Brochura "Jamaica, Jamaica!"

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De 15 de marรงo a 26 de agosto de 2018


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Foto: Gal Oppido

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Beth Lesser, Gregory Isaacs na frente de sua loja de discos, Chancery Lane, Kingston - 1984 - Š Beth Lesser


SUMÁRIO No espelho do vizinho

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Jamaica do Brasil

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Texto Curatorial

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Jamaica: matriz de uma essência musical única

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Os primeiros dias da música jamaicana

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O espírito da música jamaicana

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O nascimento de uma indústria musical: sound systems e estúdios

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Mento, jazz, ska, rocksteady: as primeiras gravações da música jamaicana

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Anos 1970: o reino do reggae

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As características de uma música popular

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Reggae, uma música para tempos turbulentos

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Bob Marley, Peter Tosh, Bunny Wailer: os Wailers conquistam o mundo

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Lee “Scratch” Perry, um agitador genial

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Black man time: música jamaicana e consciência negra

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Língua jamaicana, gírias e identidade nacional

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Sound System, a voz do povo jamaicano

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Dancehall Queens: emancipação pela feminilidade

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Rub-a-Dub Style

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Mistério sempre há de pintar por aí: um olhar sobre a trajetória do reggae no Brasil

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Uma Cronologia Jamaicana

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Jamaica, Jamaica!, concebida pela Cité de la Musique – Philharmonie de Paris e realizada pelo Sesc – Serviço Social do Comércio, apresentada no Sesc 24 de Maio entre 14 de março e 26 de agosto de 2018. Os textos aqui apresentados foram selecionados a partir do catálogo da exposição francesa © Édition La Découverte – Cité de la Musique – Philharmonie de Paris, 2017, com exceção dos conteúdos referentes ao Brasil.


O Sesc 24 de Maio configura-se como uma espécie de caleidoscópio. Instalado numa porção da cidade que, na primeira metade do século passado, passou a ser identificada como Centro Novo, ele é atravessado por camadas e fragmentos de diferentes períodos, usos e culturas, refletindo-os de modos diversos. Construída onde funcionou, por seis décadas, uma loja de departamentos, essa unidade do Sesc tem como seu principal trunfo a possibilidade de interagir complexa e inventivamente com seu entorno e suas variadas linhas de força – daí que tanto a sua arquitetura como a sua programação adotam como critério a permeabilidade àquilo e àqueles que povoam esse contexto tão denso de experiências. Um dos aspectos dessa espessura histórica refere-se à cultura musical, que encontra terreno fértil no quadrilátero entre a Praça da República, o Anhangabaú e as avenidas São Luís e São João. Foi justamente aí que, a partir dos anos 1930, passaram a se instalar muitas rádios. Entre as heranças por elas deixadas, nota-se a forte identidade musical da região, patente nas numerosas lojas de disco e nas duas galerias conhecidas por seu vínculo com gêneros musicais: a do rock e a do reggae.

No espelho do vizinho

A vizinhança frontal com a última – cuja fachada parece em simbiose com a pele de vidro do edifício do Sesc – sugere múltiplas interações. Jamaica, Jamaica!, exposição dedicada ao universo sonoro da ilha e às suas incidências no Brasil, denota essa busca por aproximação. Apresentar uma mostra calcada em repertórios alusivos às conexões entre África e América, num local da cidade amplamente frequentado por imigrantes de origem africana e caribenha, sinaliza a intenção da instituição de dialogar com esse e com outros públicos por meio das manifestações culturais. Imbuída da produção de liames entre espaços de convivência e suas distintas práticas socioculturais, a presente iniciativa conta com a parceria da Cité de la Musique – Philharmonie de Paris, instituição francesa responsável pela realização da primeira versão da mostra, que aqui é acrescida de conteúdos brasileiros. Para o Sesc, trata-se da oportunidade de reforçar o seu compromisso com o reconhecimento e o fortalecimento das matrizes culturais já presentes no Centro Novo, que se renova. DANILO SANTOS DE MIRANDA, Diretor do Sesc São Paulo


Em sua primeira itinerância, a exposição Jamaica, Jamaica!, realizada em 2017 pelo Musée de la musique/Philharmonie de Paris, desembarca no Sesc 24 de Maio, em São Paulo. Esta escala abre para nós uma feliz perspectiva, por diversas razões. Usufruir do prestigioso poder de comunicação do Sesc no Brasil é, antes de mais nada, uma honra, que garante ao nosso projeto a visibilidade que a riqueza extraordinária da cultura jamaicana merece. Essa itinerância constitui-se também em uma oportunidade para o aprofundamento dos já fortes laços de amizade e do intercâmbio intelectual com o Sesc, instituição com a qual agora promovemos a quarta colaboração, após as exposições dedicadas a Miles Davis, a Serge Gainsbourg e às relações entre música e cinema. Somos gratos por essa fiel atenção para com os nossos projetos e saudamos em especial o engajamento e o entusiasmo das equipes que fizeram possível mais essa troca de conhecimentos.

Jamaica do Brasil

A escala em São Paulo representa, por fim, uma oportunidade de adaptar, com a preciosa participação de Sébastien Carayol, alguns conteúdos da exposição realizada em Paris. Ao se aprofundar nos laços estreitos que ligam o Brasil à história das músicas jamaicanas em três regiões emblemáticas –os estados do Maranhão, da Bahia e de São Paulo –, nossa reflexão sobre o assunto foi consideravelmente ampliada. Depois de seduzir o público parisiense, o material que compõe a mais ambiciosa exposição jamais realizada sobre esse tema – garimpado junto a colecionadores privados ou proveniente de museus da Jamaica, dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha – aporta assim no Brasil; e não há nenhuma dúvida de que ele se enriquecerá com os olhos e os ouvidos de um país fascinante, visceralmente vinculado à história cultural do Caribe! MARIE-PAULINE MARTIN, Diretora do Musée de la Musique Philharmonie de Paris


Uma pequena ilha do Caribe adquiriu uma força extraordinária na história da música. Fonte de algumas das principais correntes musicais no cenário da música popular de hoje, a Jamaica vibra com criatividade, apesar de seu representante mais famoso, Bob Marley, muitas vezes ofuscar a riqueza de uma história e uma diversidade que vão muito além desse ícone universal. A música jamaicana – com ramificações tão amplas quanto as do jazz ou do blues, cujas raízes mais profundas remontam ao tempo da sofrida escravidão – encontra suas origens nas heranças africanas alteradas pelo tempo e pelo contato com os colonizadores europeus, embora nunca tenham deixado de existir. Desde a década de 1950, essas invenções audaciosas, surgidas nos guetos de Kingston, lançaram as bases de certos gêneros musicais urbanos contemporâneos, introduzindo no vocabulário musical de hoje termos como deejay, sound system, remix, dub, etc. – que muitas vezes apenas os especialistas conhecem. Música sacra ou profana? Rural ou urbana? Militante ou ligeira? Voz dos sábios rastafáris ou dos meninos rudes do gueto? A exposição Jamaica, Jamaica! propõe-se a dar conta das múltiplas facetas da história da música jamaicana, dos conflitos pós-coloniais e dos reencontros que fizeram nascer um movimento universal e único no mundo, onde se entrechocam, como num sound clash, os nomes de Bob Marley, Peter Tosh, Lee Perry, King Tubby, Studio One, Alpha Boys School, Haile Selassie I, Marcus Garvey, em estilos musicais tão variados como revival, mento, ska, rocksteady, reggae, dub e dancehall. O impacto da música da Jamaica em outros países foi enorme, especialmente naqueles que, como ela, foram marcados pela diáspora africana. Mas no Brasil a coisa vai além, e não é exagero dizer que essa relação chega a lampejos de verdadeira simbiose. Assim, um segmento inédito foi incluído para dar luz à história de como a cultura jamaicana se recriou no país a partir de três estados nos quais sua presença se destaca: Bahia, Maranhão e São Paulo. Jamaica, Jamaica! reúne objetos, imagens e fimes raros encontrados em coleções privadas e museus da Jamaica, dos Estados Unidos, do Reino Unido e do Brasil. Dando a palavra aos artistas jamaicanos, a exposição soa como um grito, um apelo, por meio dessa música que se tornou a porta-voz da indignação de um povo e que leva sua súplica muito além das fronteiras da Jamaica, para torná-la a música mais popular do mundo. SÉBASTIEN CARAYOL, Curador


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Beth Lesser, Gregory Isaacs na frente de sua loja de discos, Chancery Lane, Kingston - 1984 - Š Beth Lesser


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Beth Lesser, Papa Screw, o deejay de Black Scorpio, Drewsland 1985 © Beth Lesser


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Jamaica:

matriz de uma essência musical única

Amplificador Artesanal Jah Love Musik – anos 1960 – equipamento de áudio Jamaica Music Museum, Kingston. Foto Gal Oppido

Não perder a memória da colonização e da escravidão – esse lema é a essência de todas as músicas surgidas na Jamaica desde o século XVIII, do revival ao dancehall, passando pelo mento, o ska, o rocksteady, o reggae e o dub. Não se trata apenas de não perder essa memória, mas de a ela acrescentar uma nova: ao longo de décadas, mesclando heranças, influências, encontros e imposições, e graças a inúmeras e radicais inovações musicais e tecnológicas, a Jamaica criou um universo sonoro e cultural próprio, que repercute bem além das fronteiras da ilha. Das melodias que acompanham os cultos sincréticos afro-protestantes locais ao enorme estímulo provocado pela rivalidade entre os sound systems dos guetos de Kingston, a criação da música jamaicana sempre se estruturou a partir de uma alquimia complexa e própria – por vezes, esotérica –, à base de síncopes, do afterbeat, do clash, dos dubplates ou, ainda, dos riddims. Ao apresentar as principais características das diferentes músicas jamaicanas, este capítulo revela o mistério de um país que, dando voz ao seu próprio povo, acabou se impondo no panorama sonoro contemporâneo internacional.


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Os primeiros dias da música jamaicana

As raízes da música jamaicana vêm das tribos indígenas do Caribe, os Ciboney e os Arawak, que ritmavam suas cerimônias. A música jamaicana moderna, por sua vez, foi influenciada diretamente pelos cultos revivalistas locais do século XIX –o pukkumina, o kumina ou o revival zion –, que misturavam influências cristãs e rituais HEATHER AUGUSTYN praticados pelos africanos escravizados. Estes últimos, por outro lado, formaram conjuntos de percussão, os burru, que dialogavam em um jogo de perguntas e respostas: um tambor dava o ritmo, em seguida apareciam em eco os licks, breves séries de batidas ou motivos rítmicos. Diferentes criações folclóricas e influências coloniais se fundiram desde 1784 no calypso, uma música originária de Trinidad, marcada pelo espírito de competição e pelo tom malicioso. Do final dos anos 1940 até meados dos anos 1960, os chantrels – cantores populares do calypso – adotavam apelidos excêntricos como King Pharaoh, Lord Superior ou Mighty Sparrow. Especializando-se em denegrir e ridicularizar seus concorrentes, eles criavam confrontações baseadas em desafios orais. No final do século XIX, surge um novo gênero nascido da confluência do calypso, formas folclóricas Desde os anos 1910, as primeiras músicas e ritmos africanos: o mento. Tocado por um ou dois do calypso são gravadas em Trinidad banjos em picking, um rumba box (lamelofone baixo) e Tobago. Esse gênero conquista fama e violões, o mento retrabalha sucessos populares com internacional graças à novaversão de “Rum and Coca- Cola” (Lord Invader) pelas um ritmo próprio. Suas letras constituem uma crítica Andrew Sisters, nos Estados Unidos, em social, frequentemente em tom bem-humorado, ou 1945. Sua variação jamaicana, o mento, jogam com o erotismo de forma subentendida. É uma procura surfar nesse sucesso. Em 1950, música alegre, embalada com quatro tempos, com um grava-se a primeira canção de mento tempo forte no segundo e no quarto. Os músicos do (“Medley of Jamaican Mento-Calypsos”). mento, tal como seus colegas do jazz e do ska, atuam Alguns anos depois, surgem as produções de forma bastante integrada, uns respondendo aos mais conhecidas de 78 rotações, nos selos outros com seus instrumentos. Chin’s e Kalypso.

The Jamaican Calypsonians - Calypsos from Jamaica. Fim dos anos 1950, Coleção Lick it Back


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[Vista da exposição] (à esquerda) Nos anos 1950, como costuma acontecer no caso dos instrumentos do mento, o músico jamaicano William “Sugar Belly” Walker produz o seu próprio instrumento: o bamboo saxofone, uma clarineta artesanal feita com um bambu, cartão e uma buzina de carro. (à direita) Marcando a presença da herança oeste-africana do mento, na África o lamelofone chama-se kalimba, timbili ou koné, conforme suas variações portáteis. Em sua versão mais imponente (o músico pode, às vezes, sentar-se em sua caixa), esse “lamelofone baixo” recebe em Cuba o nome de marimbula, e de marumba ou rumba box na Jamaica. Transformado em instrumento-símbolo do mento, a rumba box prenuncia o baixo elétrico das músicas jamaicanas que viriam depois. Foto Walter Betotti

O jazz se fez presente na Jamaica no começo dos anos 1920, por meio da indústria do turismo, que começou a assumir um papel importante na economia da ilha. Músicos jamaicanos de jazz ou estrelas norte-americanas tocavam frequentemente em clubes e teatros. Muitos hotéis possuíam a sua própria orquestra fixa, com o objetivo de atrair todas as noites a clientela formada por turistas. A seleção era feita entre os artistas locais, em especial na Alpha Boys’ School, uma verdadeira instituição de formação de talentos, que proporcionava uma das formações musicais mais prestigiadas da ilha e de onde surgiriam alguns dos músicos mais talentosos da Jamaica. Os alunos eram enviados para essa instituição pelos tribunais ou pela igreja quando seus pais se encontram impossibilitados de cuidar deles. Ali aprendiam uma profissão – jardinagem, costura ou música. A irmã Mary Ignatius Davies desempenhou um papel primordial na educação e orientação dos meninos da Alpha. Ela vislumbrava nas bandas militares e na rede de clubes de jazz grandes oportunidades para que seus alunos encontrassem um emprego depois de deixar a escola. Davies adorava música e, consequentemente, a orquestra da escola era próspera. Joe Harriot, Dizzy Reece, Don Drummond, Tommy McCook, Eddie “Tan Tan” Thornton, Johnny “Dizzy” Moore, Lester Sterling, Leroy “Horsemouth” Wallace, Rico Rodriguez, Leroy Smart, Johnny Ousborne e Yellowman – para mencionar apenas alguns nomes – foram, todos eles, ex-alunos da Alpha.


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Quem poderia imaginar, em 1950, que Kingston era uma cidade destinada a um grande futuro musical? Vestígio do império colonial britânico em declínio, a capital da Jamaica foi por muito tempo estereotipada na chamada “literatura de viagem”. Ela aparece nesse universo tão desprovida de cultura quanto os traficantes de povos escravizados que a fundaram e distante de qualquer interesse por parte dos amantes da arte. Seria difícil definir claramente qual era o potencial musical que aflorava no século XIX nas cidades do país ou em seus arredores. As grandes orquestras que animavam os clubes noturnos nos KENNETH BILBY anos 1940 extraíam seus repertórios da música dos Estados Unidos, do Caribe e da América Latina. Embora talentosos, seus músicos não demonstravam ter uma originalidade significativa. No caso do mento, gênero musical popular originário da ilha, não houve, uma real efervescência artística. Explorado principalmente pela indústria do turismo, ele era ouvido, no começo dos anos 1950, apenas nos hotéis ou em uma pequena quantidade de discos produzidos localmente. A trajetória da evolução musical que se registra na Jamaica a partir do final dos anos 1950 é bastante conhecida. O apego ao rhythm and blues norte-americano dá lugar ao ska, ao rocksteady, depois ao reggae, levando ao triunfo de Bob Marley e, mais tarde, ao advento de uma nova cena dancehall florescente. Hoje em dia, o reggae (e todas as suas variantes) é um gênero estabelecido, reconhecido e apreciado no mundo inteiro.

O espírito da música jamaicana

[Vista da exposição ] The Well Traveled African, 2015. Cosmo White. Nascido em St. Andrew (Jamaica) em 1982, o artista plástico Cosmo Whyte cria um diálogo entre os códigos das músicas jamaicanas e os da escravidão. À onda sonora inspirada por uma canção de 1970 do deejay U-Roy (“Wake the Town and Tell the People” [Desperte a cidade e fale para todos]), ele associa, com uma ironia rangente, o seu carrinho The Well Traveled African – uma homenagem ao africano que sabia tão bem viajar, mesmo sendo forçado e obrigado, na época da colonização e da escravidão.


