album_10anos.pdf

Page 1

ÁLBUM

10 ANOS DISCOS PARA CONHECER ABRIL 2021


ENTRE NOTAS E ARRANJOS

O

s sons têm algo de misterioso. Por serem tão diversos quanto distintos em suas origens, apreendê-los em sua totalidade torna-se tarefa improvável. Propagados em diferentes meios, é no ar que respiramos que sua veiculação é mais frequente para nós. Combinados entre si, produzem música e a sensação de ouvi-la pode nos remeter a agradáveis momentos, com o potencial também de nos instabilizar, provocando reações inesperadas. Como forma de cultura expressiva, a música tem estreita conexão com os indivíduos e o ambiente em que é produzida, permeando momentos individuais e coletivos em sua fruição. Enquanto manifestação, pode revelar muito das situações que a originaram, oferecendo de modo particular percepções sobre arte, política, crenças, realidade social e movimentos culturais de determinado período. Como termômetro de época, indica tanto a medida esperada para uma produção como também aquelas obras que, independentemente do motivo, estão aquém ou além dessa margem comum.

Nesse cenário, o projeto Álbum, que ocorre desde 2011 no Sesc Belenzinho, rememora a história de produções musicais brasileiras. Por meio de apresentações artísticas são remontados repertórios de registros fonográficos que inscreveram, de alguma forma, o respectivo disco na história, seja por sua inovação estética, por ter influenciado novas gerações ou por sua importância contextual. Em 2021, completando seu décimo ano, o projeto será realizado digitalmente, com a publicação de textos sobre os álbuns selecionados, revisitando por meio das palavras a estética de uma época. Entendendo a cultura como elemento fundamental para o reconhecimento de conexões entre os diversos, o Sesc difunde, por meio de suas ações, conteúdos educativos e socioculturais que possam contribuir para formação de indivíduos plurais, a fim de alcançar composições cujas notas estejam em consonância com uma sociedade mais justa e democrática.

Sesc São Paulo

MENU


ÁLBUM – 10 ANOS DISCOS PARA CONHECER

vinil de longa duração (o famoso LP, abreviação

O acervo discográfico produzido no país compre-

Em todos os shows, o público volta para casa com

para long play) como meio de armazenar material

ende parte considerável da história da música

o programa da apresentação. Um livreto em forma-

O

de áudio que praticamente se definiu uma forma

popular brasileira.

to de disco que contém o repertório, ficha técnica,

de apreciação musical que perdurou durante qua-

s avanços tecnológicos possibilitaram ao

se todo o século XX.

longo da história diversas maneiras de produzir e ouvir música, incorporando,

além de tudo, significativas inovações estéticas na linguagem. Do 78 rpm ao streaming, passando pelo LP, o CD e o MP3, a produção musical foi submetida a importantes transformações.

O Sesc, no intuito de propiciar acesso a esse rico

vado e texto de jornalista e crítico musical sobre o

conteúdo, muitas vezes desconhecido para as no-

álbum que foi executado no palco. Tudo embalado

Dos anos de 1920, época dos 78 rotações (feitos

vas gerações, e considerando a importância da re-

num suvenir de 18x18 cm, reproduzindo as capas

de goma-laca, com duração mais limitada e pou-

vitalização da memória cultural como prática para

de discos compactos de 7 polegadas.

ca durabilidade), até os anos 1990, quando o CD

o desenvolvimento de um cenário sociocultural di-

(compact disc) impôs um declínio no consumo

nâmico e transformador, criou o projeto Álbum.

Na comemoração de 10 anos do projeto, com im-

do vinil com mudanças cruciais na maneira de se

pedimento da abertura de teatros e salas de es-

produzir e ouvir música (o sistema analógico era

O projeto teve início em 2011 e apresenta na ínte-

petáculo por conta da crise sanitária que o mundo

substituído pelo digital), passando também por

gra o repertório de discos importantes que fazem

atravessa devido à pandemia, o Sesc Belenzinho

outros formatos de armazenamento, como o car-

parte da história da música brasileira. remontados

apresenta Álbum 10 Anos: Discos para Conhecer.

tucho (tecnologia baseada em fita magné-

no palco do Sesc Belenzinho. Desde o primeiro

A publicação digital inspirada nos programas dos

1940

tica) e a fita cassete, que não chegaram

show, Vivo de Alceu Valença, em março de 2011,

e do

a concorrer com o vinil em termos de

até o mais recente Vida e Obra de Johnny McCart-

shows convidou escritores, pesquisadores, críticos

Em termos de fruição, além do rádio e dos concertos de música ao vivo, foi com a consolidação da indústria fonográfica nos

popularidade, é em LP (com duração mais estendida e maior duo: A Fot lexa o: E ndr d F e Nu igu nis eire do

rabilidade) que encontramos o registro mais amplo da produção musical que se tem c o n h e c i m e n t o .

Fot

anos

fotos da época que o disco apresentado foi gra-

musicais e jornalistas para escrever sobre discos

ney de Leno, em março de 2020 (o último antes da

significativos da música brasileira que não tiveram

pandemia), foram realizadas 81 edições do projeto,

difusão maciça na época de seu lançamento, mui-

totalizando 157 shows em que o repertório de 83

tos deles sendo relegados ao esquecimento.

discos foi apresentado pelos próprios artistas que o conceberam. Neste período, o Belenzinho recebeu

São 12 discos representando um ano de projeto.

em seu teatro e Comedoria um público de aproxima-

Desde a música eletroacústica de Rodolfo Caesar

damente 56,5 mil pessoas. Uma audiência diversa,

em A Arte dos Sons; passando pelo rock eletrônico

composta por colecionadores, muitas vezes com o

da banda Harry em Fairy Tales; o samba com to-

vinil do respectivo show debaixo do braço, jovens

ques de terreiro de Aparecida em Foram 17 Anos;

que na ocasião assistiam o artista pela primeira vez,

a música instrumental do trio Divina Increnca e do

curiosos, frequentadores, credenciados Sesc, coão

d ran

quarteto Kali com seus discos homônimos; a psico-

merciários, pesquisadores, jornalistas, músicos, etc.

delia misturada com ritmos nordestinos de Satwa

tB ati :T

to

Fo

MENU


de Lula Côrtes e Laílson; a música popular e o rock

do distanciamento social, quando não é possível

progressivo em temas medievais do grupo paulista

nos reunirmos em espaços de comunhão para as-

Pão com Manteiga em seu disco autointitulado; o

sistir a shows, tal afirmação se torna ainda mais

heavy metal pioneiro do Dorsal Atlântica em seu

potente, ao percebermos - diante de todo o horror

Antes do Fim; a black music e o funk dos composi-

de uma pandemia - qual é exatamente o lugar que

tores e produtores Robson Jorge e Lincoln Olivetti,

a música ocupa em nossas vidas.

no único disco que a dupla lançou; o rock setentista de O Peso com seu Em Busca do Tempo Perdido;

SATWA

Coloque a agulha no disco e boa leitura!

Lula Côrtes e Laílson (Independente, 1973) Ariela Boaventura

o rock progressivo do Perfume Azul do Sol no disco

NASCIMENTO

Perfume Azul do Sol (Chantecler, 1974) Bento Araújo

Nascimento; e o disco obscuro da eterna mutante

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

PÃO COM MANTEIGA

A DIVINA INCRENCA

ROBSON JORGE E LINCOLN OLIVETTI

O Peso (Polydor, 1975) Régis Tadeu

Pão com Manteiga (Continental, 1976) Cláudia Assef

Rita Lee com sua parceira de Tutti Frutti Lucinha Turnbull, Cilibrinas do Éden. Uma diversidade de gêneros e produções em obras que revelam muito do contexto sóciopolítico e cultural da época em que foram concebidas. Para a leitura dos textos de Ariela Boaventura, Bento Araújo, Carla Dias, Cláudia Assef, Fábio Giorgio, Humberto Finatti, Maitê

FORAM 17 ANOS

Freitas, Márcio Jr., Regina Porto, Régis Tadeu,

Aparecida (CID, 1976) Maitê Freitas

Sergio Martins e Thabata Arruda aqui presentes,

A ARTE DOS SONS Rodolfo Caesar (Independente, 1979) Regina Porto

Divina Increnca (Independente, 1980) Fábio Giorgio

fica a sugestão de ouvir os discos na sequência, seja em vinil, mp3, CD ou streaming nas plataformas digitais. Os textos também serão publicados quinzenalmente na revista Zumbido (Selo Sesc) no endereço: medium.com/zumbido

Em Crepúsculo dos Ídolos, o filósofo Friedrich Nietzsche escreveu que “sem a música, a vida seria um erro”. Em um momento de crise política e sanitária que estamos presenciando e com a necessidade

CURADORIA E PESQUISA Núcleo de Música e Artes Cênicas: Glauce Passeri Maria Eduarda Kalil (Duda) Sandro Saraiva PROJETO GRÁFICO, PESQUISA E DIVULGAÇÃO Equipe de Comunicação Sesc Belenzinho: Adriana Garcia Junior Pacheco Poliana Queiroz Ricardo Simone

KALI

Grupo Kali (Som da Gente, 1985) Carla Dias

MENU

ANTES DO FIM

Dorsal Atlãntica (Lunário Perpétuo, 1986) Marcio Paixão Jr.

FAIRY TALES

Harry (Wob Bop, 1988) Humberto Finatti

Robson Jorge e Lincoln Olivetti (Som Livre, 1982) Sérgio Martins

CILIBRINAS DO ÉDEN

Rita Lee e Lucinha Turnbill (Nosmokerecords, 2008) Thabata Arruda


SATWA

(INDEPENDENTE, 1973) LULA CÔRTES E LAÍLSON

SATWA: UM SOM PIRADÍSSIMO EM PLENA LOUCURA DO AI-5

psychofolk brasileiro, cuja base era um instrumento marroquino. Nessa obra única ainda é possível sentir o aroma de incenso e sândalo, quem sabe vozes caladas, como o vento, nativas de uma paisagem rural nordestina – ou uma Kabylie pernambucana na raiz do ritmo, eterna por infinita, bucólica porque quis. O álbum Satwa (1973), de Lula Côrtes e Lailson

“Não importa o quanto tentemos fazer silêncio, não podemos. Se algo é chato depois de dois minutos, tente por quatro. Se ainda for chato, então por oito. Depois 16. Depois 32. Finalmente descobrimos que não é nada chato.” (John Cage)

C

onta a lenda que, a partir de um pedido de sua mulher para consertar uma enceradeira que estava com defeito, Tom Zé tanto consertou e mexeu que se apaixonou pelo som do aparelho e descobriu que outros objetos poderiam extrair um som igualmente interessante. Nascia aí uma psicodelia concretista. Mais ou menos por essa mesma época, porque arte não tem início nem genitor, pois apropriação de referências, surgia um

Foto: Rep

rodução

MENU

de Holanda Cavalcanti, surgiu em uma época em que o silêncio imperava, com a censura à arte e às conversas da vida comum, na esteira persecutória dos efeitos do AI-5. Por isso sua música é assimétrica e totalmente instrumental, como um jogo caótico de cordas estilístico, remanescendo timbres claramente longínquos, inspirados na cultura da África Oriental. A viagem estética do disco foi um fracasso comercial. Curiosamente, é quase impossível encontrar a obra no Brasil, mas está à venda na Europa e Estados Unidos, pois ainda conversa sobre coisas sem palavras ― e ativas nos grãos arenosos da sociedade. É uma música de cheiro particular, que às vezes incomoda no compasso ascendente por conta da escalada de agudos e dissonâncias, lembrando bastante as improvisações dos primeiros urros dos Mutantes e de Gal Costa, sobretudo em seu épico A Todo Vapor.


O ouvinte fica perdido, busca ligar uma coisa a outra, tenta dizer algo e só sai o bafo da perplexidade. Certeza é que Satwa não nasceu para agradar nem para ser filho de ninguém. É como se cada música fosse mesmo bastarda da anterior. Puxa nas ideias os efeitos de uma lavoura mágica de cogumelos. Fato é, também, que Satwa tem notas em comum com o Tom Zé de “Estética do plágio”, porém remortas, não fossem os referidos agudos espicaçados das cordas do tal instrumento marroquino. É uma viagem interior, ao universo de cada um desses dois músicos, juntos e talvez sem escadas que escalassem para o que o outro desejava expressar no momento. Sim, é um disco performático: jamais reproduzível como saiu. As notas são insistentes como zumbido, em dedilhos da aventura sonora adentro de si mesmo, sem compromisso com refrãos nem percussão que seja muito mais que outro instrumento de cordas como companheiro, e assim vai. É como um road movie: sem caminho. Sem voz, tal como um chapéu ou planta. Afinando melhor o ouvido, é possível encontrar um tantinho do hemisfério marroquino, sobretudo do Chaabi. Irônico é dizer que o gênero, digamos assim, apareceu pela primeira vez no final do século 19, inspirado nas tradições vocais da

Naturalmente, por tabela com verde de capim, na

SOBRE O CORPUS MUSICAL

época era comum a realização de experiências

A música de Satwa é uma malha rendada de

sensoriais, unindo drogas e filosofias orientais,

exercícios estilísticos, acústica e dominada por

Não invoquei o Chaabi à toa: hoje bastante moralista, é um estilo tocado em casamentos marroquinos, mas nasceu escandaloso, prosperando por trás de portas fechadas dos chamados Mahchachat (fumódromos de Cannabis), onde o admirador dessa música bebia café, chá ou “fumaça”, sobretudo na Argélia e no Marrocos, o território Magreb. Não é preciso muito esforço para associar Chaabi a Cannabis, nem Satwa a sativa – embora também possamos invocar mesmo Buda, o Bodisatva.

alucinógenos e “viagens” musicais. Mais: as le-

cordas bucólicas, psicopastoral e onírica. “Ale-

O Chaabi é passado de geração a geração, sem escrita; é somente interpretado e segue a evolução das mudanças culturais e influência estrangeira. Não tem, aliás, esse campo delimitado que constitui a escrita, mediação entre música e intérprete. Sua superfície está amplamente aberta a todas as aventuras, a todas as evoluções. É como se fosse um testamento.

títulos

música árabe e berbere da Andaluzia – Chaabi quer dizer folk em argelino.

tras das músicas e o próprio disco falam por si. Nas palavras de Lailson:

gro Piradíssimo” é uma balada poética; “Lia, a Rainha da Noite”, inala belas viagens sonoras, orgânicas, cósmicas.

“Acrescentaria o fato de que o texto do disco (títulos das músicas e a ficha técnica) são as letras do disco. Explicando melhor: como não usaríamos letras, os tinham

que

deixar clara a proposta psicodélica (ou hippie, ou underground ou contracultural). Daí

A cítara é tocada ao modo ocidental, sem filiação à música indiana. Na época, os censores deixaram os jornais mudos e a arte, refém. Ao longo do disco, ouvimos apenas de quando em vez o zumbido guturalizado em segundo plano: improvisações da psicodelia que flertava com o tropicalismo.

que elas contam a história daqueles tempos como a ‘Valsa dos Cogumelos’ ou o ‘Alegro Piradíssimo’ (que eu traduzi na versão americana

“Coincidência sonora, claro! Só porque tem uma música fazendo a transcendente questão ‘Can I be Satwa?’, garante Lailson. Especulações óvnias. “Uma das definições de Satwa, encontrada no Google: Satwa (do sânscrito), Deusa. O mesmo que sattva, ou pureza. Uma das trigunas, ou três divisões da natureza”.

para ‘Allegro Freakoutissimo’, para passar a mesma ideia).” Yes, caro Lailson, a gente pode até se sentir abduzido para um campo aberto em Woodstock que, a partir da audição, começa a germinar no cérebro, no ouvido, no corpo.

MENU

Tom Zé e Dominguinhos, seu Gonzaga, seu Sivuca estão nele presentes. Será que é um tipo de forró, xote e jazz com LSD? Ou seria o tal do Xodó? Ninguém consegue rótulo. Nem temos nele o provoque ou peguilhar do xote. É questão de se ajeitar. Incomoda. O corpus de Satwa desafia o ouvido, pois o seu estranhamento não é baião. A gente fica besta


de farinha, carne-seca e água de raiz; fica casca de jatobá, masca damasco cheiroso e chora sem saber por quê. São as notas, o bemol que dói rindo. Lindo que música nasce primeiro de conversa.

ÁLBUM 10 ANOS

SATWA

(INDEPENDENTE, 1973) LULA CÔRTES E LAÍLSON Capa: Kátia Mesel

“Outras músicas, como ‘Lia a Rainha da Noite’ e ‘Amigo’, surgiram das conversas entre eu e o Lula. Quando a gente fez ‘Amigo’, ele achava que a música era como se dois amigos estivessem se encontrando no meio da rua, um vindo de um lado, o outro do outro e começava o papo. E era isso mesmo. Cada vez que a gente tocava, era a mesma música, mas a conversa era diferente”, diz Laílson.

Lado A 1) 2) 3) 4) 5)

Satwa Can I Be Satwa Alegro Piradíssimo Lia a Rainha da Noite Apacidonata

Labo B 1) 2) 3) 4) 5)

onde está esse lugar que não existe? “Alegro Piradissimo” deixa marcas hipnóticas da textura de sua guitarra. Em todas as faixas, com exceção de “Blues do Cachorro Muito Louco”, ecoam vibrações psilócibes latinas, com harmonias raga luminosas e emocionais

Amigo Atom Blue do Cachorro Muito Louco Valsa dos Cogumelos Alegria do Povo

Essas ragas densas e vibrantes são definitivamente essenciais para o desenho musical de folk progressivo de sonoridades familiares às orientais e que constroem, faixa a faixa, por assim dizer, os degraus de uma outra estrada para o céu. Satwa pode ser uma obra melancólica e de paz, mas em suas sementes há um protesto divinamente sutil, seja no mono duplo ou estéreo fal-

Amizade é o quê, senão silêncios que se encontram?

so. A obra tem um mentalismo cru, rústico, selvagem e traduzido como puro fluxo de música

Das dez faixas do álbum, só uma não tem Lula Côrtes e Lailson. O “Blues do Cachorro Muito Louco” tem a participação de Robertinho de Recife, muito crazy e mad dog. Gente louca de cara? Difícil colocar em termos, ainda mais atualmente.

Todas as composições são de autoria de Lula Cortes e Laílson

sem rumo ― poeira estelar que paira na jangle política da contracultura. Talvez a palavra serendipity, semeada pelo romancista inglês Horace Walpole em 1764, expresse com mais maestria a casualidade de encontrar o que você não está procurando, como viajantes que, desviados por querer ao longo do

EM BUSCA DO QUE NÃO FOI PERDIDO A escuta atenta de Satwa traz a sensação real de não saber para onde vão as canções:

veis sem nenhuma ligação com o objetivo original da viagem. 1 Afinal, destino é um lugar que não existe.

o

duçã

epro

:R Foto

seu deslocamento, fazem descobertas aprazí-

MENU

UM POUCO DE CONTEXTO CULTURAL “Loucos, românticos, dançantes, exagerados, psicodélicos, reprimidos, desbundados e astrais”: era assim descrita aquela cena artística dos anos 60 e 70 no nordeste, sobretudo em Recife, que dominava, encantava e escandalizava. A beleza da poesia, dos grafismos e dos arranjos musicais encantavam toda aquela geração de jovens barbudos e cabeludos que faziam da psicodelia a sua luta por liberdade. O movimento udigrudi emanava lisergia e transgressão dos valores da burguesia. A experiência psicodélica é uma viagem a novos territórios da consciência e tem, como efeito, a transcendência de conceitos verbais, de espaço-tempo, de ego ou identidade. Além dos efeitos alucinógenos, o LSD causava o que se chamava de “expansão da mente”, gerando uma explosão criativa. A psicodelia se fazia presente nos ares recifenses acelerando a construção do material artístico daquela cena. 2 Os músicos desse movimento inventaram suas próprias trilhas em manifestações de arte, inventaram vocabulários e composições de destino eterno, sem data nem moda. OS DOIS SATWADOS Luiz Augusto Martins Côrtes (Recife, 9 de maio de 1949 - Recife, 26 de março de 2011), mais conhecido como Lula Côrtes, foi cantor, compositor, pintor e poeta e um dos primeiros a fundir ritmos


O álbum Satwa foi o primeiro disco independente da música brasileira, com a participação de músicos como Robertinho de Recife. Foi relançado na década de 2000 nos Estados Unidos pela gravadora Time-Lag Records. Em 1975, Lula lançou Paêbirú, outro álbum raríssimo, em dupla com Zé Ramalho. Quase todas as cópias foram destruídas em uma inundação, mas foi relançado em 2005 pela gravadora alemã Shadoks Music e, em 2008, na Inglaterra pelo selo Mr. Bongo. Em 1976, Lula fez parte da banda de Alceu Valença e depois gravou alguns álbuns solo pela gravadora Rozenblit que nunca foram lançados. Em 1980, lançou um trabalho solo, O Gosto Novo da Vida, pela gravadora Ariola. Côrtes seguiu viagem nas colaborações com Zé Ramalho em outros álbuns, incluindo o disco de estreia De Gosto de Água e de Amigos (1985) e o Cidades e Lendas (1996). Também publicou livros de poesia e se aventurou na pintura. Morreu no dia 26 de março de 2011, aos 61 anos, vítima de um câncer na garganta.

Conta a lenda que algumas canções de Satwa continham letras, mas foi gravado apenas com a parte instrumental para driblar a censura em silêncios próprios. Também se conta que a história do misterioso instrumento, que daria o título ao álbum, começou quando Lula havia voltado de uma trip ao Marrocos, onde comprou esse objeto de três cordas que passou a ser chamado de tricórdio ou cítara marroquina.

Foto: Divulgação

regionais nordestinos com o rock, juntamente a Zé Ramalho e outros artistas nordestinos.

Ariela Boaventura

Laílson descobriu que o nome do tricórdio marroquino é um tipo de gimbri (ou hadjouj), instrumento da música nativa do norte da África. Une-se então à teoria do Chaabi, nem que seja por conta do fermento oriental presente na obra, ou por força de referências ainda em busca de seu próprio significado, melancolia de sentidos. Pois, no fim, tudo é Dó, como toca e diz Alceu Valença, o profeta, em seu Espelho Cristalino.

1 Walpole usou um talismã para descobrir a ligação entre as famílias Médici e Capello, investigando seus brasões em um livro antigo. Ciente da monotonia de seu momento eureka, registrou a etimologia de sua nova palavra. Levaria quase dois séculos para a forma de adjetivo, serendipitous, entrar em cena: seu primeiro uso registrado foi em 1943. The Paris Review, “The Invention of Serendipity”, janeiro de 2016.

Conta a lenda, enfim, que quem ouve Satwa em noites de verão é tomado pelo misterioso efeito Atom Heart Mother (álbum experimental do Pink Floyd) e quer ouvir todas as músicas sem parar até ver surgirem no horizonte os raios do amanhecer. Fica aqui o convite para esse lindo sonho delirante.

2 SOUZA, Filipe Evangelista Carvalho da Silva de. Design e contracultura no nordeste do Brasil: uma análise das capas de discos do “udigrudi” pernambucano.

MENU

Jornalista, poeta, escritora, artista visual e crítica de música e cinema. Natural de Porto Alegre (RS), participou de eventos como a exposição ConectaMulti (videoarte), Na Tábua e Primeiro Popular de Ruído & Literatura (RJ, 2008) do escritor Paulo Scott. Colaborou com reportagens, contos, crônicas e críticas para diversas revistas de cultura do Brasil e exterior, entre as quais Deutsche Welle e Cine Scandinavia. É autora do romance Fiorde Infinito – uma noite com a musa do marlborão (2012, esgotado) e do curta-metragem Hipostasia (2008), obra que une poesia e audiovisual. Escreve atualmente no Medium: https://bovinenses.medium.com.

Foto: Pixabay


NASCIMENTO

(CHANTECLER, 1974) PERFUME AZUL DO SOL OS MILHARES DE RAIOS E PERFUMES DO SOL

N

ascimento. Nada mais apropriado para nomear o elepê de estreia de um novo e promissor grupo, Perfume Azul do Sol, lançado no mítico ano de 1974. Antes da explosão do pop rock oitentista, do “rock de bermuda”, e de fenômenos extremamente populares como Blitz, RPM e Lulu Santos, o rock brasileiro teve um período de cheia em 1974, ou melhor, teve a maior descarga de adrenalina e criatividade juvenil desde os tempos de Jovem Guarda e Tropicália.

Logo no início daquele ano, Secos & Molhados, o maior fenômeno do rock brasileiro até então, realizou um concerto grandioso no Maracanãzinho, Rio de Janeiro, batendo um recorde de público jamais visto no Brasil. Cerca de 25 mil fãs entraram e outros milhares ficaram do lado de fora. O show virou disco e se tornou um marco na história do show business nacio-

Foto: Rep

rodução

MENU

nal. Também em 1974, o trio saiu em turnê internacional, que, segundo Ney Matogrosso, gerou oportunidades de criar uma carreira sólida também fora do Brasil. O disco de estreia deles, lançado no ano anterior, vendia mais que Roberto Carlos, algo também inédito até então. A demanda era tanta que a gravadora derretia discos encalhados do seu catálogo para poder prensar mais LPs dos Secos & Molhados. A crise do petróleo, em 1973, deixou as gravadoras sem matéria-prima para fabricar seus discos. Mas a trajetória da banda foi fulminante, como uma estrela cadente que cruzou o céu de um Brasil nebuloso, para depois sumir numa escuridão de processos judiciais e farpas trocadas pelos integrantes na imprensa. Depois de um segundo LP, a banda terminou melancolicamente. No entanto, o fenômeno Secos & Molhados desencadeou uma febre de rock pelo país. Gravadoras, selos, jornais, revistas, rádios, emissoras de TV, empresários... Todos queriam se envolver e “descobrir” uma nova banda que pudesse embarcar no vácuo deixado por Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad. A quantidade de discos de estreia lançados em 1974 é surpreendente: Made In Brazil, Som Nosso de Cada Dia, Casa das Máquinas, Moto Perpétuo, Ave Sangria, A Barca do Sol, Achados e Perdidos, Assim Assado e... Perfume Azul do Sol. Era a corrida do ouro. Aquele foi também o ano de discos em-


blemáticos como Gita (Raul Seixas), A Tábua de Esmeralda (Jorge Ben), Molhado de Suor (Alceu Valença), Lóki? (Arnaldo Baptista) e Atrás do Porto tem uma Cidade (Rita Lee & Tutti Frutti), entre outros. Segundo o produtor Pena Schmidt, que trabalhou com os grandes nomes do rock brasileiro, aquela explosão de Secos & Molhados e de Raul Seixas foi totalmente imprevista, pois não fazia parte de nenhuma estratégia de gravadora. Pena sustenta uma teoria interessante, a de que sucessos daquela magnitude não são previstos, ou perceptíveis. São, na verdade, “desígnios insondáveis da ciência do inusitado e do gosto popular pelo impensável”. Para ele, aquelas manifestações sonoras de 1974 vieram em oposição ao caminho natural/histórico da música brasileira, surgidas após ruptura e caos. É por isso que, para muitos, parecia que aquele pessoal todo, aquela nova geração, havia saído de uma nave espacial. Mais de dez anos antes da primeira edição do Rock In Rio, conhecido como o megaevento que colocou o Brasil na rota dos shows internacionais, o ano de 1974 trouxe também uma invasão internacional de apresentações: Alice Cooper, Miles Davis, The Jackson Five, Tom Jones, The Stylistics, George McCrae, Demis Roussos etc. Já a turnê de David Bowie por aqui foi cancelada tão em cima da hora que os jornais chegaram a divulgar as datas das apresentações.

A poderosa Rede Globo também percebeu o crescimento do rock no país e lançou o programa Sábado Som, visando aumentar sua audiência jovem. Apresentado por Nelson Motta (depois por Big Boy) e exibido “em cores”, aos sábados, sempre às 15h, o programa apresentava tapes de shows, filmes e programas de emissoras internacionais adquiridos pela Globo. Era o próprio Nelson Motta que selecionava os tapes e ainda fornecia “informações corretas e oportunas sobre os artistas apresentados”, segundo publicou a revista Pop. A estreia de Sábado Som marcou época, com a exibição do filme do Pink Floyd ao vivo entre as ruínas de Pompeia, na Itália. Depois vieram apresentações de Joe Cocker, David Bowie, Beatles, Rolling Stones, The Who e Suzy Quatro, que naquele ano também se tornou popular no Brasil, onde seu elepê de estreia vendeu bastante.

O rock conquistou outra vitória naquele ano histórico quando a Folha de São Paulo abriu espaço para uma página/coluna semanal dedicada ao estilo, com textos do saudoso Carlinhos “Pop” Gouvêa. Graças à coluna, Carlinhos ganhou imensa projeção no underground da época. Em um de seus ensaios, publicados como um balanço de 1974, ele escreveu: “Este ano ficará na história do rock nacional, pois foi um ano de explosões, revelações e muito trabalho. Particularmente para o nosso movimento, o Brasil teve um ‘developement’ (sic). Cerca de 20 álbuns de grupos nacionais foram gravados, 30 novos grupos surgiram, foram realizados por volta de 300 concertos (quase um por dia) e foram vendidas mais de um milhão de cópias de discos brasileiros”. Nesse embalo foi lançada a revista quinzenal Rock – A História e a Glória, tendo em seu primeiro número os Rolling Stones na capa. Acompanhando a revista, o Jornal de Música e Som, trazia uma entrevista com o lendário DJ/VJ Big Boy, responsável por apresentar as músicas mais quentes do momento para a garotada. No time de colaboradores da revista estavam Ana Maria

Na TV Cultura, de São Paulo, o barato acontecia por conta do TV-2 Pop Show, culpa de um jovem de 27 anos chamado Luís Fernando Magliola. Todo em cores, o programa semanal apresentava os melhores momentos de ban-

Bahiana, Ezequiel Neves, Okky de Souza, Luiz Carlos Maciel etc. A publicação foi fundamental para a divulgação do rock no Brasil e também por trazer longas e detalhadas biografias dos artistas abordados.

MENU

das como Grand Funk Railroad, Black Sabbath, Rolling Stones e The Who pelos palcos europeus e norte-americanos. Entre uma exibição e outra, a garotada ficava inteirada das novidades do mundo do rock. No plano de Magliola estava incluir também tapes de bandas brasileiras tocando pelo país. Além disso, a programação educativa da TV Cultura abria espaço para a música jovem no programa Música e CIA. Ilimitada. Foi nesse programa que o Perfume Azul do Sol realizou sua mítica e única apresentação, infelizmente perdida nas areias do tempo, como tantos outros registros negligenciados da música brasileira. O Perfume Azul do Sol é uma banda que ainda permanece rodeada de lendas e mistérios. O quarteto foi formado em São Paulo, pelo casal Ana Maria Guedes (voz e piano) e Benvindo (voz e violão). As composições da dupla atraíram Moracy do Val, empresário que estava sem saber como investir o dinheiro que havia levantado com os Secos & Molhados. Naquela altura, Moracy era um dos mais bem-sucedidos empresários do show business nacional. Havia trabalhado com


Paulo Machado de Carvalho, diretor-proprietário da TV Record, na missão de trazer shows de grandes estrelas da música internacional ao Brasil. Sua experiência, agenciando os mais diversos tipos de artistas, propiciou uma sagaz capacidade de avaliar as disparidades de produtos musicais de nicho e de massa. Foi através desse tino comercial que ele alçou os Secos & Molhados ao estrelato, levando-os de sensação do underground paulistano ao fenômeno pop que conquistou o país.

ÁLBUM 10 ANOS

NASCIMENTO

(CHANTECLER, 1974) PERFUME AZUL DO SOL Capa: Lair Miranda

Lado A

1) 20.000 Raios de Sol (Benvindo)

2) Sopro (Jean Marc)

3) Calça Velha (Benvindo/Ana)

4) Deusa Sombria (Ana)

5) O Abraço do Baião (Jean Marc)

Labo B

1) Equilíbrio Total (Benvindo)

2) Nascimento (Benvindo/Ana)

3) Pé de Ingazeira (Benvindo)

4) Canto Fundo (Benvindo/Ana)

5) A Ceia

(Benvindo/Ana)

Atraído pela música e pela proposta artística/estilística do Perfume Azul do Sol, Moracy do Val disponibilizou um imóvel para que o grupo pudesse ensaiar o tempo necessário. Da influência do empresário logo surgiu um contrato com a Chantecler, que decidiu lançar o LP de estreia do conjunto: Nascimento.

