2020
Fotos Agencia Rafi Ilustrações Cordeiro de Sá Textos e fotos Daniela Penha Produção executiva Vandreza Freire Realização Sesc
Ações Sesc Ribeirão
Eva
Foto Daniela Penha . Ilustração Cordeiro de Sá
Há 27 anos, Eva faz receitas com afeto como cozinheira da Associação Gewo-Haus
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Naquele dia, teve macarrão com queijo no almoço. Uma receita nova na cozinha da instituição. Tarcísio sente a boca encher de água. Os oito anos em que frequentou a Associação São Francisco de Assis Gewo-Haus deixaram saudade. Sorte que, sempre que o coração aperta, pode saná-la um pouquinho. Sua mãe, a cozinheira que preparou o memorável macarrão, continua fazendo receitas com afeto em casa e na instituição. Após quase três décadas de trabalho ininterrupto, Eva é parte da associação em via de vai e volta. A Gewo-Haus também faz parte de sua trajetória. - A minha vida mudou depois que eu entrei aqui... Até então, tudo o que sabia de cozinha era em casa, preparando as refeições de todo dia. Bem por isso, quando as irmãs franciscanas disseram que estava contratada e poderia começar no mesmo instante, ela sentiu um frio na barriga. Hoje, é lembrada pelo carinho que coloca em cada bolo de cenoura, sopa com legumes batidos, arroz e feijão de cada dia, frango assado, lasanha, muita salada e o tal macarrão com queijo. A criatividade é o principal ingrediente em sua cozinha. Nada se perde, tudo se transforma. - Tem que ser criativa o tempo todo! A gente recebe muitos legumes, abobrinha, cenoura. Precisa fazer receitas que as crianças gostem! A Gewo Haus, na Vila Virgínia, é uma das 52 instituições sociais e hospitais beneficiados pelo programa Mesa Brasil Sesc Ribeirão com doações de alimentos. A entidade, que completou 39 anos de atuação neste mês, oferece acolhimento a 70 crianças e adolescentes em vulnerabilidade social, de 6 a 15 anos, no contraturno escolar, com aulas de informática, dança, artesanato, marcenaria, teatro, esporte entre outros aprendizados. Também atende 92 adolescentes, de 12 a 18 anos, que estão cumprindo medidas socioeducativas em liberdade assistida.
O objetivo do acolhimento realizado há quase quatro décadas é oferecer caminhos, explica Nice Marinho, analista administrativa da instituição: - É um trabalho de construção. Queremos que eles compreendam que podem ter mais possibilidades de estudos, conhecimentos, trabalhos onde estão e olhem a vida de uma forma melhor. A Gewo-Haus está cadastrada no Mesa Brasil Sesc Ribeirão desde 2014. Em seis anos, a instituição já recebeu 303 doações do programa, com 16,450 toneladas de alimentos. Só em 2020 foram 1,8 toneladas! Eva Benício Machado, 51 anos, é quem faz tudo se transformar em nutrição para a criançada. E mais: não perde uma oficina do programa! - Aprendi muito. Aproveitar os talos, as cascas. A gente nunca sabe de tudo, sempre pode aprender mais. Faço questão de ir porque a cada ano é uma coisa nova que eu aprendo. Agora, com a pandemia, as crianças e adolescentes não estão tendo atividades presenciais. As famílias, porém, continuam sendo assistidas. Recebem kits com alimentos que Eva organiza com o mesmo carinho que coloca nas panelas. De abril até a semana passada a entidade já havia recebido 11 doações do Mesa Brasil, com 1,4 toneladas de alimentos, além de itens de higiene pessoal e material de limpeza. - Fica um silêncio. Nunca fiquei tanto tempo assim sem cozinhar para eles. É a primeira vez que isso acontece. Gravei um vídeo dizendo que estou com saudade... O que tem na panela da cozinheira? Eva nasceu em uma fazenda no interior de Goiás. Seu pai era agricultor e sua mãe dona de casa. Para que nada faltasse aos 10 filhos, todo mundo tinha que participar. Ela mesma começou por volta dos 10 anos. Ajudava os pais, fazia faxina em outras casas. Não consegue precisar o tempo. Acredita que tinha por volta dos cinco anos quando seus pais vieram morar em Ribeirão Preto. Pouco depois, tiveram que retornar para o Goiás. Guardou as lembranças dos passeios no bosque dando comida para os macacos e da maria fumaça na praça.
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- Nunca poderia imaginar que eu iria voltar! Por isso me apaixonei tanto por Ribeirão. Estou construindo uma vida aqui. E repetindo um pouco a história da minha mãe, que também viveu nessa cidade. Por volta dos 17 anos, começou a trabalhar como babá. Conheceu seu marido, começaram o namoro e ele veio para Ribeirão a trabalho. Quando se casaram, em 1991, ela fincou raízes por aqui. Estava com 22 anos. Durante dois anos trabalhou como doméstica. Uma vizinha contou que a Gewo-Haus estava precisando de cozinheira. Eva decidiu tentar. - Tinha outras pessoas na frente, que eram mais velhas do que eu. Saí sem esperança de conseguir a vaga. Mas depois de uns dias me chamaram para vir conversar. O que tem na panela da cozinheira? Uma porção farta de garra? Tem, sim! A jornada começa às 7h30. Chega e prepara o café da criançada, que é servido às 8h. Quando tem bolo, já deixa pronto na tarde de véspera. Depois que o café termina, começa a preparar o almoço, servido às 11h. Faz seu intervalo e retoma às 13h30. Às 14h15 tem o lanche para a turma da tarde e às 15h15 o café dos funcionários. Depois é organizar tudo para retomar no outro dia. Tudo o que prepara é fresquinho. Não gosta de nada congelado. Todo dia, é feijão chiando na pressão. Salada é prato querido por ali: - Eu falo: as crianças estão de parabéns! A cozinheira ajuda, claro. Sabe os gostos e adapta as receitas para que os pequenos comam de tudo. A sopa, por exemplo, leva legumes batidos, para que a criançada coma sem perceber até o que pensa não gostar. - Eu tenho meus segredinhos! Dou uma embutida nas coisas que elas não comem. Também faz sucos com combinações diferentes: cenoura e laranja, casca do abacaxi cozida – aprendeu em uma oficina do Mesa Brasil, faz questão de ressaltar. A casca da banana vai para o lixo? Não, não! Se transforma em nutritiva farofa! - São algumas das receitas que eu aprendi nas oficinas! Ajuda muito! Prato vazio é troféu de cozinheira, ela bem sabe. - É maravilhoso ver os meninos comendo com aquela boquinha boa e
perguntando: pode repetir? É a parte mais gratificante. A comida de Eva, para muitas das crianças e adolescentes atendidos, pode ser a mais completa refeição do dia. Ela, então, redobra o carinho. - Além de amor, cozinhar para eles é terapia. Quando estou cozinhando, esqueço dos meus problemas e quero fazer o melhor possível. O que tem na panela da cozinheira? Criatividade como tempero? Tem também! Tarcísio, filho de Eva, tem 23 anos. Nasceu quando a mãe já somava quatro anos de trabalho na instituição, cresceu por ali e conta: - Eu convivo aqui desde que estava na barriga dela. Cresci aqui dentro. A família mora no bairro, perto do trabalho e da escola onde ele estudava. Eva, então, pôde deixar o filho sempre debaixo das asas. - Fui muito abençoada! Ele ficava comigo o tempo todo. Não precisei me preocupar com isso, como muitas mães se preocupam. Quando ele completou quatro anos, a idade para entrar na Gewo-Haus, passou a ser um dos alunos acolhidos. Relembra das aulas de inglês da professora Regina, das viagens, dos amigos, dos valores que aprendeu e da comida da mãe, claro. - Todo mundo dizia que eu era sortudo porque podia comer aqui e em casa também. Não é o único, como Eva diz, toda-toda: - Eu sempre encontro meninos e meninas que passaram por aqui e já estão adultos. Eles dizem: ‘Eva, aprendi aquela receita com você e faço até hoje!’. É muito bom! Ela estudou até o sexto ano. A vida foi tomando outros rumos e precisou parar. Fala, com orgulho, que Tarcísio está fazendo faculdade de Turismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E também ressalta: - Nunca é tarde para aprender, né? Tenho vontade de voltar e oportunidade não falta!
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Foto Daniela Penha
Eva já bem disse lá em cima: a gente nunca aprende tudo! Nas panelas de sua vida, há sempre espaço para receitas novas. Nos corredores coloridos da Gewo-Haus estão as memórias de sua trajetória, de Tarcísio e de centenas de crianças que tiveram a história transformada com carinho e acolhimento. Mãe e filho se abraçam no pátio, relembram, cada qual em suas memórias, um bom momento vivido ali. - Aqui, eu pude expandir meus horizontes. Fiz amizades, aprendi a me comunicar, inglês, artesanato, violão. Abriu meus caminhos. Tarcísio é quem diz. - Mudou minha vida. E é muito bom encontrar os meninos que passaram por aqui e hoje estão formados, trabalhando, com suas famílias. Eva complementa. O que tem na panela da cozinheira? Muito amor, é claro, não pode falar!