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Com ele, a Jamaica nos proporcionou, sem exagero, uma das músicas mais populares de toda a história. Por trás dessa constatação surpreendente existe, porém, um grande mistério: dentre tantos outros países, por que a Jamaica acabou por se impor assim no panorama sonoro do século XXI? Não há uma resposta simples e evidente a essa pergunta, mas é certo que esse elã criativo, do qual vieram os primeiros gêneros especificamente jamaicanos de música urbana, foi favorecido por uma confluência singular entre uma energia cultural local e elementos sonoros importados. Essa reação eminentemente orgânica deu origem a uma música que representa muito mais do que a simples soma de suas partes. Mas é possível, no entanto, distinguir os componentes que contribuíram para nutrir essa fusão. Abordemos o primeiro gênero a ser rotulado como “reggae”, surgido na cena jamaicana em torno de 1968. Muito se discorda quanto à identificação do primeiro disco de reggae, mas quatro canções são frequentemente evocadas: “Nanny Goat”, de Larry & Alvin; “Say What You’re Saying”, de Eric “Monty” Morris; “Bangarang”, de Lester Sterling & Stranger Cole; e “People Funny Boy”, de Lee Perry. Cada uma dessas músicas simboliza uma etapa importante na evolução musical da ilha; todas elas apresentam alguns dos traços característicos que viriam a se fundir no final dos anos 1960 em um gênero novo, o reggae, a coluna vertebral da música popular jamaicana. A primeira canção, “Nanny Goat”, é recheada da sensibilidade mento de seu compositor, Larry Marshall, que cresceu na região rural de Saint Ann. Esse lamento amoroso é formulado com as palavras de um antigo provérbio camponês – “what sweet nanny goat a go run ‘im belly” [aquilo com que a cabra se regala lhe dará uma indigestão]. Sobre essas palavras simples se cria, porém, um novo tipo de ritmo, nascido de uma apresentação dirigida pelo tecladista e arranjador Jackie Mittoo, um grande amante do jazz. Apesar do muito que deve a outros ritmos jamaicanos antigos, essa nova cadência soa, então, como decididamente moderna, em especial devido à utilização intensa de uma nova tecnologia: o delay de fita. A canção constitui-se, assim, num belo exemplo de fusão entre o velho e o novo, o rural e o urbano, o local e o universal, que encontramos também nas outras três canções mencionadas. Já “Say What You’re Saying” se diferencia pela sua melodia, que poderia soar estranhamente familiar aos ouvidos daqueles que cresceram com a música popular norte-americana dos anos 1950. Ela se inspira, em parte, no sucesso de Ray Charles “This Little Girl of Mine”, lançado em 1955 (ele próprio adaptado de uma antiga canção do gospel afro-americano, “This Little Light of Mine”). Essa fonte, porém, não é identificável facilmente, pois o ritmo marcado do acompanhamento instrumental, profundamente jamaicano, muito pouco se parece com as sonoridades latinas e o rhythm and blues da canção de Ray Charles. Sua referência está mais nas tensões rítmicas do mento tradicional. Como “Nanny Goat”, “Bangarang” é uma canção de inspiração rural. Stranger Cole, em seu dialeto local, canta “Mumma nuh waan bangarang” [Mamãe não quer saber de brigas]. Repetida várias vezes, essa frase se apoia em um ritmo irregular com traços roots, muito parecido com o dos outros três títulos. A melodia de “Bangarang”, longe de ser apenas uma retomada de uma velha canção do folclore jamaicano, inspira-se em “Bongo Chant”: um título visionário devido à mescla musical que representou no começo dos anos 1950 ao ser interpretado pelos músicos de jazz do grupo britânico Kenny Graham’s Afro-Cubists. Muitos músicos de estúdio da geração do ska, grandes amantes do bebop, reverenciavam esse disco. Lester Sterling, que tocou a parte instrumental mais importante em “Bangarang”, foi um deles.


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A icônica “People Funny Boy”, do não menos icônico artista e produtor Lee “Scratch” Perry, por fim, pressagia a estética dub e a arte do sample na era digital: fragmentos de sons (no caso, o choro de um bebê) somam-se ao ritmo dançante e irregular da canção. Essa superposição, que confere a uma das primeiras gravações de reggae um aspecto vanguardista, resgata tradições espirituais e musicais surgidas na Jamaica mais de um século antes. Segundo o próprio Perry, o groove da canção se inspirou, em parte, nos ritmos cativantes que acompanhavam os ofícios religiosos do poco ou da igreja revivalista e que ele assistira por acaso quando passeava pelas ruas de Kingston. Assim, apesar das evidentes influências estrangeiras, as sonoridades registradas nesses discos encarnam – como afirmam os músicos que participaram de suas gravações – uma consciência renovada da história local da ilha. Não é menos importante o fato de que essa nova música tenha ganho, no momento de seu auge, o nome de “reggae roots” [reggae de “raiz”]. Uma outra forma dessa mesma afirmação cultural pode ser identificada no resgate das origens africanas do povo jamaicano – durante muito tempo reprimidas – pela fé rastafári. Muitos músicos de estúdio radicados em Kingston haviam passado a infância no campo, inspirando-se nesses ambientes variados para produzir uma síntese musical urbano-rural que, envolvida por traços modernos, encarnava uma história cultural e musical caracteristicamente jamaicana. O fato de a música roots ter estimulado uma diáspora de origem africana bem mais ampla não diminui o sentimento inquestionável de que ela se enraíza fortemente em solo jamaicano. Esse mesmo solo foi inundado durante séculos pelo sangue e pelo suor das populações africanas, deportadas em massa dos quatro cantos de seu continente natal e escravizadas. Apesar disso, mesmo mergulhada nesse contexto brutal das plantações a vida não se resumiu aos sofrimentos impostos pelos trabalhos forçados. A prática musical se revelou como fator de sobrevivência social e um suporte psicológico eficaz. Parece-nos difícil, hoje, dar conta da complexidade do processo por meio do qual as primeiras gerações de afro-jamaicanos foram capazes de forjar uma cultura compartilhada, englobando um leque impressionante de línguas, culturas e tradições musicais. Mas elas inventaram uma cultura em que música e dança ocuparam um lugar central. Inspirando-se ao mesmo tempo em suas tradições ancestrais e em novos recursos sonoros que The faithfull – (O fiel),. David Pottinger, 1972. Nascido em Prince Street nos anos 1910, o pintor David “Jack” Pottinger conheceram na Jamaica, esses afri(1911 – 2002) testemunhou o crescimento dos rituais canos e seus descendentes construreligiosos afro-jamaicanos, em especial a pocomania, entre as camadas populares do centro de Kingston. Espelhando a íram caminhos musicais repletos vida das ruas de sua época, suas pinturas possuem grande de vivacidade de sentimento. Ecos valor documental. Foto Gal Oppido


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desse processo histórico chegam até meados do século XX, quando explode, então, a música popular jamaicana – e até hoje ainda são claramente ouvidos. A música tradicional jamaicana é rica e variada, mas três correntes rurais mais importantes imprimiram uma marca profunda na música popular das cidades. Prince Buster, um dos atores de destaque no desenvolvimento da música jamaicana moderna, resumiu o fenômeno da seguinte forma: “É preciso entender [que a música popular jamaicana] provém do poco, do mento e da tradição burru. É aí que suas raízes estão mergulhadas”. As três tradições musicais mencionadas por Buster são nativas, ainda que explicitamente regadas também com fontes estrangeiras, tanto africanas quanto europeias. O poco é uma religião revivalista afro-protestante, chamada às vezes de pocomania ou pukkumina. Remonta ao século XVIII, quando missionários europeus e norte-americanos desembarcaram na Jamaica para transmitir a “boa palavra” aos africanos escravizados. Essa pregação levou a uma associação entre conceitos espirituais africanos e cristãos e, mais tarde, ao surgimento de seitas independentes que afirmaram desafiadoramente suas próprias teologias e práticas, inspiradas na cultura africana. Essa forma nova de culto afro-protestante, que prosperou ao Vistas da exposição: Núcleo 400 anos. Foto: Gal Oppido longo dos séculos XIX e XX, e que continua bastante enraizada nos dias de hoje, é indissociável de uma música de ritmos intensos. Esta combina uma harmonia herdada de práticas europeias (e, às vezes, de hinos protestantes) a formas de percussão corporais derivadas das tradições africanas (bater os pés, as mãos ou respirar ritmicamente), que chamam os espíritos a baixar sobre os corpos ou suscitam uma comunhão com o divino. Algumas vezes a execução dessa música inclui tambores. A tradição do mento, por sua vez, nasceu dos salões de baile europeus que se multipliDetalhe (foto à direita) Arte mento, Anos 1960, lenços de tecido e desenho caram ao longo do século XIX sobre papel, Coleção Lick it Back. Foto: Walter Bertotti


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na maior parte dos territórios colonizados do planeta. Assim como aconteceu em outras regiões do Caribe, a dança de quadrilha tornou-se muito popular na Jamaica. Com o tempo, surgiram versões mistas e nativas dessas “danças coreografadas”, que misturavam instrumentações e elementos musicais europeus e africanos. No começo do século XX, o mento já era um gênero estabelecido, tocado por conjuntos de cordas – incluindo banjo e violão –, rumba box (um lamelofone grave) e diversas percussões, a que se somavam um pífaro ou um violino para executar a melodia principal. Quando a Jamaica começa a entrar no caminho de sua independência política, o mento torna-se uma espécie de música folclórica “nacional”, provida de um amplo repertório compartilhado de canções com bases harmônicas e rítmicas comuns. Durante os anos 1950, elas começam a ser gravadas e comercializadas em pequena escala. A tradição burru, terceira das inspirações musicais identificadas por Prince Buster, é também a menos estudada. No entanto, ela exerceu uma influência maior no momento de nascimento da música popular de Kingston. Suas origens são imprecisas, mas algumas tradições orais sugerem que ela era inicialmente associada a famílias de ascendência centro-africana (principalmente do Congo), concentradas nas regiões rurais mais interioranas da ilha. A música burru, executada por um conjunto básico de três tambores (um repeater, um fundeh e um surdo), é tocada, particularmente, nas proximidades do Natal, para acompanhar as grandes procissões que homenageiam os espíritos dos ancestrais locais. Em menor escala, pode ser interpretada em qualquer momento do ano. Além disso, a tradição burru costuma utilizar suas canções como crítica social. A partir dos anos 1950, ela se incorpora à música popular das cidades, no momento em que seus músicos passam a conviver com os rastafáris nas favelas do oeste de Kingston. Estes últimos adotam, então, os três tambores burru e inventam uma música de culto distinta, neo-africana, conhecida pelo nome de “nyahbinghi”. A música nyahbinghi mistura os ritmos burru com outros usos afro-jamaicanos da percussão – como o kumina – , inspirando-se fortemente no repertório revivalista e, em menor escala, no mento tradicional. À medida que os ideais rastas se difundem entre a juventude urbana desprovida de quaisquer direitos, essa música se torna um componente essencial da mestiçagem musical que se opera nessa época no centro de Kingston. Ela estará na origem do resgate associado ao reggae roots, nos anos 1970. Poucos são os amantes do reggae que sabem da importância Vitrine da exposição: (da esquerda para a direita.) Percursão maroon “gumbeh” dessas antigas tradições 2005, Jamaica Music Museum, Kingston; Trouble Not, Mallica “Kapo” Reynolds, 1964 - The National Gallery of Jamaica, Kingston; Instrumentos de percussão musicais, lembradas no kumina e no revivalismo, Jamaica Music Museum, Kingston e The African por Prince Buster, na Caribbean Institute of Jamaica, Kingston. Foto: Gal Oppido


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Instrumentos de percussão nyahbinghi. Utilizados pelos The Count Ossie Rastafarian Drummers e The Mystic Revelation of Rastafari, Anos 1950 e 1960. Museum of Pop Culture, Seattle, EUA. Foto: Walter Bertotti

criação das sonoridades típicas da Jamaica moderna. Os sinais dessa influência, que continua viva, não se limitam à entrada ocasional de canções folclóricas, retrabalhadas para atender ao gosto contemporâneo, nas paradas locais – como no caso da versão ska de um sucesso do mento, “Rukumbine”, cantada por Shenley Duffus em 1965, ou da interpretação com toques de reggae de uma canção revivalista, “Let the Power Fall on Me”, lançada por Max Romeo em 1971 e rebatizada na ocasião como “Let the Power Fall on I”. O recurso ao rico repertório da canção folclórica jamaicana não era algo raro nos estúdios de Kingston. Há centenas de exemplos desse tipo, espalhados por toda a história da música popular jamaicana. O ska, tal como o rocksteady, o reggae e o dancehall produziram suas versões de canções tradicionais herdadas do mento ou dos cultos revivalistas. Essas canções ainda estão vivas, sendo tocadas regularmente em contextos tradicionais, como os serviços religiosos revivalistas. Dezenas delas também foram resgatadas do repertório da música nyahbinghi, que continua, hoje, a alimentar o reggae rasta. A herança folclórica da Jamaica está, portanto, bastante viva, dialogando ainda, no presente, com a cultura musical popular de Kingston. Esse fenômeno traz à tona a profunda dívida que a música popular urbana da ilha tem com as tradições musicais mais antigas. Hoje em dia, essa continuidade se expressa de forma mais sutil, mas não menos significativa. Procura-se muitas vezes identificá-la com o termo feel [“espírito”/“sensação”] – uma qualidade difícil de definir. Se ti-


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véssemos de destacar um aspecto estilístico capaz de descrever um “espírito” reggae (e o “espírito” da música popular jamaicana em geral), seria provavelmente a sua rítmica. A cadência característica do reggae não se corporifica em apenas um motivo rítmico, mas se define pela estruturação e a tessitura de um conjunto de ritmos associados, afetos, cada um, a seu próprio instrumento, a fim de produzir um tipo particular de groove. Os músicos de estúdio que criaram em Kingston os modelos originais desse som tão diferente há mais de meio século são unânimes: esses ritmos foram incorporados por eles naturalmente, quando experimentavam todos os recursos musicais que tinham à sua disposição. A maioria deles lembra a música que ouviam ou tocavam todos os dias em seus primeiros anos (as influências do burru ou do nyahbinghi, da música revivalista, do mento, do kumina ou de outros gêneros folclóricos) e a identificam como um dos fatores mais importantes da elaboração quase sobrenatural de um novo meio de expressão e de vida. O testemunho desses precursores deveria estar na base de qualquer tentativa de compreensão da música popular jamaicana, e daquilo que a faz soar, justamente, tão “jamaicana”. Uma energia gigantesca sempre animou e anima ainda hoje a Jamaica. Ela transparece em uma cultura sound system totalmente renovada, dotada de um elã criador particular; na arte do remix, da version, do dub e de outras inovações tecnológicas, que transformaram a música popular em escala mundial; em décadas de produção de discos que, proporcionalmente à população da ilha, é a mais importante do mundo; no fenômeno Bob Marley (e The Wailers); no movimento espiritual, político e musical rastafári, que ainda hoje busca despertar as consciências em todos os países; em uma nova forma de canto falado, o toasting/deejaying, que se expandiu internacionalmente e só tem como concorrente à sua altura o hip-hop, para cuja emergência ele próprio contribuiu e o qual continua a influenciar; nos ritmos digitais, nos passos de dança e no vestuário do dancehall, que seduz a juventude no mundo inteiro... qual outro país poderia se gabar de realizações tão grandes? Os componentes essenciais da música popular jamaicana carregam as marcas de várias influências estrangeiras, vestígios dos “sankeys” norte-americanos do século XIX (hinos gospel que levam o nome de seu compositor), ainda hoje entoados nas igrejas revivalistas, ecos da música cubana e do calypso originário de Trinidad e Tobago, presentes no mento, passando pelas ressonâncias do jazz e do rhythm and blues no ska e até pelos elementos musicais da África e da Europa que remontam à época da escravidão. Essa tendência à absorção de modelos variados continua muito presente: novos elementos estrangeiros são agregados infinitamente a esse amálgama tão complexo. Para voltar aos quatro títulos precursores do reggae, vemos claramente que as sonoridades jamaicanas “nacionais” (e, hoje em dia, transnacionais) se apresentaram inicialmente sob a forma de uma mistura, tal como todas as grandes correntes musicais populares do século XX, no mundo todo. Essa mescla local, à medida que crescia e evoluía, nunca deixou de lado os seus fundamentos musicais nem a história de seu povo. Assim como o jazz, o blues e o rock só poderiam ter surgido em certas regiões dos Estados Unidos e em um momento determinado da história, o reggae só poderia ter sido criado na Jamaica, e somente nos anos 1960. E tal como o jazz, o blues e o rock, o reggae faz parte, hoje, do panorama musical internacional, como patrimônio de toda a humanidade; e, como essas expressões musicais e populares chamadas de “internacionais”, somente o seu país e aqueles que vivem em suas terras podem expressar plenamente a dimensão de sua universalidade: Jamaica! Jamaica!