Além de Ana Maria Guedes e Benvindo, faziam parte do Perfume Azul do Sol o guitarrista Jean e o baterista Gil. Nascimento traz participação especial de Pedrão Baldanza no contrabaixo, naquela altura já um veterano das bandas de baile e também um ex-integrante dos Novos Baianos. Mas 1974 ficou marcado como o ano em que Pedrão Baldanza apresentou Snegs, o LP de estreia do Som Nosso de Cada Dia, o trio progressivo que ele liderava ao lado de Manito e Pedrinho Batera. Nascimento também traz participações da esposa de Pedrão, Marcinha, nos vocais de apoio e de Daniel Salinas, na “assistência musical e colocação de metais e flauta”.

As gravações, produzidas por Magno Salerno e Antonio Carlos de Carvalho, aconteceram nos estúdios Sonima e Estúdios Reunidos, este último, já chamado de “o nosso Abbey Road”, localizado no quarto andar do prédio da TV e Rádio Gazeta, o famoso “Paulista 900”, na avenida mais famosa da cidade de São Paulo. Amplo e com uma ambiência que fornecia uma espécie de “assinatura” sonora nas can-

Os metais aparecem já na abertura do LP, “20.000 Raios de Sol”, composição de Benvindo contendo um groove comandando pelo baixo de Pedrão, um grande apreciador do grupo norte-americano de rock-funk-soul Tower of Power. É possível captar a influência de Francis Rocco Prestia, baixista do Tower of Power, na linha de baixo de Pedrão. A interpretação cativante de Ana traz um tempero no estilo de Baby Consuelo em sua época de Novos Baianos. É, sem dúvida, uma abertura impactante.

ção

rodu

: Rep

Foto

ções lá registradas, era o local onde diversas bandas de sucesso gravavam seus hits, principalmente bandas e artistas que cantavam em inglês, como Lee Jackson, Mac Rybell, Morris Albert e Terry Winter.

MENU

“Sopro”, composição do guitarrista Jean, tem um andamento similar àquele contido no disco de estreia de Jards Macalé. A próxima faixa, “Calça Velha” (de Benvindo e Ana) segue em parte essa estética, mas com uma letra deliciosamente desbundada: “O que eu tiver eu lhe dou Não é preciso pedir Só resta saber Se você pode aceitar Vista sua calça velha Cheia de manchas e caminhos Ponha o som no olhar E siga o rumo da estrada mais bela”.

“Deusa Sombria”, originalmente uma canção perturbadora na linha do Black Sabbath, começou como um esboço de Lizardo Alberto Lopes e Chico Lobo, integrantes da Corsa Branca, banda que ensaiava no mesmo prédio que o Perfume Azul do Sol. Depois do lançamento de Nascimento, a Corsa Branca passou até a acompanhar Ana e Benvindo, numa outra versão do Perfume. A versão contida no disco ganhou novos arranjos de piano. Já “O Abraço do Baião”, a segunda e derradeira composição de Jean no álbum, segue um caminho oposto. Tem letra divertida, em comunhão com o ritmo descompromissado e alegre. O lado B inicia com o forró psicodélico de “Equilíbrio Total”, onde Benvindo coloca na mesa toda a sua bagagem: baião, coco, ciranda, forró e muita


O restante do disco vai seguindo essa vibração. “Canto Fundo” surge com grandes guitarras de Jean, que também brilha no encerramento com “A Ceia”, um acid folk que faria a cabeça e o coração de Devendra Banhart e Joanna Newsom. A música apresentada em Nascimento é uma genuína forma de psicodelia, sem muita influência do rock internacional e com ênfase no

colecionadores. No entanto, é difícil acreditar que um selo relativamente grande e popular como a Chantecler prensaria apenas 120 de um grande investimento em um novo grupo terminar dessa forma? A verdade é que Moracy do Val, o “coringa” que poderia ter proporcionado um final diferente para essa intrigante história, gastou pouco tempo com o Perfume Azul do Sol. Optou por investir na carreira do Moto Perpétuo, outro promissor grupo que lançou seu único álbum naquele ano e que revelou um dos maiores nomes do pop brasileiro: Guilherme Arantes. No início deste novo século, Nascimento foi parte do que os colecionadores lá fora chamam de Brazilian psychedelic

O elepê, lançado pela Chantecler, foi distri-

momento em que DJs, produ-

e alguns profissionais da imprensa musical da época. Boatos dão conta de que apenas 120 cópias foram prensadas, o que tornou a pren-

Benvindo faleceu em 2012, vítima de um câncer. Ana Maria Guedes faleceu em 2017, justamente quando aconteceu o que parecia impossível, o tão aguardado relançamento, em vinil, de Nascimento. A tiragem inicial se esgotou rapidamente, provando que o interesse dos colecionadores pela música do Perfume Azul do Sol continua em alta pelo planeta, que segue ainda assimilando os raios e os aromas emanados por aquela trupe misteriosa.

exemplares de um disco. Qual seria a razão

folclore brasileiro.

buído entre amigos, familiares, lojistas

Depois de mudanças na formação e desavenças entre os integrantes, o conjunto sumiu completamente do cenário, sem deixar rastro.

sagem original uma das mais disputadas pelos

record

digging

revolution, ou seja, parte do tores e colecionadores do mundo todo invadiram o Brasil para comprar “discos perdidos” da música psicodélica brasileira. O Perfume Azul do Sol durou cerca de dois anos e meio e não realizou shows, apenas aquela única apresentação na TV Cultura.

MENU

Foto: Divulgação

tradição nordestina. A faixa título, o momento mais lisérgico e destemido do disco, é uma orgia de metais, ritmos e vocalizações. Se “Nascimento” trazia, em parte, alguma influência da psicodelia norte-americana da Costa Oeste, “Pé de Ingazeira” está mais para a produção nacional abençoada e disseminada por Lula Côrtes, seu coletivo Abrakadabra e seu selo Solar. Está inserida naquele contexto de Satwa, Paebirú, No Sub reino dos Metazoários e Flaviola e o Bando do Sol.

Bento Araujo Escritor, jornalista, pesquisador e podcaster. Começou tocando em bandas e trabalhando em lojas de discos, até fundar a Poeira Zine, uma publicação impressa e independente sobre música. Seus textos, ensaios e entrevistas foram publicados nos jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, e nas revistas Bizz e Rolling Stone, entre outras. Desde 2009 produz o podcast poeiraCast. Como palestrante, mediador e curador, participa de eventos pelo Brasil e pelo mundo. Seu livro Lindo Sonho Delirante: 100 discos psicodélicos do Brasil (1968-1975), publicado em português e em inglês, foi vendido em mais de 40 países. Ele nasceu, cresceu e continua vivendo em São Paulo, Brasil.


EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (POLYDOR, 1975) O PESO

U

m único álbum. Apenas um e nada mais. Quem ainda tem o LP original trata o disco como um de seus pertences mais valiosos, enquanto quem se desfez dele sofre de um arrependimento amargo. Muitas vezes, isso é um resumo de nossas vidas: o dilema entre a manutenção e guarda daquilo que amamos a qualquer custo e o desapego circunstancial que, muitas vezes, faz com que nunca mais tenhamos condições de reparar o erro. Sim, é a vida.

O lugar onde vivemos – com quem amamos ou em perfeita harmonia com a solidão, como é o meu caso – precisa ter um espaço em que LPs e/ou CDs sejam tratados como objetos sagrados, como se cada um deles fosse um portal para novas dimensões sonoras e, por que não dizer, culturais em todos os sentidos. O disco a respeito do qual você está lendo neste exato momento tem muito a dizer a respeito disso, mesmo depois de dé-

Foto: Rep

rodução

MENU

cadas de seu lançamento original. Sim, Em Busca do Tempo Perdido nos ensina muitas lições, musicais e filosóficas, a respeito dessa devoção. Ao emblematizar a importância que um único trabalho na discografia de uma banda pode ter na construção de uma personalidade musical por parte do ouvinte em seus anos de formação, o álbum é um retrato de uma época em que fazer rock and roll no Brasil era uma epopeia para poucos. Para as bandas de rock brasileiras da época, absorver as influências de seus pares internacionais era o melhor caminho para a diferenciação, mesmo que faltassem por aqui mínimas condições tecnológicas para se chegar próximo do som que se fazia nos Estados Unidos e na Inglaterra, só para citar dois “cenários dos deuses” para roqueiros de todas as idades. Isso propiciou igualmente um atraso na cronologia natural do que acontecia por lá, mas era o que tínhamos para o “jantar”. Não foi diferente para cada um dos integrantes do grupo batizado como O Peso. Aliás, a intensidade de cada uma das faixas justifica plenamente o nome da banda. Em 1975, entre os delírios progressivos dos Mutantes e do Terço, e a celebração pesada, pura e simples do Made in Brazil e Casa das Máquinas, a banda surgiu no Rio de Janeiro com um álbum simplesmente avassalador.


Foi o resultado de um contrato assinado com a gravadora Polydor depois de impressionar a todos durante um show realizado no festival Hollywood Rock, em que Rita Lee, Raul Seixas, Mutantes, Celly Campelo e Erasmo Carlos eram as grandes atrações; existe, aliás, um álbum do evento com os mais falsos aplausos de plateia que você pode imaginar, mas isso é outra história. Nada mal para uma banda com tão pouco tempo de existência, já que não fazia nem um ano que o cearense Luiz Carlos Pôrto havia retornado ao Rio de Janeiro depois de se apresentar ao lado do então parceiro Antonio Fernando na edição de 1972 do celebrado Festival Internacional da Canção, defendendo a música de autoria da dupla, “O Pente”, que fazia alusão sutil ao ato de preparar a maconha para enrolar um baseado: “Estava lá na Barra, de repente começou a pintar muita mina, muita gente de mansinho começou a falar eu disse pente, pente, pente, pente pra poder fechar já era quase hora nem aurora muito dia de se clarear e eu na minha, bem na minha, enquanto o mundo começou a grilar e de repente muita gente, muita gente, começou a sacar a minha maneira, meu jeitinho bem faceiro de comunicar e perguntaram o que havia, o que é que era que estava a brilhar eu disse a ele que a luz, a luz da lua, a luz do grande luar sem dar bandeira nem bobeira, bem tranquilo, eu fumei meu plá”.

Intitulado a partir de uma clara associação com

Claro que não foi classificada. Chegou até a ser lançada em um compacto de reduzidíssima tiragem e não vendeu absolutamente nada. Segundo fontes da época, Pôrto chegou a gravar mais uma canção, “Mundo Sol”, uma parceria com o poeta Cristiano Lisboa, mas essa jamais foi lançada.

um dos livros mais importantes do escritor Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido abre com “Sou Louco Por Você”. A banda apresenta uma das levadas clássicas do rock and roll praticado no Brasil naqueles tempos, muito influenciada pelos Rolling Stones, mas com uma força de interpretação

Aliás, um detalhe para contextualizar melhor o que estava rolando, para quem não lembra: foi nesse mesmo evento que o então produtor Raul Seixas se revelou como cantor/compositor com “Let Me Sing, Let Me Sing”, Sérgio Sampaio emplacou seu único grande sucesso “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”; e rolou a derradeira aparição de Rita Lee com os Mutantes em “Mande um Abraço Pra Velha”.

estonteante,

principalmente

pela intensidade do vocal de Pôrto. O piano à la Jerry Lee Lewis tocado por Constant Papineanu se insinua por entre as levadas de guitarra do ame-

“Se eu soubesse como lhe dizer sem você não posso mais viver eu falo pra você eu vivo por você eu sou louco por você já não posso mais viver assim sem saber o que será de mim você longe daqui e eu correndo te dizer eu sou louco por você olha um pouco apenas para mim veja se estou feliz assim você longe daqui e eu correndo te dizer eu sou louco por você eu sou louco, muito louco por você”.

Quem é daqueles tempos facilmente sabe que essa é uma abordagem romântica.

ricano (radicado por aqui desde que resolveu visi-

Foi justamente quando retornou ao Rio que o simpático, boa praça e carismático Pôrto usou seus contatos anteriores para arregimentar alguns músicos talentosos, com a ajuda do então produtor Guti de Carvalho (futuro diretor artístico da gravadora Warner no Brasil e irmão do baixista Dadi e do tecladista Mu, que todo fã de música brasileira, especialmente dos Novos Baianos e da Cor do Som, conhece muito bem), e montou O Peso, cuja excelência no som logo fez com que recebessem a incumbência de ser a banda de apoio de um proeminente artista paraibano também radicado na cidade: Zé Ramalho! Daí veio o contrato e a participação no festival que contei anteriormente.

tar o pai) Gabriel O’Meara, que já tinha sido integrante da banda de Gal Costa (na qual foi o substituto de Pepeu Gomes, que, por sua vez, havia entrado no lugar do lendário Lanny Gordin e resolvera sair para integrar os Novos Baianos) e da banda de Erasmo Carlos no início daquela década. Tudo secundado com enorme eficiência pela “cozinha” rítmica formada pelo baixista Carlinhos Scart e o baterista Geraldo D’Arbilly. Identificada com o ideário hippie daqueles tempos no Brasil, a letra é claramente a declaração de um cara obcecado por seu amor:

MENU

Uma surpresa surge logo na segunda faixa: uma balada! E das mais lindíssimas, pois “Não Fique Triste”, com um astral que remete imediatamente ao som que Rod Stewart fazia com o Faces, é daquelas de fazer com que uma lágrima furtiva escorra em nossas faces por conta da rusticidade da voz de Pôrto e do que ele tinha a dizer: “Não fique triste venha ser minha com seu melhor sorriso não fique triste pois eu lhe digo que felicidade até existe não tenha medo


se não há segredo entre nós venha dos sonhos de olhos risonhos venha quando ouvir minha voz você como a noite eu espero lhe ver chegar nos teus braços quero ficar e sempre juntos iremos então passar a ver a noite inteira chegar”.

A sequência com “Me Chama de Amor” faz todo sentido em relação à canção anterior, principalmente pela melancolia romântica reinante, com o vocalista nos levando junto na busca pela musa de seus sonhos: “Quantos lugares procuro por você se tu soubesses o quanto eu andei cada noite fria que tive que passar às vezes parecia que o tempo ia parar me chama me chama de amor meus olhos pesam e chegam a fechar meu corpo cansado pede pra parar em cada esquina outro ponto final não desanimo sei que vou te encontrar quantos caminhos eu já caminhei e tantos outros que ainda não andei meu passo é firme e perto estou, eu sei daquela estrada que me leva até você”.

D’Arbilly saiu da banda antes que o disco fosse totalmente gravado. A primeira é um espetacular hard rock blues suingado comandado por O’Meara e Scart, em perfeita sincronia e simbiose com o vocal absurdamente potente de Pôrto. A letra esconde muito bem uma crítica à censura vigente naquela época:

O piano sacana de Papineanu abre as portas do rock and roll descabelado na divertida e sacolejante “Só Agora (Estou Amando)”, pontuada pelos licks faiscantes da guitarra de O’Meara, um confesso adepto dos modelos da Gibson – embora, segundo amigos veteranos dos estúdios naqueles tempos, tenha gravado vários solos ao longo do álbum com uma Fender Stratocaster emprestada pelo guitarrista do grupo Vímana, um jovem chamado Lulu Santos, que tinha como companheiros ninguém menos que Lobão e Ritchie – e em sinergia com o convidado Zé da Gaita, que manejou o instrumento com sutileza e comedimento corretos em relação ao que a música pedia. A letra é de uma simplicidade típica para cantar junto com facilidade:

“Eu não sei de nada e acho que nem vou saber eu não sei de nada não vou me comprometer cada vez que você fala faço tudo, tudo pra esquecer o que se ganha com mentiras leva pouco tempo pra perder eu não tenho nada nada tenho pra perder tanta coisa pra contar ao mesmo tempo, não!!! fique aqui no meu lugar não sei pra onde eu vou”.

“Só agora estou amando estou amando você eu agora estou precisando do amor outra vez já procuro há tanto tempo o que pode estar com você estou cansado de sofrer diga que seu amor só é meu que nada vai tirar você de mim seu amor é como vidro se deixa partir separação sempre há de existir”.

Os versos espalhados ao longo de mais de seis minutos de duração são interrompidos por uma “sessão instrumental viajante” no meio, e tudo isso faz com que a música possa ser incluída em qualquer coletânea do estilo ao lado de grandes nomes internacio-

Não é muito diferente da temática “popularesca” do universo sertanejo atual, mas a embalagem sonora roqueira é, obviamente, muito mais empolgante. “Eu Não Sei de Nada” e a faixa-título trazem a bateria de Carlos Graça, já que

MENU

nais, como o Free e o Ten Years After. Já a segunda é um exemplo de como a banda dominava a arte de fazer um folk rock ledzeppeliano sem abrir mão de uma brasilidade percussiva mais próxima do que fazia o guitarrista Carlos Santana e novamente enfatizar o discurso libertário tão comum naqueles tempos de tanta repressão: “Junto de você eu acho que essa espera terminou minha alma peregrina em seu peito abortou cansado e sem rumo, no seu mundo eu entrei quanto tempo eu levei pra encontrar você? a paz já esquecida junto de você eu procurei e o tempo perdido, entre seus carinhos eu deixei no entanto, meu descanso é apenas uma ilusão sua calma é passageira, assim como é seu coração vou, vou, vou pra qualquer lugar cigano e solitário, o meu destino é divagar junto de você eu acho que essa espera terminou minha alma peregrina em seu peito abortou mas seu sossego incerto vibra uma paz que aqui não há e outra vez amiga, solidão vem me buscar”.

“Blues”, dedicada com humildade e respeito ao mitológico B.B. King, entrega aquilo que promete e não deixa dúvidas de quanto a vertente britânica do gênero influenciava a banda na época. Pôrto “dava bandeira” do quanto Robert Plant não saía dos alto-falantes de seu equipamento, já que ele e seus amigos usaram como referência o que o Led Zeppelin fez em seu disco


EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (POLYDOR, 1975) O PESO

Capa: Estúdio Ficção

Lado A 1) 2) 3) 4) 5)

Sou Louco Por Você Não Fique Triste Me Chama de Amor Só Agora (Estou Amando) Eu Não Sei de Nada

“Estou no mundo mas minha alma está longe daqui eu venho do fundo da terra mas mesmo assim pode deixar comigo que eu me encarrego da tua felicidade eu vou tirar tuas mágoas em troca quero tua alma vou espalhar pelas águas água preta do fundo do mar a vida é curta mas curta é pra curtir você irá longe mas longe perto de mim pode deixar comigo que eu tomo conta de todos meus amigos Lúcifer reina no mundo Lúcifer reina no fundo do coração de todos vocês”.

“Se eu fosse um homem rico será que você gostaria mais de mim? meu amor eu dou de graça mas você cobra tudo mesmo assim por isso, baby, eu vou me embora vou dar o fora daqui eu estou pra você, baby mas você não está para mim”.

Lado B 1) 2) 3) 4) 5)

no trecho final, essa é uma daquelas canções que dá vontade de ouvir de novo ao final da audição e cantar a letra a plenos pulmões só para sacanear os parentes e amigos evangélicos:

de estreia com “You Shook Me”, de Willie Dixon. Até mesmo a timbragem da guitarra de O’Meara e seu “duelo” com Zé da Gaita remetem a Jimmy Page. O resultado é de uma honestidade difícil de encontrar em qualquer banda brasileira da época que resolvesse enveredar por essa seara sônica. A letra, de uma simplicidade quase tocante quando inserida no arranjo dos instrumentos, discute a importância que se dava ao materialismo da sociedade e de como isso era um empecilho para as relações amorosas:

ÁLBUM 10 ANOS

Blues Lúcifer Boca Louca Cabeça Feita * Em Busca do Tempo Perdido

Assim como ocorreu com “Eu Não Sei de Nada”, chega a ser intrigante – quase um mistério – o fato de o Departamento de Censura Federal da época não ter encrencado com a letra de “Lúcifer”, uma canção que certamente deixou Raul Seixas orgulhoso tanto pelo discurso quanto por ser um rock and roll extremamente sacolejante. Com O’Meara usando Jimmy Page mais uma vez como referência em seus riffs e licks (Não tem como não lembrar de uma das clássicas canções do Led Zeppelin, “Celebration Day”, em certos trechos) e adicionando levadas percussivas

Todas as composições são de autoria de Luiz Carlos Pôrto e Gabriel O’Meara, exceto * (Guilherme Lamounier e Tibério Gaspar)

“Hoje me esbarro no mundo me calo no fundo deixo o tempo passar quero ver se o mundo aguenta essa boca louca e o tempo vai passar com o tempo isso vai passar

ção

rodu

: Rep

Foto

“Boca Louca” é um daqueles temas inesquecíveis para qualquer roqueiro que se preze, já que é uma mistura de Foghat, Mountain e Black Oak Arkansas, bandas muito queridas pelos roqueiros “setentistas” até mesmo nos dias atuais. Com ótimo solo de guitarra de O’Meara, a canção tem uma letra que aborda o inconformismo contra a “sociedade careta” da época de maneira direta e divertida:

MENU

eu não quero papo errado já fiquei cansado não vou mais falar sempre que eu tento sair do escuro dá vontade de parar”.

Nem mesmo o barulho falso de plateia consegue tirar o brilho do rock suingado “Cabeça Feita”, composto por Guilherme Lamounier e Tibério Gaspar, duas figuras importantíssimas na música brasileira. Lamounier foi cantor/compositor/produtor de primeira linha e lançou alguns discos excelentes, além de ser o autor de “Enrosca”, eternizada por Fábio Jr.; já o violonista/produtor/compositor Gaspar foi “apenas” o autor de clássicos como “Sá Marina” e “BR-3”, celebradas nas vozes de Wilson Simonal e Toni Tornado. Só pelo título e o contexto da época já dá para sacar que a letra faz alusão à maconha de modo menos implícito: “Hoje qualquer hora é hora e por enquanto qualquer dia é dia não sei se fico ou se vou embora é tanto tempo que outro tempo pia não sei se sei de tudo se calo ou fico mudo estou numa boa quase sem dinheiro e o amor que me faz inteiro vou na que pinta e na que vai pintar com a cabeça feita pra não dar bandeira a cabeça feita não marca bobeira por isso não sou eu quem chora e ainda agora não sou eu quem dança naquela mesma de ficar por fora chupando dedo balançando a pança estou numa boa quase sem dinheiro e o amor que me faz inteiro vou na que pinta, e na que vai pintar”.


A capa também chamou a atenção, já que as

música brasileira: O Romance do Pavão Myste-

e dos arranjos. A única exceção é um autointitula-

Rio e depois se mandou para a Europa, onde foi

imagens da banda elegantemente trajada, es-

riozo (1974), Ave Noturna (1975) e Mote e Glos-

do LP de 1983, igualmente raro nos dias de hoje.

percussionista do grupo de salsa/jazz britânico

condida dentro de um banheiro para não ser fa-

sa (1974). No caso de Belchior, ele ainda soltou

Tudo se complicou ainda mais três anos depois,

Blue Rondo a la Turk e tocou com vários gru-

rejada por uma fêmea de hipopótamo com o seu

em 1976 sua obra-prima, Alucinação, ao passo

quando Pôrto sofreu um terrível acidente de moto

pos, como The Pale Fountains, Fun Boy Three

filhote, e o contrário acontecendo na contracapa,

que Zé Ramalho estourou em 1978 com o seu

em Fortaleza e, além dos ferimentos, passou a

e The Colourfield, além de trabalhar em produ-

eram cenas quase surrealistas que até hoje sus-

primeiro e autointitulado disco solo. Todo esse

sofrer de esquizofrenia. Nunca mais subiu em um

ções de David Bowie, David Byrne e do Mad-

citam inúmeras interpretações. Isso sem contar a

cenário era muito favorável a quem vinha do

palco ou entrou em um estúdio de gravação.

ness. Quando voltou ao Brasil, produziu álbuns

orientação contida no encarte, junto com as fotos

Nordeste, mas Pôrto – que não tinha o menor

dos integrantes: “para se obter um bom resultado

sotaque cearense em sua perfeita dicção para

Por conta de sua reputação como excelente gui-

(Estação Primeira, de 1987), Inocentes (Adeus

auditivo é necessário que este disco seja ouvido

o rock and roll – nunca teve essa chance com

tarrista, Gabriel O’Meara não teve dificuldades

Carne, também de 1987), entre outros, além de

em um equipamento com potência mínima de 40

o Peso porque o som intensamente roqueiro da

em arrumar novos trabalhos. Erasmo Carlos o

shows de Bruce Dickinson, Dio e James Brown

watts”. Coisas dos anos 1970.

banda era demais para a sensibilidade dos fãs

chamou para gravar novamente com ele; já ha-

no Brasil. Hoje tem seu próprio estúdio e selo, o

da poesia da “turma do Nordeste”.

via feito isso em 1974, no ótimo 1990 – Projeto

Atomic Record.

do Ira! (Meninos da Rua Paulo, de 1991), Gueto

Salva Terra!, e também no álbum A

Infelizmente, a carreira da banda foi curtíssima.

Banda dos Contentes, de 1976,

Constan Papineanu também seguiu em frente,

chegou a ensaiar uma volta, mas nada foi

assim como fez Maria Bethâ-

colocando seus teclados e piano a serviço de um

mento, devido a uma tiragem reduzida – o que

além de alguns shows esporádicos.

nia ao requisitar seus serviços

álbum bastante conhecido do público roqueiro da

logo tornou o LP um item disputadíssimo entre

Reza uma lenda que Luiz Car-

em Pássaro Proibido, lançado

época, É Proibido Fumar (1978), da banda A Bo-

os colecionadores de vinil – como pelas trocas

los Pôrto chegou a gravar

no mesmo ano. Isso sem contar

lha (cujo baterista era Serginho Herval, que anos

de formações em um curtíssimo espaço de tem-

pela Philips um volume

trabalhos com o amigo de longa

depois ficaria famosíssimo com o Roupa Nova),

po. Em uma delas, até o então convidado Zé da

de material que po-

data Tim Maia, Zé Ramalho e Sandra

além de integrar a banda Ponte Aérea, com quem

Gaita se tornou o vocalista. Além disso, Pôrto

deria ser incluído

de Sá. Chegou até a produzir o primeiro

gravou apenas um autointitulado álbum em 1981,

estava longe de encarnar o vocalista nordesti-

em três LPs, mas

LP do sambista Almir Guineto! Atualmente,

e nas décadas seguintes trabalhar em discos e

no com um som de fortes influências regiona-

até hoje nada te-

voltou a morar nos Estados Unidos e trabalha

shows com a cultuada dupla Sá & Guarabyra e,

listas, assim como faziam com grande sucesso

ria sido lançado

alguns de seus conterrâneos, como Ednardo,

por conta de sua

Fagner e Belchior, que já faziam a cabeça de

intransigência em

todos com discos que vieram a se transformar, respectivamente, em clássicos indiscutíveis da

O fim pode ser explicado tanto pelo pouco al-

Ao longo das décadas subsequentes, a banda

cance obtido pelo álbum à época de seu lança-

ocasionalmente, com Walter Franco, como no ál-

como tradutor.

bum Tutano, de 2001. Hoje trabalha com compoGeraldo D’Arbilly, depois de sair

sições e produções em seu próprio home studio.

relação a qualida-

da banda, virou proprietário

Já o Carlinhos Scart se afastou da música e vive

de das gravações

de uma casa de blues no

MENU

até hoje recluso em Nova Friburgo (RJ).


lançado em CD em edições igualmente esgotadas e raras, Em Busca do Tempo Perdido contém composições surpreendentes que soam “inoxidáveis” mesmo com o passar das décadas. É o retrato perfeito de como uma banda extremamente talentosa e tendo um álbum sublime em seu currículo simplesmente derreteu frente às dificuldades do mercado, ao descaso

Ouvir Em Busca do Tempo Perdido nos dias de hoje não é apenas uma saudosa e gloriosa volta ao passado. É testemunhar a impressionante longevidade, sem envelhecer um segundo sequer, de um repertório que não deixa qualquer dúvida a respeito de um álbum indiscutivelmente antológico dentro da História (sim, com maiúscula mesmo) do rock nacional em todos os tempos!

Foto: Divulgação

Mesmo nos dias de hoje, 46 anos depois e re-

de sua própria gravadora e à indiferença de um

Regis Tadeu

público roqueiro ávido por representantes nativos, mas não o suficiente para sustentar uma

Jornalista e crítico musical, trabalha no Programa Raul Gil desde 2010, atuando como jurado e produtor musical; tem seu próprio canal no YouTube (youtube.com/RegisTadeuOficial, com mais de 350 mil inscritos) e site (registadeu.com.br); e é consultor artístico e produtor/apresentador dos programas Rock Brazuca e Lado Z na Rádio USP FM (93, 7 - São Paulo). Trabalhou como colunista do Yahoo de 2010 a 2017, onde também produziu e apresentou o programa Na Mira do Regis; e foi editor/diretor de redação por mais de quinze anos das revistas Cover Guitarra, Cover Baixo, Batera e Teclado & Áudio. É baterista do grupo Muzak.

carreira. Se tudo isso aconteceu com bandas muito mais bem estabelecidas em termos comerciais e profissionais – vide o que aconteceu com os Mutantes, O Terço, Casa das Máquinas, Joelho de Porco, Terreno Baldio e Som Nosso de Cada Dia ao longo de poucos anos de existência entre a segunda metade da década de 70 e o início dos anos 80, a tal “geração BRock” –, imagine como foram as coisas para quem só estava a fim de tocar e fazer um som legal?

MENU


PÃO COM MANTEIGA

(CONTINENTAL, 1976) PÃO COM MANTEIGA

suas letras assuntos místicos e temas medievais, com arranjos que vão da sofisticação da música clássica à psicodelia tão característica de bandas dos anos 70, brasileiras ou gringas.

O PÃO COM MANTEIGA NOSSO DE CADA DIA

C

om carreira meteórica e história pouco conhecida, a banda paulista Pão com Manteiga ganha relançamento em vinil e a lenda reacende. Tão importante quanto um pão com manteiga no café da ma-

Com direção de estúdio e produção musical de Waldyr Santos, o disco tem 12 faixas com nomes que já sugerem a viagem que começa com um giro pela Idade Média, visita festas de bruxas, analisa micróbios e átomos, festeja personagens como Merlin e Lancelot e, como não poderia faltar, traz para a conversa a galáxia de Andrômeda, tão revisitada pela música pop viajandona.

nhã dos brasileiros, uma banda paulista dos anos 70 conseguiu um disputado lugar no Olimpo do rock progressivo nacional mesmo tendo tido uma carreira meteórica que durou exatamente um disco. Formado em 1976 por uma dupla de músicos de São Vicente (Paulo Som e Pierre), com integrantes de Praia Grande e São Paulo (Johnny, Gilberto e Edison Edisol), o grupo Pão com Manteiga lançou um disco, homônimo, no mesmo ano de sua formação. O álbum trouxe para o primeiro plano em

Foto: Rep

rodução

MENU

Do lado A da bolacha lançada pela gravadora Continental, as músicas são “Mister Drá”, “Merlin”, “Flor Felicidade”, “Micróbio do Universo”, “Montanha Púrpura” e “Multi-Átomos”. Do outro lado do disco, “Serzinho Sem Medo”, “Cavaleiro Lancelot”, “História do Futuro”, “A Feiticeira”, “Fugindo do Planeta” e “Virgem de Andrômeda”. Exótico na medida, o som poderia surfar na onda do Secos & Molhados, banda lançada em 1973, três anos antes, portanto, do surgimento do Pão com Manteiga, aposta da mesma gravadora, a Continental. Note-se que até a capa do primeiro disco da banda de Ney Matogrosso serve de inspiração para a imagem que ilustra o álbum Pão com Manteiga, criada por Oscar Paolillo e Walmir Teixeira.


Assim como aconteceu com os Secos & Mo-

Isso nos leva ao óbvio questionamento: como

Para o lançamento da Polysom, o disco foi maste-

Agora vale uma análise do terreno onde se

lhados, de formação clássica (João Ricardo,

um disco vira objeto de desejo de colecionado-

rizado especialmente para vinil por Ricardo Gar-

criou o Pão com Manteiga, especialmente se

Ney Matogrosso e Gérson Conrad), o Pão com

res? Seria pela tiragem reduzida, pelo conteúdo

cia, no estúdio Magic Master, no Rio de Janeiro,

você gosta do estilo de som da banda. Como

Manteiga teve uma formação que se desman-

musical, por um hype no mercado? Para Pena

a partir de tapes originais, com artes na íntegra,

faria um bom algoritmo ao analisar a sono-

telou em pouquíssimo tempo, ruindo os planos

Schmidt, produtor de discos e ex-executivo de

vinil de 180 gramas (gramatura que impede a

ridade do disco da banda paulista, indico a

da gravadora para dar continuidade à trilha

gravadoras que ficou conhecido ao inovar como

interferência de vibrações externas).

aberta pelo trio original dos Secos, que, com

técnico de som dos Mutantes, não há muito cri-

apresentações ousadas, aliadas a um figurino

tério para que um álbum exploda na bolsa de va-

Rafael Ramos, consultor da

e maquiagem extravagantes, chegaram a ven-

lores das bolachas.