Foto Daniela Penha
Foto Daniela Penha
Augustinho
Foto Daniela Penha . Ilustração Cordeiro de Sá
Augustinho faz solidariedade com paixão por carros antigos
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A bicicleta é a mesma. Há um tempo, ganhou pintura nova, restaurada como prêmio. Tiveram que podar o pé de goiaba para resgatá-la. Estava um tanto esquecida e a árvore cresceu tomando para si parte da história de Augustinho. Quando percebeu, empreendeu um reparo rápido. Podou os galhos que abraçavam a magrela, fez o resgate e o restauro. Agora, além de contar, materializa a memória exibindo, todo-todo, o veículo que comprou por volta dos 12 anos, deu início ao namoro que virou casamento e lhe carregou por uma década, ao menos 30 quilômetros por dia, para ir e voltar do trabalho. Aí também foi questão de escolha. Para construir a casa/chácara onde vive ainda hoje com a esposa, rodeado pelos filhos, netos e bisnetos, teve que vender o primeiro carro que conquistara. “Mas não me arrependo, viu?”, faz questão de enfatizar. A bicicleta aguentou as pontas. Depois da poda, a goiabeira voltou a crescer, compreendendo a importância de deixar intacta tão bonita memória. - Foi muita luta. E sempre lutei sozinho, graças a Deus! Nunca peguei um centavo dos meus filhos. Isso é uma coisa que nunca fiz! Estão todos encaminhados. A chácara onde Augustinho vive com seus pés de fruta e recordações fica em estrada de terra, para sua alegria. - Mesmo assim tem gente que passa a 80 km por hora! Imagine se asfaltar! Entre Ribeirão Preto e Bonfim Paulista, ganhou postes na rua não faz mais que sete anos. Ele conta que hoje, já com a vida estabilizada, poderia morar em um apartamento de qualquer bairro da cidade, mas não larga seu cantinho por nada. Galinhas e dezenas de cachorros dão boas-vindas. Embaixo das árvores ou nas garagens, seus tesouros estão guardados: kombis, fuscas, gols, carros antigos.
A paixão começou na infância. Queria ser motorista desde menino, desejo que o tirou da roça, trabalho de toda a família. Depois de perder duas colheitas seguidas de arroz, avisou o pai que estava deixando de vez a terra e foi em busca das rodas. - Era meu sonho ser motorista de ônibus! Fui indo até conseguir! Passou mais de 25 anos nesse trabalho, desbravando as ruas de Ribeirão de ponta a ponta e espalhando sua simpatia para todo lado. - É como dizem: eu subi no degrau e não desci mais! A paixão pelos motores só cresceu. E, quando a aposentadoria veio, pôde começar a coleção. Há pouco mais de uma década, soma carros antigos no quintal de terra. Passou a integrar a associação Califórnia Volks, como presidente “emérito”, como diz, brincando para explicar os oito anos na função. - Com carro novo eu não esquento a cabeça. Mas carro velho... eu falo: põe minha kombi velha e um carro novo na praça para você ver qual o povo vai olhar! Encontrou um jeito de fazer o bem com sua paixão por colecionar. Todo mês, a associação faz doação de alimentos arrecadados pelos próprios associados. Uma vez ao ano, realizam também um grande evento. O “Califórnia Volks Brother”, encontro de fusca e carros da Volkswagen, já entrou para o calendário oficial de eventos da cidade. Pedem alimentos como ingresso e, depois, doam para quem precisa. O Mesa Brasil Sesc Ribeirão está entre os beneficiados. Desde 2014, ajudam o Mesa a realizar a ponte entre quem pode doar e quem precisa de ajuda. Em seis anos, arrecadaram 9,5 toneladas de alimentos, que foram entregues, através do Mesa, para instituições sociais da cidade. Só no evento realizado em fevereiro deste ano arrecadaram 2,8 toneladas. Durante a pandemia, não pararam de ajudar. Realizaram uma campanha e conseguiram 680 quilos de alimentos. - Parece que ajudar abre o coração da gente...
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Augustinho Muniz, 73 anos, não é de lamentos. Conta sua trajetória com astral lá em cima, mesmo quando a memória não é feita só de alegria. O bom-humor é seu companheiro. - Eu comecei na roça com 12 anos. Já saía daqui para vender verduras! Nasceu e cresceu em Bonfim Paulista, filho de lavradores, o único homem entre três irmãs. Às 22h, saía de casa com a carroça cheia. Chegava por volta da 1h da madrugada para abastecer os mercados e depois retornava para casa e ia ajudar na lavoura. Nem frio nem chuva paravam o trabalho. Estudou até o quarto ano. - Sou ruim para a escrever e ler! Agora matemática era o que eu gostava. Sou bom de cabeça! O pai queria que ele fosse para o colégio de padres, o convite estava feito. Dizia que era só para conseguir um bom estudo. Depois poderia abrir mão da carreira. Mas não teve jeito. - Sabe aquele moleque acostumado na barra da saia de mãe e pai? Eu era assim! A compra da bicicleta, por volta dos 12 anos, também é história. Fora roubada de seu tio anos antes e reencontrada pela família. Não tinham como comprovar a propriedade, claro. E Augustinho fez de tudo para (re) comprá-la. - Ela está comigo há mais de 60 anos! Ficou com os pais na lavoura até completar 21. - Foram dois tombos que eu tomei na plantação de arroz. Veio a seca e morreu tudo. No outro ano, veio tudo bonito. Tava indo bem. Veio outra seca e perdi a colheita de novo. Larguei mão. Foi atrás do sonho sobre rodas. Conta que para entrar na empresa de ônibus teve que passar por um processo de seleção rígido, com testes em São Paulo. Sempre preferiu o transporte urbano, sem viagens. - Nunca gostei de andar de gravatinha (uniforme usado pelos motoristas que viajavam). Gosto de andar mais relaxado! Também por volta dos 21 anos conheceu sua esposa e companheira, Maria Antônia, em uma quermesse de Bonfim Paulista. E cá está a bicicleta em mais uma história. Para namorá-la, pedalava 25 quilômetros para chegar
à fazenda onde ela morava. O namoro durou só 10 meses. Já foram logo para o casamento. Tiveram cinco filhos, “todos encaminhados”, como Augustinho repete. Em mais de 25 anos dirigindo ônibus pelas ruas de Ribeirão, colecionou histórias. Atoleiros em bairros ainda de terra, amizades com muita gente querida ainda hoje. - Olha, eu nunca fui roubado. Sempre tratei todo mundo bem! Depois que vendeu o carro para construir a casa, começou as viagens de bicicleta. Ele conta que saía de Bonfim por volta das 3h para chegar na garagem, próxima à avenida Bandeirantes, por volta das 5h. Trabalhava até às 12h e voltava para casa. Depois, ia das 18h até 0h. E pedalava na madrugada. - Nunca me aconteceu nada. Naquele tempo não tinha perigo. A situação da família melhorou com a valorização da região de Bonfim Paulista. Tinham terrenos por ali, que foram vendidos e trouxeram prosperidade. - Hoje a gente vive muito bem! Mas sou muito simples, viu?
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Augustinho carrega um coração gigante, que se deixa ver na sua risada gostosa e bem-humorada. A solidariedade já faz parte da trajetória há bastante tempo. - Cansei de levar bronca por quebrar galho de criança, idosas que não tinham o dinheiro para a passagem. Às vezes, tirava do meu bolso. Sempre fui levando desse jeito! Na romaria de Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro, sua casa/ chácara se transforma em parada para os romeiros. No quintal, uma imagem grande da santa faz a recepção. A família construiu dois banheiros a mais, para que os visitantes possam retomar a energia para a caminhada e, todo ano, oferecem suco, água, bolos, biscoitos feitos na madrugada. Para Augustinho, é uma forma de gratidão. - Eu faço o que posso porque nunca me faltou nada!
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Conheceu a associação Califórnia Volks em um passeio ao Shopping, cerca de 11 anos atrás. Já estava aposentado fazia mais de uma década. Ficou encantado pelos carros antigos e decidiu também colecionar. Os associados encontraram, então, uma forma de transformar o hobby em solidariedade. O grande evento com a arrecadação de toneladas de mantimentos já é realizado há uma década! - Eu não sei nem explicar... poder ajudar é muito bom! Já está preocupado. Torce para que a pandemia vá logo embora e o evento do ano que vem possa ser realizado. A ajuda não pode parar! Seu Augustinho diz, algumas vezes, que é um “homem simples”. Não gosta de praia, viagens: - Não perco tempo com isso! Prefere investir seu dinheiro nos carros. E não economiza! Gastou mais de R$ 50 mil para restaurar sua kombi azul, uma paixão. - Ficou bonitona, né? Viaja só para os eventos de carros antigos. Já foi para tudo quanto é cidade do interior de São Paulo, sempre com a esposa, sua companheira. - A gente tem que fazer o que gosta! E eu gosto mesmo é de peça velha! Em sua simplicidade, vai compartilhando sabedoria. - Existem pessoas com tanto orgulho, tanta coisa. Só pensam em si próprias. A vida da gente é muito curta. Eu queria viver 100 anos para ajudar os outros! Posa para a foto segurando a bicicleta toda brilhante, dentro do fusquinha que já levou a família para Aparecida do Norte, na kombi restaurada que arranca suspiros. História contada e ilustrada com suas colecionáveis conquistas.