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Dos anos 1930 aos anos 1950, o jazz é a música de referência. Depois, porém, os programas de rádio norte-americanos captados na Jamaica divulgam um novo som: o rhythm and blues. Jovens cheios de ambição aproveitam o embalo e criam os seus próprios sound systems – lançam-se, também, na venda de bebidas alcoólicas. Esses sistemas de sonorização hi-fi emitem a música com o uso de caixas de som embutidas em móveis de madeira: as “houses of joy” [casas de alegria]. De grande envergadura, elas atraem o público. Os deejays ou os selectors [seletores] tocam os discos que os seus operators [operaHEATHER AUGUSTYN dores] trazem dos Estados Unidos. Entre os inúmeros operadores desse período estão Tom “The Great Sebastian” Wong, Count Nick the Champ, Count Smith the Blue Blaster, V-Rocket, Lord Koo’s the Universe, Prince Buster e King Edwards. Os dois mais populares nos anos 1950 e 1960, porém, são Clement Seymour Dodd, mais conhecido como Sir Coxsone ou Downbeat, e Arthur Reid, chamado de Duke Reid ou The Trojan. Ambos possuem um negócio familiar de bebidas e as fornecem aos participantes. Os deejays que trabalham para esses sound men tocam para a multidão, dançam, cantam e fazem uma vocalização numa cadência entrecortada. Fazem brincadeiras, rimas e a animação – uma prática que ganha o nome de “toasting”. Imitam o jive-talking [ jargão] dos DJs que atuam nas rádios norte-americanas. O toaster comenta os passos da dança, chama os participantes pelos seus nomes e mantém as tradições do calypso, do mento e de outras músicas folclóricas. Na disputa pelo público, os operadores se entregam a uma concorrência feroz; o essencial é garantir a especificidade de sua seleção musical. Cada um tem sua marca, um conjunto de canções que representam o seu universo sonoro. Eles se enfrentam em duelos, desafiando-se com músicas inéditas e exclusivas de rhythm and blues – até que algum concorrente encontre uma dessas canções e a coloque para tocar repetidamente até que ela perca sua atratividade, tática essa conhecida por “flop” [afundar] a competição. Os seguidores de cada sound system organizam invasões das noitadas de adversários, destroem seus equipamentos e quebram as agulhas de seus toca-discos. Bandos de marginais, rude boys, aliam-se a esse ou àquele operador e se enfrentam na defesa de seu território. Para manter a qualquer Letreiro da loja de vinil "Coxsone's Muzik City” propriedade de custo a exclusividade das músicas, os Coxsone Dodd, produtor do Studio One. Foto: Gal Oppido

O nascimento de uma indústria musical: sound systems e estúdios


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operadores tiram os rótulos de seus discos preferidos ou, mais ainda, produzem os seus próprios inéditos, discos únicos e versões especiais, empregando talentos locais. Para isso, porém, precisam ter à disposição um estúdio de gravação. O primeiro estúdio jamaicano foi fundado por Stanley Motta, que gravava o mento em 1951-1952 e mandava seus másters para a Grã-Bretanha para serem mixados e prensados em vinil. Em 1961, Ken Khouri inaugura o estúdio Federal Records, que é frequentado por todos os operadores. Estes então se transformam em produtores locais, criando seus próprios selos e lojas de discos. Recorrendo a músicos selecionados da cena decadente dos clubes, produzem aquilo que eles próprios chamam de shuffle blues, que são versões de canções populares norte-americanas voltadas para o consumo de massa e para os sound systems. Com isso, eles procuram reproduzir o som do rhythm and blues norte-americano. Muito rapidamente, com sua sólida formação, os músicos de jazz começam a desenvolver uma música mais próxima de seu próprio gosto, que reúne o jazz dos clubes, o rhythm and blues dos quintais, as percussões africanas, o mento, o calypso e os estilos nativos com toda a sua variedade de sons e representações: é a voz das ruas no seu apogeu. Essa música é o ska.

Especialmente mítica, a caixa de som Hometown Hi-Fi, resgatada na Jamaica quando servia apenas como banco em um quintal, foi encontrada com sua pintura original. Nos anos 1970, King Tubby a reformará totalmente, decorando-a com um logotipo “sol nascente”, de inspiração japonesa, muito mais conhecido e registrado em imagens fotográficas. Sound System dos anos 1960: Caixas de som de Kign Tubby’s Hometown Hi-Fie e WASP Sound (baixo), Sir Harry’s Active Sound (médios e saídas de agudos). Coleção Lick it back. Foto: Gal Oppido

A era do ska Em 6 de agosto de 1962, a Jamaica torna-se independente do Reino Unido; o surgimento concomitante do ska não é mera coincidência. Graças a seu potencial, a ilha se torna um território de grandes possibilidades. Seus habitantes buscam formas de consolidar sua identidade e criam um gênero musical próprio e singular. O ritmo do ska enfatiza o contratempo. Os metais são, aí, um elemento essencial: uma seção bem formada, herdeira do jazz, garante a marcação e apresenta melodias e harmonias. O nome “ska” seria uma derivação do som produzido pela guitarra – “ska, ska, ska”


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– ou do apelido que o contrabaixista Cluett Johnson, à maneira do jive talking dos apresentadores de rádio, dava a seus amigos: “skavoovie”. Os músicos ganham algum dinheiro trabalhando em estúdios para produtores como Coxsone, Reid, King Edwards, Prince Buster, Sonia Pottinger, Leslie Kong e Randy Chin, entre outros. Todos eles frequentaram o estúdio Federal Records, até que conseguissem ter o seu próprio equipamento de gravação e um estúdio a partir de meados dos anos 1960. Por volta de 1962, o ska está em velocidade de cruzeiro. Os produtores gravam até dez lados em 45 rpm por dia. Sem direito a royalties, os artistas são pagos por lado gravado. Entre os cantores que construíram suas carreiras nos estúdios desse período estão Toots & the Maytals, Jimmy Cliff, Derrick Morgan, Desmond Dekker, Justin Hinds, Stranger Cole, Patsy Todd, Byron Lee & the Dragonaires, Marcia Griffiths e o legendário Bob Marley. Para se estabelecer de uma outra forma que não fosse como músicos de estúdio, um grupo de instrumentistas de metais decide criar, em 1964, a sua própria formação. São os Skatalites. Esse conjunto de músicos talentosos irá consolidar ainda mais o ska como gênero musical. A maioria de seus integrantes provinha da Alpha Boys’ School. Antes de trabalharem em estúdios, tinham tocado durante muito tempo em clubes, onde se apresentavam com outros grupos: Carlos Malcolm, Sonny Bradshaw, etc. Os Skatalites gravaram sucessos para todos os produtores da época. Muitos de seus títulos expressam o gosto dos jamaicanos pela cultura norte-americana – em particular pelos westerns-spaguettis, pelos filmes de espionagem e pelos programas de televisão (“Guns of Navarone”, “Dick Tracy”, “From Russia with Love”, “Dr. Kildare”) – ou refletem o interesse pela política e pelas atualidades internacionais (“Nuclear Weapon”, “Malcolm X”, “Lee Harvey Oswald”, “Fidel Castro”, “JFK’s Memory”, “Cuban Blockade”). Os Skatalites também produzem versões em ska de outras canções:

Vista da exposição. Danny Coxson, The Skatalites, 2017. Foto: Gal Oppido


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eles gravam “I Should Have Known Better”, dos Beatles, sob o título “Independent Anniversary Ska”, retomam “A Shot in the Dark”, de Henry Mancini, e algumas canções de Mongo Santamaria. A formação dos Skatalites reúne, principalmente, Tommy McCook, o líder do grupo, na flauta e no sax tenor; Don Drummond, no trombone; Roland Alphonso, no sax tenor; Lester Sterling, no sax alto; Johnny “Dizzy” Moore, no trompete; Lloyd Brevett, no contrabaixo; Lloyd Knibb, na bateria; Jerome “Jah Jerry” Haynes, na guitarra; Donat Roy “Jackie” Mittoo, ao piano; e Doreen Schaeffer, Jackie Opel, Lord Tanamo e Tony DaCosta nos vocais. A maior parte desses artistas acabaria, mais tarde, integrando grupos de rocksteady, depois de reggae, ou então se lançaria em carreiras solo bem-sucedidas. Muitos continuaram a se apresentar com outros artistas, de diferentes gerações, expandindo sua influência para músicos e públicos do mundo todo. A música ska é predominantemente instrumental. No entanto, alguns cantores e duplas se apropriaram também dos temas principais do rhythm and blues norte-americano – o amor e suas derivações. As letras mantêm o espírito fanfarrão dos gêneros precedentes, ostentando as habilidades musicais e incluindo alusões de caráter sexual. Elas falam também das lutas sociais, mas em um ritmo acelerado e com melodias cativantes. Os rude boys são chamados a se acalmar (“Simmer Down”, The Wailers) ou, ao contrário, por “não terem medo de nada”, a resistir (“Rudies Don’t Fear”, Derrick Morgan).

A chegada do rocksteady Alguns músicos de ska frequentam Wareika Hills, uma comunidade rasta fundada perto de Kingston pelo percussionista Count Ossie. Ali eles tocam ou aprendem os ritmos – e as doutrinas – dos burru e dos rastas. É ali, também, que o ska entra em contato com o Far East Sound, um som caracterizado por suas escalas menores e suas linhas melódicas esparsas, que deu origem ao reggae. Mas a transição do ska para o reggae é marcada por uma etapa intermediária: o rocksteady. Alguns eventos marcaram esse caminho. Dentre eles, a morte de um dos mais prolíficos e influentes músicos do ska, o trombonista Don Drummond. Pode-se mencionar, ainda, a visita do imperador da Etiópia, Haile Selassie, à Jamaica, em 23 de abril de 1966. Milhares de pessoas se aglomeraram, então, na pista do aeroporto de Kingston para recebê-lo. A música rastafári se infiltrou na consciência musical do país, e o fervor do ska não conseguiu encontrar o seu lugar no interior desse movimento. O rocksteady se diferencia pelo ritmo mais suave, menos metais, mais vozes e uma disposição diferente do bumbo e da caixa na bateria. Baixos elétricos e teclados substituem as seções de metais, que são imponentes e caras; as duplas e os crooners assumem o seu lugar. Em 1966, Alton Ellis será o primeiro a nomear essa música, mais lenta do que o ska, em sua canção “Rock Steady”. No entanto, considera-se, normalmente, que a primeira música do gênero foi “Take it Easy”, de Hopeton Lewis, no mesmo ano. Durante todo esse tempo, a música soul conquistou ampla popularidade nos Estados Unidos, o que também teve seu papel no advento do rocksteady. Alguns artistas jamaicanos imitavam os cantores de soul ou adaptavam esse estilo ao seu próprio repertório, da mesma maneira que o rhythm and blues havia influenciado o ska. Diferentemente do que ocorria no tempo do ska, começaram a surgir na Jamaica vários grupos vocais – na mesma linha dos Temptations ou dos Impressions. São eles: The Paragons, The Spanishtonians, The Jamaicans... Os músicos do ska, seja individualmente ou dentro de


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alguns grupos, não eram necessariamente acompanhados de cantores. Como no caso do soul norte-americano, as letras no rocksteady são carregadas de emoção. Lançam um apelo à tranquilidade. Com o rocksteady, os elogios que o ska dirigia aos rude boys são substituídos por alertas contra suas tendências. O ska procurava estimular um povo em busca de uma nova identidade, enquanto o rocksteady consolidava essa visão com uma abordagem mais conciliadora. Faltava muito pouco para o reggae entrar em cena. No Reino Unido, a música jamaicana encontrou bom acolhimento por parte do público. Depois da Segunda Guerra Mundial, em seu esforço de reconstrução, o país abriu suas fronteiras para os imigrantes, e os cidadãos do Commonwealth aproveitaram essa oportunidade. O jazz jamaicano chegou à Inglaterra entre o final dos anos 1940 e o começo dos anos 1950, quando artistas como Joe Harriott, Harold McNair e Dizzy Reece, todos eles ex-alunos da Alpha Boys’ Scholl, foram para aquele país. O calypso também foi introduzido na Inglaterra por meio da imigração caribenha e conquistou ainda mais popularidade no final dos anos 1950, quando Harry Belafonte causou furor nos Estados Unidos. Jamaicanos e britânicos gostavam desses ritmos que embalam, que pareciam aquecer o clima, sobretudo para os imigrantes, que sofriam e lutavam contra o racismo local e o desemprego. Na década de 1960, os selos britânicos de ska começam a promover no mercado nacional músicos como Laurel Aitken, Prince Buster, Derrick Morgan e Owen Gray. A partir daí a música jamaicana finca raízes na mente dos britânicos: o público a acolhe e se apropria de seus códigos. No final dos anos 1960, tudo está pronto para a explosão do reggae dos anos 1970. Os públicos norte-americano e europeus já se encontravam suficientemente familiarizados com a música jamaicana para poder acolher o one-drop de Bob Marley, Jimmy Cliff, Peter Tosh, Black Uhuru, Burning Spear, Lee “Scratch” Perry, Augustus Pablo, Dennis Brown... e suas visões sobre a espiritualidade, a política e a condição humana.

Bateria Evans utilizada por Lloyd Knibb (1931-2011, The Skatalites), anos 2000, Jamaica Music Museum, Kingston. Foto: Marina Burity


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Painel da Alpha Boy School, 1962. Foto: Walter Bertotti

O primeiro estúdio de gravação da Jamaica foi inaugurado em as primeiras gravações da música jamaicana 1951, marcando o nascimento de uma verdadeira indústria musical na ilha. Ao longo de um processo que viria a adquirir aos poucos importantes dimensões econômicas, sociais, culturais e até mesmo políticas, alguns precursores se destacam nesse momento embrionário. Herdeiro principalmente do jazz, que já era tocado desde 1920 nos hotéis elegantes da ilha, e do mento, que ganhou espaço nas festas populares nos anos 1940, o ska, um novo som bruto e rústico, floresceu nos anos 1960. Seus principais representantes são os Skatalites, oriundos, em sua maioria, da escola para crianças em vulnerabilidade social Alpha Boys’ School. Paralelamente, os operadores dos sound systems, como Duke Reid criados nos bairros mais desfavorecidos de Kingston, tornam-se produtores, com o objetivo de garantir a exclusividade das músicas que colocam para tocar, e passam a ser as figuras mais poderosas da cena musical. Em 1964, esse fenômeno local conhece o seu primeiro hit internacional: “My Boy Lollipop”, interpretado pela cantora Millie Small. Se o sucesso de Millie acaba se mostrando passageiro, o surgimento de produtores do gueto e o aparecimento do ska – um som proveniente do downtown (onde viviam as camadas populares) e não do uptown –, embaralha novamente as cartas: a música popular de vinil Monkey Man. jamaicana teria de contar, a partir daquele momento, com novos atores, queDisco acabariam Primeiro disco da coleção de Riba Macedo. por forjar as suas novas características. Foto Walter Bertotti

Mento, jazz, ska, rocksteady:


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Anos 1970: o reino do reggae

Jean Ives Blanc, Trenchtown Rocking. Massa de modelar, madeira, cartão e espuma, 2017. Foto: Walter Bertotti

Em 1968, na canção “Do the Reggay”, de Toots & The Maytals, a palavra “reggae” aparecia pela primeira vez. Se esse novo estilo musical constitui a parte visível da música jamaicana por sua associação com Bob Marley & the Wailers, ele não é, porém, mais do que o topo de um iceberg tropical de gêneros musicais com múltiplas especificidades, mensagens e finalidades que acompanham toda uma parcela da história da ilha. Das lufadas de otimismo ao desespero político, todos os estados de espírito da Jamaica transpiram nesses estilos de música que se sucedem. Assim, a essência do reggae se exprime nos anos 1970, período em que todos os seus componentes eclodiram: a mensagem da filosofia rastafári, desde então muito influente; um som angustiado, que expressa as tensões sociais; e as letras apocalípticas, forjadas a partir dos enfrentamentos políticos sangrentos e profecias bíblicas, compondo assim um feixe único de invenções musicais e tecnológicas. No coração da minúscula Kingston – um criadouro mitológico de músicos, engenheiros de som e produtores – será concedido um passaporte mundial a uma música até então bastante local. O mundo ocidental costuma lembrar o nome de apenas um embaixador desse movimento: Bob Marley, o primeiro superstar saído do Terceiro Mundo.