Polysom, conta o que os

audição de grupos como Terreno Baldio, O Som Nosso de Cada Dia,

levou a prensar o vinil:

der mais de um milhão de cópias do primei-

Módulo 1000, Recordando o Vale das Maçãs, O Terço, Pholhas, Som Imaginá-

ro disco. Detalhe: imagine o que era ver Ney

“Achei no Discogs, estão pedindo R$ 7.000 num

“É um disco muito pro-

rio, Casa das Máquinas,

Matogrosso rebolando, com o corpo coberto de

original. Tô ouvindo pela primeira vez. A Conti-

curado nas lojas de

Apokalypsis, Moto Per-

glíter e plumas na cabeça, isso em plena di-

nental lançava muita coisa na época, passou ba-

SP, galerias, na Loco-

pétuo (da qual Guilher-

tadura militar! E o pior (melhor!), eles faziam

tido [pra mim]. O som é sem carisma, vozinhas

motiva [Discos, uma

me Arantes foi integran-

sucesso com crianças, jovens e até velhinhos,

em falsete, meio Secos & Molhados, galáxias e

das mais conhecidas

te), Spectro e, claro, as

que se divertiam com toda aquela teatralidade

magos, essas coisas. Ficou meio notório por ter

da cidade]. Foi uma

mais famosas Mutantes

e afronta.

sido mencionado no livro Lindo Sonho Delirante

unanimidade entre os

Vol 2: 100 Discos Audaciosos do Brasil, do Bento

lojistas, que nos ajudam

Araujo”, avalia Pena.

à beça nessa curadoria”,

Fato é que, apesar de não ter passado nem perto do estrondoso sucesso dos Secos & Molhados, banda que frequentava a casa dos brasileiros de bem, com direito a videoclipe no Fantástico, o álbum Pão com Manteiga caiu nas graças dos colecionadores e se tornou um cult. O vinil lançado em 1976 se tornou nos últimos anos um objeto raro e desejado por colecionadores mundo afora, mesmo que seu conteúdo não seja tido por alguns como obra primorosa do ponto de vista da produção musical.

conta o consultor da primeiRESGATADO PELA MEDUSA

ra fábrica brasileira a investir

Por causa de tanta procura em lojas e sebos – e graças a uma forte movimentação da loja Medusa Records, em São Paulo –, o álbum ganhou em 2019 relançamento em vinil de 180 gramas pela coleção Clássicos em Vinil, da fábrica carioca Polysom, em parceria com a gravadora Warner. Portanto, agora, quem optar pela reedição do disco vai desembolsar algo em torno de R$ 180.

no resgate do vinil – e atualmente também no retorno das fitas cassetes. Mesmo com o disco relançado nas lojas, os originais continuam custando milhares de reais em sites especializados. Isso mostra o quanto o fator “cópia original” conta na hora de dar valor a um disco de vinil raro.

MENU

e Secos & Molhados. Influenciado pela viagem e psicodelia de bandas inglesas como Gentle Giant, Pink Floyd, Genesis, Yes, Jethro Tull e Led Zepellin, só para citar as mais famosas, e com a mesma vontade de juntar instrumentos pouco comuns na fórmula do rock’n’roll (como flauta, banjo, bandolim, violoncelo, viola), o rock psicodélico brasileiro fez história e viveu seu auge no Festival de Águas Claras (SP), especialmente na primeira edi-


ção, em 1975. Uma loucura, bicho, que você

contato através do Facebook por várias sema-

Os Novos Baianos, que ficaram com a pri-

Informações sobre os primórdios da banda são

pode reviver assistindo ao documentário O

nas, infelizmente não consegui retorno. O jeito

meira colocação. A banda O Terço ficou em

raras, portanto reproduzo aqui a fala de Dió-

Barato de Iacanga, de Thiago Mattar, lançado

foi levantar informações garimpadas de outras

segundo lugar, e Os Mutantes, já devidamen-

genes sobre a formação original da Pão com

em 2019.

entrevistas, as mais importantes vou compilar

te migrados para o som progressivo, ficaram

Manteiga, para que fique para a posteridade.

aqui. Soube através de uma dessas entrevis-

com o terceiro.

“Eu comecei na música tocando desde a adoles-

O GARIMPO ATRÁS DA BANDA

tas, por exemplo, que o vocalista Paulo Som e

Encontrar informações seguras sobre uma ban-

o baixista Pierre já faleceram (Paulo em 2005, e

Reza a lenda que o Pão com Manteiga che-

Pierre em 2014). Então vamos ao histórico des-

gou a gravar um videoclipe para o Fantástico,

sa meteórica banda.

programa que segue no ar até hoje, mas que,

da que quase não deixou registros em vídeo ou livros no Brasil não é tarefa das mais fáceis. Sei disso por experiência, quando arregacei as mangas para encontrar quem teria sido o primeiro DJ do Brasil, ao apurar informações para escrever o livro Todo DJ Já Sambou, lançado em 2003. Quase sem bibliografia nesse sentido e com pouca informação (na época) na internet, o jeito foi buscar recortes de revistas e jornais antigos, bater perna por sebos e lojas de discos e entrevistar mais de 100 pessoas, até encontrar quem me desse uma pista quente para chegar até o pioneiro da discotecagem no Brasil, seu Osvaldo Pereira, informação que foi publicada no livro e ajudou a dar o devido crédito a tão importante personagem. Com a banda Pão com Manteiga não foi muito diferente. Apesar de existir em inúmeros sites informações sobre o conteúdo do disco, o único integrante da banda a ter dado entrevistas recentemente foi o guitarrista Johnny, aka Diógenes Rondon. Apesar de eu ter tentando

nos anos 1970 e 1980, tinha uma enorme relevância na cena de

Formada por Paulo Som,

música nacional, funcionan-

nos vocais, viola e

do como uma plataforma de

violão; Johnny (o nosso nes

lançamentos para as gra-

Dióge-

vadoras e artistas. Infe-

Rondon),

lizmente, assim como

nos vocais e

aconteceu com outras

guitarra; Pier-

bandas, como a Violeta

re, no baixo e

de Outono, por exemplo,

vocais; Gilberto,

o clipe do Pão com Man-

nos teclados e ban-

teiga para o programa nun-

jo; e Edison Edisol,

ca chegou a ir ao ar.

na bateria e efeitos, o grupo foi responsável por

Após a saída do vocalista Paulo Som, a

todos os arranjos das músicas do

banda começou a se desintegrar, como

álbum. Em entrevista ao blog 2112,

contou Diógenes ao blog. Formado como

Diógenes contou que a banda chegou a

topógrafo, Diógenes se mudou para

ganhar, em meados dos anos 1970, o quar-

o Pará e, durante dez anos, não

to lugar no prêmio Rock Brabo, em São Paulo.

quis saber de encostar as mãos

E de quem eles teriam perdido? Apenas para

numa guitarra.

MENU

cência. Na juventude formei bandas de bailes e apresentações. Nessa ocasião fui procurado pelos fundadores (Pierre e Paulo Som) para ajudá-los nesta obra. Eles já tinham firmado contato com o produtor Waldyr Santos, que nos serviu de ponte para chegar à gravadora Continental. O disco foi lançado no início de 1976, e a banda encerrou naquele mesmo ano”, relatou o guitarrista ao blog. Sobre a escolha do nome do grupo, ele conta que foi o baixista Pierre que, certa vez, disse num ensaio: “O pão, um alimento singelo, que está em todas as mesas do mundo, é também alimento espiritual, de paz, esperança e valores morais.” A partir daí se chamariam Pão com Manteiga. É bom contextualizar que o disco foi gravado bem no auge da ditadura militar no Brasil, regime instaurado em 1964 que durou até 1985, sob comando de sucessivos governos militares. Durante todos aqueles anos, artistas eram obrigados a submeter suas obras à censura, devido a uma das ações mais notórias do Regime Militar, a instauração, em dezembro de


ÁLBUM 10 ANOS

1968, do Ato Institucional nº 5, que ficou conhe-

PÃO COM MANTEIGA

bição de reuniões secretas e censura a obras

cido como AI-5, impondo atos de recolher, proi-

(CONTINENTAL, 1976) PÃO COM MANTEIGA

artísticas e ao jornalismo livre.

Capa: Oscar Paolillo e Walmir Teixeira

Portanto, falar mal do governo em músicas, revistas, jornais, livros e filmes estava simplesmente fora de cogitação. Nesse contexto, receitas de bolo começaram a ser publicadas no lugar de reportagens censuradas, como uma mensagem clara aos leitores de que, naquele espaço, uma informação do jornal havia sido suprimida.

Lado A

1) Mister Drá

(Pierre/Paulo Som/Jorge Lemos)

2) Merlin

(Pierre/Paulo/Johnny)

3) Flor Felicidade (Pierre/Paulo/Johnny)

(Pierre/Paulo Som/Gilberto)

6) Multi-Átomos

(Paulo Som/Pierre/Jhonny)

Lado B

1) Serzinho Sem Medo

(Paulo Som/Pierre/Francisco A. Eugênio)

2) Cavaleiro Lancelot 3) História do Futuro (Pierre/Paulo/Johnny)

de Censura às Diversões Públicas e pôde falar, camufladamente, sobre seus sentimentos no disco. UNIVERSO DAS MAÇÃS A grande recorrência nas letras do Pão com Manteiga é o misticismo por trás de Avalon, nome dado à ilha do Rei Arthur, famosa por suas belas maçãs – daí músicas como “Cavaleiro Lancelot”, com sua levada inicial que

(Pierre/Paulo Som)

5) Fugindo do Planeta 6) Virgem de Andrômeda (Paulo Som/Pierre/Edison)

lembrar “Gato Preto”, dos Secos & Molhados. Num castelo da idade média que velhice um velhinho falava Que o bobo da corte era o conde, que o conde era o bobo Que o bobo da corte era o conde, que o conde era o bobo Será que era ele? Cruz credo Na noite escura vendo a neve cair o velhinho falava Cadê meu alho, meu espeto de pau, minha espada de prata? Cadê meu alho, meu espeto de pau, minha espada de prata? Será que era ele? cruz credo

Talvez a faixa mais intensa do disco seja a ins-

vola Redonda. Historicamente, Avalon seria

trumental “Montanha Púrpura”, com suas mu-

o lugar onde a espada do Rei Arthur, Excali-

danças de dinâmica ao longo de três minutos,

bur, foi cravada.

que flertam com o Krautrock alemão de bandas

ram do Paulo. Ele me apresentava a música, com sua respectiva base, para que eu pudesse fazer os arranjos de guitarra”, disse Diógenes em entrevista ao podcast Trilhas, de Felipe Zangrandi, na época do relançamento do álbum.

ão

oduç

Repr

dia com bom humor, um cruzamento que nos faz

pirada no mais famoso dos Cavaleiros da Tá-

“As ideias sobre essas lendas sempre vie-

Deuses, anjos, astronautas Venha me ensinar tudo de novo

: Foto

xa “Mister Drá” mistura a fissura pela Idade Mé-

como NEU!

Eu, só quero ser regresso Uma prece ao universo Deuses, anjos, astronautas Venha me ensinar tudo de novo

(Pierre/Paulo/Johnny)

mago, profeta e conselheiro do Rei Arthur. A fai-

bebe de “Five To One”, dos Doors, e letra ins-

Eu, um micróbio no universo, homem da terra Uma raça que um dia falou com anjos

4) A Feiticeira

inspirada em Avalon, faz referência ao famoso

Com Manteiga passou batido pelo Serviço

Eu quero voltar para as estrelas Falar com os deuses Quem sabe até um dia foram astronautas

(Pierre/Paulo Som/Johnny)

tudo péssimo no Brasil, não é? Assim como minares de outros artistas brasileiros, o Pão

Vários artistas, escrevendo nas entrelinhas, conseguiam comunicar sua insatisfação com a vida no país, como a letra de “Micróbio do Universo”, uma balada com pegada de Yes, em que o vocal de Paulo Som fica entre o de Ney Matogrosso e o de Arnaldo Baptista, duas referências claras no som.

5) Montanha Púrpura

“Merlin”, outra música do disco diretamente

tantas outras letras com mensagens subli-

4) Micróbio do Universo (Paulo Som/Pierre/Edison/Johnny)

Um jeitão bem na moita de falar que estava

MENU

EFEITOS E ÓRGÃOS A reta final do disco é marcada por “Fugindo do Planeta”, em que os efeitos e uma cama dramática de órgão Hammond sustentam as vozes de Paulo Som e dos demais integrantes como se eles estivessem partindo para uma viagem ao espaço. É fechar os olhos para acompanhar a


decolagem do quinteto. O disco encerra com a instrumental “Virgem de Andrômeda”, onde mais uma vez a banda reitera sua vontade de ver o Brasil bem de longe, a partir de outra galáxia, aliás, e musicalmente flertando forte com a psiFoto: Divulgação

codelia de Pink Floyd. Depois que o Pão com Manteiga se dissolveu, no próprio ano de lançamento do disco, 1976, Diógenes se dedicou a outras atividades, mas, 23

Claudia Assef

anos depois, voltou a se reunir com Pierre, um dos criadores da banda, e com outro compositor,

Jornalista de música, trabalhou nos principais jornais, revistas e sites brasileiros, entre eles a Folha de S. Paulo, onde foi correspondente em Paris (FRA), e O Estado de S. Paulo, onde manteve uma coluna sobre música durante três anos. Claudia é autora dos livros Todo DJ Já Sambou, Ondas Tropicais e O Barulho da Lua. Esteve envolvida na criação e/ou produção das duas primeiras edições do Sónar São Paulo, Skol Beats, Nokia Trends, Motomix, Absolut Nights, Dia da Música Eletrônica, entre outras. É sócia-fundadora do WME - Women's Music Event, projeto com foco na mulher na música, incluindo um festival e uma premiação anual, e está à frente do Music Non Stop. É também DJ, produtora musical e atualmente coordena o Centro Cultural Olido, onde será inaugurada a Galeria do DJ, primeiro centro expositivo de um equipamento público na América Latina dedicado à cultura da discotecagem e de festas e bailes.

Tadeu, e os três passaram a ensaiar com frequência até o falecimento de Pierre. Sem possibilidades de uma volta do grupo, resta nos deliciarmos com a possibilidade de degustar esse clássico: um grande disco que conta uma história de fuga deste plano, passeia por gêneros à frente de sua época, chega até a flertar com o heavy metal e deixa sua marca no vasto terreno do rock progressivo brasileiro. E o melhor: agora acessível para todo mundo que o quiser ter em casa.

MENU


FORAM 17 ANOS (CID, 1976) APARECIDA

APARECIDA, A SAMBA NEGRA Ousamos dizer que Samba é como uma mulher de ventre pleno e fecundo, que traz consigo a possibilidade de acolher, de gestar, de parir e de cuidar.

A

pesquisa para este ensaio se deu durante o período de isolamento social, em decorrência do cenário pandêmico propagado pelo Sars-coV-2, vírus de proporções continentais, que no Brasil já subtraiu a vida de mais de 250 mil pessoas, em sua maioria negras e de origem periférica. No momento em que escrevo este texto, o número de mortos no Brasil já ultrapassa mil pessoas por dia. Carnaval suspenso. Rodas de samba suspensas. Cada um correndo gira como pode, preservando-se e permanecendo em suas casas. Infelizmente, não foi possível mergulhar no acervo do Museu da Imagem e Foto: Rep

rodução

MENU

Som de Santos (SP), onde aparentemente haveria registros das participações da cantora nas rádios e programas de TV durante as décadas de 1960 e 1970. Para redação deste ensaio, consultar amigos jornalistas e sambistas foi essencial para levantar informações complementares que confrontassem alguns dados presentes na web. Ser uma intelectual negra é construir um caminho pautado na busca por romper com as estruturas e os engessamentos que nos oprimem e invisibilizam nossas epistemologias e nossas presenças ao longo de expressões populares, como a música. “Escrevo como quem manda cartas de amor” profetizou Emicida, rapper paulistano que durante entrevista no programa Roda Viva (TV Cultura, 27/07/2020) evocou a memória de Aparecida e seu long play emblemático Foram 17 Anos. A frase de Emicida conduz o desejo de escrever este ensaio como quem envia uma carta de amor à história da sambista. Uma carta-ensaio. Um ensaio-manifesto para que as histórias de mulheres negras no samba não caia no esquecimento. Aviso de antemão que tal desejo poderá se diluir ao longo do texto, cuja escrita é como um ato de bordar uma colcha de retalhos recorrendo a diversas fontes


para encontrar e costurar as memórias de Maria Aparecida Martins, tais como vozes de sambistas, da produção intelectual de mulheres negras e pesquisadores, de amigos e familiares da cantora. Quando o convite para redação deste texto me foi feito, muitas perguntas surgiram e, na busca por responder uma a uma, iniciei a saga para compreender quem foi Aparecida para além da sambista. Meus olhos olhavam para a capa do disco e as poucas imagens disponíveis na internet e era como enxergar uma mulher que guardava em sua trajetória a história de diversas mulheres negras; a partir disso, eu poderia reconhecer a minha própria história, como ensina a escritora e sua conterrânea Conceição Evaristo: A voz de minha mãe Ecoou baixinho revolta No fundo das cozinhas alheias Debaixo das trouxas Roupagens sujas dos brancos Pelo caminho empoeirado Rumo à favela. A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. (Vozes Mulheres, 1989)

Maria Aparecida Martins nasceu em 4 de dezembro de 1940, na cidade de Caxambu, sul de Minas Gerais. Caxambu, palavra de origem tupi e banto, significa “água que borbulha”, em tupi (catãmbu); em banto designa “tambor, dança” e habita os refrãos de sucesso nas rodas de sam-

ba, através da poesia de Almir Guineto: “olha, vamos na dança do caxambu, saravá, jongo, saravá (…) O tambor tá batendo é pra valer”. A cidade, que pertenceu à capitania de São João Del Rei, foi fundada em 1901, perto das cidades de São Lourenço e Cruzeiro, locais por onde meus avós passaram e trabalharam nas lavouras até meados dos anos 1950.

trouxe algumas informações importantes, depois confirmadas na conversa que tive com Paulo Henrique Leal, filho da cantora. Diversas fontes registram que, entre 1949 e 1950, a senhora ainda menina, junto de seus pais, foi para o Rio de Janeiro. De Caxambu ao Rio de Janeiro, estimo que a família percorreu aproximadamente de 300 quilômetros. Chegando ao Rio, trabalhou como passadeira, faxineira, serviços historicamente delegados às mulheres negras em uma sociedade de herança escravocrata.

Antes de sambista e curimbeira, Maria Aparecida Martins era uma mulher negra cujos registros encontram-se fragmentados em diversas fontes informais geradas a partir de uma voz hegemônica: masculina e branca. A mim, como pesquisadora, me senti provocada a entender quem foi essa mulher a partir de vozes negras, ouvir pessoas que conviveram com ela e poderiam, minimamente, me ajudar a entender as subjetividades desta sambista icônica, cuja presença na cultura popular brasileira revela nuances profundas, ressaltando a importância das mulheres negras no samba.

Na busca por reposicionar Aparecida na história e entender como o contexto político e social influenciaram sua trajetória, apurei fatos de sua vida que vão dando contornos à linha do tempo da sambista. A chegada de sua família a terras fluminenses também é marcada pela reeleição de Getúlio Vargas (1882 - 1954), a inauguração da TV Tupi e a criação dos estúdios cinematográficos Vera Cruz.

Aparecida, nos poucos documentos disponíveis, é retratada apenas como sambista, aspecto importante que será tratado ao longo deste ensaio, cujo principal objetivo é humanizar a voz dessa mulher que “cantava as almas, os pretos-velhos”, como me contou o radialista Rubem Confete, o primeiro que entrevistei para construir essa trajetória invisível; foi um telefonema rápido, mas que

No Rio, foi morar nas terras de Noel Rosa (1910 - 1937) e Martinho José Ferreira, o Martinho da

MENU

Vila, no bairro de Vila Isabel. Em 1952, dizem os registros que Aparecida compôs os primeiros sambas e integrou um grupo de passistas formado por Salvador Batista. Nas pesquisas, não foi possível apurar quais sambas eram esses e encontrar mais detalhes sobre tal grupo… Na década de 1960, ela teria participado do filme Benito Sereno e o Navio Negreiro (não foram encontradas informações sobre o diretor nem informações gerais sobre o filme). De acordo com os textos encontrados na internet, a atuação rendeu a Aparecida um prêmio e uma viagem à França. Neste ponto da história, as informações rareiam: “eis uma personagem dificil pacas de levantar informações”, me alertou o historiador Luiz Antonio Simas em uma conversa informal. No tocante à memória da população negra, a escassez de informações e documentos é notória e desafiadora, se é que é possível pensar uma fonte oficial para a História. Assim, para tecer este ensaio-carta, recorri a entrevistas e conversas com sambistas e aos amigos que, assim como eu, buscam preservar a memória e as boas histórias ocultadas da narrativa oficial hegemônica.


Nas palavras da ativista e pesquisadora Jurema Werneck: “é importante assinalar que a limitação (e a invisibilização) da presença das mulheres negras como sujeitos de ações e criações nos relatos da vida nacional, seja cultural ou política, é produzida ativamente em decorrência da hegemonia das ideologias racistas e sexistas”1. Como já dito, busquei construir este texto tecendo fragmentos de fontes e relatos. Dos poucos registros disponíveis sobre Aparecida Martins, a maior parte dos dados foram publicados pela gravadora CID, fundada em 1958, por Hermann Zuckermann. Pesquisar, ainda que brevemente, a história de Aparecida é se deparar com o apagamento sistêmico que atinge as mulheres negras; na página da gravadora, na Wikipedia, não há menção à cantora: Artistas do quilate de Emílio Santiago, Nana Caymmi, Moreira da Silva, Bezerra da Silva, Baiano e os Novos Caetanos e tantos outros começaram a gravar seus primeiros álbuns pela CID e se juntaram a estrelas da música internacional como Donna Summer, Barry White e Patrick Hernandez que a CID passou a distribuir no Brasil.

Mas quem foi essa mulher cujo nome e amizade estão eternizados no refrão do samba? Teresa Aragão foi uma importante referência para a cena cultural da década de 1960, por ser uma das integrantes do Grupo Opinião (1964 - 1982), espaço que ao longo da ditadura foi responsável por montagens críticas e de oposição ao regime ditatorial do período. De acordo com Geovana e Confete, Teresa seria responsável pela primeira turnê internacional da cantora.

anos em que Aparecida participou das coletâneas e gravou seus discos na empresa judia. “A CID tinha uma produção barata, acessível e era amplamente divulgada fora do Brasil, nas comunidades negras dos EUA. Aparecida rendeu um bom faturamento para eles, mas infelizmente eles não recompensavam o artista na mesma velocidade que vendiam”, me contou o radialista Rubem Confete.

E pra quem não conhece Tereza Aragão Vou dizer apenas isto Foi a primeira pessoa que me deu A primeira oportunidade nos shows jazz E a única chance de viajar para o exterior

De acordo com Rubem Confete, falar de Aparecida é uma missão impossível, visto que muitas das pessoas que conviveram com ela já não estão mais vivas e muitos documentos su-

O Opinião foi frequentado por nomes importantes na produção intelectual e nas artes cênicas brasileiras: Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho, João das Neves, Millôr Fernandes. O grupo mantinha as rodas de samba “como um espaço voltado para negritude. Muita gente passou pelas rodas do Opinião; entre esses encontros, Teresa produziu o show a Fina Flor do Samba (1960), do qual Aparecida participou ao lado de muitos cantores”, explicou Rubem Confete.

miram. Além disso, acessar os acervos radiofônicos dos museus - em tempos de pandemia - é algo impraticável. O radialista, no entanto, se emocionou ao falar da cantora e relembrar que, nas décadas de 1960 - 1970, havia em todas as comunidades mais de trinta e dois programas de rádio voltados para o samba. Aparecida surgiu nas rodas de samba do Opi-

Aparecida Martins figura entre os “tantos outros” da gravadora. Mas, ainda que a cantora não esteja entre os nomes de destaque no verbete, de acordo com seus familiares e amigos próximos, houve excelente distribuição e venda durante os

nião, dirigido por Teresa Aragão. Caiu no gos-

Nesse momento, Aparecida passou a fazer parte “da seleta de cantores”. Quando perguntei a Confete sobre a censura e perseguição aos sambistas, ele respondeu: “a ditadura nem percebeu aquele monte de preto. Samba era coisa de pre-

to de Teresa, e “isso ajudou muito ela, me contou Geovana” cantora carioca e amiga de nossa protagonista.

MENU

to, para eles”. De acordo com o radialista, poucos sambistas na época foram perseguidos e tiveram seus sambas censurados. Se de fato o samba não incomodava a ditadura, deixarei esse assunto para um outro ensaio. Por ora, parafraseio Beatriz Nascimento2: o samba, quero ressaltar aqui mais uma vez, é muito mais um instrumento ideológico para a luta do negro do que um instrumento ou gênero musical, é rebelião. O samba é espaço de aquilombamento afetivo, é local de experimentação de liberdade, de corporeidade e de celebração. Em 1962, Aparecida se tornou mãe de Luis Alberto da Silva e, em 1966, de Paulo Henrique Leal. Em ambos os casos, a cantora foi impelida a entregar os filhos para doação assim que nascessem. “Sabe como é, né, mulher preta e sambista? Não nos davam a chance de escolher. Aparecida sofria muito com essa situação de não ter os filhos perto”, contou Geovana. Paulo Henrique Leal reside há trinta anos na Europa, já passou por diversos países e atualmente trabalha como barman no sul da Espanha. Saiu do Brasil poucos anos depois do falecimento de sua mãe. Ele me contou que está escrevendo um livro autobiográfico: “quero contar a minha história de forma simples para que todos entendam”.


Curioso observar que o movimento de narrar-se, de Paulo, acontece ao mesmo tempo que este texto reconta a história de sua mãe. Em 1975, o caçula conheceu sua mãe. “Sua mãe vai passar na TV”, ouviu Paulo Henrique e foi diante do aparelho televisor que ele viu pela primeira vez a mãe biológica que fazia uma participação no programa de Sílvio Santos. “Havia um pai de santo, Milton, no bairro. Ele conhecia minha mãe e sabia onde eu a podia encontrar; assim, passei a ficar alguns finais de semana com ela. Minha mãe era muito fechada, discreta, não falava muito. Cantava. Quando eu a conheci, ela estava concorrendo na Caprichoso de Pilares”, nesse ano o samba “Sonata das Matas” seria o campeão na agremiação, fazendo de Aparecida a segunda mulher a vencer uma disputa de samba-enredo, sendo precedida por Dona Ivone Lara. Por mais que cantasse e estivesse prestes a gravar o disco que marcaria a história da música preta brasileira e sua carreira, “Aparecida se sentia feia. Ser negra era um fardo para ela. Ela via muita gente, sem o talento dela, subindo, sendo reconhecida”, acrescentou Geovana. “Ela se achou quando foi para o terreiro. Um dia ela virou para mim, estava na minha casa em Santa Tereza, e me falou que ia seguir um ca-

O conhecimento e as vivências de Aparecida tornam possível compreender o porquê de suas músicas evocarem a ancestralidade, “Com a voz forte e a poesia que eram dela”, relembra Confete, Aparecida cantava a ancestralidade, e esse era o seu ato subversivo, em um país que nos força a esquecer e negar quem somos: pretas.

minho mais afro, fazer as coisas delas no afro, sabe?”. Afro, nas palavras de Geovana, refere-se à umbanda e ao candomblé. “Foi minha mãe que me levou para o candomblé ketu. Nossa família é de ascendência angolana, minha mãe frequentava de tudo: angola, ketu, jeje, nagô… umbanda. Eu ficava doido

A busca por identidade em meio aos processos de opressão atravessou as relações sociais, as construções simbólicas de um povo, de um grupo étnico e as disputas por novas narrativas. Não há novidade na afirmação de que o racismo, os processos coloniais, o capitalismo e o machismo são marcadores e atravessamentos que estabelecem as relações de poder, de disputas, refletindo-se na produção simbólica e nas experiências afetivas e no amor-próprio no tocante a nós, pre- tas. A despeito de todo processo de opressão instituído e contínuo, o samba se faz e se expressa como um manifesto, apresentando um território físico e estético através da roda, da música e da dança.

com o toque do tambor”. Contou Paulo, que foi iniciado no Ilê Akibugi Obaluaê, localizado no bairro do Xerém (RJ). Já Aparecida era ekedi no Ilê Yatôbomim Yemanjá, depois frequentou a umbanda e um terreiro jeje, na região de Nova Iguaçu (RJ). Dias antes de encerrar este texto, fui surpreendida com uma foto do arquivo pessoal de Paulo: na imagem, no meio da mata, homens sentados vestidos de branco tocam atabaques; no primeiro plano, duas mulheres de saias brancas rodadas e turbantes; ao centro, um garoto dança para o orixá. “A mulher da esquerda

é

minha

Durante duas horas, em uma terça-feira à noite, eu e Geovana conversamos. O motivo da longa conversa era uma foto tirada em maio de 1972, em que a imagem preta e branca mostrava uma ce-

mãe, ela foi ekedi, estudou até a quarta série, mas falava em ketu, iorubá e quimbundo”.

MENU

na-canção: duas cantoras pretas sentadas, conversando. Enviei a imagem para Geovana, e a partir daí mais histórias se levantaram. A mim, me interessava saber mais sobre a história daquele rosto negro retinto, de traços marcantes: rosto e nariz largos, lábios grossos, turbante branco e dentes à mostra na capa do disco Foram 17 Anos. “Ela foi uma mulher culta. Não era uma qualquer. Aparecida andava com as reportagens sobre ela na bolsa e as mostrava para as pessoas”. Entre 1975 e 1976, os trabalhos Aparecida, lançado em 1966, e Foram 17 Anos, respectivamente, ganharam espaço no Jornal do Brasil, através das críticas do jornalista José Ramos Tinhorão. “Aparecida, pelas qualidades de voz e interpretação: calma, colorida e precisa, é definitivamente uma cantora destinada a integrar-se ao panorama da MPB” (Tinhorão, 1975). No mesmo texto, parágrafos adiante, ele acrescenta, “deve procurar por compositores para ser definitivamente aplaudida e conhecida como a grande cantora do Brasil”. Embora a afirmação pareça mais elogiosa do que depreciativa, é curioso observar que para Tinhorão as composições da sambista não estavam à sua altura e que seria necessário um compositor para elevá-la ao status de cantora


do Brasil. Qualquer semelhança com a história de Dona Ivone Lara, que durante décadas teve seus sambas assinados pelo primo para que a letra fosse aceita, não é mera coincidência, antes revela como o machismo e o racismo operam em relação às pretas sambistas.

ÁLBUM 10 ANOS

FORAM 17 ANOS (CID, 1976) APARECIDA

Capa: Luiz Pessanha

“Pai Oxalá no obatalá! Com sua Sagrada permissão Nossos trabalhos iremos começar Foram dezessete anos Dezessete sete sete Foram dezessete anos Dezessete sete sete Após dezessete anos Até peço a Oxalá Acabou-se o desengano Hoje vivo a cantar Esta é a história da minha luta de 17 anos de paixão Até conseguir a minha primeira gravação Gente! Não foi mole, não!”

No mesmo texto, J. Ramos afirma que percebia “uma preocupação (talvez excessiva) com as raizes africanas de sua família”; contudo, quando do lançamento de Foram 17 Anos, o discurso do jornalista muda para “percebe-se a coerência do seu repertório”, e Aparecida se torna “a artista do povo que quer ser apenas uma voz do povo” (1976).

Lado A

1) 17 Anos

(Maria Aparecida Martins)

2) A - Tributo às Almas

(João Ricardo Xavier/Mariozinho do Acari)

B -Santo Antonio de Pemba (Evaldevino P. Xavier/João R. Xavier)

3) Os Deuses Afros

É na força do sete e de quem cuida dos caminhos que a sambista abre a sua gira, fazendo seu “Tributo às Almas” e a “Santo Antonio de Pemba”. Em seguida, é hora de saudar os “Deuses Afros”, e nas canções que se seguem Aparecida vai revelando ser conhecedora dos fundamentos e tradições dos cultos dos orixás.