Foto Daniela Penha
Foto Daniela Penha
Foto Daniela Penha
Edinho
Foto Daniela Penha . Ilustração Cordeiro de Sá
Edinho leva toneladas de alimentos que seriam descartados para quem precisa
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- Tem tomate hoje? Edinho conhece cada corredor do Ceagesp de Ribeirão Preto de “ponta a ponta”, como diz. Todos os dias, repete a rotina. Passa de banca em banca com seu carrinho coletando legumes, verduras e frutas que não foram vendidos. - Isso tudo poderia ir para o lixo! Não pode, não! A banca de tomate, ele diz, é a que mais oferece doações. Enquanto recolhe os frutos vermelhinhos, os amigos do lado vão avisando: “Ô, tem jiló também”, diz um. “E pimentão”, avisa o outro. Um funcionário vem com uma caixa cheinha de acelgas e, em poucos minutos, o carrinho de Edinho está lotado de mantimentos. São 15 caixas a cada viagem. Todos os dias chega a encher e esvaziar o carrinho quatro vezes. Se está lotado de tomate pesa em torno de 300 quilos. Cada produto tem um peso diferente, mas, de toda forma, ele não passa uma manhã sem carregar centenas de quilos de alimentos. Se é dia de grande movimento, são mais de quatro toneladas arrecadadas. E não reclama. Quanto mais pesado o carrinho, mais mesas estarão cheias. - Eu fico mais feliz trabalhando assim, com bastante. Não gosto quando dá pouquinho. Assim, mais pessoas são ajudadas. Geralmente, trabalham em dois. Se tem muita doação, pedem reforços para um terceiro. Depois da coleta, levam as caixas para uma van. Passam a manhã nesse caminho: de box em box, buscando aquilo que poderia ser descartado. Quando o movimento vai diminuindo, levam tudo o que foi arrecadado para o espaço do Banco de Alimentos do Ceagesp. Edinho, então, faz a triagem entre o que está bom e o que, de fato, não pode ser aproveitado. Essa parte é minoria, ele diz. A maior parte dos alimentos que poderiam virar lixo não fosse a ação do Banco vai para a mesa de instituições sociais de toda a região. São 41 entidades fixas, cerca de 10 eventuais, além do Banco de Alimentos da Prefeitura de Ribeirão
Preto e o programa Mesa Brasil Sesc Ribeirão. Edinho é quem organiza tudo. Liga para as instituições retirarem as doações, buscando dividir ao máximo. Em média, são doadas de 20 a 25 toneladas de alimentos ao mês. Com o Mesa Brasil Sesc Ribeirão a parceria já soma seis anos, com a doação de 155 toneladas de vegetais. Só neste ano, foram 16 toneladas doadas pelo Bando de Alimentos do Ceagesp e levadas para instituições sociais de Ribeirão e região pelo programa do Sesc Ribeirão Preto. União de forças para evitar o desperdício e ajudar quem precisa! - Eu gosto do meu trabalho porque a gente ajuda as pessoas que estão passando necessidade. Quem trabalha por ali tem certeza: a simpatia de Edinho – e sua insistência também – é que garantem tão alta arrecadação. - Tem tomate hoje? Ele não se cansa de perguntar. O nome é Ederson Luiz Tofetti, 40 anos, mas todo mundo o conhece por Edinho. Ele estima que trabalha no Ceagesp há 14 anos. É contratado pela terceirizada que cuida da manutenção. Nesse tempo todo, as empresas já mudaram, mas ele continua no cargo, a pedido da administração. - O pessoal gosta de mim. Todo mundo me conhece! Diz, todo orgulhoso. Nem sempre foi do Banco de Alimentos. Passou os primeiros anos atuando “na vassoura”, em suas palavras. Trabalhava na limpeza e, garante, era um dos mais empenhados. - Eu trabalhava bem! Comemorou a mudança de função. O Banco tem todo seu carinho. O motivo? - Eu mesmo quase passei necessidade. Meu trabalho é muito importante. Ajudar as pessoas. A gente não tinha nada. Não tinha nem jeito de comprar.
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Nasceu em Jurucê, pequeno distrito de Jardinópolis. O pai sempre trabalhou na lavoura e as contas da casa eram mantidas com esforço. São dois filhos. Edinho conta que começou a ajudar ainda criança. - Eu gostava. Era bom para a gente! As coisas melhoraram um pouco quando a família se mudou para Jardinópolis, onde conseguiu comprar uma casinha. Ele começou a trabalhar “na roça” ainda adolescente. Deixou a escola na quinta série e explica os motivos, com a sinceridade que lhe é tão parte: - Eu era ruim de cabeça. Não gravava na memória. Estudava e daqui a pouco esquecia tudo. Então, fui trabalhar. Quando entrou no Ceagesp conta que ficou “perdidinho” entre as centenas de bancas e corredores do espaço enorme. São 440 empresas e 880 boxes divididos em 13.231 metros de área construída. Hoje, sabe onde fica cada tomate. - Aqui sempre foi minha casa! Por cerca de nove anos trabalhava de bicicleta. Saía de Jardinópolis por estrada de terra, cortando caminhos. Pedalava cerca de 12 quilômetros por dia. Hoje, já consegue ir de ônibus. Sai por volta das 6h e às 9h está no trabalho. Nunca dirigiu veículo motorizado e avisa: - Só dirijo meu carrinho de legumes! É preciso muita destreza para atravessar as curvas e rampas sem deixar uma abobrinha cair no chão! - Tem que tomar muito cuidado para não tombar, ó. Vira assim, devagar. Vai exibindo suas manobras. Edinho mora com os pais, lá em Jardinópolis. Com seu humor peculiar, diz que não se casou, mas “está tentando”: - Tá difícil, viu? Entre os hobbys nos finais de semana em folga está a cozinha. - Eu faço pastel, pudim. Domingo passado teve churrasco! Não gosta de tirar férias, pensando nos alimentos que podem ser desperdiçados.
- Eu fico triste. Sobra muito... Diz que gosta mesmo é de estar no trabalho. - Tem dias que vem alface campeã, couve. São aqueles que estão bonitos, sabe? Bem novinho! Assim como conhece de “ponta a ponta” tudo ali, é difícil quem não o conheça de volta. Sua simpatia é rotina no Ceagesp. O que, talvez, nem todos soubessem é o tamanho do seu trabalho. Edinho leva toneladas de alimentos que seriam descartados para a mesa de quem precisa! Quanto mais pesado o carrinho, mais mesas estarão cheias: é a conta que faz todos os dias, enquanto empurra centenas de quilos. “O pessoal só doa desse tanto por causa do Edinho”, repete um dos funcionários da administração. E o carrinho segue subindo e descendo, sem perder um tomate nas rampas. - Aqui todo dia tem tomate! É o maior colhedor que tem! Se as caixas estão cheias, Edinho tem um bom dia.