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As características de uma música popular LEONARD J. MCCARTHY

A música popular jamaicana não deve ser definida apenas por suas origens. Seja ela tocada e produzida na ilha ou em qualquer outra parte do mundo, trata-se de uma música facilmente identificável, por suas características tão próprias. Síntese local de diversas práticas culturais, ela bebe muito da fonte das músicas da África Ocidental e afro-americanas. Especialmente da África Ocidental, onde música e dança são indissociáveis, ela herdou os ritmos sincopados criados para dançar – o que é a sua marca de nascença. A música jamaicana é constituída principalmente de compassos de quatro tempos, com os tempos fortes sincronizados com os movimentos do corpo que, na dança, marcam o ritmo com a batida dos pés. Seus músicos costumam recorrer ao contratempo, com base principalmente no uso de offbeats [literalmente, “fora de tempo”] ou, mais precisamente, de afterbeats: sons breves especialmente acentuados entre as contagens de tempo e que prolongam harmonicamente o tempo anterior.

Vista da exposição. Studio One. Foto: Gal Oppido

Diz-se que o Studio One está para a música jamaicana como o Motown está para a música soul americana. Esse influente estúdio desempenhou um papel fundamental na evolução dos diferentes gêneros musicais da ilha, desde a década de 1960. Criado por Clement Seymour "Coxsone" Dodd (1932-2004), em meados dos anos 1950, com o objetivo de alimentar com novas músicas o seu sound system – o Sir Coxson's Downbeat –, o Studio One passou a fabricar os seus próprios álbuns a partir de 1963, graças a seu estúdio de gravação e à sua fábrica de prensagem. Com essa autonomia, o Studio One, o primeiro estúdio dirigido por um negro na ilha, conheceu o sucesso e tornou-se um dos mais prolíficos da Jamaica – lançou a carreira de centenas de cantores e músicos lendários, incluindo Bob Marley e The Wailers, Burning Spear, Ras Michael, Alton Ellis, Ken Boothe, Horace Andy e The Skatalites.


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Squingine “Squingey” Francis na frente de uma máquina de prensagem, estúdio Channel One. 1984 © Beth Lesser

O segundo e o quarto tempo do compasso também são acentuados, em detrimento dos tempos fortes tradicionais que são frequentemente pouco acentuados, quando não simplesmente silenciados; quando a batida omite o primeiro tempo e o “deixa de lado”, reconhecemos a assinatura rítmica do estilo “one-drop”, tão típica do reggae. Normalmente, a sessão rítmica trabalha com breves frases repetitivas (os riffs), que se sobrepõem e se organizam em torno das linhas de baixo e da bateria (os riddims). Como a afro-americana, de mesma origem, a música da Jamaica conservou alguns traços de sua ancestral da África Ocidental: canções com estrutura circular, um jogo de perguntas e respostas, linhas melódicas (frequentemente em tom maior ou na escala pentatônica menor), harmonias modais ou estáticas e sequências rítmicas e harmônicas em variação constante. Ela recorre também a timbres complexos, muitas vezes qualificados como sons “crus” (rawness): são sonoridades que lembram zumbidos, distorções, e que têm alturas variáveis. Os arranjos vocais, semelhantes aos da música afro-americana, inspiram-se na fluidez dos melismas do rhythm and blues e do soul, bem como no canto mais áspero do revival nativo e do toasting praticado pelos deejays – um canto falado cuja cadência é dada pela acentuação das rimas.


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A música jamaicana também sofreu influência europeia. Ela se baseia, em grande parte, em melodias em tom maior e em harmonias ou em estruturas de canções herdadas das tradições da Europa, de onde se originam muitos dos seus instrumentos. Até meados dos anos 1970, a exemplo dos conjuntos afro-americanos, a instrumentação típica jamaicana incluía teclados, guitarras elétricas e acústicas, uma pequena seção de metais (trompete, saxofone e trombone), assim como uma bateria e percussão (mais comumente, tambores rastafáris). A partir de 1976, os sintetizadores e a tecnologia digital se impõem, fazendo muitas vezes o acompanhamento das apresentações ao vivo. Desde meados dos anos 1980, os sons digitais ocupam um lugar predominante nessa música – embora tenha se verificado, no fim dos anos 1990, um ressurgimento de instrumentos e de sons que se contrapunham à revolução digital. Dentro da música jamaicana como um todo, cada estilo tem suas próprias características. O ska, cujo tempo se situa normalmente em torno de 120 e 130 batidas por minuto, surge em 1960 e conhece um declínio em torno de 1965. Esse gênero é identificável pelo seu ritmo marcado pelo walking bass acústico, uma acentuação nos contratempos pelos metais, guitarras ou piano, seu estilo vocal emprestado do rhythm and blues e seu balanço de swing. Predominam a modalidade e as harmonias em tom maior, com recurso frequente ao jogo de perguntas e respostas. Suas percussões e seus movimentos de dança são inspirados em práticas folclóricas locais, enquanto as letras falam frequentemente – mas nem sempre – de amor. O rocksteady tem seu auge entre 1966 e 1968. Com um tempo que varia de 85 a 120 batidas por minuto, esse estilo conserva muitas características do ska, mas deixa um pouco de lado os metais, enfatizando a presença da guitarra elétrica, linhas de baixo mais presentes, compostas de um ou dois compassos, e privilegia uma pulsação em colcheias iguais. Nesse gênero musical, as influências rítmicas da África Ocidental são bem mais visíveis, com o surgimento do one-drop. Harmonia e tons menores são frequentes. Os cantores de rocksteady procuram imitar seus colegas do soul afro-americano. Quanto às letras, abordam temas variados, como o amor, os problemas sociais, a cultura rude boys, além de temas filosóficos e espirituais. O período do reggae vai de 1968 até cerca de 1984. Com um tempo lento, situado em torno de 60 e 85 batidas por minuto, esse gênero é uma derivação do rocksteady, mas com diferenças significativas: subdivisão complexa do compasso (colcheias ou semicolcheias iguais ou bem balanceadas), forte presença de percussões tradicionais, além de órgão elétrico e outros teclados. As canções possuem uma estrutura circular e utilizam mais tonalidades menores. Apoiadas em timbres vocais mais crus, as letras focam principalmente questões de justiça social e espiritualidade, em conformidade com os ideais dos rastafáris. O dancehall, surgido em torno de 1979 e ainda hoje em voga, tem seu tempo situado entre 65 e 130 batidas por minuto. Esse gênero resgata riddims do reggae e se utiliza também de gravações instrumentais, sobre as quais os deejays introduzem os vocais. A orquestração das canções em estilo dancehall costuma ser minimalista, conferindo muito destaque aos sintetizadores, mesa de som e equalizadores. Utiliza os recursos de efeitos sonoros de forma abundante, como reverbs, delays e samples. Suas letras abordam principalmente a sexualidade e problemas da vida cotidiana.


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A ressonância mundial de Bob Marley e de um pequeno grupo de artistas não deve ocultar a dimensão fortemente local do reggae. Música promovida por pequenos produtores, articulada não em torno de álbuns, mas de discos de 45 rpm, ela se revela como popular por excelência. É no coração das discotecas móveis que se instalavam nas esquinas das ruas, os sound systems, que essa música se enraíza nos anos 1950. Para atrair o público, os operadores dos sound systems estabeleciam a sua supremacia musical tocando discos raros, que eram buscados, às vezes, em Nova York. Essa corrida pela exclusividade acaba por levá-los a improvisar como produtores. Haveria outra THIBAULT EHRENGARDT forma mais segura de conseguir músicas inéditas? Isso faz com que eles venham a se aproximar de um pequeno grupo de músicos locais, em sua maioria provenientes da instituição católica Alpha Boys’ School. Assim se forma, nos anos 1950 e 1960, a cena musical jamaicana, que dá origem aos dois primeiros gêneros próprios dessa pequena ilha do Caribe: o ska, em 1962, e o rocksteady, em 1966.

Reggae, uma música para tempos turbulentos

Lion! Zion! O reggae aparece em 1968: inventivo, subversivo, desafia o poder colonialista e apregoa a “negritude” numa época em que Malcolm X e os Black Panters incendeiam os Estados Unidos e em que a venda de seus livros é proibida na Jamaica. O partido então no poder, o Jamaican Labour Party (JLP), conservador, é varrido pelos ventos das mudanças, ao mesmo tempo em que o People’s National Party (PNP), socialista, caminha em consonância com as ruas. Seu novo líder, o carismático Michael Manley (1924-1997), faz sua campanha ao ritmo do reggae e recheia seu discurso com palavras rastas. Com seu rod of correction, uma espécie de cajado que ele diz ter herdado de Haile Selassie, ele chega ao poder em 1972 e desencadeia uma euforia popular que se reflete imediatamente na música. Entre 1968 e 1972, o early reggae experimenta caminhos novos. Há quem acredite, equivocadamente, que ele se orienta no sentido de uma sofisticação à americana. Sob o impulso de pequenos produtores locais, o reggae se radicaliza e assume um caráter roots, selvagem. Em 1973, Bob Marley assina um contrato com Intervenção do veterano artista de rua jamaicano Danny a Island, mas, na Jamaica, é Coxson em Jamaica, Jamaica! Foto Marina Burity


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Big Youth (nascido Manley Augustus Buchanan, em 1949) quem dá o tom. Moleque de rua, Big Youth grita “Lion! Zion!” aos ouvidos do establishment, clama pela destruição do Papa e pelo advento do Homem negro – uma irrupção que se torna ainda mais estrondosa, pelo fato de Big Youth ser um deejay e não um cantor. Entre o canto e a fluência da fala, esse estilo, revelado por Ewart “U-Roy” Beckford, nasce dentro do sound system. Inicialmente para introduzir, animar e comentar as canções, esse toasting se torna, depois do pioneiro Count Machuki e do fundador U-Roy, uma característica essencial do reggae e um elemento dominante no dancehall que o sucederá.

Politricks Big Youth, Bob Marley e uma geração inteira de artistas divulgam um discurso rasta assumido e socialmente reconhecido. “Mr. Brown”, o representante da classe média que abraça valores ocidentais, fica horrorizado ao ver suas filhas se aproximarem dos rastafáris. Ao menos superficialmente, é uma vitória social sintomática da abolição, da luta das “raças” sob o governo de Manley. Nesse período, os políticos promovem um braço de ferro nos bairros de Kingston transformados em “fortalezas” armadas. Os senhores da guerra atuam com total impunidade, protegidos por suas relações de alto nível. Como Marcus Garvey havia previsto, o caos e o terror tomam conta da Jamaica. Os rastafáris veem a ilha como uma caixa de ressonância bíblica – o retorno do Cristo negro, Rastafári, desencadeou o Apocalipse. E, enquanto Babilônia afunda, o Homem negro deve se unir, fugir daquelas “areias movediças”, para retornar à África e cumprir o seu destino. Longe do peace and love dos hippies, o reggae prega a necessária união entre os negros que matam uns aos outros sob a influência perniciosa da Babilônia, tendo o repatriamento como horizonte.

Red Jamaica Líder da oposição trabalhista, Edward Seaga (nascido em 1930) detecta as fragilidades do obscuro programa social democrata do PNP e o vincula ao comunismo. Em plena Guerra Fria, sua descrição alarmista de uma ilha prestes a se tornar “vermelha” (Manley aproximara-se, então, de Fidel Castro) preocupa os Estados Unidos. A desestabilização torna-se a principal arma do JLP. Intimidação, guerras supostamente tribais, atentados –a Jamaica parece a ponto de explodir. Enquanto a CIA se instala nas Antilhas, os turistas desaparecem do país, visto como impossível de frequentar; a economia despenca. Então, quando Bob Marley, em seu 45 rpm “Smile Jamaica” (1976), canta uma Jamaica onde tudo convida a “sorrir”, várias interrogações são colocadas. Estaria o astro dando um apoio declarado ao PNP? A resposta não demora. À véspera de um concerto organizado em parceria com o governo, um grupo de pessoas (pro-

Barrington Watson, Michael and Fidel,. 1977 - Óleo sobre tela - Coleção A. D. Scott / The National Gallery of Jamaica, Kingston. Foto: Gal Oppido.


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vavelmente aliciadas pelo JLP) invade sua casa e tenta assassiná-lo. Mesmo para alguém que tinha o talento de Bob Marley, a partir daí se tornava de fato difícil encontrar algum motivo para sorrir.

A morte do Deus vivo Em 1974, o Negus da Etiópia, o imperador Haïle Selassie I, é tirado do poder por um golpe de estado comunista e aprisionado logo em seguida. Ele morre cerca de um ano após sua queda, em 27 de agosto de 1975, em circunstâncias obscuras. O mundo rasta perde o seu Deus; além de tudo, um Deus “vivo”, ao contrário do Deus “morto” dos cristãos. Com a música “Jah Live”, Bob Marley salva o rasta do naufrágio, projetando-o para a eternidade. A dimensão emocional de sua canção cala os “cães estúpidos que ladram atrás do pássaro em pleno voo”, mas a morte de Selassie perdura como um mistério teológico. Durante esse período, os estúdios continuam lotados. A situação econômica e social da Jamaica inspira milhares de gritos de sofrimento e de raiva. A tecnologia dos anos 1970 leva à união de talentos. InstrumenKim Gottlieb-Walker. Bob Marley nas obras de reforma de sua casa tistas, cantores e produtores veem-se em Hope Road, 1975, Kingston, Jamaica. © Kim Gottlieb-Walker numa relação de interdependência: a necessidade gera a excelência. Geralmente, os riddims [uma apropriação local da palavra “ritmos”] são gravados no mais recente estúdio da moda, o Channel One. Criado pelos irmãos Hookim e instalado na Maxfield Avenue desde 1973, ele propõe um som próprio e contemporâneo que não podia mais ser ignorado. Mas os custos levam os produtores a fazer a gravação das vozes no gueto de Waterhouse, onde Osbourne “King Tubby” Ruddock (1941-1989), um engenheiro altamente capacitado, havia construído uma cabine de som no fundo do seu quintal. Ele é um dos criadores do dub, estilo musical cujas invenções alimentarão em boa parte, anos depois, a música eletrônica. Tudo começa com um erro, cometido por um engenheiro de som, que esquece a pista das vozes em uma canção. O resultado, reproduzido em um sound system, provoca entusiasmo. O fenômeno então se firma, já que é bom para todos: os deejays, que mergulham nesse caminho artístico; os produtores, que economizam ao propor um lado A instrumental e um Lado B com singles (antes eles tinham de produzir uma segunda canção); e os engenheiros de som, que se infiltram nesses meandros à base de efeitos sonoros e remixagens para criar um importante domínio da música contemporânea – o do dub.


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One Love Peace Concert Enquanto os confrontos políticos se aguçam após a reeleição de Manley em 1976, o reggae obtém o reconhecimento internacional, graças a Bob Marley. Ele próprio, porém, não pode se afastar por muito tempo da realidade jamaicana, sob pena de ver sua música perder substância. Sua casa, no número 56 da Hope Road, é frequentada tanto por artistas quanto por pequenos meliantes ou perigosos chefes de gangues, como Claudie Massop. Este último, um dos líderes das milícias do JLP, possui carisma e ambição. Em 1978, depois do massacre de Green Bay – uma operação secreta realizada em 5 de janeiro pelas forças especiais do governo, durante a qual cinco membros do partido trabalhista jamaicano foram mortos –, ele assina um acordo de paz com as facções do PNP. Os políticos são pegos de surpresa por esse movimento espontâneo que se forma em torno da música em um concerto histórico que marca a volta de Bob Marley do exílio, o One Love Peace Concert. O astro convida Manley e Seaga a trocarem um aperto de mãos em pleno palco. “Eu deveria ter matado os dois”, dirá mais tarde. Tudo não passava de uma farsa – a paz não fazia parte da agenda de Seaga. Ela se deteriora rapidamente e a eleição de 1980 fará mais de oitocentas vítimas. O reggae, porém, celebrou a paz sem segundas intenções; apenas participou dessa breve vitória da razão. Durante alguns refrãos e alguns chalices [espécie de cachimbo para maconha, à base de água], as pessoas passaram a sonhar. Mas as últimas esperanças de paz foram enterradas com Massop, morto a tiros pela polícia alguns meses depois. A Jamaica não pôs um fim à guerra, e a pequena “ilha sob o sol” cantada por Harry Belafonte transforma-se em um caminho de pedras cheias de sangue. É esse o ambiente do reggae, sombrio e tenebroso, que repousa sob o céu surdo do Antigo Testamento e dispara anátemas contra o rosto da Babilônia, mas que, no fundo, resume-se a um grito de dor lançado pelos sufferers, aqueles que sofrem no inferno tropical, presos nas armadilhas das vergonhosas artimanhas de políticos desonestos.