(Mariozinho do Acari)

4) Melodia Não Deixa Parada de Lucas

Se por um lado, Aparecida tinha problemas com

(Zeca Melodia)

sua imagem, relata Geovana, por outro, a capa

5) Grongoiô, Popoiô

do álbum em que sua pele contrasta com o tur-

(Maria Aparecida Martins/João R. Xavier/ Mariozinho do Acari)

bante branco que lhe cobre o cabelo, causa uma impressão no mínimo arrebatadora.

Lado B

1) Diongo, Mundiongo

Em “Grongoiô, Popoiô”, “Diongo, Mundiongo” e “Aruê”, a cantora reitera seu conhecimento de línguas africanas. Depois, vêm as faixas “Todo Mundo É Preto” e “Saravá Saravá, Bahia”.

No verso, logo abaixo do título do LP, um recado escrito à mão: “‘Este disco é o resultado de 17 anos de luta’, Aparecida”.

(Maria Aparecida Martins)

2) Arauê

(João R. Xavier/Mariozinho do Acari/Zeca Melodia)

3) Todo Mundo é Preto

Logo no inicio, temos o canto desabafo que rasga a alma e dá nome ao LP, e com o corpo marcado pela labuta de quase duas décadas para a realização desse álbum, Aparecida entoa:

(Maria Aparecida Martins)

4) Saravá, Saravá Bahia (Maria Aparecida Martins)

5) Lágrimas da Oxum

(João R. Xavier/Evaldevino R. Xavier)

não à toa a última faixa do disco é “Lágrimas de Oxum”. Aparecida Martins nasceu entre as águas doces de Caxambu, no reino de Oxum. “Oxum é a orixá feminina identificada com a fer-

ção

rodu

: Rep

Foto

“Ela dizia que era da Oxum”, conta Geovana;

MENU

tilidade e a capacidade de enxergar o futuro. (…) Oxum é a mulher que foi capaz de reverter as estruturas de poder e riqueza e apropriar-se de fatias consideráveis de poder e dessa riqueza” (Werneck. 2021, p. 27). São inúmeras as formas de falar quem é Oxum e de como ela se expressa, mas uma coisa é certa, a riqueza não se materializou na vida de Aparecida, visto que o machismo na indústria musical não possibilitou que a sambista recebesse o que lhe era de direito. “Aparecida queria viver de samba. Ela dedicava a vida dela para isso. E acabou sendo roubada pela gravadora. Muitas mulheres negras sambistas passaram necessidade: Zaíra, Júlia, Dila, Ilza, Sabrina… e Aparecida, todas morreram tristes” e subestimadas pela indústria musical e pelo racismo. Após Foram 17 Anos, a cantora lançou Grandes Sucessos (1977), Cantigas de Fé (1978), 13 de Maio (1979), Os Deuses Afros (1980) e A Rosa do Mar (1983), e passou um tempo no Ceará, onde morreu em 1985. Meses antes de viajar para o Ceará, Aparecida falou a Geovana: “o Rio é muito pequeno para os nossos sonhos e o que a gente faz. Vou para o Ceará”. Segundo Geovana, Aparecida havia ficado amiga de uma prefeita que facilitou para que a cantora fizesse shows na cidade.


Aparecida. Dona Aparecida. Tia Aparecida. Aqui me despeço, com essa singela tentativa de, ao te homenagear, honrar as mulheres negras sambistas que antecedem Tia Ciata e não se encerram na Pérola Negra, mulheres negras-sambas que cruzam as linhas invisíveis da história, se encantaram e hoje se encontram no canto de Fabíola, Luana, Maíra, Nina, Teresa, Fabiana, Juliana, Janine, Renata e tantas outras ainda desconhecidas, mas que não vão cair no abismo hegemônico do esquecimento. Celebro sua ancestralidade banto, angolana, Aparecida, e me despeço de sua história, citando a cosmologia bacongo, registrada pelo músico e pesquisador Tiganá Santana: “Mono i kadi kia dingo-dingo (kènda-vutusika) kinzungidila ye didi dia ngolo zanzingila. Ngiena, kadi yateka kala ye kalilila ye ngina vutuka kala ye kalulu la”, que para nós, ainda colonizados, se traduz em: “Eu estou indo-e-voltando-sendo em torno do centro das forças vitais. Eu sou porque fui e re-fui antes, de tal modo que eu serei e re-serei novamente”. Que a sua história possa voltar a ser revisitada e escrita por outras mulheres como nós: negras.

1 - WERNECK, Jurema. O Samba segundo as Ialodês: mulheres negras e cultura midiática. 2021. Hucitec.

FREITAS, Maitê. (org.). Massembas de Ialodês. 1. ed. São Paulo: Polen Editorial, 2018.

2 - Em seu texto “Historiografia do Quilombo” (1977), Beatriz Nascimento afirma que “Então, o quilombo, eu quero ressaltar aqui mais uma vez, é hoje em dia muito mais um instrumento ideológico para a luta do negro do que um instrumento, como foi no passado, de rebelião”. In: Quilombola e intelectual. Possibilidade nos dias da destruição. Editora Filhos da África. 2018.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano. São Paulo: Zahar, 2020.

Agradecimentos: Geovana, Helena Theodoro, Fabíola Machado, Raquel Thobias, Nega Duda, Rubem Confete, Lucas Nobile, Luiz Simas e Paulo Henrique Leal.

SANTANA, Bianca. A escrita de si de mulheres negras: memória e resistência ao racismo. Teses USP, São Paulo, 2020.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória. Ed. Perspectiva e Mazza Edições, 1997.

SANTANA, Marilda. As bambas do samba. Salvador: EDUFBA, 2016. WERNECK, Jurema. O samba segundo as Ialodês: Mulheres negras e a cultura midiática. Porto Alegre: Hucitec, 2021.

Referências Sites: https://pitayacultural.com.br/musica/aparecida-a-voz-dos-orixas/ Acessado em 15/02/2021 https://pt.wikipedia.org/wiki/Aparecida_(cantora). Acessado em 15/02/2021 http://www.cid.com.br/. Acessado em 15/02/2021 Livros CARNEIRO, Sueli. Gênero Raça e Ascensão Social. Estudos Feministas, v. 3, n. 2, p. 544, 1995. ________________. Matriarcado da miséria. Correio Braziliense, p. 5, 2000. Disponível em https://www.geledes.org. br/o-matriarcado-da-miseria/ ________________. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117 - 133, Dec. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000300008&lng=en&nrm=iso>. _______________. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: Racismos contemporâneos. Ashoka Empreendedores Sociais e Cidadania, Rio de Janeiro: Takano Ed., 2003a.

MENU

Foto: Divulgação

Aparecida faleceu em 1985, no estado do Ceará. O dia, ninguém soube dizer. O que se sabe é que “ela recebeu muitas homenagens em Fortaleza, seu corpo foi enterrado lá”, relembrou o filho que esteve no carro do corpo de Bombeiros que desfilou pelas ruas da cidade, junto ao corpo de sua mãe.

Maitê Freitas Mãe da Ilundy Airá. Doutoranda em Mudança Social e Participação Política e Mestre em Estudos Culturais, na USP. É ensaísta, jornalista e gestora cultural. Idealizadora da plataforma Samba Sampa e coordenadora executiva da Editora Oralituras. Colabora nas ações e produção da websérie Empoderadas. Participou de coletâneas literárias como autora e editora. É organizadora e idealizadora da Coleção Sambas Escritos (Pólen, 2018). Cofundadora do coletivo de pesquisadoras negras Acadêmicas das Sambas, é jornalista pesquisadora do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis (FIOCruz) e colabora com o Fórum de Comunidades Tradicionais da Bocaina.


A ARTE DOS SONS (INDEPENDENTE, 1979) RODOLFO CAESAR

E

m um mundo em tudo excessivo, cujas representações acústicas incidem de maneira decisiva sobre a realidade sensível, moldando por vezes com violência nossa predisposição à escuta, soa como um chamado, hoje, pensar/ repensar a fenomenologia do som, mais ainda, sua potência musical. Uma questão de princípio e de arte, de ecologia e sobrevivência, filosofia e política.

Desconsiderada qualquer tautologia de ordem mais imediata (“se música, logo som”), posto o entendimento tangencial aplicado à obra aqui revisitada, abre-se uma janela auditiva para o vigor de uma estética ainda nova e ainda vigente, manifesta há mais de quatro décadas nesse disco tão raro. A Arte dos Sons, objeto de cobiça de aficionados, colecionadores e até leiloeiros, é a pequena obra-prima matricial do compositor carioca Rodolfo Caesar (1950)

Foto: Rep

rodução

MENU

em seu primeiro álbum, cuja fatura datada de 1978-1979 até hoje ostenta, se muito, uma ou outra marca tímbrica do tempo, uma ou outra sonoridade de época. No lado 1 do LP, os títulos “Curare II” (1975) e “Les Deux Saisons” (1976). No lado 2, “Tutti Frutti” (1978), em três partes. Somadas as faixas, nem 33 minutos. São três peças de intensa beleza, desconcertante beleza. Assim como é, mas em contraste, intenso e desconcertante, o breve texto que acompanha o disco, escrito em tom de manifesto de liberdade, tal manifesto de “um homem só”, se vale aqui da analogia de ordem existencial com a célebre Symphonie pour un homme seul, obra de 1949-50 de Pierre Schaeffer (19101995) e marco zero da música concreta junto a seus estudos de ruído. Com o peso de uma iniciação, a música concreta, à qual Caesar é tributário, está no epicentro de sua formação, senão de si. Na contracapa do disco, num documento que amplifica o novo território sonoro ocupado, uma letra miúda manuscrita, de traço leve e inclinada, falsamente sugerindo uma mansuetude incompatível com a evidente inquietação de espírito do compositor, traz a público sua definição do ofício e sua já aguerrida tomada de posição nas antecâmaras da arena futura a que se dirige. Lê-se, com todas as letras:


Artista dos sons, ou artista sonoplástico, pode ser todo aquele que queira ou tenha que entrar no circuito tradicional estruturando num percurso que começa nas exigências do mercado musical, passa pela censura estética da ordem dos músicos do Brasil, pela censura principalmente dita, e termina na consciência de cada um. A classe dos artistas sonoplásticos, que ora se imagina, não tem estatutos e nem se esforça por tê-los, por não querer regulamentar uma atividade artística que, por definição, encontra-se além do delimitável por regras práticas.

É um texto de volta à casa, de volta à pátria – e um recado de ruptura. Caesar partira para a Europa em 1972, movido pelo mal-estar com o estado de exceção no país, com os rumos insatisfatórios das vanguardas e com o que entendia como vida cindida (e perdida) num binômio alienação-resistência. Deixava para trás os estudos no Instituto Villa-Lobos (UFRJ) e as aulas com Reginaldo de Carvalho, pioneiro da eletroacústica no Brasil, primeiro mestre. Nas entrelinhas à mão, a proposição de uma arte “além do delimitável”, conforme preconiza, vem a antecipar uma resposta defensiva à pergunta frequente em ambiências (e audiências) musicais desde então, a partir de seu convívio como aluno-assistente de Schaeffer: – “Isso é música?” Isso, que é música, ou “uma nova forma de expressão musical” no recorte de um verbete, opera na concretude do real. Em lugar da partitura ou

qualquer. Como se, contrariando a teoria, o ruído se fizesse, paradoxalmente, informação.

qualquer outra mediação gráfica, a composição é feita de sons preexistentes no mundo: achados, percebidos, gravados, manipulados – e recontextualizados. Tirá-los de contexto significa, no caso, subtraí-los de seu significado direto e imediato, comumente associado a uma fonte sonora explícita; significa abstraí-los ao ponto do som em si, per se, ao qual o compositor chegará por meio de um exercício, diga-se árduo, de “escuta reduzida”. Paradoxalmente imenso, tal esforço de extração de toda significação a priori, esse estado de redução metafísica à essência objetiva da coisa (a suspensão filosófica do mundo de que fala Husserl) é compensado pela transfiguração de um som comum, um ruído ordinário, em fonte compositiva alçada ao estatuto de “objeto sonoro”.

A arte (dos sons) evocada desde o título no disco de Caesar baseia-se nessa inversão de fatores e valores de uma premissa analítica óbvia (“toda música contém som”), em favor de um raciocínio sintético em espelho tornado princípio concreto (“todo som contém música”). Obviamente a dissolvição de uma percepção estabelecida geraria certa dissonância cognitiva de um ponto de vista cultural e social e desestruturaria a lógica confortável do senso comum.

Estão dados assim os dois pilares conceituais da música concreta formulados por Schaeffer a partir dos anos 1950 nos estúdios do Club d’Essai, seu laboratório de experimentação na Radio France – o de “escuta reduzida” e o de “objeto sonoro”. Essas duas balizas são o que sustenta a experiência por ele retomada da propedêutica dos gregos antigos: a instrução e assimilação de um conhecimento por meio de uma “escuta acusmática”, processo em que uma cortina (real ou imaginária) desconecta aquilo que se ouve daquilo (ou daquele) que se vê. A informação torna-se, assim, pura ideia. No âmbito da música, promove-se uma categoria nova de sentido de audição por alto-falantes, despida de qualquer imagem mental de um fenômeno sonoro

Tome-se o método do sulco fechado (“sillon fermé”). A agulha presa em looping por tempo indeterminado fixa um meticuloso fragmento sonoro talhado em disco de acetato: “um pedaço de realidade”, repetido à exaustão, até sua mudança de referencial. (Caesar reflete a respeito no livro O Enigma de Lupe). Toda a metodologia inicialmente empírica de Schaeffer (depois teorizada em um tomo monumental de ensaios reunidos, Traité des Objets Musicaux, 1966), objetiva desvelar, primeiro, o corpo do som; depois, seu prazer sensorial, numa relação de desejo quase erotizante com o objeto sonoro.

MENU

Numa comparação pertinente, é bem o oposto da cultura cerebral da música eletrônica germânica, com a qual a estética concreta rivaliza e em cuja técnica prevalecem controle e razão. Nesse ponto/contraponto cumpre distinguir essas duas culturas de vanguarda. Enquanto a acústica calculada da música eletrônica de matriz alemã é produzida com osciladores de frequência e sínteses sonoras artificiais, a música concreta tem por matéria-prima eventos acústicos naturais submetidos à subjetividade de uma interpretação – o que se materializa no processo de montagem, de interferência temporal e volumétrico, de filtragem de espectro etc. O compositor é, pois, e antes de tudo, aquele que interpreta o som – alguém que percebe no objeto de sua atenção auditiva uma conotação inesperada e por vezes mais singular que sua denotação primária. Logo, estranhamento algum quando Caesar se autoproclama “compositor, professor e intérprete”. Não o intérprete de um instrumento (embora tenha, ele próprio, tocado trompa), mas um intérprete de sons – o que, em inesperada reinversão, inclui mesmo reinterpretar os sons temperados de um instrumento acústico gravado, na busca de gestos únicos.


No extremo, todo um solfejo de séculos é desafiado pela revolução epistemológica de Pierre Schaeffer e seu novo paradigma psicoacústico. Muda a metodologia compositiva e, com ela, sua terminologia, com introdução de termos como “grão”, “granulação”, “textura”, “massa”, “aura”, “cor” e “porosidade” no léxico da música. A esse respeito, cabe citar um trecho de Rodolfo Caesar: Os compositores concretistas compuseram antes de anotar, tentando chegar ao som pela palavra. O tratado impressionante de Schaeffer, com seu solfejo complementar, aponta para uma nova disciplina: a aculogia, a descrição dos sons. Criticando os buracos no positivismo da música eletrônica, apoiada numa falsa identificação dos parâmetros do serialismo com os da física acústica, Schaeffer demonstra que altura não é frequência, duração não é tempo cronométrico, timbre não é espectro harmônico. E reclama para os sons um status fenomenológico, empreendendo um trabalho de descrição dos critérios de percepção dos sons.

Sob o título “A noite e a notação musical” (Revista Arte e Palavra, Fórum de Ciência e Cultura, 1987), este é um ensaio antológico sobre o caráter noturno da música, seu mistério espiritual, sua pele (o tímpano) e seu tato (o ouvido). A música verdadeiramente autônoma é aquela que levará o ouvinte ao centro da noite, onde a matéria se confunde com a forma e tempo com espaço. Esta música não é amorfa. Já que as possibilidades de escrita estão entre a mão e o ouvido do compositor, o som é a própria notação. Quem descobrir a escrita será o ouvinte que entrar na escuta levando junto tudo de si mesmo.

De seu percurso in progress, sempre na condição de caminhante, e para entendê-lo, cumpre acentuar seu contato com a escola espectralista francesa, que ecoa na Inglaterra na figura do compositor Dennis Smalley, seu orientador de doutorado nos anos 1980-1990. O espectralismo acaba sendo ponto de inflexão inevitável na obra de Caesar, e talvez até mesmo antes de seu contato teórico aprofundado no campo. Tal consideração se apoia nas obras mesmas contidas em A Arte dos Sons, disco embrionário apenas no sentido de revelar um compositor já pronto, pleno, e que traz indícios fortes naquele sentido.

Porque também a si estará ouvindo. Esta música não pode, nestas condições, alimentar o desejo de se mostrar naquilo que a filosofia chamou de objetividade. No escuro, a relação do ouvinte com a música difere da desgastada situação sujeito-objeto. Se quisermos ser este ouvinte, precisamos reconhecer aquilo que antes só aceitávamos a contragosto: que o que ouvimos é parte de nós mesmos. E que, cada vez que ouvimos de novo o trecho, não é mais o mesmo.

Com um catálogo de reflexões e ensaios de alta densidade, e um compositor que pensa a música como um complexo, Caesar bem poderia, mas não o faz, acrescentar aos seus títulos o de esteta-filósofo (crédito acadêmico legítimo no seu histórico), cuja poiesis se reveste da deontologia e ética sonora. Poeta entre poetas, diga-se, na dupla essência da música e da língua escrita, suas chaves de tradução do mundo imanente são a música e o texto escrito. Desde sempre, referências pessoais são seletas, e decisivas. Ao tempo em que estagiava com Schaeffer em Paris, entre 1973 e 1976, quando o Club d’Essai já se chamava GRM (Groupe de Recherches Musicales), Caesar travou contato com a arte luminar do compositor eletroacústico François Bayle, um escultor dos sons, cuja pintura acusmática fina, altamente sensorial e “sem violência”, como ressalta Caesar, teria forte ressonância na constituição de sua obra e pensamento. O mesmo para seu engajamento com o espectralismo.

De fato, o espectralismo surge como corrente teórica consolidada em meados dos anos 1970, período da estada de Caesar na França. Dito de forma abreviada, é plausível situar a corrente espectral como um de-

MENU

grau evolutivo na esteira da música concreta, à medida que postula, para além do trabalhar com sons, um trabalhar dentro do som, entidade que seus adeptos abordam como “um universo”. E de fato é. Em especial os sons de altura definida (ou notas), dada sua estrutura acústica rica de espectros ressonantes (os chamados “sons harmônicos”). Ainda de forma breve, é como se cada som carregasse sons derivados (“parciais”, na terminologia espectralista), em escalas progressivas de menor dimensão, cada qual em sua sonoridade particular em reação à vibração da corda principal (a nota fundamental). No fundo, é pitagórico. A estética espectral implica a análise do som enquanto um composto e na amplitude de seu espectro acústico, verticalizando suas possibilidades a partir das ressonâncias naturais de tons de altura definida, “distância” esta que cobre desde as consonâncias (em primeiro plano) até a dissonância dos microtons (mais longe, praticamente imperceptíveis). Essa é outra chave importante para a escuta da obra de Caesar, já que sua música, que se pode também dizer eletroacústica, traz compósitos perfeitos de ruídos e notas ressonantes. Na verdade, esse é um traço seu patente, ainda que intuitivo, já no primeiro disco. Raramente Rodolfo Caesar falará de sua obra no grau com que escreve sobre a Música, exceto para


ÁLBUM 10 ANOS

A ARTE DOS SONS (INDEPENDENTE, 1979) RODOLFO CAESAR

Capa: reprodução de gravura de Pieter Bruegel

Lado A

1) Curare II 2) Les Deux Salsons

As obras reunidas em A Arte dos Sons foram

tecer considerações estéticas indiretamente implicadas. Durante a confecção deste ensaio, um artifício involuntário movido pela curiosidade da autora sobre o porquê da ilustração reproduzida na capa, consulta a que o músico responde prontamente por e-mail, resultou no registro informal de uma memória discreta, mas que sinaliza a episteme da época.

compostas com intervalos curtos de tempo: 1975 (“Curare”), 1976 (“Les Deux Saisons”) e 1978 (“Tutti Frutti”). Justapostas em disco, como que amadurecidas pela mera conjugação, compõem um mural de palhetas e cores sonoras que deixa evidente, a cada peça, o domínio do compositor quanto a forma (exposição, reflexão, conclusão), discurso (tese, antítese, síntese), materiais

O disco é de 1978, quando aqui a gente se equilibrava entre a linha dura da dita, que se manifestava em nacionalismo/brasilidade, de um lado, e do outro uma linha menos dura, ainda formal, do modernismo à la Koellreutter. Havia também o latino-americanismo preconizando uma estética de pequenas coisas e pobreza assumida. O regionalismo inerente a esse movimento caía bem em lugares ainda menos metropolitanos do que meu pequeno eixo Rio / São Paulo. Eu não me identificava com nenhum desses modelos. Embora (ou talvez porque) estivesse saindo da casa schaefferiana, ansiava por fazer músicas de um jeito que talvez pudesse associar ao desejo pós-modernizante da época: dinâmicas, barulhentas, ‘viajantes’ e indisciplinadas. Daí minha escolha por essa gravura de Brueghel. Ela trata da queda do mago Hermógenes, pela fé de um santo, cuja persona editei estrategicamente para fora do quadrado do LP. A escolha do Brueghel para ilustrar um cartaz/ capa/etc. não foi a primeira vez. O primeiro concerto que participei, no MAM, em 1976, tinha também uma gravura dele, no cartaz. Aqui a história era outra, mas mando as duas gravuras pra você ver. Vieram ambas de um livro da editora Dover que eu dei para alguém.

Lado B

1) Tutti Frutti Todas as composições de autoria de Rodolfo Caesar

nâncias fixas, que agem como polos de ancoragem e suspensão para eventos de uma paisagem irrealista de objetos sonoros abdicados de sua origem e levados a performar outra instância de polifonia tímbrica. Uma antítese do desconcerto entre a natureza virgem e a natureza humana. “Tutti Frutti” (4:03, 5:43, 8:22), retoma, com

râmetros (poéticos, plásticos, manipulativos),

pesarosa ênfase, o papel-solo do cello erran-

recursos (ruidistas, instrumentais, parciais) e,

te, embora o arco de instrumento seja visitado

claro, escuta (ativa, crítica, estrutural). É uma

por uma pletora de sons luminosos de prove-

síntese configurante.

niência e categoria diversas, clareando e ilu-

um desafio, quase uma impossibilidade. Mas recuperar o trajeto de um compositor e o produto resultante desse trajeto pode minimizar eventuais equívocos de uma apreciação crítica. É o que se intenta na leitura a seguir, em três fôlegos. “Curare” (7:43) parte de um objeto sonoro instrumental, explorando o gesto hardcore de um violoncelo, que se ergue no espírito da improvisação radical, em extroversão furiosa, transpassado por sons transformados e graves harmônicos, num solo transfigurado, resistente, entregue. Um golpe de escuta.

MENU

frequências agudas e ênfase sutil em resso-

(anamorfose, montagem, espacialização), pa-

Em qualquer circunstância, descrever música é

ção

rodu

: Rep

Foto

(naturais, mecânicos, antrópicos), processos

“Les Deux Saisons” (6:52) é um andante, com

minando o caráter escuro do instrumento nos campos harmônicos menores sugeridos, para deixar uma clareira irromper num enxame delicado de sons sinodais e uma exuberância de sinos e sinais percussivos mais simbólicos que métricos propriamente. Até que o mundo explode em pulso. Ufa. Tudo fala, nesse cinema abstrato, numa gama de extremidades sígnicas, mas também numa gama de afetos, na acepção filosófica que Spinoza dá ao termo.


Schaeffer mesmo declarava a música como “uma arquitetura da fala” e ansiou descrever e nomear, cada um, um catálogo de sons. Essa trama entre música e a linguística está nos ossos, na música e nos silêncios de Rodolfo Caesar. Foto: Divulgação

E assim como Schaeffer via a si mesmo mais como pesquisador do que como compositor, Caesar situa, de forma indissociável – e também o afirma em texto – sua música no universo da pesquisa acadêmica, continente de acolhimento possível para conteúdos experimentais ao limite e para a busca de respostas teóricas no terreno empírico de uma prática criativa livre.

Regina Porto Musicista, sound designer, agente cultural e documentalista. Mestranda em Ciência da Informação pela USP e em Música pela Unicamp, pesquisa o Acervo Koellreutter e a obra de Claude Debussy. Dirigiu a Cultura FM de São Paulo, foi editora de música da Revista Bravo! e curadora de concertos contemporâneos do Instituto CPFL. Suas áreas de interesse incluem artes acústicas, arquivologia, memória documentária e políticas de dados abertos. Desenvolve o projeto de documentação Ludovica® OpenMusic.

Foi nesse trajeto que Duda (como o tratam amigos) refletiu sobre a noite da música e dos tempos, se insurgiu contra os excessos do que chama “timpanismo”, investiu pela bioacústica e hoje investiga o som como veículo e “suporte por excelência”. Por dentro, põe em dura revisão crítica os postulados schaefferianos. Faz o que todo pesquisador vocacionado faz: problematiza sistematicamente seu objeto de estudo. Música por desvendar. Ad infinitum.

MENU


A DIVINA INCRENCA (INDEPENDENTE, 1980) DIVINA INCRENCA

espaço público do sonoro jorro (discurso institucional?) autoritário de ódio e negação, GENERALizado desde cima e multiplicado em ambientes

TEM FREE JAZZ (MACARRÔNICO?) NA RETAGUARDA DA TAL VANGUARDA, SI SIGNORE

virtuais. Melhor formulando: sempre é preciso ouvir o que importa. Mas o que importa? E como fazê-lo? Pois até o silêncio costuma fugir ao contexto quando dele se necessita com urgên-

O ouvido não tem preferência particular por um “ponto de vista”. Nós somos envolvidos pelo som. Este forma uma rede sem costuras em torno de nós. Costumamos dizer: “A música encherá o ar”. Nunca dizemos: “A música encherá um segmento particular do ar”. Ouvimos sons vindos de toda parte, sem jamais haver um foco. Os sons vêm de “cima”, de “baixo”, da “frente”, de “trás”, da “direita”, da “esquerda”. Não podemos fechar a porta aos sons automaticamente. Simplesmente não possuímos pálpebras auditivas. Enquanto espaço visual é um continuum organizado de uma espécie uniformemente interligada, o mundo auditivo é um mundo de relações simultâneas.

cia. Empatia e solidariedade para quem sabe (ou

(Marshall McLuhan)1

voluntário ensimesmamento (distanciamento

quer aprender a) valorizar... empatia e solidariedade! Mais o quê? A prática contemplativa, que, em meio a ações dedicadas a timbrar o mal-estar entre nós, talvez (re)aproxime todos e cada um à dimensão coletiva da vida, à virtude? Frisa-se: não apenas da mera percepção – e do convencional – a audição se faz. Com tanto ruído (não só acústico) e distorção (dos fatos) pululando dos canais não necessariamente competentes, a escuta é cada vez mais rara. Por isso, em plena pandemia, ao estabelecer não define bem o estado anímico atual) tam-

ATENÇÃO SONORA ESSENCIAL

N

este átimo caótico por demais, importa muito estar atento e ouvir os apelos de

quem, antes de colapsos sistêmicos e malditos afogamentos, testemunha a própria fraFoto: Rep

gilidade – principalmente quando se encharca o

rodução

MENU

bém pela subsequente fadiga cognitiva, que tem desmobilizado atitudes e reações, e não considerando, ainda, a espetacularização da estupidez como marca (civilizacional?) definitiva no efêmero de nossos dias no planeta, fazem-se oportunas algumas observações estratégicas e sensíveis de sobrevivência – inclusive cultural.


Sim. Em detrimento da irresponsabilidade política e econômica culminada no surto sociopata que vemos no país, representado na banalização não só da morte, mas nos índices de desigualdade jamais vistos, que têm relação com a lógica (abjeta) do mercado e o descarte do lixo industrial – que se retroalimenta dos dejetos que produz –, torna-se premente, com a maior abrangência possível, afirmar valores humanos, artísticos, protegê-los da indiferença federal e do consumismo de manada. Sob pena de nos barbarizarmos, categoricamente, ao ser lançados no abismo da desmemória, da indigência mental, emocional e afetiva. E é contra todo conteúdo embrutecedor, destinado a excitar “somente o corporal: tem de divertir os preguiçosos ou os que estão cansados e nada mais” 2 – cuja existência não se pode desconhecer, em hipótese alguma, sob risco de engrossarem as fileiras neofascistas –, que urge enunciar: entre a treta do contemporâneo e o embate permanente, reverbera algo além da algazarra ignara e do arrebatamento mi(s)tificador. A música d’A Divina Increnca, por exemplo. Compilada mais amplamente, em 2007, no relançamento em CD do único item discográfico de sua trajetória intermitente.

INCRENCA POUCA É BOBAGEM

La Divina Increnca, volume que reúne parte de sua iconoclasta obra poética, o intrépido escriba pôde apresentar mais amplamente sua estética da “insgulhambaçó”, alçando ao status de arte, por estas plagas, uma dicção muito peculiar:

Um arco temporal de 101 anos conecta a primeira edição, produção independente, de La Divina Increnca (1915), de Juó Bananére, à última formação do grupo paulistano de música instrumental A Divina Increnca, reunida para show no Sesc Ipiranga, São Paulo, em 22 de janeiro de 2016.

Mas por que usava Juó Bananére, para esse fim, o dialeto ítalo-português? Não é dialeto. Essa mistura intencional e literária de duas línguas para fins parodísticos chama-se macarronismo. Entre nós usa-se essa expressão quando alguém fala uma língua que não conhece bem, estropiando-a: “Fulano falou num francês macarrônico”. Também se alude ao “latim macarrônico” da Idade Média. Mas é uso inexato do termo. O verdadeiro macarronismo é uma técnica literária que foi antigamente usada em muitos países, sobretudo no século XVI e XVII na França, na Espanha e especialmente na Itália, onde chegou a surgir um grande poeta macarrônico: Teofilo Folengo, autor de uma epopeia herói-cômica, Baldus, em língua misturada de italiano e latim, livro que exerceu profunda influência sobre Rabelais e Cervantes 5.