Foto Daniela Penha
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Foto Daniela Penha
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Gabriel
Foto Daniela Penha . Ilustração Cordeiro de Sá
Gabriel: filho da Zenaide e da Casinha Azul
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As árvores cheinhas de flores brancas dão as boas-vindas. Na esquina da avenida, a casinha azul se destaca. Ali, crianças e adolescentes encontram caminhos. Gabriel Montanheri Dalalio é conhecido além do nome. É chamado de “filho da casa”. Desde a adolescência, fez da “Casinha Azul” um quintal. Hoje, é coordenador da instituição que lhe abriu portas. A história começa antes, entretanto. Divide a coordenação com sua mãe, Zenaide Dalalio. Ela está ali há 14 anos, acompanhando o crescimento do trabalho. Mãe e filho sincronizam os passos. Duas gerações na tarefa de fazer o bem! - Filho da casa: que honra e que fardo! Para ele, a nomeação vem acompanhada de responsabilidade. - Quantos já passaram por aqui? Não sou o único. Mas esse é um caminho que não se compra. Se conquista com muito trabalho e transparência. A casa é parte da sua história – e vice-versa. - Eu sou daqui. A casinha me mudou. Hoje, são 128 crianças e adolescentes atendidos, de seis a 14 anos, em duas turmas, manhã e tarde. - Nós começamos com cinco crianças, em um espaço pequeno. Zenaide relembra. A instituição promove um trabalho de fortalecimento de vínculos com meninos e meninas em situação de risco, no Jardim das Palmeiras, em Ribeirão Preto. Gabriel explica: os riscos não estão só na vulnerabilidade econômica. Ali, atendem crianças expostas à violência, drogas, abandono. - É um trabalho de toque, construção, tempo. Queremos promover a valorização dessa criança e desse adolescente. Quebrar um ciclo de hábitos, muitas vezes, agressivos. Os pequenos e grandinhos têm aulas de música, esportes, recebem
orientações sobre ética, cidadania, virtudes. O trabalho é pautado por quatro bases, que Gabriel chama de hábitos: amor ao próximo, organização, economia e saúde. Os adultos do futuro, assim, aprendem sobre respeito, autonomia, preservação do meio ambiente, alimentação saudável, higiene, saúde mental: uma bagagem extensa para carregarem ao longo de todo caminho. - Nós queremos dar autonomia para cada um deles, com as ferramentas para que se realizem e possam ir em busca do que precisam. Em dias normais, a Casinha abre as portas às 7h e encerra as atividades às 16h. Oferece café da manhã, almoço, lanche da tarde. A instituição é uma das beneficiadas pelo programa Mesa Brasil Sesc Ribeirão. Desde o início da parceria, em 2013, a Casinha já recebeu 32 toneladas de alimentos, 2,5 toneladas só neste ano. Em tempos de pandemia e quarentena, a instituição continua acolhendo as famílias. A equipe envia atividades on-line, monta cestas de alimentos e entrega para quem precisa. Gabriel aguarda, ansioso, que logo a casa possa estar cheia dos barulhos da criançada correndo, dos adolescentes aprendendo música. - Ter fome é muito triste. Você dá a comida, algo básico, e a pessoa te coloca no céu. É muito sério. Quando eu falo que trabalho aqui algumas pessoas dizem: ‘Trabalha com criança? Que fofo!’. Onde está a fofura? É a romantização da dor alheia. Esse é o fardo.
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Para contar sua história, Gabriel, 30 anos, passa pelas raízes. A presença da avó era diária. Com ela, ele aprendeu a cozinhar, lavar roupa, cuidar. Filho de pai marceneiro, mãe lutadora. - Ela sempre fez de tudo: bolos, salgadinhos, costura. Depois que eu e meu irmão entramos na escola ela foi trabalhar como doméstica, olhava crianças.
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O contato com a Casinha Azul teve início com o centro espírita, pontapé na fundação da instituição. Gabriel e sua família frequentavam o espaço religioso e começaram a ajudar no trabalho social. A Casinha começou em 2000, com cinco crianças e uma pequena área. Zenaide e Gabriel participam desde o início dessa história. A mãe foi contratada para serviços gerais há 14 anos e depois se tornou coordenadora. Desde que tinha 14 anos, Gabriel é voluntário, frequenta os eventos, foi se tornando “filho”. Quando estava com 15, 16 anos, ele passou a dar aulas de desenho para as crianças como voluntário. Os diretores da casa perceberam que o jovem levava jeito. Pagaram, então, um curso para que ele aperfeiçoasse o dom. Para a faculdade, também teve apoio de “padrinhos”. Fez Arquitetura com ajuda financeira para as mensalidades. - Nas férias, eu ia para a Casinha. Essa ligação sempre foi muito forte. Depois da formatura, Gabriel passou dois anos buscando espaço na área. Trabalhou, tentou opções, mas nada parecia completo. Foi chamado, então, para assumir uma turma de adolescentes na instituição em 2014. Duas educadoras já haviam tentado, sem sucesso. Era para ficar pouco tempo. Deu tão certo que veio o convite para ficar e, pouco depois, para assumir a coordenação, em 2015. Não foi mais embora. - A Casinha me mudou mais do que eu contribuí aqui. É preciso ter uma bagagem de valores. Não é só técnica. É o olhar da tolerância. Com crianças e adolescentes, é preciso ser espelho. Os pequenos estão sempre atentos ao que o outro faz. Gabriel mudou hábitos e, hoje, ensina a mudar. - O Mesa Brasil mudou minha vida! Os hábitos alimentares saudáveis ficavam mais na conversa do que na prática. Até uma palestra que pôde assistir, pelo programa do Sesc Ribeirão. A palestrante, ele conta, foi prática e sincera. - Ela pegou no nosso íntimo, na nossa vida mesmo. Ele passou a tomar mais água, consumir vegetais e verduras, a
compartilhar isso com os meninos e meninas da casa e também com os outros funcionários. - A gente incentiva que a criança prove tudo. Sempre conversando: você já comeu? Como sabe que não gosta? Prática e teoria, agora, andam juntas! E é preciso. A instituição recebe doações de todo tipo de legumes e é necessária muita criatividade para que nada estrague, tudo se transforme. - Não adianta receber e ir para o lixo. É preciso criar: o que dá para fazer com a berinjela de um jeito que as crianças irão gostar? Gabriel, aos 30 anos, diz que está em dúvida sobre os caminhos que irá seguir. Pensa em voltar para a arquitetura, mas também em se aperfeiçoar na área social. Entende, de toda forma, que seu trabalho precisa ser ponte. - Se eu sair não pode ficar um buraco. Temos que tentar transformar essas instituições em autossuficientes. Porque, senão, o fundador falece, por exemplo, e o trabalho acaba. Nós estamos lidando com vidas, com o futuro de pessoas. De uma coisa tem certeza. Será sempre “filho”, que volta à casa e dela nunca se esquece. - Eu amo a Casinha. Sou feliz em poder fazer parte dessa história. Isso me faz muito feliz. A mãe, Zenaide, é só orgulho: - Dentro de mim, é missão cumprida. Ele está encaminhado, está aprendendo e eu também aprendo muito com ele. Na esquina da avenida, a casinha azul se destaca. Ali, Gabriel ajuda a mudar vidas e vê a sua também ser transformada.
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Conheça mais sobre a Casinha Azul: http://www.casinhaazul.org.br/index.php
Ações Sesc Ribeirão 2020
Foto Daniela Penha
Foto Daniela Penha
Foto Daniela Penha
Nivalda
Foto Daniela Penha . Ilustração Cordeiro de Sá
No assentamento Mário Lago, Nivalda luta pela terra e pelo espaço da mulher
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É dia de montar as cestas. No barracão, mulheres e adolescentes distribuem as tarefas. Estão em família. Vão pesando e organizando abobrinhas, alface, tomatinhos, hortelã, espinafre. Mesas mais verdes e cooperativa em ação. - Alimentação é aquilo que você come para viver, não para adoecer. A história de Nivalda com a terra vem de gerações, herança deixada pela família. Seu pai trabalhou a vida toda plantando cacau, frutas, legumes. Ela, então, não tem dúvidas: - A gente se alimentava da produção do meu pai, vivia livre no campo. Por isso, nenhum dos sete irmãos tem problemas de saúde. Hoje eu sei que a gente é aquilo que a gente come. Em sua trajetória tem muita história triste, mas vem sempre temperada com altas pitadas de garra. Nivalda Alves de Jesus, 48 anos, nasceu e cresceu na Bahia, começou a ajudar os pais aos sete anos e a trabalhar como doméstica aos 11. Se casou aos 15, teve sua primeira filha aos 18 e outros sete em escadinha, todos de parto normal. Enfrentou a violência doméstica e conseguiu livrar-se dela com muito apoio da família e dos amigos que fez ao longo da trajetória. Trabalhou muito – e segue trabalhando. Foi morar no assentamento Mário Lago, em Ribeirão Preto, quando o movimento estava começando, 16 anos atrás. Vendeu a casa própria que havia conquistado para lutar pela terra. Ali, as mulheres têm o protagonismo. Ela é coordenadora da Cooperativa Mãos da Terra (Comater), formada por mulheres, participa da coordenação do assentamento e da direção regional do MST (Movimento Sem Terra). - Há muito machismo, mas eu enfrento o que tenho que enfrentar. É preciso coletividade e formação, porque sozinhas não vamos a lugar nenhum e sem o conhecimento não conseguimos nada.
Localizado na Fazenda da Barra, o assentamento foi regularizado em 2007, por meio da reforma agrária. São cerca de 270 famílias assentadas vivendo, em grande parte, da agroecologia. São quatro cooperativas em atividade. Com Mãos da Terra, formada por 60 integrantes, vegetais orgânicos, produzidos sem agrotóxicos, chegam para Ribeirão e região por meio de parcerias, projetos, feiras. Hoje estão, inclusive, na merenda escolar, por meio de convênios firmados com prefeituras como a de Ribeirão Preto. - É muito bom saber que as crianças vão comer frutas, verduras e legumes naturais. Poderão crescer com uma alimentação diferenciada, consumindo vegetais, coisas que são realmente alimento. A cooperativa também é parceira do Mesa Brasil Sesc Ribeirão, com a participação nas feiras agroecológicas e em ações do programa. Nivalda relembra a oficina em que cozinheiras de 36 entidades que recebem doações de alimentos do Mesa Brasil puderam conhecer como são cultivados os orgânicos e, depois, aprenderam diversas receitas com a mandioca. A de pizza se tornou uma das favoritas. - Eu nunca tinha pensado que dava para fazer pizza de mandioca! Tem que ver como fica gostoso! Para Nivalda, a terra é sempre protagonista. E deve ser tratada como tal. - É da onde a gente veio, para onde a gente vai, o que nos mantém.
