A quinta vala: a divina tragédia da traição premiada.

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A quinta vala:

a divina tragédia da traição premiada Sergio Ricardo do Amaral Gurgel

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Dante Alighieri, por exemplo, nos versos que compõem A Divina Comédia, representa o mapa do inferno, escalonando-o em diversos pavimentos (círculos) rumo ao núcleo da Terra. Dependendo da iniquidade, os condenados são colocados em um ambiente mais profundo. No nono e último círculo, intitulado Lago Cócite, encontram-se os que se entregaram à traição.

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traição jamais obteve tanto espaço nos noticiários quanto nos últimos anos. Contudo, esse ato humano execrável, que pela história da humanidade foi responsável por desencadear crimes passionais, guerras e outras reações extremas, já não desperta mais tantas paixões, e às vezes chega a ser motivadora de reivindicação de prêmios. Por todo o planeta encontramos infindáveis termos para fazer menção aos que têm o desvio de caráter que conduz à infidelidade. Na riquíssima língua portuguesa, as variantes superam aquelas vistas em qualquer outra, seja pelas tradicionais expressões contidas no vernáculo, como traidor, traiçoeiro, delator, alcaguete, informante, seja pela linguagem coloquial, a exemplo de traíra, dedoduro, linguarudo, X-9 etc. Nos países estrangeiros também encontramos termos com o mesmo teor pejorativo, como rat (Estados Unidos da América), sneak (Inglaterra), un homme commère (França), Zinker e 31er (Alemanha). Creio ser arriscado demais tentar fazer a tradução precisa, sabendo o que dizem os italianos: “traduttore, traditore”. A origem da traição coincide com o mito da criação do homem. De acordo com os textos bíblicos, Caim, impelido por ciúmes, realizou uma emboscada para ceifar a vida de seu irmão Abel. Todavia, está no Novo Testamento a sua máxima expressão, quando Judas Iscariotes procurou as autoridades para delatar Jesus de Nazaré, acarretando a crucificação de um acusado considerado inocente, à luz do Direito romano. Na concepção cristã, pode-se assegurar que, diante de tantos pecados, nenhum outro veio a ser considerado tão repulsivo quanto a traição. Dante Alighieri, por exemplo, nos versos que compõem A Divina Comédia, representa o mapa do inferno, escalonando-o em diversos pavimentos (círculos) rumo ao núcleo da Terra. Dependendo da iniquidade, os condenados são colocados em um ambiente mais profundo. No nono e último círculo, intitulado Lago Cócite, encontram-se os que se entregaram à traição. Essa instância sombria, por sua vez, é subdividida em quatro valas: a primeira, chamada Caína (alusão à Caim) para aqueles que se voltaram contra os próprios parentes; a segunda, batizada de Antenora, reservada aos traidores da pátria; a terceira, Ptolomeia, para abranger os que se insurgiram contra os seus hóspedes e, por fim, a quarta e mais terrível, cujo nome é Judeca (nítida referência ao apóstolo), onde os traidores dos benfeitores expiam por seus pecados na companhia de Lúcifer. Das tre facce do Anticristo, uma separa Judas de Brutus e Cassius. Não seria mera especulação afirmar que, pelos escritos do poeta florentino, consolidava-se a antítese dos ideais de Santo Agostinho sobre o que seria a Cidade de Deus. Saindo da órbita do cristianismo, a temática se repete em todas as outras religiões. No judaísmo, assim como ocorre no islamismo, a deslealdade repercute severamente no espírito humano. E não haveria como se admitir uma doutrina de fé construída em desacordo com os preceitos éticos das civilizações. Até mesmo quando nos aventuramos ao estudo da Mitologia grega constatamos que a ira dos deuses normalmente é provocada por uma questão central: a traição. No estudo da História, mesmo quando orientado pela dialética marxista, percebe-se um enorme destaque às personagens que sucumbiram à vilania da falta de palavra para com os seus confidentes. Talvez o assunto gere certo desconforto aos pesquisadores em geral, por representar tudo aquilo que repudiam no semelhante e em si próprios.