“How long shall the wicked reign?” Edward Seaga chega ao poder em 1980, depois de oito anos de um sonho socialista que se transformou em pesadelo. Sua vitória, manchada por terríveis enfrentamentos, é esmagadora. Sinal dos tempos: Bob Marley morre em 1981, deixando o reggae órfão e a Jamaica nas mãos dos “wicked”, os “maus”. O pragmático Edward Seaga, depois de soltar um “Jah Rastafari!” junto ao caixão do artista, expressa publicamente já estar cansado daquela música de “falsos profetas”. Em outras palavras, o reggae militante teria de diminuir o seu volume. Nos guetos, onde os poderes do novo dono da Jamaica são bem conhecidos, a mensagem repercute e a música, golpeada, volta-se para dentro de si e passa a se concentrar nas preocupações mais prosaicas do gueto. Nos sound systems, o som se torna mais diluído, as letras são nitidamente mais leves, para não dizer indecorosas, com a explosão de um gênero musical sexualmente explícito surgido no final dos anos 1970, o slackness. A década de 1980, anos da cocaína e do dinheiro, começa na Jamaica com um pano de fundo de miséria social e corrupção. Um Deus morto, uma luta social perdida, um “profeta musical” sepultado: o reggae rasta parece ter chegado ao seu limite. Mas a Babilônia nunca conseguiu erradicar as souls rebels, as almas rebeldes presentes entre aqueles que foram escravizados. O reggae dos anos 1970 foi apenas um dos vários rostos assumidos por essa expressão de revolta. “Nós somos os sobreviventes”, cantava Bob Marley – “Os sobreviventes negros”.


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Bob Marley (1945-1981), Peter Tosh (1944-1987) e Bunny “Wailer” Livingston (nascido em 1947) são os fundadores da banda mais famosa da Jamaica: The Wailers. Bob Marley era filho de Cedella Malcolm, uma negra jamaicana de dezoito anos, e de Norwal Marley, um jamaicano branco originário da Grã-Bretanha, próximo dos cinquenta anos de idade – um homem sem laços, renegado por sua família e que rapidamente abandonou Cedella e Bob. A criança era dotada, desde cedo, de uma aura mística: aos quatro anos, dedicava-se a ler o futuro nas linhas das mãos. Conta-se que, doze anos antes de sua morte, ele teria previsto o ano em que ela ocorreria. Bob e Peter passaram a infância no campo, e Bunny, nas ruas do gueto de Trenchtown. Bob tinha onze anos quando sua mãe se mudou para a capital para morar com o pai de Bunny, então um menino de oito anos. Tratados como irmãos, conheceram Peter apenas no fim da adolescência, quando ele também passou a viver em Kingston. Aos catorze anos, Bob começou a seguir os ensinamentos de Joe Higgs. Entre o final dos anos 1950 e o começo dos anos 1960, esse famoso cantor não pouparia conselhos a vários jovens artistas, o que lhe valeu o apelido de “pai do reggae”. Em 1963, Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Livingston criaram The Wailers. Com produção de Clement “Coxsone” Dodd, gravaram uma primeira canção no Studio ROGER STEFFENS One no ano seguinte. “Simmer Down” tornou-se um sucesso imediato: número 1 nas rádios, vendeu mais de 80 mil cópias. A partir daí, The Wailers não saíram mais das paradas musicais e acabaram ocupando quase todo o Top 10, com cinco músicas suas. Foi nessa época, em plena idade do ouro do ska, que eles ganharam o apelido de “Beatles jamaicanos” e se tornaram rastafáris, influenciados pela visita oficial de Haile Selassie ao país. Descontentes com os valores irrisórios que Dodd lhes pagava, o grupo criou o seu próprio selo: Wail’N Soul’M. Entre 1966 e 1970, os Wailers lançaram por esse selo uma série de

Bob Marley, Peter Tosh, Bunny Wailer: os Wailers conquistam o mundo

Vista da exposição. Equipamentos Studio One. Foto Gal Oppido


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músicas nos estilos rocksteady e early reggae, com um sucesso limitado. Em seguida, trabalharam com o produtor Leslie Kong – uma parceria abortada pela morte prematura de Kong – e se associaram, depois, ao excêntrico Lee “Scratch” Perry. Seu contrato previa cinquenta títulos, que Perry venderia, em sua maior parte, ao selo britânico Trojan Records. As produções de Perry se distinguem pelo uso de uma tessitura simples em seu estilo drum and bass, em que baixo e bateria ganham maior destaque. Muitas delas seriam retrabalhadas nos anos 1970 com concepções instrumentais mais sofisticadas. O relacionamento, porém, logo se deteriorou, quando Perry se negou a compartilhar os lucros das vendas. Em 1970, o grupo criou um novo selo: Tuff Gong. De 1968 a 1972, os Wailers se ligaram, paralelamente, à gravadora JAD Records, dirigida Intervenção artística de Danny Coxson retratando Joe Higgs, Carlton Barrett, Bob Marley e Family Man. Foto: Gal Oppido pelo astro pop norte-americano Johnny Nash e seu sócio, o gângster Danny Sims. Este acabou cedendo o contrato deles para o criador do Island Records, Chris Blackwell, que os distribuiu nos Estados Unidos, rotulando-os como um grupo de rock. Os dois primeiros álbuns dos Wailers, lançados em 1973, ‘Catch a Fire e Burnin’, foram elogiados pela crítica, mas pouco venderam. Bob Marley compôs a maior parte de suas canções, o que gerou alguns atritos entre os integrantes do grupo, todos eles autores e compositores. À véspera de conquistar o reconhecimento internacional, os Wailers se separaram.Bob Marley obteve sucesso excepcional em sua carreira solo e ocupou os primeiros lugares nas paradas britânicas com sucessos como “No Woman No Cry”. Blackwell fez o tratamento das canções, enriquecendo-as com o acréscimo de guitarras solo ou com arranjos mais sofisticados. Em dezembro de 1976, Marley escapou por pouco de uma tentativa de assassinato. Para seu público, o acontecimento conferiu a Bob uma verdadeira aura de xamã. Exilado na Inglaterra, retornaria à Jamaica somente em abril de 1978, para fazer uma apresentação histórica no One Love Peace Concert. Naquela noite, reuniu no palco os líderes dos dois principais partidos políticos da Jamaica – por essa ação, ele receberia mais tarde a Medalha da Paz no Terceiro Mundo, atribuída pela ONU. Marley ainda presidiu as cerimônias de celebração da independência do Zimbábue, em abril de 1980, e 110 mil pessoas compa-


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receram para ouvi-lo em Milão, em junho do mesmo ano, antes que um câncer o levasse à morte em maio de 1981. A Jamaica lhe proporcionou um funeral com honras de Estado, o mais importante de toda a história do Caribe. Para Jack Healey, diretor da Anistia Internacional, o cantor encarnava um ideal moral: “Em todo o mundo, por onde quer que eu passe, o nome de Bob Marley ressoa como um símbolo da paz”. Ante a militância conciliadora de Marley, Peter Tosh surgia como a figura de um Malcolm X. Em seus discursos, suas bravatas cheias de lirismo, somadas aos seus dois metros de altura, lhe conferiam uma reputação de personalidade com uma inclinação para a provocação. Grande trocadilhista, seus discursos eram muitas vezes contundentes, seja denunciando os falsos amigos que “no final fritam você” (“That’s what they will do/They will come with great pretense/To gain your confidence/They’ll take you round the bend/ And fry you in the end“); o “shitstem” (“a fonte de todos os nossos problemas”); ou, ainda, a política, “politricks”, deturpada pelas trapaças [tricks] dos políticos. Formado dentro do fundamentalismo cristão, ele é conhecido sobretudo por seu infatigável combate em favor da legalização da maconha, que lhe valeu o apelido de “Bush Doctor”. O álbum Equal Rights, de 1977, é considerado seu melhor trabalho. Nele, Tosh denuncia, em especial, a segregação racial em vigor na África do Sul, na canção “Apartheid”. Em 1978, os Rolling Stones o contratam para o seu selo e Tosh passa a participar de grandes concertos de rock, com estádios lotados. Circula, então, pelo mundo todo, até se ver obrigado a Em primeiro plano à esquerda, cartaz do icônico álbum de Peter Tosh Legalize it. se aposentar precocemenAo lado a guitarra e abaixo manuscritos do artista. Foto: Gal Oppido. te, depois de ser espancado por policiais. Depois de quatro anos de silêncio, quando decide voltar aos palcos com seu novo álbum, No Nuclear War, Tosh é assassinado a tiros em sua própria casa, em 11 de setembro de 1987. Apesar de seu grande sucesso, Tosh nunca chegou a ter o mesmo reconhecimento que Bob Marley. Sua atitude combativa e as posições radicais que defendia em suas canções talvez tenham impedido que isso acontecesse. Bunny Wailer lançou seu primeiro álbum solo em 1975. Blackheart Man mostra o lado espiritual desse artista, que foi entronizado como o “grande pregador do reggae”. Há quem veja seu trabalho como o de maior profundidade meditativa na história do gênero. Bunny viveu recluso entre 1975 e 1982, recusando-se a tocar nos palcos, mas, mesmo assim, exerceu forte influência, em especial com seu álbum Rock n’ Groove, no estilo dancehall, que se tornou uma referência. Ele prossegue até hoje com sua carreira internacional. Esses três integrantes dos Wailers sedimentaram as bases de uma música jamaicana engajada. Tosh, o rebelde; Marley, o mediador; e Bunny, o pregador: a santíssima trindade do Verbo, da Música e do Poder.


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Lee “Scratch” Perry, um agitador genial DAVID KATZ

Xavier Veilhan Lee “Scratch” Perry - 2015. Foto: Walter Bertotti

Lee “Scratch” Perry é uma das mais importantes figuras criativas da Jamaica. Sua contribuição para a evolução do reggae é imensa, e seu estúdio, o Black Ark, exerceu uma influência que foi muito além das fronteiras da ilha e de sua música. Nascido em 1936 numa localidade distante e batizado com o nome de Rainford Hugh Perry, ele se mudou para Kingston em 1961, “levado por vozes divinas”. Os operadores de sound systems estavam apenas começando a reunir os talentos locais, quando Perry se juntou a Clement Dodd, figura já então influente na cena jamaicana e que criaria logo depois o seu selo Studio One. Entre 1961 e 1966, Perry cantou mais de trinta das produções de Dodd, trabalhou como caçador de talentos e supervisionou os testes, contribuindo, assim, para a implantação do ska como um gênero musical completo. Depois de se tornar produtor, participou do advento do rocksteady e formou parcerias passageiras com alguns dos maiores artistas da época, como Prince Buster, Clancy Eccles e Joe Gibbs. Finalmente independente em 1968, fundou seu próprio selo, o Upsetter [“Agitador”], com o qual lançou o sucesso “People Funny Boy”. Com seu ritmo acelerado e irregular, essa canção se diferencia da sonoridade rocksteady, então reinante no cenário musical, e se coloca em boa posição na corrida pelo título de primeira produção de reggae. Em 1969, a música instrumental “Return of Django” prenuncia o dub e leva Perry à Grã-Bretanha. Ao retornar à Jamaica, em 1970-1971, ele produz com os Wailers dois marcos da história do reggae: os álbuns Soul Rebels e Soul Revolution. Uma versão instrumental deste último, Soul Revolution II, marcará uma nova etapa na evolução do dub.


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Perry criou o Black Ark em 1973, no quintal de sua casa, na periferia de Kingston. Esse estúdio minúsculo, equipado com um console de quatro canais, transformou-se em um epicentro criativo quando Perry ali produziu Blackboard Jungle Dub, um dos primeiros álbuns de dub. O produtor forjou uma sonoridade única, com a ajuda de alguns equipamentos: o Mu-Tron Bi-Phase, um pedal de efeitos de phaser; o Roland Space Echo, um pedal de efeitos emulador de reverbs; e o Grantham Spring Reverb, uma unidade de reverbs de molas. A sonoridade do Black Ark provém de efeitos difíceis de classificar e de imitar, como a famosa “vaca mugindo” [“mooing cow”]. Com suas versões experimentais e refinadas, Perry levou o reggae ao seu limite máximo. No final, o estúdio era frequentado pelos líderes das correntes mais esotéricas da fé rastafári, em especial os integrantes da Nyahbinghi Theocracy. O contrato assinado por Perry com a Island Records deu origem a grandes sucessos: “War In A Babylon”, de Max Romeo; “Police and Thieves”, de Junior Murvin; e, ainda, sua própria coletânea dub, Super Ape, lançada em 1976. A maior parte dessas produções obteve mais sucesso no exterior do que na Jamaica, pois ali elas pareciam distantes das sonoridades que então prevaleciam. Uma sucessão de dificuldades pessoais e de divergências doutrinárias com seus colegas rastas acabou por provocar mudanças no comportamento de Perry, que se tornou mais errático ainda. Dessa crise, ele saiu ostentando uma nova paixão – o grafite criptografado –, e um novo alter ego, “Pipecock Jackson”. Obrigado a fechar seu estúdio, “Scratch” produziu alguns álbuns avulsos, aqui e ali. Em 1983, o Black Ark pegou fogo, misteriosamente. Perry se exilou, então, na Inglaterra, onde passou deprimido os anos de 1980, antes de se instalar na Suíça com sua mulher Mireille Campbell. Desde essa época, passou a viajar muito, como um nômade, lançando produções bastante irregulares em colaboração com artistas díspares entre si, como Adrian Sherwood, Mad Professor, Beastie Boys, Keith Richards e muitos outros.

Unidade de reverberação Gramplan tipo 636, com mola, Gravador Sony, Câmara de eco Roland Space Echo RE 201, console de mixagem Soundcraft Series 1s: Modelos idênticos aos utilizados por Lee Perry no estúdio Black Ark nos 1970. Muselec/Klaus Blasquiz. Foto: Gal Oppido


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Arte original criada para exposição de Tony McDermott. Foto: Gal Oppido


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Intervenção do veterano artista de rua jamaicano Danny Coxson em Jamaica, Jamaica! Foto: Gal Oppido


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Black man time:

música jamaicana e consciência negra

Até o século XIX, o Reino Unido deportou milhares de africanos para suas colônias nas Américas, os quais nunca se resignaram a ver suas vidas resumidas meramente à condição de escravizados. Durante séculos, os exemplos de resistência desse povo formaram uma consciência popular jamaicana em torno de grandes personalidades do orgulho negro – e pela presença mítica de sua terra de origem, a África. Desde os séculos XVII e XVIII, a história das comunidades maroons – constituídas por aqueles que escapavam da escravidão –, representada por sua temida chefe guerreira Nanny (Imagem de Nanny), alimentou a tradição jamaicana de rebelião. Ela persiste no século XIX com os líderes das grandes revoltas daqueles que eram escravizados, que levarão à abolição de 1838, e se prolonga também no século XX, com duas figuras emblemáticas: Marcus Garvey (1887-1940), intelectual jamaicano que acabou se tornando um dos grandes líderes do pan-africanismo internacional, e Haile Selassie I, o imperador da Etiópia, personalidade da luta pela independência africana, divinizado pelo movimento rastafári. Na música jamaicana, todos esses nomes são carregados de sentido: orgulhosos, anticolonialistas e antiescravagistas, eles integram a essência do discurso dessa música rebelde do Caribe.