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Lá em Santa Cruz Cabrália, Bahia, Nivalda cresceu rodeada de muito verde. Seus pais trabalharam por muito tempo para fazendeiros, plantando e colhendo vegetais. Os sete filhos criaram ali os vínculos com a terra. Aos 11 anos, ela começou a trabalhar como doméstica – família grande, todos tinham que ajudar. Foi morar na casa da “patroa”, como diz, e conseguiu “estudar um pouco”, nos intervalos do trabalho na casa. Na adolescência, seu pai se mudou para a cidade e entrou para o MST (Movimento Sem Terra).
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- Ele foi lutar para ser assentado, ter a terra própria. Ela, então, passou a trabalhar como balconista, atendente em comércios. Se casou aos 15 anos, com um homem de 21. Parou os estudos. - Era paixão sem juízo... fui morar mais ele. Se mudaram para Ribeirão em 1994, já com três filhos. Ele veio para trabalhar como pedreiro e ela, que tinha 21 anos, foi se virando como pôde. Trabalhou como diarista, cozinheira. - Com sete anos eu trabalhava. Toda vida fui mulher independente. O marido, porém, não deixava que ela estudasse, fazia de tudo para podar suas asas. Foram 29 anos de relacionamento. - Sofri violência física, psicológica, de todo tipo. Mas consegui me libertar daquilo. Foi preciso apoio dos filhos, dos amigos, das mulheres do assentamento para se divorciar quatro anos atrás. Diz que os aprendizados que conquistou no movimento para a terra foram os aliados. - A formação te dá empoderamento, força e apoio. A família foi morar no assentamento em 2005. Uma vizinha que conheceu na igreja estava vendendo farinha, polvilho, verduras e Nivalda quis saber de onde vinham. Se interessou em vender também, mas a vizinha logo respondeu: ‘Vender não, mas tem vaga para quem quiser participar da luta’. - Eu vendi a minha casa e vim! No começo, ela ia para o assentamento, mas voltava para sua casa. Depois de alguns dias, não conseguiu mais. - Eu tomava banho, dormia na cama, mas ficava pensando neles, que estavam na luta e não tinham nada disso. Começaram do zero no assentamento. E ela nunca mais foi embora. - O lote é no nome da mulher. Nós conseguimos esse direito. E eu fiz parte disso.
Nivalda acorda entre 5h e 6h para preparar as cestas ou gerenciar os projetos. As atividades são diárias – para a alegria de todos. - A gente vive da terra! Quando chegou ao assentamento, conseguiu terminar o Ensino Médio. Agora, pensa em continuar estudando. - A liberdade te dá tudo! Antes da separação eu não podia... Pensa em fazer faculdade. Algo voltado para a terra, como era de se imaginar. - É isso que eu sei que é vida, pele da minha pele, está no meu sangue. Quer que, um dia, as pessoas compreendam a importância do meio ambiente e dos trabalhadores e trabalhadoras da terra. - A gente precisa da terra, pelo menos, quatro vezes ao dia. Ou seja, precisa de um trabalhador rural quatro vezes ao dia. Quando tem apoio, tem mais força para quem produz, para quem ajuda a produzir e quem recebe. É preciso entender que nós somos parte de tudo o que é vida, ela diz. - Se não respeitamos o meio ambiente, estamos desrespeitando a nós mesmos, aos nossos filhos porque tudo vem da terra. No dia de montar a cesta que seria enviada para algumas comunidades por meio de parcerias, faltou um pouco de espinafre e jiló. Nivalda pegou o carro e foi na terra dos vizinhos, cooperados também. Colheu os vegetais, sem dificuldade. - Tem que colocar a mão na massa, na terra. Depois, voltou toda contente com a cesta mais recheada. - Eu enfrentei Ribeirão Preto para estar à frente da cooperativa, criar meus filhos, entregar merenda nas escolas: papeis que eles diziam ser dos homens. Eu me sinto realizada. A força de Nivalda tem raízes bem aterradas, cultivadas com muita coragem e sem agrotóxicos. Ela, então, vai crescendo igual árvore frondosa, em direção às nuvens.
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Foto Daniela Penha
Foto Daniela Penha
Foto Daniela Penha
Foto Daniela Penha . Ilustração Cordeiro de Sá
Marlene
Marlene fundou a Adevirp há duas décadas para dar asas às crianças cegas
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Na casinha de pau a pique onde Marlene foi criada a simplicidade não deixou faltar o principal: - Minha família sempre nos tratou como presentes de Deus! Cresceu na roça, rodeada de bichos, plantas e muito amor. Nasceu prematura e precisava de uma estrutura hospitalar que a vida no campo, lá em 1958, não oferecia. Os pais e avós, então, se apegaram à fé que sempre cultivaram. - A gente considera que minha vida foi um milagre mesmo. Sobreviveu e sua existência foi celebrada em cada momento. O diagnóstico da cegueira, que veio por volta dos seis meses de vida, não foi limitador. Com as irmãs a postura foi a mesma. Marlene é a primogênita de três filhas cegas que nunca tiveram suas asas cortadas. Pelo contrário. - Eu nunca na vida reclamei por não enxergar. Sou agradecida. Se eu fosse nascer de novo, gostaria de nascer cega. Quando pequenina, quis um cavalo. Seu primo, que era menino e enxergava, tinha. E ela, então, pensou que não poderia ter. Mas o avô logo mostrou o contrário. - Ele procurou um mansinho e pequeno que desse certo para mim. Disse: ‘não é porque você não enxerga que não pode andar a cavalo’. Conta que, naquele tempo, a escola na zona rural não acolhia crianças com deficiência. Quando os primos e primas foram estudar, e Marlene e as irmãs ouviram que não poderiam ir, a avó fez de tudo para remediar o choro. - Ela começou a me ensinar os afazeres do sítio: fazer queijo, cuidar das galinhas. Mas os pais não hesitaram em mudar para a cidade logo para que as três pudessem ir para a escola. Todas as irmãs somam hoje mais de uma formação universitária.
Marlene, por tanto amor que recebeu, decidiu dedicar sua trajetória a também compartilhar afeto. Há 22 anos, junto com a rotina de professora, criou a Adevirp (Associação dos Deficientes Visuais de Ribeirão Preto e região), onde acolhe 200 pessoas com deficiência visual, de todas as faixas etárias, nutrindo a mesma energia com a qual sua família lhe ensinou a caminhar. Além de Ribeirão Preto, a Adevirp atende pessoas de 33 cidades da região com uma estrutura pioneira. Esportes, artes, mobilidade, informática são alguns dos conhecimentos transmitidos. - Meu sonho sempre foi ajudar crianças cegas a descobrirem que são muito especiais. Não são menos do que ninguém. A entidade é uma das beneficiadas pelo programa Mesa Brasil Sesc Ribeirão. Cadastrada desde 2014, já recebeu 23 toneladas de alimentos, oferecidos aos alunos atendidos durante todo o dia de atividades. Antes da pandemia, a instituição funcionava das 7h30 às 17h30. Agora, adaptaram o trabalho, mas não paralisaram. Seguem! 55
A casinha onde Marlene Taveira Cintra nasceu e cresceu ficava em Pedregulho, interior de São Paulo. Viveu no sítio até por volta dos 10 anos, quando uma professora visitou sua casa e incentivou os pais a levarem as filhas para estudar em Franca. A família colocou a mudança em um caminhão e foi em busca do aprendizado. Moravam longe da escola e a mãe, então, caminhava um tantão para levar o trio a pé. O pai, que sempre trabalhara com gado e agricultura, teve que encontrar novos caminhos. Trabalhou na companhia de luz, com estradas, em uma fábrica de borracha, até conseguir comprar um táxi. - Até hoje ele se apresenta como ‘O pai das meninas’. Tem muito orgulho! Hoje, Marlene e as irmãs cuidam dos pais, que já são idosos. Amor retribuído! Por volta dos 10, 11 anos, ela recebeu uma classificação que poderia reduzir suas asas. Era introvertida, tímida e, então, a professora a taxou como “retardada”, palavra tão triste e de sentido limitador. Não se abateu. Continuou a voar.
