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Uma crença muito antiga
Júlio Emílio Braz
Nada amesquinha mais absolutamente a condição humana, confinando-a ao instinto primordial comum a qualquer animal, a autopreservação mais estreita e espúria, do que a ignorância. Como humano, somos uma concepção e mais do que isso, uma construção intelectual. Não nascemos humanos mas nos fazemos humanos a partir do instante em que alcançamos os limites mais óbvios da consciência.
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“Penso, logo existo”, lembram-se?
Pois é, este é o princípio fundacional de toda uma complexidade que se aprofunda à medida que avançamos humanidade adentro.
Recordo-me que nos meus primeiros anos como escritor no geral e autor infanto-juvenil em particular, eu me encantava com o olhar diferencial e por que não, deferencial, daqueles que me viam como um intelectual e me envenenava (o termo é este mesmo) com minha própria vaidade quando convocado em escolas para conversar com os estudantes sobre a alentada importância da leitura como tijolo e argamassa de uma humanidade atrelada à capacidade não apenas de ler e escrever,
mas acima de tudo, de compreender o que se lia e escrevia, trampolim extraordinário para os quase intermináveis degraus do conhecimento e de construção tanto de nossa singularidade e autonomia intelectual e social dentro de uma civilização onde, ainda acredito (crença muito antiga, incutida em mim ainda nos primeiros de minha existência hoje contada em mais de seis décadas, por duas mulheres analfabetas mas de excepcional clarividência no que tange ao poder transformador da leitura e da escola, que me deram livros mesmo antes de eu aprender a ler), nos diferenciamos não apenas por parâmetros físicos mas acima de tudo, cognitivos.
Nossa, quanto entusiasmo verborrágico despendi por conta de tal crença, qual seja, a de que a leitura nos faz únicos não pela simples unicidade, mas antes para nos investir da capacidade de, por sermos únicos, fazer parte de um todo em igualdade de condições, mas acima de tudo, nos permite alcançar a sintonia fina do humano em sua essência mais absoluta.
Bom, o tempo passou e o discurso sofisticou-se de maneira minimalista até chegar a potência cognitiva de um haikai, ou melhor dizendo, de uma frase que sintetiza à perfeição tudo ou o tanto que falei nos primeiros anos como escritor, peregrinando peripateticamente pelas escolas deste mundo cada vez menor: “Ler não é importante, mas simples e inescapavelmente humano”.
Lemos porque nossa humanidade está umbilicalmente ligada à consciência que necessita compreender-se o mundo que nos cerca. Lemos e também escrevemos porque necessitamos alcançar o Outro que qualifica nossa humanidade com sua presença e problematiza as
dificuldades de nossas relações. Precisamos ler e escrever para estabelecer vínculos e limites em nossas relações, para que a lei do mais forte ou a violência não nos lance interminavelmente uns contra os outros. Lemos e escrevemos para que compreendamos a essência que nos diferencia, seja na língua, na cor ou na maneira de encararmos uns aos outros e as coisas do mundo, para que estabeleçamos padrões de respeito mútuo ao ponto que tais instrumentos de uma civilidade imanente não seja o que nos separa, mas bem ao contrário, nos una na condição comum de seres humanos, em um mundo onde a diferença é a norma.
Esqueci o discurso emancipador ou apoteótico em prol de retorno a uma crença bem antiga feita a partir de um cotidiano em íntima relação com livros e revistas e mais recentemente, entrando e saindo de escolas principalmente públicas (com as quais assumi um débito que jamais conseguirei pagar, pois em boa parte sou fruto de sua renitente existência), na qual a leitura não nos traz respostas imediatas e muito menos fáceis, mas antes inquieta e impõe reflexões e dúvidas, essas sim, princípio de qualquer olhar crítico e mais qualificado para nós mesmos e para o mundo. José Saramago, o grande autor português, certa vez disse que a melhor maneira de se observar uma ilha é estando fora dela. Eu acredito nisso em termos literários. É a partir da vida que se faz a reprodução do real, através do que lemos que em igual medida temos a capacidade de observar, refletir e pensar sobre o que fomos, somos ou poderemos vir a ser. Aliás, foi a partir desta constatação que me encontrei como leitor, escritor, negro mas fundamentalmente, como ser humano.
Evidentemente, como negro, eu não sou nem Isaías Caminha, nem Clara dos Anjos e muito menos Bertoleza, mas fui capaz de me
ver e a outros negros como eu no sofrimento e perplexidade de cada um desses personagens diante da infâmia que é o racismo no Brasil. A partir da brutalização e desumanização progressiva dos protagonistas negros de “Filho Nativo” de Richard Wright, ou de “Homem Invisível” de Ralph Ellison, eu me coloco diante de espelho que reflete situação que, apesar de ocorrer nas ruas de duas grandes cidades norte-americanas, guarda insuportável semelhança com a irremovível invisibilidade e subalternidade que me alcança enquanto negro brasileiro até nos rincões mais distantes do Brasil, onde, lá como cá, tais comportamentos são normalizados. Em Amaro de “O Bom Crioulo” de Adolfo Caminha ou nas pungentes páginas de “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus, reside boa parte dos estereótipos que infernizam e estigmatizam a população negra brasileira desde sempre. Em “Escrava Isaura” de Bernardo Guimarães encontramos o afrodescendente aceitável ou pelo menos palatável aos olhos de uma sociedade branca que em seu comportamento eterniza e estabelece parâmetros vergonhosos de um racismo estrutural que praticamente legitima a exploração e a exclusão social dos menos favorecidos, mesmo entre os que nem negros são.
Parafraseando Oscar Wilde, “A arte não serve para nada; a arte serve para tudo”. No entanto, a arte no absoluto e a literatura no particular, nos lança a profundidades infinitas em nossos sentimentos e nos aproxima de uma relação mais intensa e frequente com aquilo que nos qualifica como seres humanos.
Pensar.
Refletir.
Colocar em dúvida.
Questionar francamente e mais frequentemente.
E por fim, compreender e assim, escolher seja que caminho for para sua própria existência, pois devemos ser frutos de nossas opções e não de nossa falta de opção. Não há escolhas se não temos consciência de que somos capazes de escolher.
Ler ou não ler é uma das primeiras escolhas que se impõe a quem quer fazer ou se crê parte de qualquer sociedade.
Por essas e por outras, como escritor e afrodescendente, eu continuo escrevendo, falando, mas acima de tudo, visitando as escolas deste país, pois é lá que eu acredito que encontrarei a transformação do estado de coisas em que nos encontramos até os dias de hoje, muito distante de uma sociedade efetivamente para todos, ou na pior das hipóteses, a verei nascer.