Vista da exposição, Núcleo Black Man Time. Em primeiro plano, a maquete de Dudley Irons, Black Star Line, 1995. Feita de Palitos de fósforos, tecido, metal, vidro e plástico. Foto: Walter Bertotti


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A língua da Jamaica reflete a diversidade das línguas faladas antigamente na costa da África Ocidental e nos territórios caribenhos colonizados pelos países europeus. Sua gramática e seu vocabulário exprimem a pluralidade de suas origens. As transformações linguísticas – sejam elas provenientes da oralidade rasta ou da gíria associada à juventude, ou até mesmo um simples testemunho de uma evolução mais geral da língua jamaicana – expressam a enorme criatividade que o povo jamaicano possui no trato de seu idioma. HUBERT DEVONISH Desde que surgiu, a música popular da ilha é cantada tanto em inglês como em jamaicano. Nos anos 1960, predominava o inglês, sob a influência do rhythm and blues. O jamaicano ficava reservado, então, para o folclore ou para canções que se inspiravam nele, utilizando alguns de seus temas ou expressões. No fim dos anos 1960, o reggae, então recém-nascido, preservou essa tradição. A canção “Dem Belly Full”, de Bob Marley & the Wailers, reinventaria esse modelo em 1974 – seu refrão, cantado em jamaicano, constitui um comentário de caráter social expresso numa língua “folclórica” (o patwa) e se impõe como sabedoria popular, enquanto seus versos em inglês expõem os efeitos da alta do custo de vida: “Rich and poor they start to cry” [Ricos e pobres começam a protestar] ou, ainda, “Now the weak must get strong” [Os fracos agora precisam ser fortes]. Nos anos 1980, é o dancehall que emerge na cena musical. Suas canções são “faladas”, mais do que cantadas, e o jamaicano, sua língua de expressão, predomina naturalmente nesse gênero. Por meio do dancehall, o jamaicano torna-se – e talvez ainda seja—a língua oficial das artes no país, estimulando uma consciência nacional crescente desde que a ilha obteve sua independência, em 1962. Nesse terreno, as técnicas de gravação e as tecnologias a elas associadas desempenharam um papel semelhante ao da invenção da imprensa no estabelecimento das línguas No final do século XIX, oprocesso de vernáculas (como o inglês, o francês ou o espanhol) mestiçagem (com a “creolização”) leva ao no fim do século XV, bem como ao da constituição dos desenvolvimento de diferentes dialetos Estados nacionais, cujas identidades foram definidas, e línguas. Objeto de orgulho identitário, em parte, graças à literatura impressa nessas líno créole da Jamaica, chamado de patwa guas. As gravações da música popular jamaicana, de [dialeto], é uma dimensão essencial da Millie Small a Shabba Ranks, Vybz Kartel e Chronixx, música. Louise Bennett (1919-2006) é passando por Bob Marley, forjaram uma verdadeira uma das primeiras a impor essa língua na poesia e na música. Verdadeira emlinguagem artística, engendrando uma literatura baixadora, etnóloga apaixonada, “Miss oral que glorificou a língua nacional e cimentou a Lou” trabalha pelo reconhecimento do consciência do povo da Jamaica independente. Dessa patwa, com seus milhares de ditos meforma, a música popular venceu a batalha iniciada tafóricos, que desperta a curiosidade do desde o pós-guerra, levando o jamaicano a ser recomundo todocom a explosão internacionhecido como língua artística e nacional. nal de Bob Marley.

Língua jamaicana, gírias e identidade nacional


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No fim dos anos 1950, os donos de sound systems – Duke Reid, Sir Coxsone e Prince Buster – lançaram um fenômeno social e cultural que perdura até os dias de hoje. Alguns anos antes de a Jamaica obter sua independência, os “Big Three” e seus sucessores instituíram uma aristocracia comunitária que forjou a identidade nacional da Jamaica, bem como sua cultura popular. O sound system jamaicano é descrito frequentemente como uma discoteca móvel. Ele requer material de sonorização apropriado e de grandes dimensões, uma equipe de técnicos talentosos capazes de fazer esse equipamento funcionar, e uma seleção musical específica que reflita a sua “vibração” [vibe], definida pelos seus proprietários e seus operadores. Seus membros mais visíveis são os DJs [selectors], que selecionam as músicas, e os deejays, que se apresentam improvisando com vocais que se sobrepõem às músicas que são tocadas [toasting]. Count Machuki, considerado o primeiro desses animadores, U-Roy ou ainda Yellowman, que atuaram nos anos 1970 e JOSHUA CHAMBERLAIN 1980 respectivamente, estão entre os deejays mais influentes. Ainda hoje, todo deejay de dancehall tem de passar inicialmente pelo teste de um sound system. É no exercício dessa prática que os artistas jamaicanos desenvolveram técnicas de performance que acabaram por se impor, mais tarde, no cenário internacional. Na origem, as experiências dub de King Tubby e o estilo singular do deejay Count Machuki eram dirigidos apenas à sua comunidade de seguidores. O fenômeno dos sound systems acabou por desempenhar um papel essencial no seio da sociedade jamaicana, delineando a maneira como música e entretenimento são ali vivenciados. Para muitos jamaicanos, é por meio do sound system que se dá o engajamento junto à comunidade. Dessa forma, Bass Odyssey é considerado hoje como o som “country” por excelência, em referência às suas raízes rurais, Jammy’s é associado ao bairro de Waterhouse, em Kingston, assim como o Count C Sound System representava Denham Town nos anos 1960. Os sound systems populares reúnem seus admiradores todas as noites, especialmente a comunidade negra, para a qual eles são, de alguma maneira, a “voz do povo”, o “Gleaner falante”, numa referência a um dos principais jornais jamaicanos. Em 1973, um estudo sobre os bairros menos favorecidos encomendado pelo primeiro-ministro Michael Manley afirmava que “toda comunidade deveria dispor de um dance hall e de um sound system”.

Sound System, a voz do povo jamaicano

O cantor do Youth Promotion, Satan, em um estúdio de gravação improvisado, na loja de discos L&M, 1987© Beth Lesser


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Com o surgimento do dancehall no começo dos anos 1980, um novo símbolo explode em cena: a Dancehall Queen [Rainha do Dancehall]. Ela adota vestimentas extravagantes e sensuais, em coreografias eróticas e espetaculares. Por encarnar uma dimensão crucial da atual música jamaicana, ela se transforma em modelo para o seu público feminino, cristalizando algumas das controvérsias existentes em torno desse novo gênero musical. Se alguns denunciam a vulgaridade, a obscenidade e a misoginia supostamente transmitidas pelo dancehall, outros veem nele uma expressão da reivindicação de emancipação das mulheres no seio da sociedade jamaicana. O fenômeno da Dancehall Queen tem seus fundamentos numa cultura de dança proveniente do continente africano e estabelecida há muito tempo na Jamaica. As danças afro-jamaicanas tradicionalmente religiosas que inspiraram variantes laicas – Jonkonnu, Burru, Goombay, Dinki-mini ou Gerreh – e CAROLYN COOPER os movimentos vigorosos da bacia que lhes são peculiares encenam rituais de fertilidade que lembram a procriação. A fronteira inflexível entre o profano e o sagrado na cultura ocidental muitas vezes se dilui nas concepções menos rígidas de identidade elaboradas na África, assim como em sua diáspora.

Dancehall Queens: emancipação pela feminilidade

Vista da exposição. Núcleo Dub it yourself. Ao fundo intervenção artística de Danny Coxson. Foto: Gal Oppido


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Na cultura popular jamaicana, um corpo feminino que dança pode ser visto como uma manifestação contemporânea de valores tradicionais que celebram o poder reprodutor da mulher. A Dancehall Queen, em particular, pode ser interpretada como um arquétipo feminino da energia procriadora. Mesmo quando dança sem um parceiro masculino, a Rainha do Dancehall encarna a fertilidade. O controle que exerce sobre seu corpo flexível lhe permite dançar equilibrando-se sobre a cabeça, com as pernas abertas, revelando ostensivamente uma sexualidade assumida. A competição entre as rainhas do dancehall pertence à cultura jamaicana do clash [embate/choque], que opõe partidos políticos, sound systems ou deejays. As celebridades femininas do dancehall assumiram essa continuidade. Seus principais atributos são um corpo sedutor e um controle total da dança. Para manter o seu título, a Dancehall Queen também precisa desempenhar o seu papel de ícone da moda e exibir com todo o glamour as suas roupas exuberantes e feitas sob medida. Em 1992, Carlene Smith venceu o clash Uptown X Dancehall, uma competição com aspectos de espetáculo de moda, e foi coroada Rainha do Dancehall. Depois disso, apareceu em vários clipes musicais, como o que foi filmado para a canção “Nuff Gal”, de Beenie Man, além de emprestar sua imagem para marcas associadas ao mundo do entretenimento. A campanha publicitária organizada para o primeiro preservativo produzido na própria Jamaica, o Slam, também foi reforçada pelo apoio de Carlene. Nas décadas seguintes, várias foram as rainhas do dancehall que emergiram desse movimento. Algumas delas foram catapultadas para a fama graças ao International Dancehall Queen Contest, promovido por Brian “ Bighead” Martin. Concorrentes vindas de todas as regiões da Jamaica e de outros países – Canadá, Alemanha, Itália, Polônia, Eslováquia, Espanha, Suécia, África do Sul, Estados Unidos e Japão, entre outros – vão anualmente a Montego Bay por ocasião desse concurso extremamente concorrido. A música popular acabou por se apropriar internacionalmente do fenômeno da Dancehall Queen. Uma demonstração disso é a forma como o twerking alastrou-se no mundo todo. No decorrer dessa competição, as rainhas do dancehall apresentam danças extremamente erotizadas, levantando a questão da representação pública do corpo feminino. A “vulgaridade” de seus movimentos de quadril desafia as noções cristãs de um comportamento feminino adequado, produzindo um novo clash: o da espiritualidade africana em oposição à religiosidade europeia. Como destaca o título do documentário Bruk Out!, sagrar-se Rainha do Dancehall é algo que se assemelha a uma “erupção”. Para as seis concorrentes do International Dancehall Queen Contest 2014, que acompanhamos na tela, trata-se de uma liberação declarada, tão literal como simbólica, do jugo da violência. É a mesma mensagem transmitida pelo filme Dancehall Queen, de 1997. Nele, aparece Marcia, sua heroína, em embate com a opressão e a miséria, das quais procura se libertar encarnando uma personalidade do dancehall. O filme estimulou Alevanille, a vencedora italiana das edições de 2007 e 2014 do concurso internacional, a se aprofundar no estudo dessa forma de dança artística. “Na Itália, ninguém dava atenção a isso”, diz ela. “Fui então para a Jamaica e foi algo mágico. Essa dança me libertou. Eu podia exprimir com ela todo tipo de emoção. Não só sensualidade, mas também humor ou violência.” Ser Rainha do Dancehall diz respeito, essencialmente, a uma reivindicação: emancipação!


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Em 1984, a fotógrafa canadense Beth Lesser viaja a Kingston para registrar a situação da ilha na era pós-Bob Marley. Ela descobre nos guetos da cidade um alegre movimento de renovação musical em torno do estilo rub-a-dub, que se opera fundamentalmente por meio de sound systems como Volcano, King Jammy’s Super Power, Black Scorpio, Youth Promotion e Stur-Mars. Novos e extravagantes heróis puseram em destaque na cena musical o rub-a-dub – uma revolução ao mesmo tempo musical, gráfica e de vestuário –, que permitiu que Kingston vivenciasse o único luto possível para uma morte como a de Bob Marley: um renascimento musical.

Rub-a-Dub Style

Beth Lesser, El Figo Barker na frente do sound system Volcano, 1984 © Beth Lesser


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Beth Lesser, El Figo Barker na frente do sound system Volcano, 1984 Š Beth Lesser


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Beth Lesser, U U Madoo na frente do Skateland, 1987 Š Beth Lesser


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Miguel Salvatore, LGBTs nos bailes 1 - Jimmy the Dancer, Dubsessions, São Paulo 2017

Mistério sempre há de pintar por aí: um olhar sobre a trajetória do reggae no brasil CAIO CSERMAK E RODRIGO BRANDÃO

Poucos anos depois do seu surgimento na Jamaica, o reggae começa a chegar no Brasil, sempre por fora dos circuitos oficiais da produção musical e da alta cultura. Filho de uma mescla que vai de gêneros nativos do Caribe – como o mento, o calypso e os burru drums -, música negra norte-americana – em especial o jazz, o soul e o rhythm & blues – com o som da Jamaica urbana de então – notadamente o ska -, o reggae foi o primeiro filho da diáspora negra nascido de fato no Terceiro Mundo a chegar ao centro da cena pop internacional e lá se manter até hoje. Não por acaso, já nasceu mirando uma mítica África ancestral, personalizada em Hailé Selassié – imperador da Etiópia de 1930 a 74 - e baseada no pensamento do militante negro caribenho Marcus Garvey. Se o retorno físico à África pregado pelos rastafáris não aconteceu, o reggae penetrou pelas várias Áfricas existentes nas Américas e ali encontrou morada. Não é um exagero dizer que o ritmo - e todo o imaginário nele contido - tenha trilhado um caminho natural até outros portos pretos do Atlântico, muitos deles no Brasil. Este trajeto, no entanto, não foi livre de obstáculos e levou muitos anos até chegar ao coração da indústria fonográfica e dos meios de comunicação.


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Vista da exposição. Mistério Sempre há de pintar por aí: Um olhar sobre a trajetória do reggae no Brasil. Foto: Gal Oppido

Jamaica, Brasil – Estrada natural Em poucos anos o reggae passou de uma música estrangeira ignorada pela mídia e pela indústria cultural para um dos gêneros musicais mais importantes das periferias brasileiras, hoje apelidadas carinhosamente de ‘quebradas’ pelos seus moradores. Qual seria, portanto, a explicação para o reggae ter chegado com tanta força ao Brasil e por aqui florescer, com sua postura subversiva e messiânica, justamente nos anos de chumbo da Ditadura Militar? As respostas para esta questão são muitas, mas convergem para um mesmo e longo processo: a reaproximação entre os povos da diáspora africana espalhados pelo mundo, reaproximação esta que tem na música um fator fundamental. Além disso, como é comum nos processos que nos chegam através da história oral, os começos são muitos: o reggae aparece aqui e acolá nas sombras da cultura oficial e muitos anos se passam até que uma massa regueira se conecte em uma rede que, apesar das diferenças locais, ganha proporção nacional, com músicos, grupos, DJs e sound systems que carregam enormes audiências por onde passam. Até aí, foram quase duas décadas nas quais o reggae se desenvolveu de forma completamente independente no Brasil.

São Luís Do Maranhão – A era das radiolas Os primeiros ecos da música jamaicana no Brasil vêm de São Luís, capital do Maranhão. Nela, o reggae chegou por dois caminhos: a princípio pelas ondas curtas dos rádios amadores que captavam estações caribenhas na Ilha de São Luís, voltada para o Mar do Caribe; o segundo foram os portos de Itaqui, no Maranhão, e de Belém, no Pará, nos quais marinheiros traziam toda sorte de objetos para serem trocados no submundo da vida noturna em torno das docas, entre eles, discos de calypso, merengue e, eventualmente, reggae. Assim chegaram a São Luís os primeiros LPs do gênero, que foram parar nas mãos


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dos donos de radiolas, parentes dos sound systems jamaicanos e já responsáveis pela trilha das festas populares na região desde a década de 1950. Foi um encontro explosivo: em poucos anos, aquela música estrangeira cantada em um dialeto que poucas pessoas entendiam – o patois jamaicano -, se tornou a principal atração das festas maranhenses, ganhando clubes de reggae, como o Pop Som e o Espaço Aberto, e tornando-se parte das festas tradicionais locais, como a de São Benedito e o Bumba Meu Boi. De forma similar aos proprietários dos sound systems de Kingston, os baileiros do Maranhão se tornaram empresários do entretenimento em acirrada competição. Desde sempre, a disputa entre os DJs pioneiros - como Serralheiro, Carne Seca e Riba Macedo – pela exclusividade das músicas mais envolventes, as pedradas, foi central: Otávio Rodrigues. Riba Macedo (Ribamar Macedo), um dos primeiros seletores de reggae das radiolas seguidas viagens à Jamaica e à Inglaterra no Maranhão, 2006. para a compra de discos, encomendas a marinheiros e comissários de bordo, rabiscos nos selos do vinil para impedir que algum olheiro rival descobrisse o nome da faixa e/ou do artista e a técnica do carimbo - na qual uma radiola solta sua vinheta por cima da música várias vezes durante a execução na pista de dança para impedir que seja gravada por outro DJ e se torne parte do repertório de algum concorrente. Talvez, o fato de só ter uma determinada pedrada em fita cassete pirateada explique o porque de, durante um período, as equipes de som terem optado por abrir mão do vinil em favor de cassetes mixadas gravadas previamente, conduta considerada inaceitável pelo código ético dos DJs mundo afora. Outra característica própria bem marcante do reggae em São Luís é a dança em casal, lenta e sensual. Assim, o reggae, especialmente a vertente romântica conhecida como lovers’ rock, chega aos anos 1980 como o maior fenômeno musical das periferias da cidade, apesar do preconceito das elites locais, saudosistas do título de Atenas Brasileira que pouco a pouco foi cedendo lugar para o de Jamaica Brasileira. Na mídia impressa, além de ensaios racistas afirmando que a ilha caribenha em nada teria contribuído às letras e às Belas Artes, os primeiros registros sobre o reggae estavam Carne Seca, um dos responsáveis pela chegada do reggae sempre nas páginas policiais, enfatiàs radiolas nos anos 1970. Foto: Autor desconhecido.