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- Eu gostei tanto daquela professora achar que eu não estava entendendo nada. Eu pensava: ‘Ela acha que eu não sei?’. Me motivou a ter um amor muito grande pelas crianças. As pessoas acham que por não enxergarmos não somos capazes de sermos felizes, de lutarmos pelos nossos direitos. E nós somos. Eu pude mostrar isso. Na adolescência, teve seu primeiro emprego em uma loja de calçados e passou a estudar no período noturno. - Eu sempre quis ir para a universidade, sair de casa, vencer na vida e fazer o bem para as pessoas. Escolheu cursar Psicologia na Universidade Católica dos Padres Salesianos, pela religião que sempre foi muito presente em sua trajetória. No final da década de 70, se mudou sozinha para Lorena, onde morou na Santa Casa, com a ajuda de uma freira. Ficou conhecida pela cidade. - Todos achavam diferente uma menina morando no hospital! Um médico, então, a convidou para dar aulas, conhecer as crianças cegas da periferia. Seu caminho como professora começou. Iniciou um projeto junto à prefeitura da cidade e foi construindo sua carreira. Terminou Psicologia e já começou Pedagogia. Continuou atuando com a Secretaria de Educação de Lorena, até receber uma proposta para integrar a Secretaria Estadual da Educação em Ribeirão Preto, trabalhando com educação inclusiva. - Eu chorei muito. Não queria vir. Mas vim para servir a Deus e cuidar das crianças que não enxergam. Chegou em março de 1990 e fincou raízes. - Eu fui a primeira professora cega da cidade. No começo foi muito difícil. Marlene trabalhou na rede estadual e também na rede municipal, se especializando mais e mais. Somou mais de 40 anos como professora. Atuou no Egydio Pedreschi, escola municipal voltada para pessoas com deficiência, até se aposentar, em 2019. Percebia, entretanto, os obstáculos. - A gente tinha muitas dificuldades. Não havia especialistas, equipamentos adequados, equipe multiprofissional.
Decidiu que era preciso mais. - Eu vivia fazendo pizzas para vender e comprar máquinas de braile, dar possibilidades que a rede não tinha. Lançou a semente da Adevirp com muita garra e em pouco tempo a viu florescer. Começaram os trabalhos em março de 1998. Em 2006, ganhou o prédio onde funciona a instituição. Era um espaço abandonado, que exigia uma grande reforma. Ganhou um fusca, buscou patrocínio para restaurá-lo, fez uma rifa e conseguiu R$ 49 mil para começar a reforma. - Muitas das crianças que nós atendemos hoje são psicólogos, advogados, profissionais, constituíram família. Hoje, a instituição conta com infraestrutura e 32 colaboradores para atender seus 200 alunos. Marlene continua batalhando por recursos, patrocínio, meios de continuar e expandir. - Eu luto para que nossos alunos com deficiência possam contribuir com o orçamento familiar, tenham seus trabalhos, vivam do que produzam e não tenham piedade de si mesmos. Com a pandemia, foi preciso reformular, proporcionar atendimentos online. Ela e a equipe agiram rápido. - Nós não pensamos ‘o que vamos fazer?’. Mas ‘como vamos fazer?’. Vamos continuar educando, atendendo famílias. Antes eles vinham, agora a Adevirp vai até os seus lares. Marlene não tem filhos. Diz que escolheu viver uma vida “consagrada”, totalmente dedicada às “suas crianças”. - Minha vida é isso mesmo! É aqui! O dia em que Deus me chamar vou poder dizer a Ele: para as crianças que o Senhor me deu, eu não fiz tudo o que elas precisavam, mas fiz tudo o que pude. Aos 62 anos, não cogita parar. - Quero trabalhar enquanto eu viver! Compartilha sua história e continua a ensinar. - A gente veio para o mundo é para ter asas! As suas, desde sempre, estão a voar, ajudando mais e mais crianças a também alçarem voos.
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Foto Daniela Penha
Foto Daniela Penha . Ilustração Cordeiro de Sá
Pinha
Pelas mãos de Pinha, vegetais picadinhos chegam para muitas mesas
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Oripia Maria de Jesus é o nome de batismo, mas desde pequena escolheram chamá-la de Oripinha. Depois, foram cortando sílabas e, há muito tempo, é conhecida carinhosamente por Pinha. - Só me chamam assim! O semblante sério logo dá lugar para a simpatia. - Eu tenho cara de brava, mas não sou brava, não. Sou tranquila. É tranquila, mas não compreende o trabalho feito de qualquer jeito, sem comprometimento. - Se não tiver amor, se fizer só por fazer, pode atrapalhar uma produção inteira. Uma folha mal selecionada estraga toda a bandeja. Pinha nasceu em Minas Gerais, mas só viveu por lá até os cinco anos de idade, quando seus pais se mudaram para o interior de São Paulo. Passaram dois anos em Franca e depois, quando ela tinha sete, se fixaram em Ribeirão Preto, de onde Pinha não mais saiu. De família grande, é a segunda mais nova entre sete irmãos. O pai era operário e a mãe lavava roupas, costurava, limpava. Terminou o Ensino Médio e logo se casou, aos 21 anos. A primeira filha chegou em seguida. Pinha já trabalhava em uma grande empresa de ração animal e seguiu com a rotina. Quando veio o segundo filho, porém, decidiu deixar o trabalho com a proposta de voltar quando os dois estivessem maiorzinhos. Engravidou do terceiro três anos depois e, então, o plano precisou ser adiado. - Eu não tinha onde deixar três crianças pequenas. Fiquei por conta deles. E o tempo passou... Os filhos foram crescendo, escolhendo seus caminhos. A vida foi mudando. Depois de 18 anos casada, Pinha se separou. O plano de voltar ao mercado de trabalho foi tomando mais forma nessa mesma época. Aos 40 anos, entretanto, não sabia por onde recomeçar. - Tinha ficado muito tempo fora do mercado...
Foi seu ex-sogro quem falou da Regina, dos picadinhos, trabalhando na obra da casa dela. As duas eram vizinhas, mas só se conheceram quando começaram a trabalhar juntas, 18 anos atrás. - A Regina estava começando. Era tudo feita à mão, tudo no início. Hoje a gente vê a proporção que tomou... é muito gratificante! Depois de quase duas décadas, o trabalho já se tornou amizade, afeto. - Muita coisa nós aprendemos juntas. Erramos, perdemos para aprender. Pinha conta. Regina complementa: - Ela é uma pessoa muito querida por mim e por todos. Faz parte disso tudo. A Regina Picadinhos se tornou conhecida na cidade toda por levar vegetais já picados e lavados para as mesas. A história dela começou com uma banca na feira e muita vontade. Picava couve a pedido da clientela e, pouco a pouco, começou a ampliar a gama de opções. Um cliente pedia cenoura, o outro abobrinha e ela passou a montar as bandejinhas. Quando conta sua história, Regina Riroko Hatano Kogawa diz que “cada bandejinha tem a história de um cliente, porque foi criada pela necessidade de cada um”. Hoje, ela possui lojas próprias, entrega em supermercados, feiras livres, estabelecimentos de todo tipo. Regina, desde sempre, prefere não revelar a quantidade de vegetais que processa e comercializa ao mês. São muitas toneladas, não há dúvida. Um outro procedimento se dá, porém, em paralelo à comercialização. Para evitar o desperdício, o que não é vendido é doado para instituições e programas como o Mesa Brasil Sesc Ribeirão. Parceira do Mesa desde 2015, a Regina Picadinhos já doou 30 toneladas de alimentos que chegaram à mesa de quem precisa. Só durante a pandemia foram 1,3 toneladas doadas. Além dessa doação, outras instituições da cidade retiram semanalmente as bandejinhas que não foram consumidas nos supermercados e feiras. Engrenagem do bem, que deixa mais colorida a mesa de muita gente. - É muito bom poder ajudar.
