursos interpostos foram julgados em tempo razoável pelos Tribunais Superiores, grande parte do dinheiro foi recuperada pelo Estado e a maioria dos envolvidos, julgados ou não, se encontra na cadeia. Se todo esse êxito foi obtido sob a égide da legislação atual, o que justificaria mudá-la? Aplausos para a criminalização da odiosa prática do “caixa 2” e a responsabilização dos partidos políticos que aderirem a esse artifício. Doações não declaradas para campanha política são incompatíveis com o regime democrático e perpetuam o sistema eleitoral fraudulento e covarde característico da República Velha. O rastreamento dos valores endereçados aos partidos políticos sem transparência conduzirá o Ministério Público à revelação de múltiplos nichos de corrupção com raízes profundas nos setores público e privado. O maior mérito de toda a campanha deflagrada pelo Ministério Público é o que se vê expresso no art. 64, § 7º, do Projeto de Lei nº 4.850/2016, dispondo sobre a obrigação do Ministério da Educação, em conjunto com a Controladoria-Geral da União, em desenvolver medidas e programas de incentivo, em escolas e universidades, voltados ao estudo e à pesquisa do fenômeno da corrupção, à conscientização dos danos provocados pela corrupção e à propagação de comportamentos éticos. A palavra “corrupção” vem do latim corruptus, é a deterioração, o podre, o que se deixou estragar. As origens da corrupção devem ser pesquisadas e estudadas por todos, tanto aquela que se realiza com ousadia no campo da ilicitude quanto a que se esconde na sombra da legalidade. Karl Menninger, um dos maiores pensadores contemporâneos que o mundo já conheceu, em sua obra “O Pecado de Nossa Época” revela que não raramente a lei pode se tornar a própria fonte do pecado.
SERGIO R. DO AMARAL GURGEL é advogado criminalista; autor da Impetus Editora; professor de Direito Penal e Processo Penal; palestrante.
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