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KNOW HOW Durante a segunda etapa de Revolução Francesa, os jacobinos acusaram vários dos seus correligionários de estarem conspirando contra os comitês em troca de privilégios ofertados pela alta burguesia. A insegurança política que conduzia os parisienses à construção de um verdadeiro Estado policial acarretou a execução do corrupto Danton, entre outros ícones do processo revolucionário, como Camile Desmoulins. Pouco tempo depois, a histeria das delações fez os próprios algozes subirem ao cadafalso para terem suas cabeças decepadas. Foi nesse contexto que Charlotte Corday protagonizou o episódio mais emblemático do período, retribuindo ao líder Jean-Paul Marat o terror que havia sido colocado na ordem do dia em reunião extraordinária da Convenção. Outros fatos históricos da mesma grandeza, que gravitam em torno do tema em tela, marcaram ou mancharam, significativamente, a linha do tempo. É impossível deixar de citar o costumeiro pacto de não agressão, articulado por Joachim von Ribbentrop (ministro do III Reich condenado à morte pelo Tribunal de Nuremberg), que antecedia a invasão da Wehrmacht ao indefeso país signatário, bem como o escândalo de Watergate, em que um Deep Throat colocava Richard Nixon no dilema entre a renúncia e o impeachment. O estudo da evolução política brasileira também esbarra em uma série de inconfidências, ganhando maior notoriedade a que ocorreu em Minas Gerais, sob a liderança de Tiradentes. Punido com a estranha e cruel pena capital da “morte para sempre”, contemplada pelas Ordenações Filipinas, o mártir da independência, após ser enforcado, teve a sua cabeça arrancada e exposta, espalhando-se os fragmentos do seu corpo esquartejado pelos logradouros públicos. Em contrapartida, o delator Joaquim Silvério dos Reis recebia honrarias de Dom João, sem imaginar que seu nome seria amaldiçoado pela eternidade por seus conterrâneos (desonra para sempre), não obstante tivesse revelado os planos de um homem considerado criminoso pela legislação em vigor naquele período. Apesar da ideia de óbito em caráter permanente ter sido extirpada do Direito pátrio com o advento do Código Criminal de 1831, a traição nele permaneceu e perdura até a presente data. Além de configurar uma circunstância agravante genérica, prevista no art. 61 do Código Penal, o vil comportamento se faz presente na Parte Especial entre as qualificadoras do crime de homicídio (art. 121, § 2º, III) e também como núcleo do tipo penal que leva a rubrica marginal de patrocínio infiel (art. 355). Porém, quando interpretada em sentido amplo, a odiosa prática que atinge tanto o particular quanto o Estado pode ser identificada em trinta e oito delitos inseridos no mesmo diploma legal, como no caso do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio praticado por motivo egoístico (art. 122, p.ú., I), em que o agente, por exemplo, inculca na vítima o desejo de autodestruição para se beneficiar da herança. Na mesma esteira, cabe mencionar diferentes preceitos que indicam mau-caratismo similar, como o perigo de contágio venéreo (art. 130); violação de segredo profissional (art. 154); bigamia (art. 235); peculato mediante erro de outrem (art. 313); fraude processual (art. 347), entre tantos outros da Lei Maior em matéria penal e da legislação extravagante. Aliás, por falar em lei especial, é importante assinalar que no Código Penal Militar, no livro que trata Dos Crimes Militares Em Tempo de Guerra, há um capítulo que leva o título Da Traição, no qual para todos os

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delitos o legislador comina a pena de morte, que no caso brasileiro, de acordo com o art. 56, se cumpre mediante fuzilamento. Apenas em relação à infidelidade conjugal a legislação não reage com tanto rigor. No ano de 2005, o adultério foi objeto de abolitio criminis, deixando o mundo do Direito Penal para receber o tratamento do Direito Civil, que, por sua vez, se mostra bastante flexível nesse aspecto. Não há mais o que se falar em divórcio por culpa do cônjuge adúltero e, como se não bastasse, as indenizações por danos morais fixadas em valores quase insignificantes vêm perdendo o caráter retributivo e preventivo. Não havendo bens e nem filhos, a dissolução da sociedade conjugal se efetivará em questão de minutos, na frieza dos polos, que congela o recinto cartorial. O preço também não representará qualquer empecilho e, certamente, sairá muito mais barato do que trinta moedas de prata. Não seria exagero dizer que estará consumada mais uma traição promovida com um beijo. Aliás, diga-se de passagem, em um mundo onde todos os valores são relativizados e o dinheiro é reverenciado como deus único, o que dizer da cumplicidade entre marido e mulher, fruto do amor verdadeiro? O instituto da delação premiada, que vem sendo utilizado como ferramenta estatal no enfrentamento do crime organizado desde o advento da Lei nº 8.072/1990 (Crimes Hediondos) – estendendo-se mais tarde para outras leis específicas, como a Lei nº 7.492/1986 (Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional), a Lei nº 8.137/1990 (Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Relações de Consumo), a Lei nº 9.613/1998 (Lavagem de Dinheiro), a Lei nº 9.807/1999 (Proteção às Testemunhas), a Lei nº 11.343/2006 (Drogas), a Lei nº 12.850/2013 (Organização Criminosa) – entra em uma fase de frequentes ataques na mesma proporção das defesas apaixonadas. Há de se convir que não é tarefa das mais fáceis compreender que, em nosso ordenamento jurídico, a traição pode matar, passar despercebida ou até ser homenageada. Para uma corrente doutrinária, o que decidiram chamar de colaboração premiada na última lei acima referida não passa de um incentivo por parte da administração pública ao nefasto gesto de trair, o que se mostra totalmente incompatível com os princípios gerais do Direito. A lei deve possuir conteúdo didático e apresentar princípios cívicos decentes, e não ensinar que o cafajestismo pode ser vantajoso. Se o crime não compensa, a delação não pode recompensar. Além do mais, de todos os integrantes que compõem o grupo de delinquentes, o pior deles é, sem dúvida alguma, aquele que entrega os comparsas à Justiça para aliviar a sua própria pele. Trata-se de torpeza repudiada até para quem se aventura às ações delituosas, não havendo espaço para traidores nem mesmo nas penitenciárias, onde estão agregados os piores malfeitores. É o estranho, porém notório, código moral do mundo do crime. Vale lembrar o que ocorreu com o mafioso Tommaso Buscetta (1928-2000), um dos mais importantes membros da Cosa Nostra, a máfia siciliana, que teve dez de seus familiares assassinados em represália ao auxílio prestado à Justiça italiana. Em contrapartida, há quem procure justificar a atitude do traidor com base no finalismo aristotélico, pois se o fim é bom, ou seja, viabilizar o desmantelamento de uma organização criminosa e a cessação de suas atividades com a aplicação de pena aos seus membros, então o meio da delação também o será. Se para o Direito nem a vida tem caráter absoluto, por que o sigilo o teria? Ainda mais quando o evento envolve criminosos. Para esses juristas, o sacrifício da organização, mesmo por