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Quando Pinha entrou, todos os procedimentos eram feitos à mão e a equipe era pequena. - Eu comecei lavando as verduras. Não conhecia nada. Tudo o que sei aprendi aqui. Algumas verduras, inclusive, eu conheci trabalhando. Agora, ela coordena a equipe de produção, formada por cerca de 30 funcionários. Continua participando das feiras de terça e domingo junto com a Regina, mantendo as raízes que deram início ao negócio. O processo para transformar um legume inteiro em pedacinhos é criterioso, Pinha ressalta. Começa na escolha de cada legume ou verdura, passa pela higienização, corte, montagem das bandejinhas. - Duas folhas erradas que passam no meio se tornam muitos pedacinhos de uma salada. Isso vai acabar com muitas bandejas. Ainda que hoje muita coisa seja feita de maneira automatizada, o artesanal continua predominante em cada etapa. - Tudo o que a gente faz, mesmo que seja processado na máquina, tem nosso toque. Não é automático. As folhas são selecionadas à mão, os legumes maiores são cortados na faca. É preciso cuidado também na montagem de cada bandeja. - A gente monta com carinho, coloca cada coisa, vê se tá bonito, se tá combinando. Pede uma opinião para a colega do lado. Em tudo o que a gente faz tem que ter amor. A pessoa que compra percebe se foi feito com carinho. Levando colorido para a mesa de outras pessoas ela vai ampliando também o seu próprio colorido. Diz que sempre foi “natureba”. Consome pouca carne, poucos alimentos embutidos e não dispensa um prato de salada. Ali, entre as bandejinhas, amplia sua gama de receitas e vê a prática se repetir. - Tem funcionários que chegam aqui sem gostar de nada e começam a comer todo tipo de legume, salada. Para Pinha é bem mais do que cumprir jornada de trabalho. Aos 58 anos, não pensa em aposentadoria. Quer continuar levando colorido para as mesas. Como ela já repetiu, o ingrediente principal de cada bandeja não tem forma. - Nosso critério tem que ser muito certinho. Estamos fazendo para alguém, que precisa receber o melhor. Em tudo o que a gente faz tem que ter amor. LINK: https://historiadodia.com.br/pelas-maos-de-pinha-vegetais-picadinhos-chegam-paramuitas-mesas/
Foto Daniela Penha
Foto Daniela Penha
Willian
Foto Daniela Penha . Ilustração Cordeiro de Sá
Com apoio e acolhimento, William pode planejar o futuro
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William tem 13 anos e uma porção de planos para o futuro. Quer fazer faculdade de Educação Física para se tornar professor. Já pediu orientações para um amigo, que tem essa mesma profissão. - Ele já me falou o que eu tenho que fazer para conseguir! Vou estudar bastante! Gente para ajudar não vai faltar. Além dos pais, o adolescente tem uma segunda casa, que fica a cinco minutos de caminhada daquela onde vive com a família, no Jardim Progresso, zona Oeste de Ribeirão Preto. - Eu não sou muito de conversas, mas lá no Núcleo consigo me abrir. Eles escutam a gente, entendem o que estamos sentindo. A mãe, Maria, conta que chegou ao Núcleo Dom Bosco, unidade do projeto Fraterno Auxílio Cristão, aos prantos. Precisava trabalhar e de um lugar seguro para deixar o filho, que na época tinha por volta dos oito anos de idade. Até os seis, ele ficava na creche. Depois, já grandinho, entrou na escola, por meio período. O restante do dia era de preocupação para a mãe, que é faxineira. - Ele ficava sozinho em casa e eu não conseguia finalizar o trabalho direito, pensava no que poderia acontecer. Por isso, quando uma vizinha falou do Núcleo, Maria foi logo buscar ajuda. E conseguiu. Desde então, William passa o período de contraturno da escola em atividades. Mais do que as oficinas de arte, música, teatro, as sessões de leitura e de cinema e o apoio psicológico, ali, amparado, ele ganhou asas para planejar o futuro, certo de que chega lá. - Eu não pude estudar e sinto muita falta. O meu sonho é ver meus filhos fazendo faculdade para não perderem nenhuma oportunidade. William escuta cabisbaixo a história que a mãe conta e explica o porquê: -Eu sinto um aperto no coração. É uma história muito triste...
Maria Aparecida Nunes Cordeiro, 33 anos, nasceu e cresceu no Norte de Minas, região do Vale do Jequitinhonha. - Com 20 anos minha mãe já tinha cinco filhos. Era muito difícil. Os seis irmãos tinham que ajudar com o trabalho na roça. Ela começou aos oito anos. Por causa disso, faltava muito às aulas e não acompanhava a turma. Foi preciso parar a escola pelo trabalho. Começou como diarista aos 18 anos. Logo depois se casou e veio com o marido para Ribeirão Preto, grávida de William. Ele já tinha família aqui e, como pedreiro, havia mais ofertas de trabalho. Em uma cidade nova, os dois tiveram que se desdobrar. - Eu sofri muito. Hoje eu tenho esperança de que eles tenham uma vida melhor do que a nossa. Desde que William começou as atividades no Núcleo, a rotina da casa mudou. - Todos nós mudamos. Ele, como filho, e nós, como pais. - Como você ressignifica a história dessa família? Como faz esse jovem acreditar que pode ser protagonista da sua história, que pode sonhar? Tem muito amor envolvido, mas muitos direitos também. Eles precisam ter conhecimento para que possam caminhar. Quem fala é Ana Abe, coordenadora geral de projetos do Fraterno Auxílio Cristão há sete anos. O trabalho se divide em duas frentes. No Núcleo Dom Bosco são 80 crianças e adolescentes em contraturno escolar. No Dom Hélder Câmara já passaram mais de quatro mil jovens a partir de 15 anos para capacitação profissional. No Dom Bosco, os pequenos e grandinhos têm aulas de teatro, dança, artesanato, inclusão digital, além de orientações sobre espiritualidade, protagonismo e criatividade. Almoçam e tomam cafés na instituição. O Fraterno Auxílio Cristão é parceiro do Mesa Brasil Sesc Ribeirão desde 2013. Nesse período, a instituição já recebeu 14 toneladas de alimentos. Só na pandemia, receberam 3,6 toneladas, que chegaram à mesa de muitas famílias.
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Com o isolamento social, as atividades presenciais foram suspensas, mas eles oferecem atividades, acolhimento on-line, por telefone e levam cestas de alimentos para as mais de 60 famílias atendidas. Na casa do William, a ajuda é muito bem-vinda. As faxinas que a mãe fazia foram interrompidas e o orçamento familiar caiu pela metade. Com solidariedade, a mesa continua cheia. Ana fala do trabalho que desenvolve com carinho. Tem muito a contar. - A gente vê a família evoluir junto com os filhos. O mais importante é que nós possamos ser agentes transformadores na vida deles. Mostrar que vale a pena ter sonhos, para que eles possam acreditar que são capazes, porque são. William já entendeu bem. - Quando estou estudando penso que minha mãe não teve essa oportunidade que eu estou tendo. Quero dar o melhor de mim. Ali no bairro, Jardim Progresso, a mãe vê muitos adolescentes se perderem pelo caminho por falta de apoio, opção, acolhimento. - É tão cruel pensar que eles estão à margem, que o futuro é o tráfico, a gravidez na adolescência. A nossa motivação é que eles tenham um futuro diferente. Nas palavras da coordenadora Ana. William continua fazendo seus planos. Vez em quando, fica em dúvida. Gosta também de jogar videogame. Quem sabe pode ser um jogador premiado? Seja lá qual caminho escolher, terá apoio para trilhar, passo a passo. Há dois anos, a família cresceu, com a chegada de sua irmãzinha Emanuelley. A mãe Maria, então, sonha dobrado. LINK: https://historiadodia.com.br/com-apoio-e-acolhimento-william-pode-planejaro-futuro/
Foto Daniela Penha
Isidoro
Foto Daniela Penha . Ilustração Cordeiro de Sá
Recuperado, Isidoro criou comunidade terapêutica para ajudar dependentes químicos
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Isidoro acordou no hospital. Foi internado desacordado em uma sextafeira à noite. O corpo, daquela vez, não aguentou. Parou depois de muitas doses de drogas. A faculdade de Direito, a esposa, o filho, o trabalho: ele já somava uma coleção de perdas. Percebeu ali, na cama do hospital, que a própria vida poderia ser a próxima da lista. - Eu percebi que estava muito doente. A droga mudou meu caráter, levou meus valores éticos. Nós não usamos droga, permitimos que ela nos use. Foram 35 anos de dependência química, 10 internações, um caminho trilhado dia a dia, entre superações e recaídas. Depois do terceiro ano recuperado, sentiu que precisava ajudar outras pessoas que, como ele, somavam lista de perdas. - Se eu consegui, por que os outros não conseguem? O coração pediu para ajudar. Há sete anos, então, criou a comunidade terapêutica “Caminho da Paz”, por onde já passaram cerca de 580 homens, com mais de 18 anos, lutando contra a dependência química. Nem todos conseguiram se recuperar, Isidoro Caldo é franco. O caminho, ele bem sabe, é feito de idas e vindas. Dos acompanhamentos que faz, soma cerca de 160 pessoas que conseguiram, depois do tratamento, uma vida nova. Cada vida importa. - Eles já chegam sofridos, com perdas irreparáveis. O amor é que derruba todas essas dificuldades. Tinha 16 anos quando um amigo ofereceu maconha. Provou e percebeu que ficava mais desinibido, era bem aceito pela rodinha de amigos. A cocaína veio depois de dois anos. Em uma noite, não conseguiram
comprar maconha e decidiu provar. - Entrei em um processo progressivo muito devastador. Foram décadas de uso. - Eu vivia para a droga, trabalhava para ela. Por um tempo, conseguiu manter as aparências. Entrou na faculdade de Direito em 1982, aos 26 anos, mas deixou o curso pela droga. Faltava às aulas, usava o dinheiro para a cocaína. Foi manobrista, bancário até se tornar funcionário da prefeitura de Ribeirão entre 1979 e 1980. Se casou em 1993, após 12 anos de namoro. Teve um filho em 1994, aos 34 anos. - Eu mentia o tempo todo. Pegava atestados para faltar do trabalho. Mal sabia que estava cavando minha cova... Quando o dinheiro começou a apertar, veio o crack. - A padra do crack custava R$ 5. Comecei por querer mais e mais. Até que você vive por ele. Começa a total degradação. Tira as coisas de casa, larga tudo, vive à margem. Quando tinha por volta dos 43 anos deixou a família e foi viver perto da biqueira. Passou dois meses morando na rua. O caminho entre decidir mudar e conseguir não é fácil. Passou por 10 internações, durante seis anos. Saía de uma comunidade com a sensação de estar recuperado, mas vinha a recaída. - Eu precisei trabalhar meus desvios de conduta, meus valores éticos e morais. Conseguiu refazer os laços com a esposa e o filho que é “sua maior obra”, como diz. Há 10 anos está recuperado, em abstinência, como diz. - É necessário que haja condições mínimas para se recuperar, o ardente desejo de se libertar e a compreensão de que as perdas não valem a pena.