Denominação (quase) idêntica à obra de Bananére, inicialmente um duo – constituído e nomeado em outubro de 1976 pelo baterista Azael Rodrigues, ao encontrar no pianista alemão Felix Wagner, residindo no país à época, as qualidades necessárias à sua proposta de “fazer música improvisada, base jazz com direito a novos procedimentos”3 –, a estreia do A Divina Increnca ocorreria bem depois, no final de 1977, no Teatro de Cultura Artística4, também na capital paulista. Mas foi como trio, com a adição do contrabaixista Rodolfo Stroeter, que o grupo produziu seu repertório autoral registrado em LP independente autointitulado A Divina Increnca (Studio JV, 1980); reeditado em CD (Editio Princeps, 2007) com faixas bônus. Persona artística do engenheiro Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (Pindamonhangaba, 1892 – São Paulo, 1933), Juó Bananére corporificou-se articulista e cronista, a partir de 1911, nas páginas da revista literária e política O Pirralho – fundada por um ainda jovem Oswald de Andrade em parceria com Dolor de Brito. Porém, com a publicação de

Dadas as peripécias linguísticas (e de linguagem) da criatura Bananére – o cronista mais popular da São Paulo da segunda década do século 20, de acordo com o modernista Antônio de

MENU

Alcântara Machado, em texto publicado poucos dias após a morte do criador Alexandre R. M. Machado – e o empréstimo prestimoso pelo grupo paulistano do título da obra mais conhecida do primeiro, percebe-se que a filiação entre as increncas ultrapassa o caráter bem-humorado e nada ortodoxo de amba(o)s. São muitos os questionamentos decorrentes das duas trajetórias que merecem estudo mais detalhado e, quem sabe, comparativo. Sintetizando: de um lado, a pena contundente e o approach de Juó Bananére, um inventor prosódico, polemista, que, por meio de sua “voz, talvez a primeira, da democracia paulista”6, em prosa, verso, fosse na política, nos costumes ou nas artes, não poupava nada nem ninguém que se interpusesse ao seu progressismo. Do outro, explorando a aparente contradição entre o adjetivo “divina” e o substantivo estropiado “increnca” da referência literária, valores musicais eram revistos em prol de algo mais orgânico, mas, ao engajar-se com o “pensamento neo-oswaldiano na recriação de novidades”7, A Divina


Increnca parecia fadada a ampliar o interesse da prática – densa, porém nada sisuda ou hermética, com uma sintaxe híbrida, moderna – instrumental em um país que desde os anos 1970 vê, imposta ao grande público, a monocultura da canção imperar ou, mais controverso ainda, há décadas consagra ídolos de vento. Ao que consta, os concertos foram auspiciosos no propósito de divulgar as intensidades de sua música. Sobre a “forma de interpretar ou, melhor ainda, de interagir do trio” 8, é bastante significativo reproduzir as palavras de Azael Rodrigues (1955-2016), posto que sintetizam conceitualmente o processo estabelecido pelos então jovens instrumentistas, algo como um núcleo de criação com viés universalista, desde a gênese do trabalho: O que eu queria dizer é que a estrutura tema, impro, tema se esgotara e podia dar lugar à interação entre solista e acompanhante, [na qual] os [...] músicos têm a possibilidade de serem a voz da vez. Todo mundo sola, todo mundo acompanha, tudo depende do estímulo sonoro. Num primeiro momento a reticência de quem tocou anos temas do hard bop (Warne Marsh etc.) ficou patente. E toca ouvir Coltrane. Muito Mingus (the real pré-free jazz), um pouco de Ornette, sem esquecer do John Cage e Stockhausen, eruditos com ideias afins. E muito

Olavo Bilac, ilustra um “mundo de relações simultâneas”, de enunciado rigoroso na forma, porém inconsistente de conteúdo; Bananére, no entanto, parece estabelecer ao seu modo crítico-cínico que a instância da interlocução, mesmo na blague, requer partícipes atentos, sob risco de se perder o timing da piada:

piano: Cecil Taylor (que eu tinha visto ao vivo na Europa), McCoy Tyner (Coltrane’s Keys), Bill Evans e Keith Jarret. E depois de meses ouvindo, discutindo e tocando, ficou claro que o tempo marcado (beat regular) tinha o mesmo valor expressivo do tempo que vem a partir de estímulo não predeterminado – o que importava era a base sólida de mais de ano ouvindo e conversando para que pudéssemos usar essa vivência como guia de nossas “conversas musicais” com a cumplicidade da plateia. 9

Che scuitá strella, né meia strella! Vucê stá maluco! e o io ti diró intanto, Chi p’ra iscuitalas moltas veiz levanto, I vô dá una spiada na gianella.

Acrescente-se, ainda, que A Divina Increnca flertou com os ditames vanguardistas, mas sem abandonar o feeling de jazz (acústico) – mesmo não soando tão formalmente radical como o Grupo Um, seu companheiro de geração, que não se furtou ao uso de timbres eletrônicos – e sua veia iconoclasta: fruir com sua produção mesmo hoje demanda sair da zona de conforto, não importa se mediado pelo entendimento de que

I passo as notte acunversáno c’oella, Inguanto che as outra lá d’um canto Stó mi spiano. I o sol come um briglianto Naçe. Oglio p’ru çéu: — Cadê strella!? Direis intó: — Ó migno inlustre amigo! O chi é chi as strellas ti dizia Quano illas viéro acunversá contigo? E io ti diró: — Studi p’ra intendela, Pois só chi giá studô Astrolonia, É capaiz di intendê istas strella.11

RELAÇÕES (NADA ALEATÓRIAS E NÃO NECESSARIAMENTE) SIMULTÂNEAS

[…] os sons são emissões pulsantes, que são por sua vez interpretadas segundo os pulsos corporais, somáticos e psíquicos. As músicas se fazem nesse ligamento em que diferentes frequências se combinam e se interpretam porque se interpenetram.10

Em um dos textos do fascículo 2 da coleção História da Música Popular Brasileira, o maestro Júlio Medaglia celebra o papel disseminador de Pixinguinha e o processo que estabeleceu alguns parâmetros de nossa música. Um dos aspectos destacados, entre outros dignos de repercussão, como a absorção dos elementos melódicos da música portuguesa e a cadência africana, é que os instrumentos de origem europeia (violão, flauta e piano), no Brasil do início do século XX, foram adaptados à

O sentido fidalgo e etéreo reiterado no poema que o increnqueiro mor parodia (na sequência), o soneto XIII de Via Láctea, obra do parnasiano

MENU

[...] variedade rítmica produzida por frigideiras, cuícas ou tamborins – feitos com couro de gato. Nesse período destacou-se então a figura de Alfredo Vianna Filho (para os cartórios e registros de imposto de renda) ou, mais simplesmente, de Pixinguinha (para a música popular brasileira). Virtuose de seu instrumento – a flauta –, foi o principal responsável pela concretização daquela nova realidade musical popular, baseada na formação de pequenos conjuntos, uma espécie de execução camerística que se tornou famosa a partir do trinômio flauta-violão-cavaquinho. De início, a presença dos instrumentos de pele era dispensada, pois todo aquele calor rítmico da percussão havia sido transportado para instrumentos de corda e sopro. [...] Em Pixinguinha nota-se claramente a escrita orquestral da época, presente em óperas e operetas e que capitalizou para sua técnica e forneceu os dados básicos para a formação de uma linguagem instrumental caracteristicamente brasileira. 12

Como as gentes simples do país, desde aquela época, experienciavam intuitivamente o tipo de transposição detalhado, reconhecia-se, por consequência, na difusão do progresso técnico, a capacidade de fazer daquele impulso mais primitivo associado à necessidade expressiva um acontecimento estruturante. Assim, do virtuosismo pioneiro dos chorões, anteriores até mesmo a Pixinguinha, passando por Noel Rosa, pela Era de Ouro do Rádio e chegando à televisão e à bossa nova, demarcaram-se itinerários da linguagem musical popular no país, porém, com a última, a produção se sofisticou, moder-


ÁLBUM 10 ANOS

nizou e internacionalizou – ao renovar o samba,

A DIVINA INCRENCA

cional. Mais do que isso, na verdade, a bossa

Por que a música instrumental brasileira não tem público? Porque às vezes ela gosta de posar de coitada e voltar pra casa se lamentando. O “fazer” é acontecer perante os olhos do público. Como, por exemplo, o Eumir Deodato. Foi para os Estados Unidos, gravou Zaratustra (1972, com Ron Carter no baixo e Billy Cobham na bateria) e vendeu milhões de cópias. Genial. Continua trabalhando com arranjos. Competência.13

o gênero definidor do formato cancionista nanova também estabeleceu um marco determi-

(INDEPENDENTE, 1980) DIVINA INCRENCA

nante da música instrumental brasileira.

Capa: Miécio Caffé

Mais uma vez, das observações de Azael Rodri-

Lado A

Ainda hoje, com a disponibilização de gravações das mais variadas – e raras – em plataformas digitais, é curioso notar trocas estabelecidas entre bossa nova e jazz, em alguma instância, apesar da amplitude inegável do último como manifestação musical das mais profícuas em dimensão global. Inclusive, dando voz a um dos pais de uma das crianças eternas, Tom Jobim, destaca-se que, mesmo bastante transformada, a novidade oceânica do passado continua desaguando, ondulante e caudalosa, nas praias do futuro:

gues, delineia-se um painel de acontecimentos

1) Cheguei Lá e Tal...

para narrar não apenas sua história, mas, por

(Felix Wagner)

2) Canção para Ela / Balão

extensão, a do A Divina Increnca e de todo um

(Rodolfo Stroeter) / (Felix Wagner)

ambiente sociocultural que moldou uma das mú-

3) Friii-tz

sicas mais influentes do mundo contemporâneo:

(Felix Wagner)

4) Ainda Bem que Não Flalta Fauta (Felix Wagner)

Lado B

1) Frevo do Cheiro (Nois Sofre + Nois Goza) (Azael Rodrigues)

2) A Lira e a Gira (Azael Rodrigues)

3) Ufa!

(Félix Wagner)

4) Conforme o Dia (Filomena) (Rodolfo Stroeter)

Flash Back. “O Fino da Bossa” 1966. Os cantores Elis Regina e Jair Rodrigues eram os apresentadores desse programa de auditório que fazia enorme sucesso e eram acompanhados por Hamilton Godoy, Luís Chaves e Rubinho Barsotti, o Zimbo Trio. Tamba Trio com Luizinho Eça (técnica apuradíssima ao piano), Bebeto e Hélcio Milito na bateria e Jongo Trio (Cido Bianchi no piano, Sabá no contrabaixo e Toninho “Calça Justa” Pinheiro na bateria) também se apresentavam regularmente no programa. A visibilidade da música instrumental na TV era incrível. Presenciar o Zimbo com sua musicalidade, os solos de Rubinho com a mão nos tambores, uma aula.

O americano chama tudo o que balança de jazz. Nós poderíamos então dizer que o samba é o jazz brasileiro, porque tem também [...] a influência africana, a influência europeia. Todos os elementos que causaram o jazz lá nós temos aqui.14

O crítico musical e historiador Carlos Calado vai além, identificando essa via de mão dupla com trânsito incessante de ícones: Trata-se, na verdade, de um caso de influência recíproca. Os músicos de jazz foram seduzidos pelo ritmo sincopado e pelas harmonias sofis-

ão

oduç

Repr

Assim é fácil entender como a bossa foi integrada ao repertório de standards do jazz, relida por clássicos vocalistas e músicos, como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Oscar Peterson ou Joe Pass. Mesmo que ela tenha sumido um pouco da cena do jazz, nos anos 70 e 80, desde a década passada novos cantores e instrumentistas, como Diana Krall, John Pizzarelli, Cassandra Wilson, Brad Mehldau, Karrin Allyson, Jane Monheit e Carmen Lundy, voltaram a namorar as clássicas canções de Jobim e seus parceiros. Pelo quanto é cultuada, a bossa parece ter ainda uma longa carreira internacional pela frente.15

O também crítico e jornalista especializado Tárik de Souza é mais radical em sua tese, atribuindo à lavra de Tom Jobim outro parentesco, quiçá alguma originalidade dinástica, tanto com a

Um pouco antes, no “Beco das Garrafas”, Edson Machado apresentava o Samba Jazz (que o competente Daniel D’Alcântara, trompetista e autor do play along com mesmo nome, chama de hard bop brasileiro) junto com o Milton Banana, criador da levada de Bossa (tão tentada pelos americanos, é duro eles pensarem em dois), imortalizada na voz de João Gilberto.

: Foto

ticadas da bossa nova, assim como a geração de músicos e compositores que a criou, na década de 50, havia sido influenciada tanto pelo jazz moderno de Shorty Rogers, Barney Kessell e Chet Baker como por mestres da canção norte-americana, como Gershwin, Cole Porter e Richard Rodgers.

MENU

música estadunidense quanto com a de outras nacionalidades e culturas: É provável que uma auditoria comparativa do acervo do maestro com a parcela do jazz que lhe é contemporânea ou posterior na matriz daria um resultado curiosamente inverso ao anátema. Ou seja: tomando por base a pedra inaugural – o registro de Stan Getz (sax) e Charlie Bird (guitarra), que vendeu um milhão de cópias de “Desafinado” (compacto do disco Jazz samba) no princípio dos anos 60 –, a partir de um determinado momento a influência de Jobim sobre o cenário do jazz já é proporcionalmente maior que o movimento inverso. [...]


A ocorrência dos procedimentos do jazz na obra jobiniana é inferior ao estigma. O mais correto seria anotar sua sincronia com a American song exportada para o planeta no pós-guerra. Afinal, Cole Porter e Berlin já haviam filtrado do jazz harmonizações modernas para suas baladas encharcadas de swing e torch songs com veneno dissonante. [...] Também seria redutor estacionar o universalismo jobiniano na praia ianque. Debussy e Ravel fizeram mais a cabeça do compositor que a dupla Rodgers & Hart. Sem falar de Stravinsky e do planetário brasileiro Villa-Lobos, de quem Jobim é uma espécie de epígono na música popular, embora, se analisando do ponto de vista da carpintaria estética, também esse carimbo perca a nitidez.16

O melhor dessa história toda é que A Divina Increnca constituiu muito particularmente sua formação de trio de jazz não apenas incorporando altas doses de improviso coletivo derivativas de intensa (con)vivência, do estudo comum de música erudita e contemporânea. Mas, sobretudo, rompendo com as matrizes convencionais (da bossa nova e do jazz ortodoxo foram preservadas, com muita parcimônia, algumas poucas “levadas” e o balanço), no intuito de realçar seu ecletismo experimental, sua filiação inventiva, percutindo latas e introduzindo timbres da música indiana e até indígena – por exemplo, ao interpretar a composição de Felix Wagner “Ainda bem que não flalta fauta” –, estabelecendo descontinuidades e sonoridades outras decalcadas da instrumentação mais livre (sem partituras) e, talvez, de outras tantas vozes não necessariamente entoadas como música: a poesia ou a prosa prosódica de Bananére?

Rotulada pela imprensa de Vanguarda Paulista, essa geração tinha como expoentes, na área da canção, grupos como Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo e Sossega Leão, compositores como Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé (cuja banda Sabor de Veneno não chegou a se apresentar no Teatro Lira Paulistana porque o palco era pequeno demais para comportá-la), além de cantoras como Eliete Negreiros, Tetê Espíndola, Neuza Pinheiro, Vania Bastos, Suzana Salles, Virginia Rosa e Ná Ozzetti.

Anhembi, e duas idas ao Rio de Janeiro, A Divina

infinitamente menos mencionados e valorizados

opressora – talvez fosse realmente uma cidade

Embora esses nomes sejam os mais lembrados até hoje, quem teve a sorte de frequentar o Lira Paulistana (assim como a Sala Guiomar Novaes da Funarte, o auditório do Masp ou o Centro Cultural São Paulo), sabe que, praticamente, as mesmas plateias que acompanhavam os shows desses grupos e artistas citados acima também aplaudiam as apresentações de uma nova geração de grupos de música instrumental produzida em São Paulo, como o D’Alma, o Pé Ante Pé, o Freelarmônica, a Banda Metalurgia, o Acaru, o Alquimia, o Papavento, o Syncro Jazz e os já mencionados Grupo Um e Divina Increnca, além do Pau Brasil.17

menos conservadora à época –, a classe artís-

O projeto “Instrumental” do Lira, preferencial-

tica encontrou no Lira um efetivo ambiente de

mente às segundas e terças, reuniu desde os

criação, trocas afetivas e simbólicas, ações dire-

trabalhos mais vanguardistas, experimentais,

tas. Por ali passaram mais que centenas de no-

até aqueles com características fusion ou ape-

mes e diversas propostas estéticas – ousou-se o

lo mais popular. Além de shows no Masp, Sala

sonho de um país plural e democrático. No Lira

Guiomar Novaes, participação na segunda edi-

o novo som foi praticado e aclamado enfatica-

ção do Festival Internacional de Jazz de São

mente, como observou Carlos Calado em texto

Paulo, em 1980, parceria com o suíço Montreux

publicado no site do grupo Pau Brasil:

Jazz Festival, no Palácio das Convenções do

RETAGUARDA DA VANGUARDA A qualidade artística envolvida, a abrangência de linguagens e a repercussão midiática massiva fizeram do teatro Lira Paulistana um dos polos aglutinadores mais importantes de São Paulo durante sua existência, de 1979 a 1986. Com a publicação de seu próprio jornal, o lançamento de um selo fonográfico, uma editora, uma loja e distribuidora de discos, e com a ampliação de seus projetos de apresentações musicais para espaços abertos, os tentáculos do porão da Teodoro Sampaio se prolongaram com uma potência irradiadora chegando muito mais longe que na comunidade estudantil uspiana residente na Vila Madalena e adjacências – a “periferia” de Pinheiros. Assim como a São Paulo do final dos anos 1970 aspirava a uma conjuntura sociopolítica menos

MENU

Increnca era habitué do porão mais famoso de São Paulo – foram muitas temporadas ali. No entanto, cabe salientar, mesmo grupos e músicos com trabalhos instrumentais sólidos e amplamente envolvidos nas produções da (in)certa vanguarda paulista – cujo DNA paranaense (Arrigo, Itamar e Neuza) não pode ser ignorado – são que os “cancionistas”, nas abordagens historiográficas e jornalísticas do período ou desse recorte geracional. Para delinear o descalabro, apresenta-se parte das fichas corridas dos increnqueiros: o baterista Azael Rodrigues foi membro fundador do Premê e do Pau Brasil – gravou álbuns de ambos –, além de ter tocado com Arrigo na pseudópera Gigante Negão (1990), entre outras tantas colaborações, como no primeiro LP das Frenéticas (1977), com César Camargo Mariano, nos álbuns Prisma (1985) e Ponte das Estrelas (1986), na banda Mantiqueira, com Emilio Santiago e Jorge Benjor. Nos seus últimos anos de vida também capitaneou a banda Azael Rodrigues & Network. Nos últimos meses, preparava nova versão do A Divina Increnca, que estava gravando trabalho com a participação do pianista Rogério Rochlitz e do guitarrista João Marcondes – am-


bos o acompanharam no último show do grupo, em 22 de janeiro de 2016 no Sesc Ipiranga, no projeto “Lira Paulistana: 30 anos. E depois?” Ele também teve dois álbuns póstumos lançados: Coletivo São Paulo-Milào, com o pianista italiano Antonio Zambrini, João Marcondes e André Santos, gravado em única seção, dia 7 de março de 2016; e Cantilena (2016), com João Marcondes. Deixou ainda um livro escrito, O ritmo interior (2018), organizado por sua irmã Gaia Dyczko e lançado postumamente em edição bilingue. O multi-instrumentista Felix Wagner, que tornou a morar na Europa, em alguns países, depois de muitos anos no Brasil, teve participação no álbum Clara Crocodilo (1980), de Arrigo Barnabé, atuou com o teatro Ornitorrinco, com a cantora Fortuna, no Grupo Um, acompanhou Itamar Assumpção, Tetê Espindola, entre outros. Na Europa (Berlim, Roma, Lisboa), compõe para big bands, quintetos de saxofones e formações jazzísticas, e atuou como pianista solo (prêmio da cidade de Berlim). Trabalhou com Albert Mangelsdorff, Till Brönner, Sven Ake Johansson, Garrett List, Cher, Twana Rhodes, entre outros. Como livre docente leciona solfejo e harmonização jazzística na Universität der Künste (Berlim). O contrabaixista Rodolfo Stroeter é um dos fundadores do Pau Brasil, tendo participado de toda a discografia do grupo. Em 1985 lançou seu único disco

solo, Mundo. Foi integrante do Grupo Um, gravou os álbuns Reflexões Sobre a Crise do Desejo (1984) e A Flor de Plástico Incinerada (1986). Criador do selo Pau Brasil Music, produziu artistas como Joyce, Gilberto Gil, Banda Mantiqueira, Sérgio Santos, Marlui Miranda, Mônica Salmaso e outros. Foi diretor artístico da orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, entre 1991 e 1995. Ainda no campo da produção musical, desenvolveu trabalhos para inúmeros artistas, como Zizi Possi, Céline Rudolph, Gilberto Gil, Pau Brasil, Trilok Gurtu, Naná Vasconcelos, Joyce, Sergio Santos e Dori Caymmi.

pular transformou-se em objeto de culto de eruditos ou pretensiosos... Antes, porém, de discorrer sobre o único item discográfico do grupo, (mais) uma digressão: Juó Bananére, que se apresentava como poeta, barbiere i giurnaliste, muito provavelmente fora criado com o entendimento de que, como seus serviços em tal atividade liberal lhe permitiam tempo vago entre um freguês e outro, os barbeiros [podiam] aproveitar esse lazer para o acrescentamento de outra arte não-mecânica ao quadro de suas habilidades: a atividade musical.19

“CHEGUEI LÁ E TAL...” No ano em que se celebram quatro décadas do lançamento original do álbum autointitulado A Divina Increnca (de 1980, mas lançado no ano seguinte) – e a um ano do centenário da Semana de Arte Moderna, que, de certa forma, representa o fim de um ciclo de “importações” no campo cultural –, no horizonte dos eventos, decisivas, impõem-se percepções acerca da exploração da matéria sonora, seja como renúncia ao nacionalismo fanático ou como meio de representação das formas dialógicas.

A começar pela capa, com uma caricatura de Miécio Caffé (1920-2003) dos três integrantes sorridentes e até mesmo uma carinha na voluta do contrabaixo de Rodolfo escancarando os dentes, a versão em LP do álbum A Divina Increnca, com área de capa 1 cm 2 maior, parecia pensada integralmente para ferir as suscetibilidades de ouvintes (e consumidores) dogmáticos – algo que o público mais especializado de jazz, ao leigo, parece encarnar. Sobre a escolha do desenhista/pesquisador cuja biografia é lendária, – Miécio registrou o nascimento da bossa nova em mais de 700 horas de gravações e imprimiu sua arte em cartazes, publicações e muitas capas de discos, além do acervo monumental de discos 78 rpm que possuía e de ter testemu-

Como se sabe, no jazz, os instrumentos clássicos de sopro são usados com o intuito de simular “inflexões da voz humana, ou seja, a maneira africana de tocar os instrumentos europeus.”18 O curioso é perceber como uma arte predominantemente po-

MENU

nhado boa parte dos acontecimentos musicais relevantes no Brasil até os anos 2000 –, estabeleceu-se um ruído: Esse é um bom exemplo da dinâmica de “polêmica interna” do Divina Increnca. A ideia de chamar o Miécio para fazer a capa foi do Azael [...] eu diria que o conteúdo e a capa do disco são “opostos que convivem”; o Azael vai ver que diria que são “opostos integrados que se chocam”.20

Em 22 de julho de 2008, indagado pela jornalista Patricia Palumbo sobre uma possível diferença do som daquela apresentação no Programa Instrumental Sesc Brasil, com uma formação de quarteto (Azael Rodrigues: bateria; Carlos Rebouças: piano; Geraldo Vieira: contrabaixo elétrico; e Vitor Alcântara: saxofone), em relação ao trabalho original do álbum, com a base de trio e participações (de Mauro Senise e Claus Petersen) em três de oito composições, Azael afirmou que os interlocutores recentes da obra manifestaram apreço à sua atualidade: Porque, primeiro, a gente chegou, vamos dizer, no pensamento musical, numa coisa um pouco mais densa, mais profunda do que simplesmente fazer groove ou alguma coisa assim. Tinha um conceito por trás. A gente queria exatamente... A gente pesquisou muito, tanto o jazz como a música erudita. Como a música brasi-


Descrever o conteúdo do álbum A Divina Increnca, depois de tentar contextualizar processos históricos e ancoragens estéticas do grupo homônimo, torna-se desnecessário e enfadonho, quando há registros raros no YouTube ao alcance de um Google ou clique – por exemplo, a apresentação promovida próxima à gravação do LP, pela TV Cultura, com a formação original, e os áudios na íntegra das versões em vinil e em CD.

15 Extraído de matéria de Carlos Calado publicada na Folha de S.Paulo, 10 jul. 2008. Disponível em: https://www1.folha.uol.com. br/fsp/especial/fj1007200810.htm (acesso em: 22 fev. 2021).

1 MCLUHAN, Marshall. O Meio são as Massagens – Um inventário de efeitos. Rio de Janeiro: Record, 1969. p. 139. 2 STOCKHAUSEN, Karlheinz. In: A música contemporânea. Rio de Janeiro: Salvat Editora do Brasil, 1979. (Biblioteca Salvat de Grandes Temas.) p. 35.

16 SOUZA, Tárik de. Tem mais samba – Das raízes à eletrônica. São Paulo: Editora 34, 2003. p. 187, 188. 17 Extraído do texto de Carlos Calado, Pau Brasil: três décadas de música instrumental, disponível em: http://grupopaubrasil.com/ historia/ (acesso em: 26 fev. 2021).

3 Extraído de texto de Azael Rodrigues encartado no CD A Divina Increnca (Rio de Janeiro: Editio Princeps, 2007). 4 Em 3 de dezembro de 1977, com um dia de antecedência, na seção Acontece, a Folha de S.Paulo divulgava o debute do grupo: “DIVINA INCRENCA – Duo formado pelo pianista Felix Wagner e percussionista Felix Wagner, interpretando composições de Keith Jarret e Hermeto Paschoal”. Como é evidente, também lá nos anos 1970, as publicações escritas careciam de revisão. Portanto, onde se lê a segunda ocorrência do nome Felix Wagner, era para constar Azael Rodrigues. Informação complementar: com entrada gratuita, a apresentação teve início às 16h.

18 ALBET, Montserrat. A música contemporânea. Rio de Janeiro: Salvat Editora do Brasil, 1979. (Biblioteca Salvat de Grandes Temas.) p. 111, 112. 19 TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 157, 158. 20 Depoimento de Felix Wagner, concedido a Lucas Rodrigues de Campos, extraído do jornal Coletivo sÓ. Disponível em: https:// so0jornal.wordpress.com/jazz/divina-increnca/ (acesso em: 28 fev. 2021).

5 CARPEAUX, Otto Maria. Uma voz da democracia paulista. In: BANANÉRE, Juó. La Divina Increnca. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2015. p. ix.

21 Azael Rodrigues e Divina Increnca, Programa Instrumental Sesc Brasil, apresentado por Patricia Palumbo. Na íntegra, com ficha técnica completa, incluindo repertório e surpresas. Disponível em: https://www.instrumentalsescbrasil.org.br/artistas/azael-rodrigues-e-divina-increnca/programa-instrumental-em-22-julho-2008 (acesso em: 2 mar. 2021).

6 Idem. p. xi, xii. 7 Extraído de texto de Rodolfo Stroeter encartado no CD A Divina Increnca (Rio de Janeiro: Editio Princeps, 2007).

A transcriação musical – inspirada na teoria da tradução poética de Haroldo de Campos – imaginada por Azael Rodrigues e Felix Wagner, lá em 1976, e executada com a adição de Rodolfo Stroeter, chegou às plataformas para fi(n)car. Democracia, às vezes, é apenas ouvir o que importa, o que se quer – sequer uma composição, acorde, fraseado ou voz a menos.

8 Extraído de texto de Azael Rodrigues encartado no CD A Divina Increnca (Rio de Janeiro: Editio Princeps, 2007).

(PS: Registro que a capa do original presenteado a mim pelo amigo Luiz Carlos Calanca, da loja/selo Baratos Afins, recebeu do próprio Luiz um refile estratégico para não sofrer consequências drásticas desproporcionais aos cuidados empenhados em sua absoluta preservação por quatro décadas. A observação sobre o tamanho fora de padrão da capa do LP , no texto, mereceu este adendo, por ter sido atentado pelo próprio Luiz e, antes, pelo também amigo MAU.)

13 RODRIGUES, Azael. Música instrumental do Brasil. In: SIBILA – Revista de poesia e crítica literária. Disponível em: http://sibila. com.br/cultura/musica-instrumental-do-brasil/4755 (acesso em: 20 fev. 2021).

9 Idem. 10 WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: Uma outra história das músicas. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 20. 11 BANANÉRE, Juó. Uvi strella. La Divina Increnca. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 25. 12 MEDAGLIA, Júlio. Uma linguagem brasileira. In: PIXINGUINHA. São Paulo: Abril Cultural, 1970. (História da Música Popular Brasileira.)

14 Depoimento a Zuza Homem de Mello, concedido em 1968, extraído de matéria de Carlos Calado publicada na Folha de S.Paulo, 10 jul. 2008. Disponível em: https://www1.folha.uol.com. br/fsp/especial/fj1007200810.htm (acesso em: 22 fev. 2021).

MENU

Foto: Aline Grego

leira também, com Hermeto [Pascoal] e Egberto [Gismonti], que estavam tocando muito na época. A gente chegou um pouco mais fundo nas nossas pesquisas. E outra coisa, a gente usava instrumentos acústicos. Então ficou uma coisa mais atemporal. Não é aquele timbre de teclado que você poderia falar: “Não, isso é 1983”. Não! É o piano. O piano que hoje a gente vai usar. Basicamente é isso: esses dois tempos estão conversando muito bem.21

Fabio Giorgio Escritor, autor de Na Boca do Bode – Entidades Musicais em Trânsito; pesquisador musical; produtor cultural, fonográfico e audiovisual, dirigiu Beleléu Cá Entre Nós – Itamar Assumpção antes do Nego Dito. Editou o zine Toxina F.C. Corroteirizou e coapresentou o programa Risco no disco, na USP FM. É diretor geral da BOCA de LOBO produções, cujo selo musical produziu e lançou em CD o álbum Escumalha, de Douglas Germano, e relançou em CD o álbum Retrato do artista quando pede, do Duo Moviola – Douglas Germano e Kiko Dinucci. Representa artisticamente Douglas Germano e o Duo Moviola. Nasceu e vive em São Paulo. Site: bocadelobo.art.br


ROBSON JORGE E LINCOLN OLIVETTI

da soul music, que então dava os primeiros passos no país, tocou em discos seminais do

(SOM LIVRE, 1982) ROBSON JORGE E LINCOLN OLIVETTI

B

aixista dos dois primeiros álanos 60, Carlos Lemos tinha

rista e percussionista Renato Brito. O irmão mais novo de Renato, então com nove anos, passava as tardes assistindo ao ensaio deles, que eram realizados na rua Carlos Sampaio, no centro do Rio de Janeiro. A asma e o “peito de pombo” (uma saliência que se forma na região do tórax) o transformaram

numa

criança

quieta, porém atenta. Certa feita, o garoto chegou mais cedo ao quartel-general da dupla, se apossou do piano e tocou de ouvido as canções criadas por Carlos e Renato. Robson Jorge, o tal menino, foi rapidamente integrado ao combo de jazz, assumindo a função de guitarrista. Anos depois, já enamorado rodução

MENU

homônima, e Apresentamos Nosso Cassiano (1973), do autor dos sucessos “Primavera” e “A Lua e Eu” (nesta tocando baixo).

buns de Tim Maia, no início dos

um projeto de jazz ao lado do bate-

Foto: Rep

gênero como Tony & Frankye (1971), da dupla

Já em Nilópolis, município da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, a diversão da juventude na virada dos anos 60 para 70 era assistir aos bailes da banda de Lincoln Olivetti. Nascido em 1954, mesmo ano que Robson Jorge, o tecladista já era bandleader aos doze anos e impressionava o público local com festas nas quais tocavam desde discos inteiros do grupo de rock progressivo Emerson, Lake & Palmer até sucessos do repertório do quarteto de rock pesado Led Zeppelin – nessas horas o baixista Paulo Massadas, que na década de 80 faria uma parceria de sucesso com o compositor Michael Sullivan, assumia os vocais. Em 1970, Lincoln lançou o álbum Hot Parade #1, uma compilação dos hits daquele período, tocados em versão instrumental. Depois que esses talentos se encontraram, a música brasileira jamais foi a mesma. Por quê? É o que explicaremos a seguir. Os caminhos de Robson e Lincoln se cruzaram de maneira mais firme somente na segunda metade dos anos 70, quando trabalhavam na gra-


vadora CBS (atual Sony Music). O guitarrista

para o Rio. A primeira colaboração da dupla se

Lincoln fizeram até samba: Samba Total, com-

por Wilson Simonal (“Quando Ele Dormir”, de

era então artista solo da companhia, por onde

deu no disco de Tony Bizarro, aquele da dupla

pilação do mesmo ano, que traz “Deixa Andar”,

Lincoln, Ronaldo Barcelos e Murano), pelo gru-

lançou alguns compactos. Já era conhecido

com Frankye. Nesse Inverno, de 1977, trazia

parceria da dupla com Tulla, mulher de Carlos

po disco Painel de Controle (“Black Coco”, de

pelo seu virtuosismo na guitarra, bem como a

arranjos de Lincoln Olivetti, canções de Bizar-

Lemos – ela também trabalhou no disco de Bi-

Lincoln com o mesmo Ronaldo Barcelos), pelo

voz de cantor de soul, que lembrava os melho-

ro com Robson Jorge e supervisão de Cláudio

zarro. É um samba-canção que traz uma

res momentos de Cassiano. Lincoln, por seu

Lemos. É um álbum de soul music, gênero que

introdução de piano.

turno, tinha começado a busca pela sonorida-

estava em alta naquele período por conta do

de perfeita: seus rendimentos eram investidos

sucesso de Tim Maia e de festas como a Black

A fama de Lincoln Olivetti

em equipamentos de som e teclados importa-

Rio – que tempos depois se tornaria nome de

como exímio arranjador

dos – coisa rara naqueles tempos –, que da-

banda e símbolo de uma sonoridade particu-

se deu ainda por conta

son, Michael Sullivan e

vam ao seu grupo uma potência equivalente a

lar do balanço produzido em terras cariocas. O

de uma briga ocorrida

Paulo Massadas, pos-

dos astros internacionais. Mas o trabalho como

melhor resultado da dupla em termos comer-

durante

gravação

teriormente regravada

líder de baile gerou preconceito entre os pro-

ciais foi o trabalho de estreia da cantora Cláu-

de Tim Maia Disco

por Claudia Leitte). A

dutores do Rio, que o preteriam das gravações.

dia Telles, também de 1977. A união desses

Club, de 1978. O can-

dupla emplacou alguns

Uma atitude tola, visto que essas festas sem-

dois talentos, mais a interpretação adocicada

tor, insatisfeito com o

sucessos nas novelas

pre foram o celeiro dos principais grupos de

de Cláudia e a produção de Mauro Motta gerou

trabalho do argentino

da TV Globo: Feijão

pop e soul do país – vide Os Famks e o África,

um trabalho irretocável. Nota-se ali o bom gosto

Miguel Cidras, o cha-

Maravilha, de 1979, traz

que mais tarde seriam conhecidos como Rou-

dos arranjos de Lincoln (há uma versão de “And

mou de “446” (o que na

“Nada Importa”, de Rob-

pa Nova e União Black. O tecladista e arran-

I Love Her”, dos Beatles, que parece saída de

linguagem

jador passou então por um breve período em

uma produção de blaxpoitation, aqueles filmes

quer dizer que é ruim, não

São Paulo, onde trabalhou com artistas como

dirigidos para as plateias negras americanas

chega nem ao 5). Cidras não

o cantor e compositor Antônio Marcos (sabem

dos anos 1970, cujas trilhas sonoras traziam a

deixou barato, ameaçou até a inte-

“Homem de Nazaré”, mais tarde gravada até

nata da black music), e as composições certei-

gridade física de Tim. Lincoln, portanto, foi

por Chitãozinho & Xororó? Pois o violão é to-

ras de Robson: “Fim de Tarde” e “Eu Preciso te

chamado para completar os arranjos do LP. O

tuoses brasileiros. Àquela altura, o guitarrista

cado por Lincoln!).