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intermédio de uma prática execrável, estaria a serviço do bem comum. Advertem que determinados grupos dedicados às atividades ilícitas, que se desenvolvem com requinte empresarial, se não ruírem por dentro, jamais poderão ser detidos por intermédio de práticas repressivas ordinárias. Usam como ilustração a tradição norte-americana de, inclusive, pagar somas em dinheiro ao colaborador por suas preciosas informações. É o modelo de justiça criminal que vem dos remotos tempos da Marcha para o Oeste, quando o governo dos Estados Unidos se viu obrigado a delegar aos condados a tarefa de instituírem as suas próprias estruturas punitivas para os crimes locais. Daí veio o Wanted Dead Or Live que, de forma mais civilizada, perdura até hoje. Difícil se chegar a alguma conclusão quando dois argumentos contrapostos estão repletos de razão. Para efeito de valoração do ato de dedurar nenhum deles mostra-se útil. Isso se deve ao fato de não atentarem para o ponto central, ou seja, o que teria motivado o indivíduo a revelar toda a trama delituosa e a identidade dos concorrentes. Se decide fazer mea culpa pela consciência de ter agido em desacordo com os interesses da coletividade à qual pertence, imbuído da intenção de reparar o dano e amenizar a dor moral que o afeta, a sua responsabilidade não desaparece, mas a mudança de postura justifica a atenuação das reprimendas. Se a lei chamará as benesses aplicáveis de prêmio, a opção semântica não escapa da lógica em nosso ordenamento jurídico de flexibilizar a resposta penal em decorrência do arrependimento posterior. Tal medida há muito tempo é disciplinada nos arts. 16 e 65 do Código Penal, entre outros de caráter excepcional, como ocorre, por exemplo, nos casos de estelionato mediante cheque sem fundo, quando o agente efetua o pagamento da dívida antes do recebimento da denúncia (Súmula 554 do STF). Entretanto, há casos em que o agente utiliza o instituto da colaboração premiada para se vingar de seus inimigos, imputando-lhes algumas verdades embrulhadas a um punhado de mentiras, que, muitas vezes, nenhuma relação tem com o objeto da investigação. Assim, atingem não apenas as honras objetiva e subjetiva da vítima da infâmia, mas também a própria administração pública, em especial a administração da justiça, fazendo-o incidir no crime de denunciação caluniosa (art. 339 do CP). Ademais, considerando que estamos discorrendo sobre um grave problema enfrentado no Brasil, o que não falta é exemplo pitoresco sobre qualquer tema de natureza jurídica. Já houve, diga-se de passagem, quem se valesse da delação para ganhar muito dinheiro, não como contrapartida do Estado pelas informações prestadas, mas sim de forma indireta, pela qual o indivíduo se beneficiou da previsível instabilidade gerada ao mercado financeiro, capaz de favorecer práticas especulativas de toda ordem. Casos como esse, em que o traidor da organização criminosa engana a nação inteira com a sua delação é que provoca a reflexão sobre o lugar onde Dante o colocaria em seu imaginário, ou se nele não haveria espaço para aqueles que traem a própria natureza humana no que diz respeito à capacidade de ser justo e dotado de um mínimo de vergonha.

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Sergio Ricardo do Amaral Gurgel é advogado da AMARAL GURGEL Advogados; autor da Editora Impetus; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal; e-mail: sag@amaralgurgel.com

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