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A comunidade terapêutica Caminho da Paz foi fundada em junho de 2013. Isidoro se aposentou e decidiu destinar seu tempo a ajudar outras pessoas. A esposa é sua companheira na trajetória. Na comunidade são atendidos 30 homens, por seis meses de tratamento em um programa terapêutico de quatro estágios. Há um ano, Isidoro e a esposa decidiram ampliar os trabalhos.
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- Para muitos, não é possível o fortalecimento do vínculo com a família. Então, quando o tratamento acabava, eles não tinham para onde ir. Todo o trabalho poderia ser jogado fora. Fundaram, então, uma república, que funciona como casa de passagem para que dependentes químicos que já passaram pelo tratamento possam ter acolhimento e apoio para restabelecerem suas vidas. Nas duas unidades são acolhidas 22 pessoas, para a alegria de Isidoro. - Eu sonhei muito com esse projeto. Como você pega alguém que está tratado e abandona? As três unidades do Caminho da Paz são parceiras do programa Mesa Brasil Sesc Ribeirão. Desde 2016 já receberam 16,7 toneladas de alimentos, que vão para a mesa de pessoas em recuperação. Só neste ano já foram 2,5 toneladas! Para Isidoro, uma parceria essencial para a continuidade dos trabalhos. - Eles vêm desnutridos da rua. Passam noites e dias sem dormir. Eu me preocupava muito. Como vamos levar o alimento, pagar o aluguel, manter tudo? Temos muita gratidão pelo Mesa Brasil. Isidoro carrega a gratidão em doses altas. - Hoje a minha vida tem sentido. Me sinto preenchido em saber que posso ser espelho para quem está precisando, posso levar esperança. Aos 60 anos, a rotina é preenchida pelo trabalho voluntário que faz na instituição dia e noite. Quem precisa de ajuda não escolhe hora, afinal. Muitas e muitas vezes sai na madrugada para socorrer alguém, levar amparo. Com tanto amor que distribui, se sente o mais recompensado. - O maior ganhador sou eu. Esse é o espírito de doar. Quanto mais eu dou, mais recebo. Chego em casa com a consciência tranquila de poder contribuir com a vida de alguém. Ao final do dia, a sensação de mais um dever cumprido. Um a mais, a cada passo. - Hoje eu tenho a certeza de que ao final do dia eu tenho para onde voltar... é amar em atitudes, compreensão, companheirismo. Link da matéria: https://historiadodia.com.br/recuperado-isidoro-criou-comunidadeterapeutica-para-ajudar-dependentes-quimicos
Foto Daniela Penha
Foto Daniela Penha
Foto Agência Rafi . Ilustração Cordeiro de Sá
Lucas
No pão de Lucas tem herança de família, carinho e solidariedade
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O cheirinho se espalha pela cozinha e parece ganhar pernas. Em coisa de minuto, a vizinhança toda fica sabendo: é hora de pão quentinho. Quem resiste? Lucas admite que não! Depois de uma vida toda entre farinhas e fermentos, segue apaixonado pelo alimento mais antigo da humanidade. Pão: que nunca falte em nenhuma mesa. Em sua família, a tradição se tornou negócio. Começou lá com seus avós maternos e, tal qual boa receita, foi compartilhada como herança. Os tios-avós tiveram 6 padarias por Ribeirão Preto. A família Crispim se tornou conhecida – e querida – no ramo. Alguns ainda seguem com o negócio. Os pais de Lucas Crispim Capua se conheceram na panificadora. A mãe dele trabalhou na padaria dos pais desde sempre. Se casaram e o marido também entrou para o ramo. Hoje, pai e filhos tocam o grupo Biagio, com a empresa Gold Pão, que comercializa pães congelados de todo tipo para padarias, conveniências, estabelecimentos de o todo o estado de São Paulo, Sul de Minas e Triângulo Mineiro, e também a Biaccino, com congelados que vão para os supermercados e chegam até o consumidor final. São mais de mil toneladas de farinha ao mês, utilizadas para a produção de um milhão de unidades ao dia. Se tornaram parceiros do Mesa Brasil Sesc Ribeirão neste ano e já doaram quatro toneladas de pães que chegaram à mesa de instituições filantrópicas e famílias de toda a região. A ponte entre quem quer ajudar e quem precisa para que, então, não falte mesmo pão em nenhuma mesa. - O pão é o alimento mais antigo do mundo e o mais consumido também. É milenar. Não tem como não ser apaixonado! Os avós maternos viviam em Nuporanga, cidadezinha do interior de
São Paulo que fica a 63 quilômetros de Ribeirão Preto e hoje tem 7,4 mil habitantes. Lá, eles trabalhavam em uma fazenda. Decidiram partir para Ribeirão Preto em 1956 e, não se sabe bem o motivo exato, resolveram empreender com uma padaria. - Acho que foi um insight! E deu super certo. O primeiro negócio foi a Panificadora do Comércio, na rua Luiz da Cunha, 412, Vila Tibério. Lucas diz que desde essa época eles foram reconhecidos como um dos melhores pães da cidade. Foi em uma das seis padarias da família, no final dos anos 70, que os pais dele se conheceram. Sua mãe trabalhava atrás do balcão e a conquista foi por completo. O casal abriu uma padaria própria, “Pão Doce Panificadora”, em novembro de 1988, no bairro Sumarezinho. Depois, em 1993, venderam esse empreendimento e inauguraram a “Pão Quente”, em frente ao colégio Marista, rua Bernardino de Campos, Centro de Ribeirão. Lucas nasceu em 1982. Cresceu, então, entre as receitas de farinha e o cheirinho que tornava irresistível o pão quentinho para toda vizinhança, assim como seus três irmãos. - Eu nasci dentro de um tabuleiro de padaria. Se lembra de acompanhar o avô nas entregas por todo lado da cidade. Na antiga Fábrica da Antártica, parte da história de Ribeirão, o tabuleiro de pão tinha cinco, seis metros! - Desde muito cedo eu comecei a ajudar. Aos 10 anos, já ficava no caixa. Aos 15, ele tinha uma importante função. Abria a padaria aos sábados, das 5h30 às 13h, e ganhava uma remuneração por esse trabalho. Aos 18, já estava envolvido no negócio e certo de que queria seguir na profissão. Cursou Administração de Empresas e continuou criando, empreendendo. Além da padaria, a família teve uma fábrica de pães embalados. Depois, entregavam o pão resfriado. A dificuldade na logística, porém, mostrava que era necessário reformular a forma de levar o produto. - Ele já chegava no ponto de assar. Era difícil pela vida útil, muito curta.
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Ações Sesc Ribeirão 2020
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Foi seu pai quem começou a congelar os pães. Lucas se lembra dos pães colocados no freezer quando ainda era pequeno. - A maior herança que meu pai poderia nos deixar é o conceito do pão congelado. A experiência com a padaria, atrás do balcão, fez com que eles soubessem dos desafios. - Quando faltava um padeiro, a gente tinha que ir. Ou saía na madrugada para buscar o padeiro de outro turno. Quantas vezes isso aconteceu! Tudo foi mudando. Mercados e conveniências também passaram a vender os filões e outros pães. Lucas e o pai acompanharam as mudanças. Por volta dos anos 2000, começaram a apostar nos congelados e em 2007 fundaram a Gold Pão, que completou 13 anos neste mês. No mesmo ano, venderam a padaria “Pão Gostoso” e a empresa de pães resfriados. - Vai muito além de negócio, relação comercial. Tem paixão no que a gente faz. Temos toda essa história. A raiz familiar da empresa se mantem. Os irmãos de Lucas são sócios e seu pai, Antônio Luiz, conhecido como Toninho, não atua mais na produção, mas está diariamente na fábrica, atento a cada receita. Aos 69 anos, segue firme. - Se não fosse meu pai não estaríamos aqui hoje. Pão francês, filão, pãozinho: muitos nomes da mesma receita, que continua sendo a mais vendida na fábrica. Soma simplicidade à gostosura de todo dia. - É o pão que o tem o menor número de ingredientes! Eu sou consumidor diário de pão francês! Lucas, que hoje é o diretor executivo da empresa, não para. Se alegra com o crescimento do negócio, mas já pensa em ampliações, novos voos e horizontes. Difícil encontrar um tempinho em sua agenda sempre apertada. Mas – ainda bem! - há sempre espaço para uma boa história! O cheirinho se espalha pela cozinha e vai ganhando pernas. É hora de um pão quentinho e de uma boa prosa! Link: https://historiadodia.com.br/no-pao-de-lucas-tem-heranca-de-familia-carinho-esolidariedade/
Foto AgĂŞncia Rafi
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