Esquecer”, hits criados ao lado de Mauro Mot-

maestro pilotou também os teclados, ao lado

e o tecladista se trancafiavam no Guerenguê,

ta que se tornaram temas de novela e são fre-

de Robson Jorge, e trabalhou ao lado de um

estúdio de Lincoln localizado em Jacarepaguá,

Carlos Lemos, o mesmo da banda com o irmão

quentemente revisitados por jovens cantoras.

time estrelado, que incluía as guitarras do soul-

onde passavam dias e incontáveis madruga-

de Robson Jorge, diz que achou Lincoln traba-

O casamento da dupla prosseguiu no álbum de

man Hyldon e de Pepeu Gomes. O trabalho de

das numa produção frenética. Naquele ano de

lhando como músico do programa de auditó-

estreia de Robson Jorge, lançado em 1977, e

Lincoln e Robson como compositores é igual-

1982, o tecladista e produtor contabilizou nada

rio do apresentador Sílvio Santos e o repatriou

se manteria por diversas gravações. Robson &

mente respeitável: criaram músicas gravadas

menos que 360 arranjos. Lincoln nunca pa-

bailarino vertido em astro da discoteca Ronaldo Resedá (“Tudo Bem”, pinçada do trabalho de estreia de Rob-

MENU

a

timmaiesca

son) e Roberto Carlos (“Amor Perfeito”, de Lincoln, Rob-

son, e “Smile”, de Lincoln. Robson Jorge & Lincoln Olivetti (1982), único disco lançado pela dupla, é a cristalização do talento desses vir-


deceu da “síndrome de vira-lata”, aquela tão

quando os dois músicos criaram o tema da

palhava o futebol que eles jogavam depois do

alguns dias até finalmente se render aos apelos

apregoada pelo escritor Nelson Rodrigues,

novela Baila Comigo, da Rede Globo, e Max

expediente”, diverte-se.

de Max – e ficou completamente impressionado

na qual o brasileiro se apequenava diante do

sentiu que dali poderia nascer um álbum re-

talento vindo de fora. O tecladista e maestro

pleto de temas originais. “A íntima relação de

Segundo Max, João Araújo concordou com a

gente fazendo música assim no Brasil”, decla-

criou um padrão sonoro de nível internacional,

Robson Jorge & Lincoln Olivetti com a músi-

ideia desde que os músicos não recebessem

rou. Não é por menos. Robson Jorge & Lincoln

ca, somada à criatividade dos dois, gerou óti-

pelas sessões de gravação. Isso mesmo: um

Olivetti é uma obra-prima, o ápice criativo des-

dos trabalhos seminais da história do pop local

ses dois instrumentistas geniais.

com arranjos – em especial de metais – similares às grandes produções pop dos anos 70 e 80. Fraseados de sopro como os de “Festa do Interior” e “Bloco do Prazer”, de Gal Costa, “Palco”, de Gilberto Gil, e “Baila Comigo”, de Rita Lee, não ficam nada a dever aos de um Earth Wind & Fire, banda referência do funk. Robson Jorge é um músico completo: toca guitarra base e solo com desenvoltura, e muitas vezes sua colaboração foi além de seu instrumento. “Certos arranjos de metais desse álbum saíram dos fraseados de guitarra dele”, pontua o também guitarrista Davi Moraes, que participou de uma banda tributo a Lincoln. “Era uma dupla perfeita. Um era o maestro, com a caneta na mão tirava um som lindo até de uma porta batendo. O outro não sabia ler música, mas era genial”.

mos arranjos e participações como músicos em projetos do variado universo de estilos da música popular brasileira, nas décadas de 1970 e 1980”, pontua Max. Naqueles tempos era comum que as gravações no estúdio se estendessem pela madrugada, um hábito que ganhou o apelido de “maxiada”, e o executivo queria aproveitar melhor o talento daquele time de músicos. E que time: bateristas como Picolé, Mamão e Paulinho Braga; o baixo de Jamil Joanes e Paulo César Barros; os saxofones de Oberdan Magalhães, Léo Gandelman e Zé Carlos Bigorna; os trompetes de Marcio Montarroyos e Bidinho e o trombone de Serginho Trombone. Bem, nem todos eram simpáticos ao estilo profissional de Max. “Certa vez,

com o que escutou. “Eu não sabia que existia

foi gravado praticamente de graça. A combinação deu bons resultados em Robson Jorge &

Um dos atrativos do álbum é sua sonoridade.

Lincoln Olivetti, mas a ideia foi abandonada logo

Kassin Kamal, um dos produtores mais res-

no álbum seguinte, que seria de Montarroyos.

peitados do showbiz brasileiro, tinha oito anos

Max conta que levou o disco de Robson e Lin-

quando acompanhava o irmão DJ e sempre

coln para os Estados Unidos quando foi mixar

ficava espantado com a qualidade da grava-

Saúde, de Rita Lee. Queria mostrar para John

ção. “Era o único disco de artista brasileiro que

Luongo, técnico de som americano – que mixou

a gente não precisava aumentar o volume do

discos de artistas como as divas Tina Turner e

aparelho de som porque ele soava exatamen-

Patti LaBelle, a roqueira Joan Jett e o grupo in-

te como os álbuns dos artistas internacionais”,

glês de jazz e funk Level 42 –, o que os dois

lembra ele, que economizou o dinheiro da me-

instrumentistas brasileiros eram capazes de

renda para adquirir seu exemplar. João Mar-

produzir. O tal engenheiro esnobou o álbum por

cello Bôscoli, produtor e um dos inúmeros fãs do LP, pontua que ele é composto de músicas de fácil audição, mas de execução extremamente complicada. “São melodias que você

o maitre de um restaurante em Copacabana

canta junto e assobia, mas ficam extremamen-

O álbum nasceu de uma ideia de Max Pierre,

me disse que os garçons viviam

te complicadas quando coloca na partitura”,

então diretor artístico da Som Livre, que suge-

bronqueados comigo porque eu

reconhece, “É algo comum a grandes compo-

riu ao presidente da gravadora, João Araújo,

chegava de madrugada e atra-

sitores, como Stevie Wonder”. Kassin explica

que lançasse uma série de

que Robson Jorge & Lincoln Olivetti tem uma

discos de música instru-

execução complicada, tendo em vista a preca-

mental. O “estalo” se deu

riedade dos aparelhos daquele período. “Havia

MENU


ÁLBUM 10 ANOS

poucos sintetizadores polifônicos. Falando leiga-

tar” as notas que são tocadas junto com o som

palavras de ordem e vocalises, que tornam

ROBSON JORGE E LINCOLN OLIVETTI

mente, o sintetizador fazia uma nota por vez. As

da guitarra), os metais evidenciem a influên-

as canções palatáveis até para quem não tem

dobras que escutamos ali são feitas manualmen-

cia do Earth Wind & Fire e os teclados de Lin-

tanto apreço por música instrumental. “Pret-

te, uma por uma. Ninguém acredita que aquilo

coln remetam aos grupos dançantes dos anos

-à-Porter”, com seu fraseado de guitarra à la

foi feito de uma maneira tão artesanal”. Escrevi

1970, há sempre um elemento de brasilidade

George Benson, e a soul “Squash” fecham o

(SOM LIVRE, 1982) ROBSON JORGE E LINCOLN OLIVETTI

sonoridade? Coloque-se também atualidade. Ao

nas composições – caso da percussão ou dos

contrário de muitos trabalhos produzidos na dé-

Capa: Toninho de Paula

solos de trombone e de saxofone, que pare-

cada de 80 e que hoje soam datados, a obra de

Lado A

cem saídos de um baile de gafieira. Outro pon-

Robson e Lincoln não perdeu o viço. “Lincoln era

1) Jorgeia Corisco 2) No Bom Sentido 3) Aleluia 4) Raton* 5) Pret-à-porter 6) Squash

to importante é que, embora seja um trabalho

um cara de extremo bom gosto: usava sintetiza-

instrumental, Robson e Lincoln criam músicas

dores e pianos elétricos de forma genial”, apregoa

de apelo dançante, num caso exemplar de vir-

o tecladista Donatinho.

tuosismo para as pistas de dança. “As músicas são divertidas e o foco está nas melodias e não

São doze faixas em pouco mais de quarenta

nos solos”, completa Donatinho.

minutos de audição. Dessas, duas são vinhe-

Lado B

tas e destoam da proposta soul/funk/jazz do

1) Eva 2) Fá Sustenido 3) Zé Piolho 4) Baila Comigo** e Festa Brava 5) Ginga 6) Alegrias

Robson Jorge & Lincoln Olivetti abre com “Jor-

disco – “Raton”, que tem um pique cubano e

geia Corisco”, que soa como um duelo entre

foi inspirada num fato curioso: um músico es-

a guitarra de Jorge e o teclado de Lincoln, e

condeu certo aditivo num canto da casa

os metais de gafieira parecem responder aos

e este lhe foi surrupiado por um rato.

embates da dupla (aqui, como em muitas ou-

A outra é o samba “Zé Piolho”. O res-

Todas as composições são de autoria de Robson Jorge e Lincoln Olivetti, exceto * (Hermes Contesini) e ** (Rita Lee e Roberto de Carvalho)

tras faixas do álbum, o trombone de Serginho

tante é balanço puro, um trabalho

: Foto

tem solos sobrenaturais). “No Bom Sentido”, a

calcado em ritmos americanos, mas

faixa seguinte, é uma balada soul enriquecida

de características brasileiras. Em-

pelo fraseado da guitarra de Robson; depois

bora a guitarra limpa de Robson

descamba para “Aleluia”, famosa pela intro-

evidencie a influência de ídolos

dução de metais, um desafio para todo nai-

como Wes Montgomery e Geor-

pe que se preze, e pelo refrão. Aliás, essa é

ge Benson (além do scat sin-

uma das muitas características interessantes

ging, aquela maneira de “can-

do álbum: embora instrumental, é repleto de

ão

oduç

Repr

MENU

primeiro lado do álbum de vinil. “Eva”, que abre o lado B, é uma típica canção de filmes de blaxpoitation, onde a guitarra de Robson e o solo de trombone de Serginho se sobressaem em meio à fina instrumentação da banda; o vocoder, aqui a cargo de Robson, é a estrela de “Fá Sustenido”. O medley de “Festa Braba”, da dupla, e “Baila Comigo”, de Rita Lee e Roberto de Carvalho, é a faixa mais conhecida do álbum – foi tema de uma novela da Rede Globo. Mas a parceria dos alquimistas do pop Rita e Roberto é apenas a porta de entrada para os improvisos criativos de Robson e Lincoln. As duas últimas canções são “Ginga”, um soul/funk/samba, e “Alegrias”, que traz um diálogo entre o baixo de Paulo César Barros e o teclado de Lincoln Olivetti. Robson Jorge e Lincoln Olivetti lançariam ainda “Babilônia Rock” (1983), tema do filme Rio Babilônia, “Siri que Marca a Onda Leva”, “Mariá” e “Monalisa”, todas de 1984. Outra curiosidade: o Dominó, grupo infanto-juvenil criado nos moldes do Menudo, fez uma versão de “Mariá” em seu disco de 1986. O número excessivo


de arranjos e participações da dupla, contudo,

coln! Durante as entrevistas dadas pouco antes

cobrou seu preço. Eles se tornaram vítimas da

de morrer, Lincoln Olivetti ressaltou que havia

patrulha brasilianista da crítica daquele perío-

várias sobras do álbum que gravou ao lado de

do, que os acusou de “pasteurizar” a MPB (“não

Robson Jorge prontas para serem relançadas.

sou leite para ser pasteurizado” defendia-se,

Que esse material veja a luz do dia, para o bem

com ironia, Lincoln). Robson Jorge morreu em

da música. Foto: Divulgação

12 de dezembro de 1992, em decorrência de uma cirrose. Sofria de depressão, problema acentuado pelo alto consumo de álcool. Lincoln recolheu-se em seu estúdio até ressurgir,

Sérgio Martins

no final dos anos 1990, pelas mãos de artistas como Lulu Santos, Ed Motta, o grupo Jota

53 anos, é formado em jornalismo pela faculdade Cásper Líbero (São Paulo). Trabalhou nas redações do jornal Notícias Populares, das revistas BIZZ/SHOWBIZZ, Época e Veja. Colaborou com os cadernos Ilustrada, da Folha de S. Paulo; Caderno 2, de O Estado de S. Paulo; e Divirta-se, do Jornal da Tarde. É um dos críticos musicais brasileiros a ter uma matéria assinada na revista Time - Beyond Bossa Nova, perfil do cantor e compositor Max de Castro, escrito em parceria com Christopher John Farley e publicado em setembro de 2001.

Quest e o produtor Kassin (“um dos meus orgulhos profissionais foi ter sido chamado pelo Lincoln para tocar na banda dele”, jacta-se). Kassin reuniu, dez anos atrás, um time de super instrumentistas para executar Robson Jorge & Lincoln Olivetti na íntegra. Lincoln morreu no dia 15 de janeiro de 2015, vitimado por um ataque cardíaco. Hoje a dupla, que foi tão atacada de maneira injusta, tornou-se referência de um tempo em que a MPB poderia ser sinônimo de qualidade e ousadia. Não só no Brasil como no resto do mundo – bandas como o trio instrumental Khruangbin são fãs confessos dessa obra-prima do pop. Davi Moraes enxerga a dupla como santidades. “Nunca fui muito religioso, mas Robson Jorge & Lincoln Olivetti é um culto para mim”. Aleluia, Robson & Lin-

MENU


KALI

(SOM DA GENTE, 1985) KALI QUANDO KALI PARTICIPOU DA CRIAÇÃO

L

embro de fechar a porta da sala e o som lá de fora desaparecer. Entre o final de 1993, e boa parte de 1994, esse foi um ritual que mantive, aos sábados, depois do expediente. Naquele silêncio, eu colocava um disco para tocar e me sentava no chão, diante de dezenas de elepês enfileirados, ansiosa por conhecê-los, um a um. Foi assim que a música instrumental passou a fazer parte, de vez, do meu gosto musical. Entre os elepês que marcaram as horas que passei naquela sala estava Kali.

Uma das divindades mais enigmáticas, Kali carrega o sentido de transformação pontuado pela destruição do ego, com o intuito de se alcançar o renascimento por meio de mudanças. Foi da deusa hindu que algumas instrumentistas e compositoras emprestaram o nome para batizar seu grupo e disco.

Foto: Rep

rodução

MENU

Renata Montanari, Gê Côrtes, Mariô Rebouças e Vera Figueiredo participaram de um período de transformação da música popular brasileira. Com origem em uma São Paulo que buscava variedade cultural, o Grupo Kali em muitos aspectos venceu obstáculos, descartou rótulos e despontou no cenário da música, trazendo ao mundo uma obra significativa. E o seu valor, como toda obra relevante, vem carregado da história de cada uma de suas integrantes. DO INÍCIO AO DISCO A música instrumental estava em alta quando o disco Kali foi oficialmente lançado, em 1986. O Grupo Kali surgiu em 1982, em São Paulo. Antes do lançamento do disco, o grupo chegou a ter um número maior de integrantes, mas, a certa altura, decidiu-se manter a formação original de quarteto, com guitarra, baixo, piano/teclado e bateria. Nesse ano, comprometida com uma viagem internacional de trabalho, Vera não pôde participar do grupo, tendo passado um ano em Madri, Espanha. Em 1983, estava de volta ao Brasil e encontrou o Kali sem baterista. Vera então assumiu o posto. Apesar da dificuldade para conseguir tocar em bares e participar de festivais, o grupo mantinha uma intensa agenda de shows, resultado do empenho de suas integrantes em levar aos palcos a música


em que acreditavam. Conquistar o próprio espaço foi também conquistar o respeito de colegas de profissão e produtores. Assim, não tardou para que o Grupo Kali garantisse um lugar entre aqueles que despontavam no meio instrumental. Quando as gravadoras começaram a sondá-las, e a considerarem a gravação do que ainda era somente o projeto do primeiro disco, surgiram algumas propostas, mas o grupo não as aceitou por não se afinizarem com o conceito artístico do Kali, que queria tocar música instrumental, e mais, que essa fosse uma música pautada na versatilidade e muito bem interpretada. Os ensaios do grupo aconteciam na casa onde Vera dava aulas, no bairro da Pompeia. Em 1990, essa casa se tornou o IBVF Brasil, conceituada escola de música, reconhecida como uma das melhores no ensino da bateria. Durante os anos que antecederam o lançamento do disco, o Kali tocou em diversos lugares. Semanalmente, o grupo se apresentava em bares do tradicional bairro do Bixiga, entre eles o Persona e o Sanja. Foi assim que ficou conhecido do público, e os músicos que apreciavam sua música apareciam para dar canjas. Nesse meio tempo, Walter Santos e Tereza Souza criaram o Nosso Estúdio, que ficava na Rua Bocaina, no bairro paulistano de Perdizes. Para

eles, essa foi uma resposta aos produtores da época, que costumavam interferir no fazer artístico dos músicos. O casal defendia a liberdade criativa do artista.

No estúdio, o grupo teve liberdade para escolher a melhor forma de gravar cada música. Contou ainda com a ajuda fundamental do técnico de som, Marcus Vinicius, o Vinicão, também produtor musical do disco. Todas as integrantes do Kali falam com muito carinho sobre Vinicão, ressaltando como ele foi importante no período de gravações.

A princípio, o trabalho do músico e da letrista era voltado à área da publicidade. Mais tarde, essa parceria, de vida e artística, deu origem ao selo Som da Gente, a primeira gravadora independente a manter um catálogo exclusivo de artistas do segmento instrumental.

O REPERTÓRIO Contendo nove faixas, o disco foi originalmente lançado em formato elepê, trazendo salsa, frevo, funk, samba, balada, pop, diversos estilos que flertam com a marca registrada do jazz: a improvisação. Kali é uma viagem de diversas camadas, pontuadas por arranjos coletivos, assinados pelas quatro integrantes do grupo.

Ao conhecerem a música do Grupo Kali, e observarem o quanto vinha se destacando pelo trabalho desenvolvido, Walter e Tereza o convidaram para gravar o disco. O convite foi aceito de imediato. Com um considerável repertório autoral, as integrantes do Kali se viram na difícil tarefa de escolher quais músicas seriam gravadas. Assim, decidiram passar uma semana na casa de Vera, em Atibaia, ensaiando e preparando o material que faria parte do disco. A rotina do período de pré-produção consistia em ensaios diários para acertar os arranjos das músicas. Elas queriam chegar no estúdio prontas para as gravações. Foi um período importante para o entrosamento do grupo, não apenas no aspecto musical, mas também pessoal, devido à maior aproximação entre as integrantes.

Além das faixas autorais, alguns dos mais respeitados músicos colaboraram com o disco. É do guitarrista Teddy Bürlochen a autoria de “Spiralen”. A flautista, arranjadora e compositora Léa Freire, que participou de uma formação anterior do grupo, assina a faixa “Da Tequila”. Rique Pantoja, arranjador, pianista e compositor, um dos criadores do grupo Cama de Gato, é

MENU

autor de “Pitu”. O guitarrista, violonista, compositor e educador Rui Saleme, um dos fundadores do Grupo D’Alma, compôs para o disco a faixa “Balada pras Mina”. “Upa, Neguinho”, famosa composição de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, já fazia parte do repertório do grupo havia muito tempo. Incluí-la no disco foi uma escolha natural. Entre as autorais, é de Mariô Rebouças “Papai Sabe Tudo”, enquanto Renata Montanari assina três das nove faixas: “Ubachuva”, “Funk do Tank” e “Locomotiva”. “Papai Sabe Tudo”, o grupo já a tocava em seus shows. O arranjo da música foi “amarrado” na semana em que as integrantes passaram juntas na pré-produção, dedicadas somente ao repertório do disco. “O solo que tem no meio da música, tocado em uníssono pelo piano e guitarra, foi composto em Atibaia”, diz Mariô. A música traz uma forte influência da linguagem pop/fusion que o grupo escutava na época. “Beatles, The Mamas & The Papas e outros que influenciaram a minha geração. Minha escuta musical, nessa época, estava muito voltada para o som de Al Jarreau, George Benson, Stevie Wonder, Spyro Gyra, Yellowjackets, Wea-


ther Report, Chick Corea etc., além dos brasileiros Zimbo Trio, Elis, Gal, Bethânia, Gil, Caetano.”

bém de outros estados, como Jazzmania, no Rio

Mariô também conta que o disco reflete muito da

Quando o disco foi lançado, Mariô estava grávida, de sete para oito meses, e passou por um momento de grande conflito porque queria tocar, dar continuidade ao trabalho com o Kali, mas sem prejudicar o grupo ou impedir que ele se apresentasse. No final, deu tudo certo, e ela participou dos shows e eventos de divulgação do disco, incluindo a apresentação no badalado Jazzmania.

linguagem da época, trazendo som de sintetizadores, efeitos e timbres eletrônicos. Naquele período, ela estava muito envolvida com a exploração de recursos tecnológicos. O título da música foi uma homenagem ao ex-marido de Mariô, que na época era seu namorado. Ele sempre ajudava o grupo a resolver os problemas que surgiam: “Tudo o que a gente não sabia fazer, ou como resolver, eu perguntava para ele, que se dispunha a ajudar. E ele ajudava de fato, sempre com soluções práticas e eficientes.” Já Renata sempre gostou de compor. Para o Kali, ela apresentou várias de suas composições. Algumas acabaram fora do repertório do grupo. Outras, as mais elaboradas, foram mantidas e algumas incluídas no disco. Kali foi gravado em 1985 e o show de lançamento aconteceu na Sala Adoniran Barbosa, no Centro Cultural São Paulo, em 1o de fevereiro de 1986. Com Kali, o grupo se apresentou no circuito paulistano de bares, chegando aos grandes redutos da música de São Paulo, entre eles Aeroanta, Sanja, Teatro Lira Paulistana e Dama Xoc, e tam-

les que, sem o suporte de uma grande gravadora, acabavam limitados a determinados espaços, sem condições de ampliar o alcance de sua música, ainda que sua obra fosse extraordinária.

de Janeiro, e Cabaré Mineiro, em Belo Horizonte.

Os que cultivavam o desejo pelo novo dependiam da indústria, mas também tinham interesse pela novidade, e a buscavam onde fosse possível. Assim, assistiam aos shows que apareciam na sua região, com pouca ou nenhuma informação sobre o artista. Às vezes, tinham sorte, mas o contrário também era frequente.

A filha de Mariô nasceu em maio de 1986. A partir daí, a integrante do Kali não conseguiu mais acompanhar a agenda do grupo. “Depois de pensar muito, eu acabei saindo do Kali e passando meu lugar para a Lis de Carvalho. Sofri muito com essa decisão, ao mesmo tempo em que estava feliz e curtindo a maternidade. São escolhas que a gente tem que fazer em alguns momentos.”

Fanzines eram as newsletters daquele tempo. Fitas cassetes, geralmente gravadas por amigos entusiasmados com a música que escutavam, eram as playlists. Não se trata de trazer o passado para o presente, a fim de compará-lo com o que está disponível hoje e decidir qual época foi a melhor. A tecnologia se tornou uma ferramenta importante, criando espaço para que artistas de diferentes culturas e estilos apresentassem suas obras ao público do mundo, permitindo que se tornassem independentes em diversos aspectos. Também vem alimentando, com obras significativas, um acervo musical em contínua construção, que pode ser acessado

A MÚSICA INSTRUMENTAL ANTES DA INTERNET Imagine um mundo sem internet. Nada de streaming, nem a variedade enorme de vídeos, nem podcast. Nada de chat para bate-papos sobre aquele assunto que fisgou o interesse, aguçou a curiosidade. Nada de e-mail, envio de arquivos, redes sociais para compartilhamento. Antes da internet, os interessados em música dependiam do que lhes era oferecido. Havia muitos artistas que se destacavam, mas também aque-

MENU

por qualquer um que queira conhecer um pouco mais sobre a música do mundo, assim como sobre aqueles que a criam e a interpretam. Renata relembra que, mesmo sem a existência da internet, o acesso ao universo da música independente era possível. Apesar das dificuldades que enfrentavam, muitos músicos se dedicavam à produção de música instrumental, e a qualidade de muitas das produções brasileiras era incontestável. A década de 1980 foi culturalmente rica. Surgiram bandas de rock e pop que até hoje frequentam o gosto popular. Havia muito acontecendo na época e na cena instrumental não era diferente. A produção nesse segmento crescia cada vez mais, inspirada pelos festivais de jazz, que levavam para seus palcos artistas estrangeiros e também brasileiros, ela relembra. “Nessa época, tinha muita gente da MPB fazendo músicas muito boas, que a gente tocava em instrumental: Milton Nascimento, Djavan, Ivan Lins, Gilberto Gil etc”. Também escutava aqueles que admirava e a inspiravam musicalmente, entre eles os baixistas Jaco Pastorius, Nico Assumpção, Stanley Clarke, Arismar do Espírito Santo, Marcus Miller e Arthur Maia.


ÁLBUM 10 ANOS

KALI

(SOM DA GENTE, 1985) KALI Capa: Oz Comunicação Gráfica

(André Poppovic/Giovanni Vannucchi/Ronald Kapaz)

Lado A

1) Spiralen

(Teddy Bürlochen)

2) Da tequila (Léa Freire)

3) Ubachuva

(Renata Montanari)

4) Papai Sabe Tudo (Mariô Rebouças)

5) Pitú

(Rique Pantoja)

Lado B

1) Funk do Tank

Quando falamos sobre música – considerando a ausência dos benefícios trazidos pela internet – e sobre músicos – pensando naqueles que não contavam com o amparo comercial das grandes gravadoras –, nos referimos a um período em que conhecer algo novo era um projeto que exigia dispendiosa energia para ser levado à prática.

terpretações primorosas, enriqueciam os catálogos dos independentes. “Foi a época em que o jazz fusion também entrou no cenário mundial”. Renata se lembra de jazzistas surgidos com a novidade que era o fusion. Entre os músicos que para ela marcaram época estão Miles Davis, com Mike Stern na guitarra, Grupo Um, Chick Corea, Grupo D’Alma e Nelson Ayres.

e enveredavam pela mistura de ritmos, aventurando-se pela variedade de estilos musicais. Por isso mesmo, a qualidade dos discos lançados nos anos 1980 foi surpreendente, garantindo que muitos artistas fossem beneficiados pelo conhecimento gerado com as obras desses que viveram a efervescência da música instrumental no Brasil naquela época.

Naquele momento, os interessados em conhecer novos sons, aqueles que ainda não pertenciam às listas das mais pedidas, tinham de se dedicar a encontrar discos nas lojas especializadas ou nos sebos, onde era possível garimpar verdadeiras obras-primas. Às vezes, era preciso esperar muito para conseguir tais discos, encomendá-los, especialmente se fossem de artistas estrangeiros.

Alguns artistas e produtores também encararam o desafio e, ao lado das pequenas gravadoras e selos, levaram a música instrumental brasileira aos toca-discos dos ouvintes. Foi o trabalho deles que ajudou a aproximação entre o público e essa música, impulsionando os convites de casas de shows e bares para que artistas da cena instrumental se apresentassem em seus palcos.

MISTURAS Elas ainda eram crianças quando se lançaram ao universo musical. Conheceram a música erudita e escolheram a popular para a jornada do grupo. O aprofundamento no conhecimento sobre música, a dedicação ao seu instrumento e a vontade de conhecer mestres da música popular garantiram a essas crianças o que mais desejavam: fazer música popular, instrumental, de qualidade. E a qualidade da música delas era apreciada pelos colegas de profissão e pelo público.

Muitos desses espaços se tornaram importantes pontos de encontro entre os músicos e o seu público.

O que hoje, graças à internet, depende somente da disposição para descobrir novos interesses musicais, naquela época representava uma verdadeira odisseia.

(Renata Montanari)

2) Balada Pras Mina (Rui Saleme)

3) Upa, Neguinho

(Edu Lobo/Gianfrancesco Guarnieri)

Vera comenta a expectativa gerada pelos lançamentos de discos, esperados por todos os fãs e amantes da boa música. “E como era importante o autógrafo! Ele acontecia com a venda do disco, por ocasião das apresentações. Era a ferramenta para divulgar o nosso trabalho”.

Com o destaque que os artistas do meio instrumental vinham tendo, as pequenas gravadoras e selos passaram a movimentar boa parte do que era produzido. Compositores afinados, instrumentistas de inquestionável talento e, em muitos casos, gênios da música, assim como suas in-

4) Locomotiva (Renata Montanari)

: Foto

Muitos compositores e instrumentistas dedicavam-se exclusivamente à música instrumental brasileira. Havia aqueles que não se intimidavam

ão

oduç

Repr

MENU

Muitos definiram o som do Grupo Kali como Brazilian Jazz, mas suas integrantes deixaram logo claro que faziam música instrumental e prezavam a diversidade. Elas se identificavam mais com o fusion, termo que se aplica à fusão de estilos musicais, em busca de algo novo. Os anos 1980 marcaram a era fusion e isso se refletiu na sonoridade do Grupo Kali. De acordo com Vera, “O Kali não era um grupo de Brazilian Jazz, e sim um grupo fusion,


que tinha em seu repertório composições em ritmo de frevo, como “Locomotiva”, e de samba, como “Ubachuva” e “Pitu”. Vera conta que o Grupo Kali também tocava temas fusion que adoravam: “Mood Swings”, do guitarrista Mike Stern, “Roof Garden”, dos compositores Al Jarreau, Jay Graydon e Thomas Canning, e “Elektric City”, de Chick Corea.”

tes. Na época do lançamento do disco, outras bandas femininas foram formadas, entre elas a de pop rock Sempre Livre, do Rio de Janeiro, e a de punk rock As Mercenárias, de São Paulo.

As integrantes do Kali também mantinham agendas independentes dos trabalhos do grupo, mas este se mantinha como projeto principal. Trabalhavam, individualmente, com artistas de diversos estilos, mas houve vezes em que o grupo todo acompanhou certos artistas, entre eles o trombonista Bocato e a cantora Eliete Negreiros. E também o cantor Ritchie, ao lado do tecladista Sacha Amback, do saxofonista Hugo Hori e do percussionista James Muller.