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zando cenas de violência nas festas. Nos anos 1990 a música jamaicana se fortalece entre os intelectuais negros e nos movimentos sociais maranhenses, embora ainda enfrentasse muito preconceito. Uma sequência de artigos de 1991 no jornal O Estado do Maranhão dá um bom exemplo do processo. Em um artigo intitulado De Atenas Brasileira a Jamaica Brasileira, o professor e ex-vereador de São Luís Ubirajara Rayol afirma que, ao contrário da Grécia Antiga, a Jamaica não possuía feitos nos campos das letras, artes e ciências, insinuando que a celebração da música jamaicana no estado seria um insulto à memória dos artistas e intelectuais maranhenses. Não demorou para que uma série de respostas ao professor Ubirajara chegassem na forma de cartas dos leitores e artigos. Destes últimos, um deles merece destaque, já que trazia a assinatura de um grande personagem: o pesquisador Carlos Benedito Rodrigues da Silva, pesquisador paulista radicado em São Luís e que foi o pioneiro dos estudos acadêmicos sobre o reggae no Brasil. No artigo Jamais como Athenas, pois apenas brasileira, Carlos Benedito denuncia o racismo da elite de São Luís e o seu desconhecimento da cena de música jamaicana da cidade, assim como aponta que a intelectualidade branca maranhense só floresceu às custas do trabalho escravo negro. Mesmo assim, o reggae começa a adentrar os eventos da classe média maranhense, especialmente a partir da criação do programa de rádio Reggae Night (19841986), sob o comando de duas figuras centrais da cena Fotos Natty Nayfson da cidade: Ademar Danilo – DJ, radialista e diretor do recém-inaugurado Museu do Reggae do Maranhão – e Fauzi Beydoun – agitador cultural e radialista, que depois ganhou o mundo como compositor e vocalista da banda Tribo de Jah. O programa também democratizou o acesso às músicas de reggae, que agora poderiam ser gravadas de forma caseira pelos ouvintes. Começam, então, a surgir bares e casas de show de reggae para um público de maior poder aquisitivo na capital. Nos anos 1990, São Luís assistiu ao surgimento de uma cena de reggae autoral que se contrapôs à execução quase que exclusiva de música jamaicana pelas radiolas. Nela, surge a Tribo de Jah, um dos principais grupos de reggae do Brasil. Além do já citado Fauzi nos vocais, a banda tem em sua formação quatro deficientes visuais que se conheceram na Escola de Cegos do Maranhão. É deles um dos maiores hinos do reggae maranhense, a canção Regueiros Guerreiros.


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Salvador, Bahia – sob o signo de Gilberto Gil Na Bahia, o gênero também aporta em meados dos anos 1970, através de discos trazidos do exterior, muitas vezes por músicos exilados que retornavam para casa. Este foi o caso de Gilberto Gil, que ao voltar do exílio em Londres trouxe consigo a influência do reggae, já bastante difundido por imigrantes jamaicanos na Inglaterra. Em 1979, Gil inclui Não Chores Mais no álbum Realce, uma versão em português da canção No Woman, No Cry, de Bob Marley. Ainda que o arranjo da música não traga elementos do reggae, a gravação marca o começo da aproximação de Gil com o som dos devotos de Jah, que viria a render ainda muitos frutos em sua carreira, como as parcerias no palco com Jimmy Cliff, a gravação com The Wailers (Vamos Fugir) e, por fim, o lançamento do álbum Kaya N’Gandaya em 2002. O disco é composto – com exceção de uma faixa – por canções de Marley e gravado no estúdio Tuff Gong, em Kingston, com uma combinação de músicos brasileiros e lendas jamaicanas - como Sly & Robbie e o trio vocal The I-Threes. Também em 1979 é lançado Bahia Jamaica, de Jorge Alfredo & Chico Evangelista, um disco importante para o estabelecimento do reggae no estado. Ainda que não seja um álbum exclusivamente dedicado ao gênero, explora os pontos de conexão musical e cultural entre os dois lugares, absorvendo já elementos do reggae na música baiana, especialmente a guitarra marcando o contratempo e os vocais de resposta femininos.

Vista da exposição. Em primeiro plano, Gilberto Gil com Jimmy Cliff. Foto: Gal Oppido


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É justamente às vésperas da morte de Bob Marley, em 1981, que o reggae começa a se tornar um fenômeno de massa em Salvador. Na virada da década, o Pelourinho e a Liberdade, dois bairros de resistência negra na cidade, já possuíam dezenas de bares de reggae e não era incomum encontrar rastafáris de dreadlocks e tocas amarelo-vermelho-verde - oficialmente as cores do pan-africanismo e da bandeira da Etiópia, mas popularmente conhecidas como ‘as cores do reggae’ -, pelas ruas de Salvador. Não por acaso, o show de Gilberto Gil e Jimmy Cliff no estádio da Fonte Nova atraiu 60 mil pessoas em 1980. A partir daí, Cliff passa a ser presença constante na cidade, inclusive absorvendo dois músicos locais em algumas de suas turnês internacionais: o cantor e compositor Lazzo Matumbi e Gabi Guedes, hoje conhecido como linha de frente da percussão da Orkestra Rumpilezz. Jimmy Cliff também será um dos grandes divulgadores internacionais do samba reggae, ritmo híbrido que veremos mais à frente. A chegada do reggae à Salvador é concomitante à absorção de outros gêneros caribenhos – a rumba e a salsa - pela música baiana, assim como também do soul norte-americano. Destes, no entanto, apenas o reggae deu origem a uma cena própria e que viria a vingar até os dias de hoje. No Pelourinho, por exemplo, shows semanais de reggae foram a base de um importante movimento de resistência à remoção forçada da população de um setor do bairro nos anos 2000, consequência de um longo processo de gentrificação do centro histórico da cidade. É preciso, contudo, voltar um pouco mais no tempo para compreender a raiz deste fenômeno, já que não é possível falar de reggae na capital baiana sem contar um pouco da história dos blocos afro.

A era do samba reggae O primeiro bloco afro de percussão a surgir em Salvador foi o Ilê Aiyê, em 1974. Criado no bairro da Liberdade, foi a grande novidade do carnaval de 1975, apresentan-

Dois surdos e um repique dos blocos afro que são responsáveis pelo nascimento de um ritmo híbrido Brasil-Jamaica: o samba reggae. Tambor - Surdo de segunda, Bloco afro Olodum – Salvador, Bahia,Anos 2010, Acervo Olodum; Tambor – Marcação Aro 24 e Repique, Bloco afro Muzenza – Salvador, Bahia, Anos 2010, Acervo Muzenza. Foto Gal Oppido


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do à Bahia um modelo ainda desconhecido de organização cultural preta. Esta forma de militância sofreu muito preconceito, tanto da elite branca baiana como de entidades políticas tradicionais do movimento negro. Cantando o orgulho preto e vetando a participação de qualquer ‘cara pálida’ no bloco, o Ilê Aiyê ganhou uma nota agressiva do Jornal A Tarde em 12/02/1975, na qual o jornal afirmava que o bloco havia proporcionado um “feio espetáculo”, imitado os norte-americanos e chegado à gozação com os brancos. A nota ainda dizia esperar que o bloco voltasse com outra postura no ano seguinte, já que o Brasil não teria, segundo o jornal, problema racial. O mito do racismo reverso presente na nota do jornal A Tarde mostrava uma incapacidade das elites que geriam o carnaval baiano em compreender um novo modelo estético de revolução negra. Se olharmos para a cobertura do jornal A Tarde nos anos seguintes a esta nota, é possível ver uma clara e rápida mudança de abordagem do periódico com relação aos blocos afro. Ao longo dos anos 1970 e 80, vários outros blocos afro surgiram em Salvador. Dois deles absorveram a musicalidade e a estética do reggae: o Olodum, fundado em 1979, e o Muzenza, também conhecido como Muzenza do Reggae. O Olodum é original do Pelourinho e, além dos seus ensaios abertos no bairro, o bloco agregou intelectuais e militantes pretos que fundamentaram a estética do grupo em um intenso processo de pesquisa sobre a ancestralidade africana na Bahia, baseados tanto em leituras como em viagens de suas lideranças à Terra-Mãe. Um dos pontos culminantes deste processo foi o carnaval de 1987, também conhecido como Carnaval do Egito, no qual a música tema do bloco, Faraó, Divindade do Egito (Luciano Gomes) se tornou um verdadeiro hino. Já o Muzenza foi criado em 1981 por dissidentes do Olodum, no bairro da Liberdade. Seu símbolo é o Leão de Judá, título de Hailé Selassié, porém a figura de Bob Marley segue no trono de ícone maior. É do Olodum e do Muzenza que surge um dos ritmos mais marcantes da hibridação entre o som dos rastas e a música brasileira: o samba reggae. Há uma disputa pela criação do estilo, mas dois nomes se destacam na voz daqueles que vão contar sua história: Neguinho do Samba, representante do primeiro bloco, e Sérgio Participação, do segundo. Em termos gerais, o samba reggae se apropria de diversos elementos rítmicos do reggae, chegando a lembrar os burru drums que estão na raiz do gênero. Inicialmente abdicando de instrumentos harmônicos, o samba reggae trazia uma base exclusivamente percussiva, na qual se combinavam surdos, taróis e repiques, com destaque para a marcação forte dos contratempos, como no reggae. Outros elementos fundamentais dessa alquimia vêm da africanidade baiana, como o ijexá, o samba duro e a grande variedade de ritmos do Candomblé. Ao longo da década de 1980, os blocos afro passam de grupos discriminados pelas elites locais para uma das principais referências do carnaval de Salvador, ficando em pé de igualdade com os trios elétricos. Em 1988 os blocos viram completamente o jogo e estampam a capa do jornal A Tarde com a manchete Afros deram o tom do carnaval, na edição da quarta-feira de cinzas. Treze anos se passaram desde a citada pequena nota ácida até a glória da primeira página, em um dos principais canais de comunicação da elite baiana. E não foi apenas na mídia da Bahia que ganharam reconhecimento: no mesmo ano, o jornal Folha de São Paulo trouxe os blocos afro como capa do suplemento Ilustrada em uma reportagem com o sugestivo título A Bahia virou Jamaica. Nela, fotos da estética rasta nos cabelos, a exaltação do samba-reggae e uma entrevista com o intelectual João Jorge, diretor do Olodum.


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Recôncavo baiano – a era messiânica A Bahia viu ainda o surgimento de outra relevante cena de reggae, desta vez no Recôncavo Baiano, interior do estado, com epicentro na cidade de Cachoeira. Em 1981, Lazzo Matumbi – ex-vocalista do Ilê Aiyê – gravou o LP Viver, Sentir e Amar, com o acompanhamento da banda Studio 5, que contava com a guitarra de Nengo Vieira, um dos principais nomes do reggae baiano. O álbum de Lazzo já flertava com o reggae, mas somente alguns anos depois é que, a partir desta experiência, surgem grupos voltados a uma linha baseada na filosofia rastafári, na vida comunitária, na luta social contra a discriminação e o racismo e nas leituras da Bíblia. Aos poucos, músicos da cidade foram tomando contato com discos recheados da lendária mística natural jamaicana, especialmente os de Bob Marley. Assim, a música que faziam começou a ter cada vez mais elementos do reggae roots, até que este se tornou o gênero por excelência da região. Do encontro nasceu o primeiro LP autoral inteiramente dedicado ao gênero no Brasil, o Reggae Resistência (1988), de Edson Gomes. Gomes é, talvez, o reggaeman mais notório da música brasileira, mas Cachoeira também viu surgir outros nomes importantes nesse filão. No fim dos anos 1980 foi formado o grupo Remanescentes do Paraguaçu - em cuja Capa LP Reggae Resistência, Edson Gomes e formação estavam Nengo Vieira, Marcio Banda Cão de Raça, 1988 Oliveira, Tin Tim Gomes e Sine Calmon -, que chegou a gravar um álbum pelo selo WR em 1993. Apesar de nunca ter sido lançado, esse material foi pirateado em fitas cassete e até hoje suas músicas são cantadas por multidões no Recôncavo Baiano. Vários membros dos Remanescentes seguiram carreira solo e dois deles ocupam ainda hoje uma posição de destaque na cena local: Nengo, que é pastor da Bola de Neve Church e um dos principais músicos gospel do país; e Calmon que, ao lado do grupo Morrão Fumegante, conseguiu em 1998 o impressionante feito de colocar um reggae no trono de Momo, quando sua Nyambing Blues foi a música mais tocada no Capa LP Viver, sentir e amar, Lazzo Matumbi, 1988. carnaval de Salvador.


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Anne Karr. Style & Fashion and FREE - o LGBT no Dancehall, São Paulo,2017. Acervo Anne Karr

Brasil afora - outra estrada natural Em 1986, Os Paralamas do Sucesso começam a sua longa relação com a Jamaica no álbum Selvagem?, ao incluir uma versão dub do single Melô do Marinheiro. Também no Rio de Janeiro, no mesmo ano, surge a banda de reggae Cidade Negra, cujo flerte com o pop na década seguinte foi responsável por uma grande popularização da música jamaicana no Brasil, especialmente para outras regiões e classes sociais. Em São Paulo, na virada dos anos 1980 para os 90, acontece uma cena autoral simultânea à do Recôncavo, formada por nomes como Nomad, Walking Lions, Pacíficos da Ilha, e Dagô Miranda, além do programa de rádio Reggae Raiz, apresentado por Jai Mahal e China Kane na Brasil 2000 FM. Chegamos ao começo da década de 1990 com a música jamaicana muito presente nas ‘quebradas’ brasileiras, ligada aos movimentos culturais negros, mas também reconhecida pela mídia, iniciando relações com o fechado mundo das gravadoras e da indústria cultural. Em cerca de vinte anos o reggae venceu preconceitos atuando de modo independente, na contramão das elites e do mercado cultural. Pouco depois, surgem bandas pop influenciadas pelas linguagens do reggae e do dub em vários estados do Brasil. Algumas atingiram o grande público, como a mineira Skank e a carioca O Rappa, aumentando ainda mais a popularidade do gênero no país. Também na cena do manguebeat, em Pernambuco, esta influência se faz presente no trabalho do hoje mítico Chico Science e sua Nação Zumbi. O país entra na rota das turnês internacionais de artistas de reggae roots, lovers’ rock e dancehall, e grandes festivais patrocinados por marcas corporativas - tipo Ruffles Reggae e Coke Reggae Time - chegaram a durar um par de edições cada. Assim, sem deixar de ser uma voz de resistência preta e periférica, a música jamaicana atravessa a década cada vez mais abraçada pelo pop e a mídia tupiniquins, ganhando força fora dos nichos nos quais floresceu ao longo dos anos 1970 e 80.


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São Paulo – a era dos sound systems No entanto, as ruas jamais deixaram de ser o habitat natural da simbiose jamaicano-brasileira. Por isso, no início do século XXI um novo fenômeno ocupa o espaço público das cidades: os sound systems. No começo da década, algumas festas de música jamaicana agitavam pequenas casas noturnas de São Paulo, como o Susi In Transe e o Jive. Eventualmente, inspirados pelo formato original da Jamaica, os primeiros seletores ativos - como Magrão, Yellow P, Bigodón e Corpo Santo - levaram a discotecagem para o espaço público nas portas de um botequim da rua Coari, no bairro da Pompeia. A princípio a festa era feita como uma construção coletiva, somando as caixas de som dos DJs e com a presença de cantores de toasting como Marietta e Christopher the Lover, mas ainda não se configurando como um sound system. Pouco a pouco a coisa foi crescendo e atraindo cada vez mais gente para a esquina da Coari. O próximo passo foi construir um equipamento de fato: daí surgiu o primeiro sound system de São Paulo, o Dubversão. Com a potência e os graves das novas caixas de som, a Pompeia ficou pequena para eles e o Dubversão começou a rodar pela Grande São Paulo, fazendo festas desde o centro da cidade até as periferias mais distantes apenas pelo custo do carreto, levando a cultura sound system aos quatro cantos da grande metrópole. Foi assim que, depois de uns três anos, outros bairros começaram a montar os seus próprios sound systems. O primeiro deles foi o Quilombo Hi Fi na Vila Nova Cachoeirinha, Zona Norte da cidade. Depois foi a vez do África Mãe do Leão, da Zona Leste. Na mesma época, no Rio de Janeiro, o coletivo Digitaldubs também construiu seu primeiro sound system.

André RASFilms. África Mãe do leão, 2017.


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Anne Karr. Legalize it - Don't criticize it, SĂŁo Paulo, 2017. Acervo Anne Karr.


