KNOW HOW
Easy To Be Hard por
Sérgio R. do Amaral Gurgel
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A valoração do legislador universal dada aos casos de omissão é fruto da experiência de vida do ser humano ao longo dos milhões de anos de sua existência. O omitente age mal e, muitas vezes, no mesmo grau de reprovação daquele que efetivamente tenha realizado o comportamento comissivo, embora nem sempre venha a configurar um crime.
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Love cures people – both the ones who give it and the ones who receive it. Karl A. Menninger
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DIVULGAÇÃO
“Amor cura pessoas – tanto àqueles que o dão quanto àqueles que o recebem.”
KNOW HOW
N
ão há nada mais primitivo do que o sentimento de ódio. Com ele nascemos, crescemos e vivemos. Algumas pessoas têm a nobreza de ao menos tentar dominá-lo, enquanto outros dele se orgulham como quem fora contemplado por algum dom maior. Porém, a maioria desconhece o mal que carrega em seus gestos e pensamentos, afugentando-se em frases de efeito, crenças vazias e mentiras de todos os tipos. Em sua obra “O Amor Contra o Ódio”, Karl Menninger revela que o primeiro sentimento que aflora no indivíduo com a sua chegada ao mundo é de ódio, e não de amor, como muitos podem pensar. Somos retirados do ventre materno de forma repentina e abrupta, lugar seguro onde havia o essencial para a nossa subsistência. O parto abre as nossas vias respiratórias, bem como as portas do desconhecido, do desafio e da assustadora luta pela vida. E o pranto de caráter tirânico somente cessa no seio quente da mãe, que tem o poder de remontar as lembranças de um passado no qual o universo era do tamanho de quem ali gravitava. Durante a vida não faltam pessoas obstinadas a nos ensinar o que é o amor, seja pelos contos universais, seja pelas variadas doutrinas religiosas. Alguns desses pregadores acabam sendo mais sensíveis e conseguem dar as melhores lições com ações em vez de palavras, embora não possam vir acompanhadas de um rótulo dizendo: isso é amor. Felizes aqueles que conseguem chegar a essa leitura. Naturalmente, desde a infância, todos são igualmente capazes de compreender que agir imbuído de sentimentos bons requer maior dedicação, vigilância constante e muita reflexão para o aperfeiçoamento da alma. Por isso, nada mais tentador do que revestir-se de impulsos radicalmente opostos, visando embrutecer os sentidos até que não seja mais possível enxergar o próximo. Entre tantas manifestações de ódio, como a inveja e o egoísmo, a indiferença tem papel de destaque pela capacidade que possui de ser silenciosa e dissimulada. A passividade diante do sofrimento alheio pode ser qualificada da forma que for mais apropriada para quem a utiliza. Cada um encontra a desculpa que lhe convém. É difícil penetrar na mente do homem que nada faz para dimensionar o nível de consciência perante a sua conduta omissiva, mas é certo que não advém de nenhum virtuosismo. No âmbito do Direito Penal a omissão é punível como crime quando descrita em um tipo penal, classificado doutrinariamente como crime omissivo próprio ou propriamente dito. De forma geral, são crimes de mera conduta, ou seja, não dependem de resultado naturalístico para a sua consumação; aperfeiçoam-se pelo simples comportamento omissivo, sem necessidade de modificação no mundo exterior. Também há o que se chama crime omissivo impróprio ou comissivo por omissão, aqueles cometidos pelo indivíduo que não somente podia agir para evitar um resultado, como também tinha o dever de impedi-lo, ou em razão de sua condição ou contrato ou ingerência. Em casos assim, reza a lei que a “omissão será penalmente relevante”, no sentido de que a omissão terá um peso ainda maior quando proveniente de alguém incluído nas hipóteses acima discriminadas, devendo o agente ser punido ainda com mais rigor, de forma a ser-lhe imputado
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revista PRÁTICA FORENSE - nº 03 - março/2017
arquivo pessoal
o próprio resultado que deveria ter sido evitado. Nota-se que não é só a arte que imita a vida. A valoração do legislador universal dada aos casos de omissão é fruto da experiência de vida do ser humano ao longo dos milhões de anos de sua existência. O omitente age mal e, muitas vezes, no mesmo grau de reprovação daquele que efetivamente tenha realizado o comportamento comissivo, embora nem sempre venha a configurar um crime. Frequentemente, ouvimos as defesas de amigos e parentes no sentido de que não podiam ter feito nada diante da miséria alheia, e, assim, exalam um ar sereno desprovido de qualquer dor moral. Se de fato não havia o que fazer, tal constatação não deveria trazer algum tipo de conforto, mas sim a frustração da impotência ou até mesmo o sentimento de revolta. Sentir a dor do próximo divide e de certa forma alivia. Todas as religiões condenam a omissão, embora dentre os Dez Mandamentos oito tragam embutidos aquilo que não se deve fazer. Seja pela concepção da existência do carma ou do pecado, sempre haverá uma forma de pagarmos pelas nossas ações e omissões. No campo da fé é impossível deixar de mencionar as lições de um padre que, quando chamado pelo fiel para resolver a questão de um mendigo ter caído em frente ao seu portão, respondeu: – Esse homem caiu na frente do seu portão, e não do meu. E assim, desde cedo pude entender o que fomentava o rompante de virar as costas para o semelhante, quando não por pura perversidade, a vontade de que alguém assuma as nossas responsabilidades. O peso do dever de agir, que atinge nossa consciência, desaparece quando admitimos cinicamente que não somos tão evoluídos como gostaríamos ou que a vida é realmente cruel e o inferno repousa aqui. Dessa forma, ficamos imunes às críticas se porventura desprezarmos tudo aquilo que não nos atinge direta ou indiretamente. Conseguimos, por exemplo, chorar vendo um vídeo de um cão vira-lata abandonado, mas somos céticos perante um menino tentando vender doce na sarjeta durante a madrugada. Podemos ainda ver beleza nos produtos expostos nas vitrines, enquanto ficamos cegos para a cena de um pai deixando de comer para alimentar sua família. E não nos deixemos enganar que essas são as mesmas pessoas que costumam ir às ruas levantar a bandeira em favor do social, enquanto esposa, marido, pais e filhos amargam a ausência de um amigo. Impossível tratar do assunto sem recordar a cena do Hair, famoso musical da Broadway, em que uma mulher de mãos dadas com seu filho encontra o andarilho genitor largado em uma praça, aventurando-se à causa hippie. Após uma rápida discussão, mandou a ex-mulher ir embora, porque ela não era capaz de entender as diretrizes do movimento. Ao virar as costas, a personagem iniciou o cântico da música Easy To Be Hard, que em um dos seus trechos diz: “E, especialmente, as pessoas / Que se preocupam com estranhos / Que dizem que se preocupam com a injustiça social / Como age com um amigo que está precisando? / Fácil ser difícil / Fácil ser frio / Fácil ser orgulhoso / Fácil dizer não”.
Sergio R. do Amaral Gurgel é advogado criminalista; autor da Impetus Editora; professor de Direito Penal e Processo Penal; palestrante.
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