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Muito prazer, meu primeiro disco #4 ALCIONE Já imaginou, sem moralismos, uma das maiores cantoras da história do Brasil ter de exibir parte por parte de seu corpo nu para sobreviver? Algumas pessoas – poucas, é verdade – chegaram a fantasiar essa hipótese. Quando, no fim da década de 1960, a maranhense Alcione deixou a escola onde dava aulas em São Luís para apostar suas fichas na vida artística no Rio de Janeiro, seu pai e alguns de seus irmãos pensavam que aquela garota negra, esguia e de cabelos curtinhos, então com apenas 20 anos de idade, andava ganhando a vida fazendo strip-tease pelas boates da capital fluminense. Durante os sete longos anos passados entre o Rio e São Paulo antes de gravar seu primeiro disco, “A voz do samba” (1975), Alcione começou a despertar o interesse do público e da mídia não por um fator erótico, como devaneavam seus familiares, mas por algo incomum e exótico. Numa sociedade que àquela época conseguia ser ainda mais machista e patriarcal do que a de hoje, chamava a atenção o fato de uma mulher tocar um instrumento musical.


O escolhido por Alcione Dias Nazareth – por influência do pai, mestre da banda da polícia de São Luís – foi o trompete. Ainda assim, Alcione estava mais interessada em se firmar como cantora. Muito além de empunhar e soprar o pistom, a jovem brasileira queria que os ouvintes passassem a conhecê-la pela afinação, pela divisão e pelo timbre de sua voz, completamente diferente de tudo o que havia na praça. A exemplo de grandes nomes da música brasileira, ela se apresentou em programas de calouros, ganhou cancha e versatilidade como crooner na noite (tendo de se virar e encarar toda sorte de gêneros e estilos musicais) e excursionou por diversos países naquelas caravanas do tipo “exportação”. Depois de gravar uma fita “demo” – com repertório que incluía canções não apenas em português, mas também em outros idiomas – nos estúdios da Eldorado, em São Paulo, e de ser indicada pelo excepcional cantor Jair Rodrigues para gravar um compacto pela Philips em 1972, Alcione teve de esperar mais três anos para conquistar a chance de fazer um long-play inteirinho seu. Eram outros tempos, bem diferentes dos de hoje, em que se é possível fazer um álbum dentro da própria casa, sem precisar da chancela de uma grande gravadora. Jogando por terra a máxima preconceituosa de que “discos gravados por mulheres no Brasil não alcançavam vendas expressivas”, Clara Nunes sacudiu o mercado fonográfico em 1974 ao vender centenas de milhares de cópias com o álbum “Alvorecer”, cuja faixa-título fora composta por outra mulher pioneira, Dona Ivone Lara, em parceria com Delcio Carvalho. A alta vendagem de Clara pela Odeon foi determinante para que Roberto Menescal, diretor artístico da Philips, resolvesse abrir as portas da gravadora para mais uma cantora de veia genuinamente popular. Essa cantora era Alcione.


Influenciada por Elizeth Cardoso, Angela Maria, Maysa e Núbia Lafayette, a intérprete já dava provas desde aquela época (e isso se comprovaria ao longo de sua longeva carreira) de ser capaz de cantar com a mesma desenvoltura um samba de enredo de Dauro do Salgueiro, uma balada de Lennon e McCartney ou uma chanson de Jacques Brel. Justamente essa polivalência acabaria por colocar uma série de pontos de interrogação nas cabeças dos diretores da Philips. “O primeiro cuidado que o Menescal e eu tomamos foi de torná-la brasileira. Ela estava em aberto, sua experiência lhe permitia cantar qualquer gênero, em qualquer língua, mas optamos pelo samba, uma linha popular. E o primeiro disco era um risco. Se fosse heterogêneo, poderia fracassar, e se fosse homogêneo, também. Mas deu certo. É bom lembrar, porém, que Alcione canta absolutamente tudo, qualquer repertório, e sempre com uma interpretação muito pessoal”, revelaria anos mais tarde Roberto Santana, produtor de “A voz do samba”, lançado em setembro de 1975. O álbum que tiraria Alcione do nobre ofício de educadora em São Luís para colocá-la na história como uma das grandes intérpretes da música popular brasileira trazia uma marca fundamental: a da pluralidade. Embora possa transmitir a falsa impressão de ser um só, o samba, com seus infindos sub-gêneros, é muitos. Vai da mais pura tradição de Candeia (“História de pescador” e “Batuque feiticeiro”), do centenário Zé Keti (“A voz do morro”) e de Ismael Silva (“Todo mundo quer”, com arranjo de banda assinado por Altamiro Carrilho) ao diálogo com o soul elétrico de Carlos Dafé (“Acorda que eu quero ver”), passando também por influências do Maranhão, como em “Etelvina, minha nega”, de João


Carlos Nazareth, pai de Alcione. Dentro da linhagem baiana – seu berço de origem, antes de ganhar “cidadania” em solo carioca – o samba novamente não deixa de evidenciar sua riqueza e multiplicidade. Se alguém ainda duvida, ouça as criações dos autores soteropolitanos presentes neste primeiro disco de Alcione. Há ali o poder de síntese em apenas 11 versos vestidos por linda melodia de Caetano Veloso (“Samba em paz”). Assim como a sofreguidão serena e elegante de Batatinha e Ederaldo Gentil, em “Espera”. Sem esquecer da herança negra e da ancestralidade de um autor predestinado ao sucesso, Nelson Rufino (“Aruandê”, em parceria com outro conterrâneo, Edil Pacheco). Comprovando o quão acertada foi a decisão de Roberto Menescal e de Roberto Moura em lançar Alcione como uma cantora de samba, os dois grandes êxitos do disco eram justamente composições que faziam verdadeiras declarações de amor ao gênero síntese do Brasil. A primeira delas, “O surdo”, assinada por Totonho e Paulinho Rezende (dupla que marcaria presença ao longo da vasta discografia da artista), faz uma ode de invulgar beleza poética ao instrumento responsável pela marcação rítmica no samba. Da segunda, composta por Edson Gomes da Conceição e Aloísio Silva (autores, vejam só, baianos radicados em São Paulo), basta dizer que quase meio século após aquela gravação de 1975 ela permanece intacta e imperecível como o maior sucesso da carreira de Alcione: “Não deixe o samba morrer”. Embora Alcione não toque trompete em nenhuma das 12 faixas de seu primeiro disco, a importância do instrumento de sopro para seu canto é algo que só encontra paralelo nas trajetórias de figuras como Louis Armstrong e Chet Baker. Até hoje, a formação musical pelo pistom confere a ela um


domínio técnico tão sólido, permitindo criar sutis variações melódicas – improvisadas ou não, sem prejuízos para a composição original – que só quem entende muito do riscado é capaz de fazer. Por fim, antes de me despedir, em tempos de exacerbado apelo visual e dos mais variados malabarismos vocais, deixo ao artista mais novo o meu pedido final: ouça a voz de Alcione, está tudo ali. Por Lucas Nobile


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