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A prova derradeira da força desse movimento veio em outubro de 2014, quando o festival gratuito Reunion of Dub - realizado ao longo de um fim de semana no Vale do Anhangabaú com a participação da maioria das equipes em atividade - registrou a passagem de cerca de 30.000 pessoas. Com isso, a vinda de cantores originais da Jamaica ao país cresceu muito, uma vez que a apresentação em formato sound system torna os custos ainda mais baixos que a tradicional técnica de contratar uma banda de apoio local. Somada ao evidente crescimento da audiência e a facilidade de contato internacional da era digital, este processo gerou encontros de vocalistas lendários como Ranking Joe, Yammi Bolo, U-Roy, Welton Irie e Horace Andy - entre outros - com os seletores brasileiros. É importante ressaltar que, em paralelo a isso, a cena paulista também gerou cantores representativos, como Laylah Arruda e Junior Dread - que fizeram o trajeto oposto e possuem trabalhos produzidos por estrangeiros -, Ualê Figura, Monkey Jhayam, Likke Jota e o também produtor Michel Irie. Mas, mesmo optando por estilos bem diversos entre si, todos tem uma referência em comum: o MC conhecido como Black Alien. Apesar de não ser um artista estritamente dedicado ao reggae, ele foi onipresente ao microfone de tudo quanto é festa durante a fase de ebulição dessa efervescência.

A cultura dos sound systems começou a crescer junto com as festas dedicadas aos sons da ilha em casas noturnas, sob a liderança da Java e da Stamina!. Ao longo da década, os sound systems físicos passaram a se contar às dezenas em São Paulo, dando origem a nomes como High Public, Mozziah, Leggo Violence, Jurassic, Zion Gate, Reggaematic, Kas Dub e muitos outros. Com isso foram também surgindo novos eventos, como os happy hours Pressure Drop e Spliff; a festa Fresh!, dedicada ao dancehall; a Jamboree, pioneira em discotecagem de oldies - ska, rocksteady, early reggae -; a poderosa união de três sound systems ligados juntos denominada Terremoto; a 3 Côco, realizada na favela de mesmo nome, no extremo leste da cidade, fundamental na tomada das ‘quebradas’; e o projeto Feminine Hi Fi, produzido exclusivamente por mulheres que lutam pela representatividade na cena. Surgem sound systems também em várias outras cidades brasileiras, como o Ministereo Público de Salvador, o Confronto Sound System de Brasília e o Deskareggae de Belo Horizonte.

Contratempo Rei É interessante ressaltar que, diferente do A trajetória do reggae no Brasil e seu atual reinado que acontece no hip hop - gênero que nos guetos da Grande São Paulo mostram o potencial do surge a partir do conceito de sound sysdiálogo entre as periferias do planeta, fruto da diáspora tem -, no léxico da comunidade musical africana não previsto pelo colonialismo e que transde Kingston, o deejay é o vocalista, em formou as terras ao longo do Oceano Atlântico em um referência aos disc jockeys que comangrande e diverso território negro. Ainda que a música dam o microfone nas transmissões de jamaicana tenha chegado ao centro do pop nacional, é rádio. Quem controla as picapes não é chamado de DJ mas sim selectah, grafia importante ver que este diálogo não foi em mão única: o em patois do termo selector, aquele que samba reggae mostra a inesgotável capacidade antroposeleciona os discos. fágica da música brasileira, assim como as radiolas e os sound systems tupiniquins provam nossa criatividade técnica em um contexto de escassez. Salta aos olhos a cultura do improviso: por ter crescido sem o apoio das políticas públicas e da indústria do entretenimento, a cena reggae brasileira, assim como a jamaicana, valeu-se sempre da capacidade de inventar novos usos para absolutamente qualquer coisa. Foi assim que se deu a resistência preta na Jamaica, foi assim que se deu no Brasil. Sobre os contratempos da vida, sobressaiu-se o contratempo do ritmo, este sim, a língua franca da música negra.


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Luiz Egídio, Respeito na dança, Fresh Dancehall.

Miguel Salvatore, LGBTs nos bailes 2 - Gueto Voith, Feminine Hi-Fi amplificado por INI sound, São Paulo - 2017


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Uma Cronologia Jamaicana Por THIBAULT EHRENGARDT Diretor DREAD EDITIONS

Antes de 1494 O território das Grandes Antilhas, onde está a Jamaica, é originalmente habitado pelos povos taino e arawak, do mesmo tronco linguístico dos indígenas que habitam o norte da América do Sul e a Amazônia. Esses povos se estabeleceram na ilha entre 4000 e 1000 a.C. e, por volta do ano 1400, já haviam mais de 200 aldeias governadas por caciques nessa região. A costa sul da Jamaica é a mais povoada, especialmente em torno da área hoje conhecida como Old Port [Porto Velho]. Jamaica vem de Xaymaca, que na língua arawak significa “a terra da água e da madeira”, ou “a terra dos mananciais”.

1494 (4 de maio) Cristóvão Colombo (1450/51-1506) chega à Jamaica, que ele descreve como “a mais bela ilha” das Índias Ocidentais. Os conquistadores espanhóis estabelecem o primeiro povoado europeu na ilha em 1509. As populações indígenas arawak e taino são rapidamente dizimadas. Os primeiros povos escravizados são deportados para a Jamaica em 1517.

1655 (10 de maio) Os ingleses invadem a Jamaica, dominando com sucesso os espanhóis. A ilha oficialmente se torna propriedade do Império Britânico a partir da assinatura do Tratado de Madri, em 1670.

1672 É estabelecida a “Royal African Company”, uma empresa inglesa de comércio de povos escravizados. No período de um ano, a Inglaterra tornase a maior nação negreira do mundo.

De 1680 a 1786, milhões de africanos são deportados para as colônias inglesas nas Américas.

1807 O Reino Unido proíbe o tráfico negreiro. Em 1838, após um período de transição de quatro anos, a escravidão é definitivamente abolida na Jamaica. Início do êxodo rural para Spanish Town e Kingston.

1914 Marcus Garvey (1887-1940), gráfico e ativista jamaicano, cria a Universal Negro Improvement Association (UNIA), na Jamaica, com o lema “One God! One Aim! One Destiny!” [“Um Deus! Um Objetivo! Um Destino!”]. Em 1918, a UNIA muda-se para Nova York. No seu auge, na década de 1920, seus membros contam-se aos milhões. Afetado por várias manobras desestabilizadoras, Marcus Garvey morre, em 1940, em Londres, isolado e na pobreza.

1930 (2 de novembro) Ras – um título etíope equivalente a duque – Tafari Makonnen (1887-1975) é coroado imperador da Etiópia, com o nome de Haile Selassie I. Um cristão visto como descendente do rei Salomão, ele assume o título bíblico “Rei dos Reis, Senhor dos Senhores, Leão Conquistador da Tribo de Judá”. Inspirados pelas palavras de Marcus Garvey, os rastafáris o aclamam como a encarnação do Messias da profecia bíblica: Deus está vivo, e é negro.

1938 Protestos trabalhistas orquestrados por sindicatos portuários culminam na criação do People’s National Party [Partido Nacional Popular] (PNP, liberal), liderado por Norman Washington Manley (1893-1969). Depois de romper com o PNP, seu primo Alexander Bustamante (1884-1977) forma seu próprio partido, o Jamaican Labour Party [Partido Trabalhista Jamaicano] (JLP, conservador), em 1943. Esses dois partidos originais ainda dominam o cenário político da Jamaica hoje.


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1951 Stanley Motta abre o primeiro estúdio de gravação da Jamaica, em Hanover Street, em Kingston, onde ele grava mento, um gênero musical às vezes descrito como calypso jamaicano. Os clássicos do mento desse período incluem “Linstead Market”, “Go Down Emmanuel Road” e “Penny Reel”.

1959 O produtor Prince Buster reúne os Folkes Brothers e o percussionista rasta Count Ossie, para gravar “Oh Carolina”. Com este single como marco, a filosofia rastafári, anteriormente marginalizada, faz sua entrada oficial na cena musical jamaicana.

1962 (6 de agosto) A Jamaica torna-se independente. O ska passa a ser a sua trilha sonora não oficial.

1963 The Wailers (Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer) gravam seu primeiro hit local, “Simmer Down”, para o produtor “Coxsone” Dodd, no Studio One.

1966 (21 de abril) Durante uma visita oficial ao Caribe, o imperador etíope Haile Selassie é recebido como herói na Jamaica, especialmente pelos rastafáris.

1968 Este é considerado o ano da “primeira música reggae”, um título disputado por vários concorrentes, como «Bangarang” (Lester Sterling & Stranger Cole), “Nanny Goat” (Larry e Alvin), “Say What You’re Saying” (Eric “Monty” Norris) e “People Funny Boy” (Lee Perry). Em abril desse ano, um artigo na revista jamaicana Swing!, intitulado “Reggae, Reggay, Rege”, prevê a chegada da “mania reggae”, baseado num instrumental tocado por Jackie Mittoo e Denzil Laing, ouvido no Studio One.

1970 U Roy domina as paradas musicais, assumindo os três primeiros lugares com seus singles “Wake the Town”, “Rule the Nation” e “Wear You To the Ball”, gravado no estilo deejay, ou seja,

mais falado do que cantado. Esse estilo revolucionário, originário dos sound systems jamaicanos, é considerado um possível precursor do rap americano.

1973 Bob Marley e The Wailers lançam seu primeiro álbum, Catch a Fire, pelo selo Island, de Chris Blackwell. A banda se separa no ano seguinte, às vésperas do sucesso internacional.

1977 Em forte recessão, a Jamaica é obrigada a assinar o seu primeiro acordo de empréstimo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que impõe medidas de austeridade particularmente drásticas. A dívida externa compromete seriamente o crescimento econômico da ilha.

1981 (11 de maio) Bob Marley sucumbe ao câncer e o reggae militante parece acompanhá-lo ao túmulo. Seu ex-colega de banda, Peter Tosh, é assassinado em casa, em 1987.

1997 O álbum Praise Ye Jah, de Sizzla, é lançado pelo selo XTerminator. Um símbolo do renascimento das origens às vezes radicais da década de 1990, esse álbum transforma Sizzla em um dos maiores talentos do reggae dos últimos vinte anos.

2002 Sean Paul lança seu álbum Dutty Rock, com os singles “Get Busy”, “Baby Boy” (com Beyoncé) e “Gimme The Light”. Com 6 milhões de cópias vendidas em todo o mundo, Dutty Rock coloca a música dancehall na cena internacional.

2014 Considerado o melhor artista de dancehall, Vybz Kartel é condenado por assassinato. Um adepto do skin bleaching [branqueamento da pele], ele também é suspeito de ser o líder de uma gangue brutal. Sem deixar de gravar e lançar álbuns, mesmo atrás das grades, Vybz Kartel torna-se a nova voz da juventude desiludida da Jamaica.


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Vista da exposição. Foto: Gal Oppido


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SESC - SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO ADMINISTRAÇÃO REGIONAL NO ESTADO DE SÃO PAULO PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL Abram Szajman DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL Danilo Santos de Miranda SUPERINTENDÊNCIAS TÉCNICO-SOCIAL Joel Naimayer Padula COMUNICAÇÃO SOCIAL Ivan Giannini ADMINISTRAÇÃO Luiz Deoclécio Massaro Galina ASSESSORIA TÉCNICA E DE PLANEJAMENTO Sérgio José Battistelli GERÊNCIAS ARTES VISUAIS E TECNOLOGIA Juliana Braga de Mattos ADJUNTA Nilva Luz ASSISTENTES Carolina Barmell e Leonardo Borges AÇÃO CULTURAL Rosana Cunha ADJUNTA Kelly Adriano de Oliveira ASSISTENTES Fernando Viana e Wagner Dini de Castro ESTUDOS E DESENVOLVIMENTO Marta Colabone ADJUNTO Iã Paulo Ribeiro ASSISTENTE Diogo de Moraes ASSESSORIA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves ASSISTENTE Heloisa Pisani ARTES GRÁFICAS Hélcio Magalhães ADJUNTA Karina Musumeci ASSISTENTES Rogério Ianelli e Tina Cassie GERÊNCIA DE DIFUSÃO E PROMOÇÃO Marcos Carvalho ADJUNTO Fernando Fialho ASSISTENTE Aline Ribenboim SESC DIGITAL Gilberto Pascoal ADJUNTO Fernando Tuacek SESC 24 DE MAIO GERENTE Paulo Casale ADJUNTO Thiago Freire PROGRAMAÇÃO Suamit Barreiro (COORDENAÇÃO) Simone Wicca (SUPERVISÃO), Isabella Bellinger, Suelen Pessoa e Valéria Boa Sorte ADMINISTRATIVO Rodrigo Souza ALIMENTAÇÃO Adriana Iervolino da Cunha COMUNICAÇÃO E ATENDIMENTO Cristina Tobias (COORDENAÇÃO) Marina Burity e Walter Bertotti de Souza INFRAESTRUTURA José Artur Simões Amaro SERVIÇOS Eduardo Bianco CITÉ DE LA MUSIQUE - PHILHARMONIE DE PARIS DIRETOR GERAL Laurent Bayle RELAÇÕES INTERNACIONAIS Alice Chamblas MUSÉE DE LA MUSIQUE DIRETORA Marie-Pauline Martin ADJUNTA Alice Martin-Edgar RESPONSÁVEL DE EXPOSIÇÕES Isabelle Lainé CHEFE DE PROJETO Marion Challier PRODUÇÃO Ludivine Pangaud, Raphaëlle Sabouraud, Anna Tardivel CONCEPÇÃO E REALIZAÇÃO AUDIOVISUAL Matthias Abhervé, Inès Saint-Cerin ENGENHARIA SONORA Philippe Wojtowicz CONSERVADORAS Clémentine Girault, Arnaud Martin JAMAICA, JAMAICA! CURADORIA Sébastien Carayol COMITÊ CIENTÍFICO Giulia Bonnaci, Herbie Miller, Thomas Vendryes CONSELHEIROS Kenneth Bilby, Jeremy Colingwood, Thibault Ehrengardt, Ray Hitchins, Jake Homniak, Hélène Lee, Michael McGraw, Daniel Neely, Veerle Poupeye, Dave Rosencrans CONSULTORIA DE CONTEÚDOS BRASILEIROS Caio Csermak, Camila Miranda, DJ Magrão, Lys Ventura, Rodrigo Brandão, Stranjah PRODUÇÃO Expomus – Exposições, Museus, Projetos Culturais – Maria Ignez Zuccon Mantovani Franco, Roberta Saraiva Coutinho COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Patrícia Prado Betti Queiroz ASSISTENTES Evelyn Ariane Lauro, Luciana Lehfeld Daher, Leticia Mantovani Franco ADMINISTRATIVO Renato Musa dos Santos, Ana Maria Barcellos de Lima AÇÃO EDUCATIVA Acontemporânea ASSISTENTE Juliana Biscalquin EXPOGRAFIA Valdy Lopes Jn ASSISTENTES Deborah Santiago Guimarães, Aline Arroyo, Heloisa Vivanco, Antonio Gama DESIGNER DE ILUMINAÇÃO Grissel Piguillem ASSISTENTE Camila Jordão LETRISTAS Marcelinho Fernandes e Daniel Cardoso IDENTIDADE VISUAL E PROJETO GRÁFICO Julio Dui WEB RADIO Radio Propaganda INTERATIVOS Buzzing Light PROJETO AUDIOVISUAL Maxi Audio CONSERVAÇÃO Atelier Raul Carvalho MONTAGEM FINA Manuseio PROJETO DE SEGURANÇA E ELÉTRICA Jarreta Projetos REVISÃO DE TEXTOS Lia Ana Trzmielina TRADUÇÃO Bernardo Ajzenberg, David Yann Chaigne, Flávio Bonanome, Monica Mills MATERIAL GRÁFICO CATÁLOGO ORIGINAL Éditions La Découverte – Cité de la Musique – Philharmonie de Paris ORGANIZAÇÃO DO MATERIAL BRASILEIRO Isabella Bellinger e Suelen Pessoa AUTORES Caio Csermak, Carolyn Cooper, David Katz, Heather Augustyn, Hubert Devonish, Joshua Chamberlain, Kenneth Bilby, Leonard J. McCarthy, Rodrigo Brandão, Roger Steffens, Sébastien Carayol, Thibault Ehrengardt, Thomas Vendryes TRADUÇÃO Bernardo Ajzenberg, David Yann Chaigne, Flávio Bonanome, Monica Mills REVISÃO DE TEXTOS Lia Ana Trzmielina FOTOGRAFIA Gal Oppido e Marina Burity DESIGN GRÁFICO Julio Dui PRODUÇÃO GRÁFICA Marina Burity e Walter Bertotti de Souza


Foto: Gal Oppido


VISITAÇÃO De 15 de março a 26 de agosto de 2018 Terça a sábado, das 9h às 21h Domingos e feriados, das 9h às 18h AGENDAMENTO DE GRUPOS agendamento@sescsp.org.br

Sesc 24 de Maio Rua 24 de Maio, 109 Tel. (11) 3350-6300 República | Anhangabaú /sesc24demaio

Uma exposição concebida pela Cité de la Musique – Philharmonie de Paris, produzida e realizada pelo Sesc São Paulo.

Foto: Gal Oppido

sescsp.org.br/24demaio


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