Kali foi o primeiro grupo feminino de música instrumental no Brasil. O valor desse feito se fortalece em diversos aspectos, mas em particular na qualidade da música produzida. Para Vera, ele era único, um grupo instrumental formado somente por mulheres, que quebrou tabus e deixou sua marca e contribuição registradas na história da música brasileira. Para Mariô, o Kali foi muito importante para sua própria história. Foi um período de profissionalização, reconhecimento do trabalho, muita exposição e esforço prazeroso, altamente gratificante. Renata gosta do disco, especialmente por ele ser bem vivo e verdadeiro, além de ter marcado a sua estreia nos estúdios de gravação. Gê relembra com carinho de quando o grupo tocou com Eliete Negreiros. Com essa cantora, o Kali fez uma sessão de fotos de divulgação e uma delas acabou publicada na primeira página do caderno de cultura da Folha de São Paulo, com a manchete “Eliete Negreiros canta acompanhada por uma banda de mulheres”. Este foi mais um ingrediente que ajudou a banda a ser convidada para gravar o disco.

O grande mérito do trabalho do Kali se concentrava na competência e talento de suas integran-

No que se referia à produção nacional, as integrantes do Kali compartilhavam muitas preferên-

Desde o início, as integrantes do Kali já entendiam bem de misturar sons e estilos. Apaixonadas pela bossa e pelo jazz, abertas à influência dos ritmos brasileiros e adeptas da liberdade para o improviso, elas se mantiveram leais à própria música e declinaram das propostas que exigiam a inclusão de vocal no grupo. Foi então que veio aquela que honrava o desejo do grupo e que possibilitou o lançamento do disco Kali.

cias musicais. Com o lançamento do disco, elas passaram a fazer parte do mesmo catálogo de alguns dos artistas que admiravam. Kali é um dos mais de quarenta discos lançados pelo selo Som da Gente, que em seu cardápio musical também trazia Hermeto Pascoal, Grupo D’Alma, Banda Metalurgia, Grupo Medusa e Cama de Gato. Kali foi o único disco lançado pelo Grupo Kali. ELAS HOJE Renata Montanari começou com o violão popular, tocando junto com a sua prima, antes de iniciar efetivamente os estudos. Mais tarde, também estudou harmonia e arranjo. Durante muito tempo, a guitarra foi seu instrumento, até que decidiu voltar ao violão, aprimorando e aprofundando sua compreensão sobre o instrumento escolhido. Estudou com Paulo Porto Alegre, um dos mais importantes violonistas-compositores brasileiros, conhecedor do violão clássico e popular. Em 2015, lançou seu primeiro disco solo. Entre o Som e o Silêncio traz composições autorais, com arranjos para violão solo e quarteto. Também conta com composições de Hermeto Pascoal e de Milton Nascimento e Fernando Brandt. Além do trabalho como instrumentista, compositora e arranjadora, é professora de violão e harmonia na Emesp Tom Jobim, em São Paulo.

MENU

“É um disco que eu gosto bastante. Foi um marco, eu tenho muito carinho por ele. Foi o primeiro disco que eu gravei. Hoje, depois de tanto tempo, é claro que a gente teria ideias diferentes, gravaria de uma maneira diferente. Mas, pensando na época, acho que o repertório foi superlegal. Era o que a gente sentia, né? Essa coisa do jazz fusion.” Gê Côrtes vem de uma família de músicos, e o início dos seus estudos foi com os seus pais. Começou com o baixo elétrico e depois estudou baixo acústico com Luiz Chaves, do Zimbo Trio. Foi integrante da Orquestra Sinfônica Jovem, com a regência de Jamil Maluf, e da Orquestra Jazz Sinfônica. Contribuiu com vários projetos, tocando baixo acústico, e participou da turnê do disco Amigo, de Milton Nascimento, como integrante da orquestra Philarmonia Brasileira, regida pelo maestro Gil Jardim. Fundou, com o violista e compositor Newton Carneiro, o 5 de Cordas, quinteto de formação tradicional, mas especializado em música popular de vários estilos. Tocando baixo elétrico, Gê foi integrante da banda Altas Horas, desde a estreia do programa homônimo, apresentado por Serginho Groisman e veiculado pela Rede Globo. Atualmente, é integrante da Jazzmin’s, big band feminina com repertório voltado à música popular.


Mariô Rebouças começou na música estudando piano com sua mãe. Formou-se em administração e chegou a trabalhar na área. No entanto, depois de ganhar o prêmio de Revelação em Música Erudita, da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), decidiu-se pela música. Estudou piano erudito na Itália e em Londres. De volta ao Brasil, estudou música popular. Trabalhou com diversos artistas, gravando e se apresentando em shows. Participou do projeto Sem Pensar, Nem Pensar, disco com letras de Itamar Assumpção musicadas pelo compositor, violonista e cantor Sergio Molina e interpretadas pela cantora Miriam Maria. Também gravou algumas das faixas do disco A Cidade Enfeitiçada, do compositor e instrumentista Paulo Gusmão. “Acho que Kali reflete bastante a linguagem da época. Eu diria que ficou ‘datado’, de certa maneira, pois ouvindo todos aqueles timbres e efeitos de sintetizador, e a linguagem meio pop, meio fusion, a gente se transfere para os anos 1980. Dito isso,

posso dizer que o disco ficou caprichadíssimo, os arranjos, o repertório, os solos, tudo foi feito com o maior empenho, o maior capricho, e era o melhor recado que podíamos dar naquela época.”

delo tinha o som duro, sem profundidade. Mas é assim mesmo, vivendo e aprendendo. Caiu bem em algumas músicas como “Papai Sabe Tudo” e “Spiralen”. Mas isso não tira o brilho da obra e do bom conteúdo. Na verdade, estou escrevendo e escutando (o disco). Há quanto tempo não o escutava! Tudo muito bonito”, conclui Vera.

Vera Figueiredo começou muito cedo na bateria. Aos oito anos, já participava de uma banda, As Feiticeiras. Formada em piano, usa esse instrumento para compor obras autorais. Lançou três discos: Vera Figueiredo & Convidados, From Brasil e Vera Cruz Island. Fundou o IBVF Brasil em 1990, uma escola de música e produtora de eventos. Foi precursora na produção de workshops no Brasil. Idealizou e realizou quinze edições do Batuka! Brasil, festival dedicado à bateria e à percussão que recebeu diversos artistas brasileiros e estrangeiros e figura na lista mundial dos mais importantes do gênero.

O LEGADO Reconhecer a importância de o primeiro grupo feminino brasileiro de música instrumental ter sido formado por instrumentistas de primeira linha, e também compositoras competentes, é reconhecer o valor de uma música criada e interpretada com conhecimento e talento. A criação do Grupo Kali foi relevante e agregadora. Marcou a história da cultura brasileira, não só pelo disco que leva o nome do grupo como também pelo legado musical de Renata Montanari, Gê Côrtes, Mariô Rebouças e Vera Figueiredo, quatro artistas que seguem contribuindo para nossa riqueza musical. Suas composições e performances servem de inspiração para futuros grupos e artistas que desejam fazer parte do universo da música instrumental e enriquecer com obras fundamentais o repertório da Música Brasileira.

Participou de festivais de música em diversos países, sempre levando aos palcos do mundo seu conhecimento e paixão pelos ritmos brasileiros. Publicou o play-along Vera Cruz Island – Brazilian Rhythms For Drumset, pela editora americana Hudson. Foi integrante da banda Altas Horas, desde a estreia do programa homônimo, apresentado por Serginho Groisman e veiculado pela Rede Globo. “Observando hoje, eu faria tudo diferente, principalmente o meu play. Não usaria uma bateria eletrônica como usei na época, porque aquele mo-

MENU

Foto: Pedro Bicudo

“Na época, muitas portas se abriram para o Kali, para tocarmos em vários lugares, e também pra mim, como instrumentista. Até hoje ouço de músicos jovens, principalmente das meninas, que o Kali foi uma inspiração para a carreira deles. Tenho muito orgulho de ter feito parte desse projeto com minhas amigas Vera Figueiredo, Mariô Rebouças e Renata Montanari”, enfatiza Gê.

Carla Dias Natural de Santo André , vive desde 1995 na capital de São Paulo. Escritora, publicou sete livros: Azul, Livro das Confissões, O Observador, Os Estranhos, Jardim de Agnes, Estopim e Baseado em Palavras não Ditas. Baterista, é integrante da banda OsQuatro, ao lado de Raquel Pirozzi (voz), Paulo Pacito (guitarra/violão) e Marcelo Aisten (baixo). A banda vem trabalhando em um repertório autoral e algumas das canções são poemas de sua autoria musicados por amigos. Produtora cultural, atuou como diretora de produção em quinze edições do Batuka! Brasil, idealizado pela baterista Vera Figueiredo. Foi na casa onde o Grupo Kali costumava ensaiar, e que se tornou o IBVF Brasil, que conheceu os elepês aos quais se refere no artigo.


ANTES DO FIM

(LUNÁRIO PERPÉTUO, 1986) DORSAL ATLÂNTICA

O

Foto: Rep

rodução

MENU

das necessárias coletâneas SP Metal I e II. Mas a verdadeira hecatombe nuclear viria do Rio de Janeiro.

ano é 1986. Brasil afora, o heavy metal é um dos subgêneros mais populares do rock. Ocorrido no verão anterior, o Rock in Rio fez um estrago e tanto, dando ao público a oportunidade de assistir ao vivo – ou pela TV, via massiva cobertura da Rede Globo – shows de pesos-pesados do estilo: Ozzy Osbourne, Iron Maiden, AC/DC, Scorpions e Whitesnake. Na maior cara de pau, Erasmo Carlos e a dupla Baby Consuelo e Pepeu Gomes subiram ao palco ornados de rebites e couro preto. Não enganaram ninguém.

“E eram noites de lua cheia. Nas baixadas flu-

Àquela altura, o metal nacional ensaiava seus primeiros passos: Stress, Harppia e até Robertinho de Recife – a bordo de sua famigerada Metal Mania – já haviam gravado discos seminais. Em São Paulo, a loja e gravadora Baratos Afins, capitaneada por Luiz Calanca, fez um apanhado geral do rock pauleira produzido na terra da garoa através

ras de metal se espelhavam na NWOBHM (New

minenses, além dos estupros e assassinatos cometeu-se, antes do fim, este disco”, registrava a epígrafe na contracapa de Antes do Fim, segundo álbum do Dorsal Atlântica – o primeiro havia sido o split Ultimatum, dividido com a banda Metalmorphose. Difícil imaginar que as nove faixas, precariamente gravadas e mixadas entre os dias 23 e 25 de abril daquele ano, se tornariam um marco incontornável da música pesada nacional. Uma obra-prima de crueza ímpar, cuja influência ultrapassa três décadas sem apresentar o menor sinal de arrefecimento. Antes do Fim é um marco sob quaisquer critérios de análise. Se a maioria das bandas brasileiWave of British Heavy Metal) ou em medalhões do hard rock setentista – ambos exemplarmente representados no line up do Rock in Rio –, o Dorsal Atlântica vibrava em frequências mais modernas e extremas. Em nada as composições e sonoridades apresentadas no disco – lançado pelo selo paulista Lunário Perpétuo – se pareciam com aquilo que hoje se identifica como heavy metal clássico.


“Caçador da Noite”, faixa que abre Antes do Fim,

Se liricamente Antes do Fim operava numa cha-

de dolorosa sentença: “As pessoas se esquecem

Dor semelhante acomete a faixa seguinte, “De-

sumariza o álbum ao mesmo tempo que apre-

ve mais próxima do punk do que do metal, sua

/ Seus amigos do passado / São inimigos do pre-

pressão Suicida”. Novamente, dos sulcos do vinil

senta a matéria-prima da qual o Dorsal Atlânti-

sonoridade conseguia a proeza de hibridizar os

sente / Maldita condecoração”.

brota uma calamitosa tempestade elétrica. Es-

ca é feito. Se o heavy metal – mesmo em suas

dois estilos. É preciso lembrar que, em meados

vertentes mais pesadas como o thrash metal e o

dos anos 1980, havia um cisma de natureza qua-

Indiscutivelmente um álbum de metal, Antes do

se religiosa separando punks e headbangers

Fim não se apega ao maior clichê do gê-

black metal – ainda estava preso a um repertório tipicamente infanto-juvenil, povoado por demônios ou fantasias épicas, o mesmo não se via nas letras do messiânico líder Carlos Lopes – ou melhor, Carlos “Vândalo”. Na narrativa sobre um psicopata que aterroriza Los Angeles, o vocalista e guitarrista declara – com fúria inaudita no rock brasileiro: Ele mata porque já nasceu morto Sangue morto amaldiçoado Porque nas veias corre sangue latino Só podia ser, era isso mesmo Desde pequeno lhe mostraram o mundo Que o povo americano quer construir Desse mundo ele não encontrou nada Nada serve para um mestiço sujo”.

Em míseros três minutos e dois segundos de duração, Carlos Lopes despeja uma visão de mundo ácida, pessimista e, acima de tudo, politizada. Há força e inteligência em cada uma das palavras urradas com violência. Se a magnética capa – pintada pelo próprio “Vândalo” – trazia uma boca costurada, em clara referência à censura do regime militar, bastava a agulha tocar o vinil para se perceber que nada refrearia o virulento ataque da banda carioca.

tamos na quarta música e a linha rítmica da ba-

nero: o virtuosismo estéril. A bateria

– tribos que só se cruzavam mediante sangue

de Hardcore pavimenta de for-

derramado. Bastaria isso para se perceber que a

ma direta, intensa e sem firu-

música do Dorsal Atlântica ocupava uma posição

las o caminho por onde os

de vanguarda, tanto no Brasil quanto no resto do

irmãos Lopes conduzirão

mundo. Nada mais sintomático desse crossover

sua

que o fato de o baterista atender pela alcunha

avalanche

sônica.

Cro-Magnon é aliado de

Hardcore. Caso raro de uma banda que está, li-

primeira hora do bateris-

teralmente, à frente de seu tempo.

ta, enquanto Carlos usa a guitarra como uma metra-

Poucos segundos separam o massacre sonoro

lhadora de sons e ideias.

promovido em “Caçador da Noite” e o tonitruante baixo de Cláudio “Cro-Magnon” – irmão de Car-

“Álcool” desnuda uma carac-

los – na faixa seguinte, “HTLV-3”. O trio volta à

terística que se mostraria defi-

carga de forma crua e visceral. O fantasma da

nidora da postura de Carlos Lopes

Aids começava a apavorar um mundo preconcei-

enquanto artista: jamais se orientar pelas

tuoso e desinformado. O vírus ainda não tinha

expectativas do público. Entre a bebida e o hea-

o nome pelo qual o conhecemos hoje, HIV. Era

vy metal, existem ligações inequívocas – usual-

então o tal HTLV-3. “As pessoas se incomodam

mente vistas com glamour. Com ironia amarga,

/ Com a liberdade que o mundo tem / Se apro-

a abordagem do vocalista é outra: “Droga que

veitar de uma doença / Discriminar mais as mi-

a sociedade me deixa usar / Querem que eu

norias”, acusa Carlos, enquanto a massa sonora

vomite na sarjeta / Estão rindo de mim / Eu de-

segue em ritmo de bate-estacas. A cadência cai

veria rir também”.

mais adiante, em uma mosh part acompanhada

MENU

teria permanece exatamente a mesma, como a afirmar que os males do mundo possuem uma raiz comum. A repetição é o método de massacre usado pelo trio, não deixando possibilidades de fuga para o ouvinte, que vai se sentindo mais e mais acuado. De tempos em tempos, abrem-se clareiras musicais, propícias ao headbanging. Mas a esperança dura pouco e a devastação retoma seu caminho inexorável. A costura da sonoridade crua e avassaladora do Dorsal é a guitarra vândala de Carlos. Nas bases, ela é o cimento a alimentar uma ruidosa betoneira metálica – que jamais para de girar. Nos solos – espontâneos, vigorosos e cheios de alma –, ela é a navalha, ou melhor, a faca cega, abrindo fendas e feridas na densa superfície sonora. A única coisa previsível nos solos do guitarrista é sua inacreditável potência demolidora.


O tempo mostraria algo que já se dava a entrever em Antes do Fim: o Dorsal Atlântica é, em última instância, Carlos Lopes. Suas posturas, angústias, raivas e inquietações se transmutam em expressão artística por intermédio da banda. É no comando do vertiginoso trio que ele realiza a tradução musical de sua visão de mundo. Humanista de esquerda, não poupou munições ao atacar o líder soviético Josef Stalin em “Vorkuta” – faixa que põe fim à primeira face do álbum, curiosamente batizada de lado 5, em mais um dos jogos mentais de Carlos. Virar o LP no toca-discos equivale ao intervalo no corner de um ringue. É preciso aproveitar o tempo para respirar e se recompor, enxugar o suor e limpar o sangue, clarear as vistas e cuidar das feridas. Sabe-se, de antemão, que a devastação continuará, sem trégua nem piedade. Só não é possível aferir a sua dimensão. Ao menos, não até o lado 4 ter início. O que parecia impossível acontece. “Joseph Mengele” traz o combo em intensidade amplificada, na mais perfeita tradução dos horrores perpetrados pelo sádico e infame médico nazista, o “Anjo da Morte de Auschwitz”. A letra equivale a um curso compacto de história. Nenhuma postura fascista é capaz de sobreviver aos simbólicos 3:33 minutos de duração – que se desdobram infinitamente na mente do ouvinte.

“Vândalo” vocifera seu selvagem desprezo pela monstruosidade ocorrida nos campos de concentração. Naquele longínquo 1986, sua interpretação vocal fazia parte do conjunto de experiências mais extremas do metal mundial. O thrash metal havia aberto as portas para uma música infinitamente mais pesada do que aquela feita pelas gerações anteriores. Os paradigmas mudavam a uma velocidade alucinante, e no Brasil tínhamos o Dorsal Atlântica à frente de tudo.

em Antes do Fim: tão logo a faixa se encerra, tem início um discurso de sotaque germânico. Girando-se o disco ao contrário, contudo, o que se ouve é uma saraivada de raivosos impropérios. Impublicáveis. Mais uma vez estamos dentro dos desafios conceituais e estéticos propostos por Carlos Lopes. A tola e ingênua associação entre heavy metal e as ditas “forças das trevas” já era senso comum naqueles idos. Lideranças religiosas conservadoras não se cansavam de provocar escândalos ao estabelecer suspeitas ligações entre o gênero musical e o tal “satanismo”. Por outro lado, muitas das bandas mais novas terminaram por incorporar esse discurso, numa contraditória e quase inofensiva troca em que, em certa medida, todos saíam ganhando: as bandas capitalizavam a atenção gerada nos meios de comunicação, enquanto os acusadores agregavam fiéis em sua hipócrita luta contra “o Mal”.

Uma enxurrada de bandas mais pesadas e extremas surgiria a partir de então, mesmo em nossos tristes trópicos. Em sua maioria, pareciam um pálido reflexo do que acontecia no exterior. Se existia gana e paixão, faltava aquilo que o Dorsal sempre teve de sobra: originalidade. Hoje, é mais fácil perceber que Antes do Fim faz parte de uma tradição cultural antropofágica, devedora da Semana de Arte Moderna de 1922. Metal macunaímico. Ao final de “Joseph Mengele”, o vocalista repete à exaustão o nome do facínora, como se imbuído do desejo de impingir aos tímpanos do ouvinte total repulsa a toda monstruosidade cometida pelo alemão. Carlos Lopes, ainda tão jovem, já havia compreendido que a arte opera por meio de símbolos e alegorias. Cravaria então a maior delas

Não raras eram as histórias de álbuns que possuíam mensagens satânicas gravadas. Para ouvi-las, bastava girar o disco ao contrário – uma diversão que se perdeu completamente quando o suporte da música se tornou digital. Carlos “Vândalo” se apropria dessa prerrogativa ao final de “Joseph Mengele”, mas não

MENU

entrega a cantilena demoníaca bovinamente esperada pela plateia headbanger. O discurso que surge é polissêmico e pode ter como alvo tanto o odioso nazista quanto o ingênuo metaleiro. Afinal, o vocalista sabia que a verdadeira treva não advém do mundo sobrenatural, mas da alienação política. Riffs de crueza dilacerante anunciam o que está por vir. A demolidora bateria hardcore – que até então definiu a sonoridade de Antes do Fim – é substituída por outra mais lenta, cadenciada e incisiva. A velocidade cede espaço a um peso marcial. “Guerrilha” é um hino – o maior do álbum e da longa trajetória do Dorsal Atlântica. “Oh, rifle / Responde força com fogo / Você tem um ideal / Meio caminho entre vida e morte / Entre herói e assassino / Você precisa lutar” conclama o comandante-em-chefe Carlos “Vândalo”, para em seguida bradar o grito de guerra: “Guerrilha por liberdade / Guerrilha em busca da verdade”. A letra de “Guerrilha” se abre em direções simultaneamente sociológicas e filosóficas, políticas e pessoais. Carlos trata tanto da resistência armada à então recente ditadura militar quanto de uma postura individual diante de um mundo pautado pela desigualdade: “Você luta sozinho / Você luta por todos”. Em cada verso, um chamado à revolução.


e vivo, mais preocupado com a potente atmos-

Musicalmente, a faixa impõe um ritmo contínuo e irresistível – mesmo àqueles pouco afeitos à bateção de cabeça típica do heavy metal –, com espaço de sobra para o mastodôntico groove das quatro cordas de Cláudio “Cro-Magnon”. Junto às palhetadas certeiras da guitarra e da precisa marcação dos tambores, o que se constrói, segundo a segundo, é um caso de rara sinergia. O resultado é infinitamente maior que a soma das partes.

ÁLBUM 10 ANOS

ANTES DO FIM

(LUNÁRIO PERPÉTUO, 1986) DORSAL ATLÂNTICA Capa: Carlos Vândalo

Lado A

1) Caçador da Noite 2) HTLV – 3

fera criada do que com a exibição de um narcísico virtuosismo técnico. “Guerrilha” é a síntese absoluta do Dorsal Atlântica. Emblema maior que acompanha a banda desde então. A própria trajetória do trio carioca é marcada por sua postura guerrilheira: jamais se curvar, jamais se render, lutar com as armas que estiverem à mão. E o mais importante: nunca abrir mão da própria integridade.

3) Álcool 4) Depressão Suicida

O solo de guitarra em “Guerrilha” é também um

5) Vorkuta

caso à parte. O Dorsal Atlântica é uma banda

Lado B

Brasil. Como consequência, as influências mu-

A faixa seguinte, “Inveja”, volta a quebrar as regras – demarcadas principalmente no lado oposto do disco. Diferentemente das outras músicas, o libelo contra o pernicioso sentimento comum a todo ser humano é caracterizado por uma estrutura mais complexa, articulando partes de cadências e intensidades distintas. O que poderia ser uma esquizofrênica colcha de retalhos sônicos funciona à perfeição, atravessada em diversos momentos por intensos solos de guitarra – ora climáticos, ora ensandecidos.

precursora do metal extremo, dentro e fora do

1) Joseph Mengele

sicais de Carlos Lopes não nasceram dentro

2) Guerrilha

desse espectro musical – do qual ele é um dos

3) Inveja

precursores –, mas de bandas clássicas. O

4) Morte aos Falsos*

primeiro repertório da banda – ainda em 1981 e sob o nome Ness – trazia KISS, Black Sabbath, Motörhead, Cheap Trick e Ted

Todas as composições são de autoria de Carlos Vândalo, exceto * (Carlos Vândalo e Cláudio Cro-Magnon)

Nugent, com letras livremente convertidas para o português, em mordazes críticas ao governo militar. A única

“Morte aos Falsos” se revela o prego que faltava no caixão. Os acordes iniciais insinuam falsamente uma nova marcha marcial. A verdade não tarda a aparecer: a música traz o ataque mais cru e virulento de todo o álbum. A pegada punk de Hardcore atinge níveis estratosféricos. Velocidade e pressão que não arrefecem um se-

banda nacional presente em seu set list era o Made in Brazil, pedra fundamental do hard rock brasileiro. É como um Ace Frehley anfetaminado que o guitarrista surge no solo de “Guerrilha”: caótico, visceral ção

rodu

: Rep

Foto

MENU

gundo sequer. É como se o trio arrancasse energias – sabe-se lá de onde – para seu derradeiro e fatal ataque. Em meio ao tsunami noise que toma conta dos segundos finais do álbum, Carlos “Vândalo” lança seu último e inconfundível berro: agudo, transtornado, beirando o esgotamento e a loucura. Não resta pedra sobre pedra. O término de Antes do Fim exige, mais uma vez, que o ouvinte respire fundo. Enquanto a sonoridade apocalíptica ainda reverbera em sua cabeça, é possível que ele tome consciência de que já não é mais a mesma pessoa que minutos antes havia colocado o vinil no prato do toca-discos. Se a audição foi feita com o devido cuidado, doses de ingenuidade provavelmente foram substituídas por uma visão mais crítica do mundo. Aconteceu comigo. E com muita gente. Ao longo de décadas, Max Cavalera vem continuamente afirmando que sem Antes do Fim não existiria o Sepultura tal e qual o conhecemos – aquela banda espetacular que ganhou o mundo na virada dos anos 1980/1990. A conclusão pode ser facilmente estendida a outros nomes de primeira grandeza do metal brasileiro, como Korzus, Krisiun e Claustrofobia. Antes do Fim permanece um fenômeno. Como uma obra gravada em condições tão precárias pôde exercer – e continuar exercendo – tamanha


Se o discurso usual do heavy metal era formado por temas satânicos/ fantásticos, o trio carioca apresentou uma visão cáustica e política do mundo, da sociedade e do próprio ser humano. Pode-se dizer que o punk rock lidava com uma

Emblemático, o disco nunca rendeu ao Dorsal Atlântica os dividendos merecidos. Fora dos parâmetros do underground, suas vendas jamais atingiram patamares surpreendentes. Não há surpresa nisso. É um preço comum, usualmente pago por obras radicalmente inovadoras. E é justamente isso que define o álbum: mais que o paradigma sobre o qual todo o metal brasileiro foi erigido, Antes do Fim é uma inquestionável obra de arte.

Foto: Divulgação

influência? Parte da resposta talvez esteja na capacidade ímpar de uma banda originalíssima transformar limites e restrições em expressão artística – tudo mediado por talento e cérebro.

Márcio Jr.

perspectiva semelhante. A diferença é que a qualidade poética das letras de Carlos Lopes retirava

Produtor cultural, Mestre em Comunicação pela UnB e Doutor em Arte e Cultura Visual pela UFG. Foi sócio-fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado. Criou o Goiânia Noise Festival e a CRASH – Mostra Internacional de Cinema Fantástico. Lançou, em 2015, o livro COMICZZZT!: Rock e Quadrinhos Possibilidades de Interface. É também vocalista da banda Mechanics – que, ao lado do quadrinista Fabio Zimbres, realizou o projeto do disco/HQ Música para Antropomorfos (editado no Brasil, Colômbia e Portugal), dando origem à animação O Evangelho segundo Tauba e Primal (2018), da qual é codiretor ao lado de Márcia Deretti. Também com Márcia criou, em 2017, a MMarte editora, especializada em quadrinhos, literatura e cinema. É roteirista da graphic novel Cidade de Sangue (2018), desenhada pelo quadrinista Julio Shimamoto.

as músicas do Dorsal da vala comum do panfleto propagandístico. Potência, fúria, ambiguidade e inversão de expectativas foram o combustível com a qual o Dorsal Atlântica transformou míseras doze horas de estúdio em um marco da música independente brasileira. Onde o metal se mostrava refém do virtuosismo técnico, Antes do Fim exibiu urgência e intensidade jamais imaginadas. As nove faixas que compõem o álbum se beneficiaram, inclusive, da sonoridade crua e visceral plasmada no vinil. Se os headbangers de outrora primavam pela pureza eugênica do estilo, o Dorsal Atlântica não se furtou a ser pioneiro na miscigenação entre metal e hardcore – muito antes disso se tornar moeda corrente.

MENU


FAIRY TALES

(WOP BOP, 1988) HARRY

N

a segunda metade da década de 1980 as tecnologias de comunicação mundial estavam bastante avançadas para os padrões da época. Mas ainda nem em sonho havia a conexão global que a internet e a telefonia móvel via celular iria permitir uma década e pouco depois. Assim, quando reouvimos nos dias de hoje um álbum como Fairy Tales, lançado pelo grupo santista Harry em 1988, ainda ficamos totalmente impressionados com o dinamismo musical e as inovações estruturais sonoras e melódicas que o quarteto imprimiu ao trabalho ao conceber um disco com camadas e camadas de teclados, aliados a bateria e percussão também eletrônicas. O resultado foi um compêndio de dez canções avassaladoras, que traziam em seu bojo as referências mais modernas e contemporâneas do punk e do pós-punk inglês (isso em uma época em que o rock brasileiro dominava o cenário musical, mas as bandas do chamado circuito mainstream das grandes gravado-

Foto: Rep

rodução

MENU

ras ainda produziam suas músicas no conceito tradicional elétrico, de guitarras, baixo e bateria acústica). Essas referências eram obtidas em publicações especializadas importadas ou em LPs também importados (que custavam muito caro) ou ainda em gravações em fitas cassete, copiadas dos discos de vinil do amigo mais afortunado. Foi assim que um quarteto da cena independente autoral do rock de Santos (maior cidade do litoral de São Paulo, que apresentava então uma cena rock’n’roll bastante ativa, com diversos grupos de diferentes tendências sonoras em atividade) entrou para a gigante história do rock brasileiro ao lançar um disco totalmente eletrônico e, ainda por cima, com todas as letras cantadas em inglês. Artística e musicalmente muito à frente de seu tempo, o Harry permanece até hoje como um monumento imbatível do rock eletrônico nacional. A história do grupo começou cinco anos antes, em 1983, quando o vocalista e guitarrista Johnny Hansen (seu nome artístico, sendo o de batismo Marcos Pereira da Fonseca) participava de um grupo de heavy metal razoavelmente conhecido em Santos, o Vulcano. Pouco tempo depois, Hansen se uniria ao baterista César Di Giacomo e à cantora Denise Tesluki para formar a banda Bi-Sex. Influenciado pelos eflúvios da new wave e do pós-punk inglês, que começavam a chegar ao Brasil, o trio compôs algumas canções com


letras em português e inglês. A sonoridade pop eletrônica e algo dançante, e o vocal feminino de Denise ajudaram o grupo a ter boa repercussão em algumas emissoras de rádio FM da Baixada Santista. O mercado musical mainstream no Brasil era então totalmente comandado por grandes gravadoras, mas, sem contrato com nenhuma delas, a banda alternativa resolveu novamente mudar seu rumo artístico e direcionamento musical. Foi quando nasceu, enfim, o Harry – nome escolhido por Hansen, segundo o tecladista e baixista Richard Johnsson, em alusão a um boneco inflável com as feições de um coelho chamado Harry, que pertencia à filha de Johnsson. Entre 1985 e 1986 e já estabelecido como quarteto (com a entrada de Johnsson na formação), o Harry concebeu o material que se tornou seu primeiro EP, lançado pelo selo paulistano Wop Bop, para onde o grupo foi levado graças aos contatos que o primeiro empresário do grupo, Marcelo “Panda”, tinha com o proprietário do selo, o jornalista e lojista René Ferry. Em um tempo em que quase a totalidade dos lançamentos discográficos brasileiros eram feitos pelas grandes gravadoras multinacionais, e também começaram a surgir alguns selos menores e independentes que tentavam “furar” o bloqueio e o domínio das majors do disco sobre o mercado musical, a Wop Bop (pertencente à loja de discos de mesmo nome) começou a ter prestígio e respeitabilidade

junto à imprensa musical especializada e a um público consumidor mais específico, interessado em lançamentos da vanguarda musical e do rock daqui e do exterior. Caos, o EP de três faixas do Harry, lançado pela Wop Bop em 1986, começou a repercutir bem entre público e mídia com a faixa-título, tendo sido bastante tocada na 89 FM, uma das emissoras de maior audiência do dial paulistano na época.

direcionamento sônico do grupo provocou uma baixa, a saída da cantora Denise. “Viemos de uma primeira experiência, em 1986, com o EP Caos, da Wop Bop, onde passamos a conhecer os parcos recursos de estúdio”, recorda o baixista e tecladista Johnsson. “Duas músicas cantadas em português e uma em inglês. Só para ver no

Mas algo na concepção musical da banda ainda não satisfazia o cérebro sempre inquieto do vocalista e letrista Hansen. Já com a cabeça totalmente mergulhada na eletrônica do Kraftwerk e no punk e pós-punk dos grupos ingleses The Clash e Joy Division (ambos então já com discos lançados em edição nacional no Brasil), Hansen convenceu os outros dois músicos do grupo (Johnsson e César) de que eles deveriam ir cada vez mais na direção da eletrônica total, além de compor e cantar todas as músicas em inglês. Foi quando entrou em cena o produtor musical e tecladista Roberto Verta, amigo de longa data dos outros integrantes e sempre antenado e municiado com as últimas novidades em termos de sintetizadores e programações de ritmos eletrônicos. Verta (que nas décadas seguintes também iria trabalhar como diretor artístico de diversas gravadoras e da maior produtora de shows internacionais da América Latina) acabou entrando para o Harry, e o novo

que ia dar. Naquela época tinha ainda os recursos de cortar fita manualmente e inverter no aparelho para criar efeitos. Também usamos um teclado para fazer o baixo e uma drum machine para a parte rítmica (que aprendemos a usar no decorrer das sessões). Some-se a isso o uso de um pedal, o Digital Delay, para efeitos nos vocais. Ainda havia baixo e guitarras elétricos. Longas noites, muitas descobertas. E o principal: a liberdade de produzir conforme nossa ótica. Foi assim que chegamos ao Fairy Tales. Dois anos depois do EP, que deu algum burburinho na época, conseguimos o projeto de um LP, nas mesmas condições de liberdade de produção”, completa.

MENU

Quando o Harry mostrou o resultado obtido nessa imersão profunda no rock eletrônico, com o lançamento de Fairy Tales no segundo semestre de 1988, o quarteto santista causou furor e choque na imprensa musical do eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Com uma sonoridade que impressionava pelo contexto totalmente avant-garde e muito à frente do que se ouvia naquele momento no rock brasileiro, o grupo chamou a atenção dos cadernos culturais dos grandes jornais diários de então, além da revista Bizz, a principal publicação musical da época. Em uma matéria que ocupou a metade da capa de uma das edições do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo escrita pelo autor deste texto, o Harry era mostrado como uma novidade genial e improvável do rock nacional, ainda mais por ser egresso de uma cidade litorânea de clima quente praiano e verão eterno, que em nada sugeria a avalanche sonora sombria, sustentando letras igualmente sombrias (quando não desalentadoras), todas cantadas em inglês bastante correto. Já a mensal Bizz, além de tecer rasgados elogios ao álbum, ainda elegeu sua capa como a segunda melhor de 1988. “A


capa do disco foi baseada em uma foto de Araquem Alcântara feita em Cubatão, que retratava trabalhadores utilizando jatos de areia em uma usina”, recorda Verta. “Reflete de forma profunda o que está dentro do disco”, completa ele.

ÁLBUM 10 ANOS

FAIRY TALES (WOP BOP, 1988) HARRY

Capa: Araquém Alcântara

produzida pela desigualdade social e pelo tráfico de drogas, a poluição vinda da vizinha Cubatão, gerada pelo polo petroquímico e pela refinaria de petróleo etc etc. Todos esses problemas e o ambiente urbano hostil, jamais retratados nas obras musicais de outros artistas santistas, forneceu farto material e munição para que a banda produzisse as dez músicas da versão original de Fairy Tales (em reedições posteriores do disco, em formato CD e nas plataformas digitais, foram acrescentadas mais faixas, entre sobras de estúdio, remixes e versões demo de algumas canções). Todas mergulhadas em um turbilhão de melodias soturnas, pesadas e dançantes, onde abundavam efeitos sonoros, vocais processados e em eco, camadas e camadas de teclados, baterias eletrônicas e muita personalidade musical. Como se não bastasse tudo isso, o quarteto ainda se deu ao luxo de permear a música “The Beast Inside” com um feroz solo de guitarra heavy metal. Já a belíssima e tristonha “Soldiers” (talvez uma das canções mais belas e melancólicas já feitas na história do rock nacional) tem sua melodia perpassada por sons de gaitas de fole. Há ainda anátemas sonoros como “Sky Will Be Grey”, “Genebra”, “Joseph In The Mirror”, “Lycanthropia” e “Death”, mostrando que o Harry em nada ficava devendo ao rock eletrônico de vanguarda que se fazia naquele momento na Europa, Inglaterra e Bélgica (nação símbolo do es-

O que “está dentro do disco” é uma autêntica e soberba coleção de vesânias sonoras e textuais, egressas de um pesado e poderoso arcabouço eletrônico e dançante que servia de amparo para as letras escritas por Hansen, em que ele expunha as inquietudes de uma mente brilhante e bastante perturbada na observação do mundo. Desde a adolescência, o vocalista se mostrou um outsider existencial que não se adequava em nada ao mundo e ao tecido social considerado “normal”. Quando encontrou outros companheiros com esse mesmo viés outsider, a química musical não demorou a acontecer. E a química musical do Harry nada mais era do que a representação em tormentas sonoras da dura realidade que cercava o lugar onde seus integrantes moravam nos anos 1980. Apesar de ser uma cidade com praia e clima de verão perene, Santos tinha todos os problemas do mundo: enchentes que a cada início de ano castigavam o município, encostas de morros que desabavam pelo excesso de chuvas, soterrando e matando os moradores miseráveis das favelas, a violência urbana

Lado A

1) Sky Will Be Grey

(César Di Giacomo/Richard Johnsson)

2) Genebra

(Roberto Verta/ Richard Johnsson)

3) Jospeh In The Mirror (Johnny Hansen)

4) You Have Gone Wrong (Johnny Hansen)

5) Lycanthropia

(Johnny Hansen/Roberto Verta)

Lado B

1) The Beast Inside (Johnny Hansen)

2) Soldiers

(Richard Johnsson)

3) The Last Birthday (Johnny Hansen)

4) Silent Telephone

(Johnny Hansen/Roberto Verta)

5) Death

(Johnny Hansen/Roberto Verta)

ção

rodu

: Rep

Foto

MENU

tilo musical Eletronic Body Music, ou EBM, com o qual o som dos santistas também mantinha total similitude). “Fairy Tales é o disco com nossas melhores canções e ideias”, atesta Roberto Verta. “Talvez, se fosse regravá-lo novamente (como a banda o fez no Electric Fairy Tales, em 2014), optasse pelo som mais orgânico dos shows da época, mas, em compensação, o álbum acabou sendo um bom exercício em produção e experimentação”, conclui. Uma curiosidade sobre o processo de criação e gravação do disco é revelada por Johnsson: “O interessante é que todas as músicas estavam sendo criadas e ensaiadas de forma elétrica: guitarra, baixo e bateria”, revela o músico. “Mas a intenção era soar eletrônico. O César já havia incorporado módulos de bateria Simons, o Hansen encaralhando o máximo a guitarra e o vocal de efeitos de pedais mil, e o baixo emulando o ritmo pulsante dos eletrônicos. A partir daí, resolvemos, o Verta encabeçando a parte técnica, a fazer tudo no formato eletrônico. Não foi planejado. Foi ali, na hora, durante o curso. Sempre nos sentimos atraídos pela experimentação. O César passou toda a parte rítmica para uma drum machine e tudo mais sincronizado, tudo eletrônico. Teve até partes eletrônicas não programadas, tocadas no dedo e na raça. Teve guitarras tocadas, gaita de fole, scratches de DJ, coro com amigos na “Soldiers” e o


livre na Fantástica Fábrica de Chocolates”, recorda Johnsson com entusiasmo. Fairy Tales tornou-se um marco e um ícone tão importante, venerado e respeitado - não apenas na cena rock brasileira, mas também europeia - que a própria banda o regravou em versão “elétrica” mais de uma década e meia depois (com guitarras, baixo e bateria “humana”, conforme a intenção original dos músicos). Batizado de Electric Fairy Tales, foi gravado ao longo de 2014

e lançado oficialmente no ano seguinte. É o álbum derradeiro com o emblemático Johnny Hansen nos vocais. Nessa década e meia entre o disco eletrônico e sua versão elétrica, a banda teve uma trajetória bastante errática, com muitas mudanças em sua formação e poucos shows ao vivo – o que, de certa forma, contribuiu para que o grupo passasse a ser venerado pelos fãs como uma espécie de lenda da cena independente brasileira. Os membros originais se distanciaram fisicamente: Verta se mudou para o Rio de Janeiro, e Hansen viveu com sua derradeira companheira por cerca de dez anos na pequenina cidade de São Thomé das Letras, no sul de Minas Gerais. Algum tempo após voltar a morar em Santos (para cuidar de sua mãe octogenária e adoentada), Hansen se foi do nosso mundo, para imensa tristeza do autor deste texto, que com ele manteve uma sólida amizade por 30 anos. Vitimado por um infarto fulminante, faleceu em 17 de abril de 2017, aos 56 anos de idade. Mesmo não tendo tido em vida o reconhecimento gigante que merecia, por sua genialidade como músico e assombroso e enciclopédico conhecimento musical, tornou-se um símbolo post mortem do que de melhor o rock Brasil nos legou nos anos 1980.

to, que pretendem lançar futuramente. E Verta, que possui muitas canções não lançadas do grupo, pretende que elas ganhem lançamento até 2023, quando a banda (que nunca encerrou atividades oficialmente) completará 40 anos de existência. Mas mesmo que essas músicas inéditas nunca sejam lançadas, o Harry já cumpriu com louvor máximo sua missão em toda a história do rock nacional, e essa missão está nas faixas de Fairy Tales, a obra-prima do conjunto, que será reverenciada ad eternum, enquanto houver garotos e garotas interessados no grande rock’n’roll.

Foto: Divulgação

que mais pintasse. Éramos crianças com passe

Humberto Finatti Jornalista musical e de cultura pop há 30 anos, com passagem pelos principais veículos de mídia impressa do Brasil, como os jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, Gazeta Mercantil, e as revistas IstoÉ, Bizz, Interview e Rolling Stone Brasil. Atualmente é curador de eventos musicais e editor do blog de cultura pop Zap’n’roll, que pode ser acessado em dynamite.com. br. Foi amigo pessoal do vocalista da banda Harry, Johnny Hansen, ao longo de três décadas.

Todos os outros integrantes originais do Harry permanecem vivos (felizmente). Johnsson e Verta andam, aliás, produzindo material inédi-

MENU


CILIBRINAS DO ÉDEN

(NOSMOKERECORDS, 2008) RITA LEE E LUCINHA TURNBULL

E

ntre 1966 e 1972, Rita Lee lançou ao lado dos irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista oito discos, dois deles assinados como artista solo, mas ainda sob a curadoria criativa e musical da família. Foi só depois do lançamento de Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida que a família a convidou para se retirar da banda Mutantes, com a desculpa patriarcal de que Rita não cumpria requisitos virtuosos para seguir um caminho musical progressivo, a la Yes. O que na época foi motivo de profunda frustração, pouco tempo depois tornou-se alívio quando Rita ouviu e viu o caminho sonoro que a banda passou a seguir sem ela.

A ruptura total com a música dos Baptistas foi primordial para testemunharmos o nascimento de uma das maiores artistas e compositoras deste país, tanto do ponto de vista musical como também mercadológico, já que Rita, até hoje, é uma das maiores vendedoras de discos do Brasil.

Foto: Rep

rodução

MENU

Do momento da expulsão até chegar a Fruto Proibido, e emplacar músicas que se transformariam em hinos como “Ovelha Negra”, Rita passou por um período curto, porém importante, que muita gente não conhece, momento esse que, talvez, ela jamais tenha vivido novamente: o de experienciar e compreender quais caminhos ela desejaria percorrer pós-Mutantes. O hiato sem banda tinha cara de um duo feminino e foi batizado de Cilibrinas do Éden. Como a própria Rita relata, um filho batizado antes de nascer de fato. Efêmero, mas essencial para o que viria a seguir. Não cabe me aprofundar aqui sobre a importância dos Mutantes no cenário musical brasileiro. Confesso que a entendi tardiamente, aliás. Os vocais desafinados de Arnaldo nunca soaram bem para meus ouvidos de cantora de coral. Apenas quando passei a pesquisar música brasileira a fundo, e com louca admiração, me dei conta de que a figura daquele trio e tudo o que eles criaram subverteram as sonoridades e os bons costumes instrumentais da música popular brasileira da época. Ali, entre os irmãos Sérgio e Arnaldo, estava Rita Lee, que trazia frescor e graça ao conjunto da obra. Caetano Veloso, em entrevista, já declarou que ela foi sua Mutante favorita desde o início. Também foi a minha, claro. Em cada imagem e foto que revisitei, me encantava ver Rita, tão jovem, com instrumentos estranhos, emanando, principalmente, diversão.


Do compacto O’Seis, de 1966, até o álbum Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, de 1972, Rita Lee lançou junto dos Mutantes oito discos como banda e dois lançados como artista solo, estes dois últimos sob encomenda e contrato com a gravadora Philips, através de André Midani, e ainda com as participações dos irmãos como instrumentistas e compositores.

De volta à casa dos pais, na Vila Mariana, ganhou tempo de respiro e foi lá que compôs sua primeira música pós-expulsão, a clássica “Mamãe Natureza”. “Não sei se eu estou pirando ou se as coisas estão melhorando” são os primeiros versos da canção que deu a Rita a primeira consciência criativa, que a fez perceber sua autonomia e controle sobre harmonia, melodia, letras e ideias.

Ainda em 1972, em um episódio que interpreto como um misto de ciúme e/ou puro machismo, Rita foi convidada a se retirar dos Mutantes devido ao novo momento que a banda trilharia, caminho esse em que não cabia Rita Lee e sua

A narrativa discorre e denota os questionamentos sobre o seu então presente musical. Ela canta “Não sei se eu vou ter algum dinheiro ou se eu só vou cantar no chuveiro”. Angústia essa que passava por sua cabeça, principalmente após voltar à casa de Charles, seu pai, que dizia firmemente que música era um hobby e não profissão. Enquanto Rita estava ali, sem banda, também se empoderava gradualmente de sua própria criação.

musicalidade intuitiva e não virtuosa. Começava a fase “the braziliãn Sim”, apelido dado ironicamente pela própria Rita, após assistir e ser iluminadora de um show da banda, ocasião em que entendeu, com alívio, a importância de não fazer mais parte daquilo. A expulsão dos Mutantes não foi um momento tranquilo para Rita. Ela já declarou em diferentes entrevistas e em seu próprio livro que, apesar da tranquilidade posterior, o ocorrido a frustrou e magoou demais. Principalmente ao compreender que parte daquilo se devia, sim, ao fato de ser mulher. A dúvida sobre seu talento e capacidade técnica a levou para um lugar de insegurança muito comum entre mulheres artistas e a afastou de seu violão durante um período.

O instrumento ganhou relevância na década de 1960 e era empunhado no palco até então por nomes como Tony Ossanah, Toninho Horta, Luís Carlini, Pepeu Gomes, entre outros. O que há em comum entre todos eles? São homens, claro. Até 1972, não havia nenhuma mulher a ganhar tal relevância no Brasil, principalmente no rock. Quem abriu essa frente para tantas outras mulheres foi Lúcia Maria Turnbull, ou Lucinha Turnbull.

Um bate-volta a Nova York e uma temporada em Londres foram primordiais para a nova fase que estava por vir. Afinal, foi na terra da rainha que Rita, usando hena marroquina, adotou os seus icônicos cabelos vermelhos, adquiriu novos instrumentos e reencontrou amigos como Gilberto Gil, primordial para sua compreensão profunda sobre música brasileira.

Filha de pai escocês e mãe brasileira, Lucinha nasceu em 1953 e morou em Londres entre os anos 1969 e 1970, período em que teve aulas de guitarra e participou do grupo folk Solid British Hat Band. De volta ao Brasil, tomou conhecimento de uma banda chamada Mutantes. A faixa etária próxima entre eles e a mesma predileção pelos Beatles a atraiu fortemente e a fez se aproximar da turma. Ficou amiga, principalmente, de Rita Lee.

No mesmo ano em que Elis Regina promovia a marcha contra a guitarra elétrica, Gilberto Gil levava ao palco do III Festival da Música Popular Brasileira o trio Os Mutantes para defender ao lado dele a música “Domingo no Parque”, que levou o segundo lugar e aproximou a banda do movimento tropicalista.

Segundo a própria Lucinha, no documentário produzido por Luiz Thunderbird e Zé Mazzei, quem a ajudou a escolher sua primeira guitarra foi o produtor musical e músico Liminha, em Londres, onde passava mais uma temporada, dessa vez com a própria Rita Lee.

MENU

PHONO 73 - O CANTO DE UM POVO Em 1973 a então gravadora PolyGram (antiga Philips e atual Universal Music), decidiu produzir um festival com quatro dias de apresentações para promover o seu ilustre catálogo de artistas. Foram reunidos no Parque Anhembi, em São Paulo, Elis Regina, Fagner, Gilberto Gil, Jorge Ben, Erasmo Carlos, Jorge Mautner, Raul Seixas, Ronnie Von, Gal Costa, Hermeto Pascoal, Maria Bethânia, Odair José, Nara Leão, Jair Rodrigues e outros. A produção do festival ficou a cargo de André Midani e Armando Pittigliani, respectivamente presidente e diretor de relações-públicas da gravadora. E na direção executiva e produção dos shows estavam Manoel Carlos e Guilherme Araújo. As apresentações aconteceram entre os dias 10 e 13 de maio. O primeiro dia foi reservado para um concerto livre com Rita Lee, Lucinha Turnbull e Os Mutantes.


Em sua autobiografia, Rita diz que o convite veio através de Mick Killingbeck, jornalista inglês que na época assumiu o papel de empresário dos Mutantes. Segundo Mick, a produção do evento pensou nela para abrir o show da então agora banda progressiva. Naquele momento, Rita não tinha nenhuma banda e também não pensou em declinar o convite. Assim, o primeiro nome em que pensou foi o da “única groupie talentosa dos tempos mutantescos, uma guitarrista com ‘munheca de macho’”, Lúcia Turnbull.

O DISCO PIRATA Quando dei o primeiro google no disco Cilibrinas do Éden, as poucas informações que garimpei foram incompletas, datas desencontradas e fontes desconexas. Foi através de sua autobiografia e entrevistas, tanto de Rita quanto de Lúcia, que entendi a origem nebulosa do álbum Cilibrinas do Éden, que, na verdade, nunca existiu.

Sobre a apresentação Rita diz em seu livro: Em “Mamãe Natureza” rolou uma chuvinha de papel no palco, uma vaia aqui e acolá. Aguentamos firmes. Na segunda música, as vaias se transformaram em trovão e, antes que um raio caísse em nossas cabeças, recolhemos nossa insignificância e saímos rapidinho de cena. Sucesso catastrófico. Convenhamos, quem aguentaria ouvir duas fadinhas enfadonhas cantando tchururus antes de uma banda de rock progressivo?

Depois do “sucesso catastrófico” e frustrado das Cilibrinas no festival Phono 73, Rita se deu conta de que precisava novamente de uma banda.

Cilibrinas do Éden foi o nome de batismo antes mesmo de ensaiarem pela primeira vez. De acor-

Quando se vive a história e não se toma o distan-

do com algumas fontes, cilibrina era o apelido

ciamento temporal devido, fica mais difícil compre-

para se referir a maconha. O nome também é

ender, de fato, o que está acontecendo ali. Para

Lúcia conhecia uma do bairro da Pompeia que se

utilizado no Nordeste, mais especificamente no

Rita, foi um “sucesso catastrófico”, mas o que ela

município de Lagarto-SE, e diz respeito à come-

não sabia é que naquela única apresentação de

moração antecipada da festa junina.

Cilibrinas do Éden, nascia um dos discos mais cul-

chamava Lisergia e a indicou para Rita. No dia da audição ela ouviu Lee Marcucci no baixo, Emilson na bateria e Luís Sérgio na guitarra. Na mesma ocasião estavam o artista visual Toninho Peticov e o dramaturgo Antonio Bivar, que observaram atentamente o ensaio, pontuando no fim diferentes considerações sobre a jam apresentada.

tuados do submundo da música brasileira. Para frustração da plateia, que em sua maioria aguardava a atração principal da noite, o repertório compunha-se de canções inéditas de Rita com contribuição de Lúcia. Tocaram então “Mamãe Natureza”, música de Rita, que tinha solo e riff de Lúcia, “Bad Trip” (que tempos depois virou a canção “Shangrilá”), “Jardim do Éden” e uma ou outra do Seals & Croft, um “repertório fofinho e tolinho”. O figurino era Lucinha com asas de anjo e Rita com antenas de joaninha.

Embora Rita Lee já tivesse alcançado um renome, não foi através de uma música acústica que ela foi projetada, mas sim devido a uma banda com guitarras, distorção e bateria. E o que ela e Lúcia experimentavam ali, no palco do Anhembi, era algo bem diferente do que o público estava habituado a ver. Entretanto, quem estava lá testemunhou uma Rita com muito mais autonomia sobre sua própria música.

Uma das mudanças primordiais apontadas por Bivar foi a respeito do nome. Cilibrinas não cabia e muito menos Lisergia, foi quando ele sugeriu o nome Tutti Frutti. Ficou e pegou. Lúcia assumiu os solos e Rita os teclados, violão e outros instrumentos irreverentes, como theremin e melotron, por exemplo.

MENU

Rita Lee se viu novamente imersa em um clube do Bolinha que afirmava que, para fazer rock, “precisava ter culhão” e ela queria provar a si mesma que “rock também se fazia com útero, ovários e sem sotaque feminista clichê”. Por isso, criou um repertório cada vez mais com sua assinatura, tanto na sonoridade, quanto na narrativa. A banda estreou no Teatro Ruth Escobar em uma temporada que durou cerca de três meses e contemplava um setlist com composições inéditas de Rita. Uma ou outra as Cilibrinas já haviam tocado no festival de 73. Esse período foi importante também para Rita se descobrir e se assumir front stage. Notou que o público se inflamava muito mais quando ela deixava os teclados um pouco de lado e assumia o microfone, à frente da banda. A partir daqui, a história obscura do álbum Cilibrinas do Éden começa, talvez. Rita diz em sua autobiografia que, pós-temporada no Ruth Escobar, ela e banda mudaram-se para o Rio de Janeiro, onde em três semanas gravaram um primeiro registro do repertório do show nos estúdios da PolyGram. O disco-titanic, como ela o apelidou, foi intitulado apenas de Tutti Frutti, mas nunca foi lançado. Na época, André Midani cancelou o lançamento devido à má qualidade de gravação e execução das músicas. O disco foi inteiro registrado com toda banda sob efeito de LSD.


De acordo com a discografia presente no livro de Rita, o disco Tutti Frutti foi gravado em 1973 e nunca lançado oficialmente. O setlist contém as músicas: “Mamãe Natureza”, “Paixão da Minha Existência Atribulada”, “Festival Divino”, “Bad Trip”, “Ainda Bem”, “Nessas Alturas dos Acontecimentos”, “Cilibrinas do Éden”, “E Você Ainda Duvida?”, “Tutti Frutti” e “Minha Fama de Mau”.

ÁLBUM 10 ANOS

CILIBRINAS DO ÉDEN (NOSMOKERECORDS, 2008) RITA LEE E LUCINHA TURNBULL

Lado A

1) Cilibrinas Do Éden (Rita Lee/Lucia Turnbull)

2) Festival Divino (Rita lee)

3) Bad Trip (Ainda Bem) (Rita lee)

4) Vamos Voltar Ao Princípio Porque Lá é o Fim (Rita Lee)

5) Paixão Da Minha Existência Atribulada (Rita Lee)

6) Gente Fina É Outra Coisa (Rita Lee)

Frutti gravado no Rio possui a música homônima, o gravado em São Paulo possui no lugar “Vamos Voltar ao Princípio Porque lá é o Fim” e “Gente Fina é Outra Coisa”. Em qual história acreditar? Bem, eu gosto das duas e muito provavelmente ambas aconteceram. A dúvida é a qual áudio o selo espanhol teve acesso para prensar o raro disco.

A outra história contada é que, em dezembro de 1973, no Estúdio Eldorado, em São Paulo, e com produção de Liminha (sua primeira como produtor musical), Rita, Lúcia e os então Tutti Frutti gravaram ao vivo, diante de uma pequena e seleta plateia, o disco que viria a ser o cancelado Tutti Frutti e que foi lançado 35 anos depois de maneira não autorizada sob o nome de Cilibrinas do Éden.

A certeza que temos é que, tanto em uma situação quanto em outra, o álbum foi cancelado por Midani, o que motivou uma Rita inconformada, embora ciente da má qualidade da gravação, a procurá-lo sem sucesso, mas encontrando um também insatisfeito Tim Maia na sala de espera da PolyGram. Diz a lenda que, depois dos desabafos, quebraram juntos o escritório do big boss da gravadora.

De acordo com matéria do jornalista Marcus Preto, publicada em 2009, o álbum “pirata” foi produzido por uma obscura gravadora espanhola comandada por brasileiros chamada Nosmokerecords. A primeira tiragem, lançada ao que tudo indica em 2008, contou apenas com 500 exemplares em CD e mais 500 em vinil 180 gramas e numerados à mão.

Lado B

1) Nessas Alturas Dos Acontecimentos (Rita Lee)

2) E Você Ainda Duvida (Rita Lee)

3) Minha Fama De Mau (Erasmo Carlos)

Certo, porém, é que não podemos deixar de acreditar e creditar que Rita e Lúcia criaram juntas uma experiência sonora que foi ponte, ou melhor, catapulta, para uma Rita Lee compositora adquirir cada vez mais espaço e segurança naquele ambiente onde ter culhões era muito mais importante que talento, e também para Lúcia ganhar a relevância que a faz hoje ser reconhecida como uma das mulheres precursoras na guitarra elétrica.

4) Mamãe Natureza (Rita Lee)

Tudo no disco é mentira: a ilustração lindíssima da capa, em que ninguém encontra os créditos, o selo da Philips, a ordem e a quantidade das músicas.

5) Hoje É O Primeiro Dia Do Resto Da Minha Vida (Rita Lee & Mutantes)

6) Mande Um Abraço Para A Velha

CILIBRINAS DO ÉDEN O disco lançado pela Nosmokerecords possui uma capa em que, infelizmente, não consegui encontrar os devidos créditos. Mais um mistério dessa prensagem.

Se compararmos os setlists das duas gravações, veremos que as músicas diferem na ordem, e, enquanto o Tutti

(Mutantes)

ção

rodu

: Rep

Foto

MENU

Ele abre com a primeira versão de “Mamãe Natureza” com os riffs de Lúcia, como já pontuei antes. É muito significativo essa música abrir esse trabalho, já que se trata da primeira composição depois do rompimento total de Rita com Sérgio Dias e Arnaldo Baptista e faz parte da primeira experiência “nua” em um palco com suas composições. “E Você Ainda Duvida?” nos lembra muito o que viria depois em Fruto Proibido com “Esse tal de Roque Enrow”, tanto pela letra, uma ode ao rock, quanto pelo arranjo que marca bem o gênero através das guitarras, ritmo e progressões. Temos também uma versão acelerada e com solo de bateria de “Minha Fama de Mau”, sucesso de Erasmo Carlos, considerado por Rita Lee o pai do rock nacional. “Gente Fina é Outra Coisa” traz em tom irônico a verdade sobre os bons costumes da época: uma crítica que parece sutil, mas foi alvo de censura, assim como dezenas de canções de Rita ao longo da ditadura. “Na letra em exame, uma jovem insurge-se contra o pátrio-poder ao tentar persuadir um amigo a desacreditar de seu pai, para juntar-se a um grupo juvenil de comportamento duvidoso”, assinala o censor José do Carmo Andrade num documento de 30 de agosto de 1973.


“Paixão da Minha Existência Atribulada” abre a porta para a psicodelia que rege, ora sutilmente, ora de maneira intensa, o resto do álbum. Nessa faixa ouvimos o theremin de Rita em meio aos solos de Lucinha. “Festival Divino” é a minha favorita. Uma canção teatral. Rita narra um paraíso onde bichos falam e deus é cabeludo. Em uma introdução bastante marcada por uma linha de baixo que ajuda a voz de Rita a ser percebida, algo cada vez mais raro nos últimos registros com Os Mutantes, nos surpreendemos com uma virada na melodia e na harmonia que traz o inferno e seus anjos mal vestidos, com seus ternos, pastinhas, comprando almas e vendendo mentiras. Em “Bad Trip”, as vozes das Cilibrinas harmonizam e cantam a depressão. Talvez, a mesma que Rita sentiu ao ser expulsa de sua primeira banda e se ver em um lugar de insegurança muito profundo. Depois da primeira parte, as camadas de guitarra e baixo anunciam um caótico solo de theremin e fecham a música com menos pessimismo. Elas cantam: “ainda bem que eu não desisto dessa vida louca”. Ainda bem! Essa faixa deu origem a outra música, “Shangrilá”, lançada em 1980 no álbum Lança Perfume.

Rita Lee faria mais uma vez história com Fruto Proibido, lançado em 1975, considerado um marco na música brasileira e no rock nacional. Desse disco saíram sucessos como “Esse tal de Roque Enrow”, “Luz Del Fuego”, “Ovelha Negra” e por aí vai. O resto é história e bem viva.

“Nessas Alturas Dos Acontecimentos” é um rock mais intenso, parceria com Tutti Frutti e com uma letra direta, que conta com apenas uma estrofe de 5 versos: Periga até pintar um disco Tudo pode acontecer Você vai ver E quem fica parado é poste Eu quero é me locomover

Percebo a potência de Rita a cada página que leio a seu respeito, a cada performance que revejo, a cada ideia e palavra colocada no mundo. Percebo ainda mais ao escrever sobre um disco que nunca existiu aos olhos dos contratos fonográficos, mas que ainda assim ganhou importância enquanto obra relevante que é. Por sua sonoridade, verdade, ou por colocar duas mulheres, cada uma à sua maneira, transgredindo e abrindo caminhos para outras que vieram e virão. Cilibrinas do Éden, no submundo ou não, merece nossos ouvidos.

Já a letra de “Vamos Voltar ao Princípio Porque Lá é o Fim” parece uma continuação de “Festival Divino”, mas sem o inferno. Apenas o início dos tempos. O jardim do Éden e o desejo de Rita de voltar a ele para entender como tudo acaba. Cilibrinas do Éden, mesmo antes da publicação pela Nosmokerecords, circulou entre o submundo dos colecionadores e fãs através de fitas cassetes. A única faixa aproveitada e lançada oficialmente foi “Mamãe Natureza”, no álbum oficial de estreia de Rita Lee com o Tutti Frutti, o Atrás do Porto Tem Uma Cidade, de 1974.

Dizem que, talvez por falha de comunicação, talvez por questões de direitos autorais, Lúcia e Rita nunca mais se falaram ou tocaram juntas. Se é lenda ou mais uma lembrança que foi “queimada por incêndios existenciais”, não saberei jamais.

Depois da gravação desse disco, Lúcia deixa o Tutti Frutti e se aventura em outros palcos. Acompanhou Gilberto Gil e gravou os álbuns Refavela e Refestança, onde reencontraria Rita Lee no palco. Acompanhou também Moraes Moreira, Erasmo Carlos, Guilherme Arantes e Edgar Scandurra, entre outros trabalhos no teatro.

O que sei é que “ainda bem” que Rita não desistiu de sua música, de sua expressão e arte. Ainda bem que se agarrou a seus ovários e útero para criar e segurar o microfone na ponta do palco.

Foto: Divulgação

Mais tarde, em 1977, Rita “reaproveitou a música e fez uma letra nova para ela, que foi gravada com o título de “Locomotivas” para a novela de mesmo nome da Rede Globo”.

Thabata Arruda

Iniciou sua carreira na música há dezoito anos como coralista e mais tarde transitando para as áreas de produção cultural e pesquisa musical. Radicada em Poços de Caldas (MG) desde 2020, passou por instituições como Centro Cultural da Penha, Movimento Cultural Penha e Sesc São Paulo. Também foi parte da startup de música 2DL, onde coordenou os setores de curadoria musical e CRM para a daleGig, premiada plataforma digital de gestão e construção de turnês musicais. Há dois anos dedica-se à curadoria e à pesquisa com foco em mercado, comportamento, hábito e identidade musical. Suas últimas pesquisas e artigos sobre mulheres na música foram publicadas pela Revista Zumbido (Selo Sesc). É fundadora do hub criativo Yes, Tupi,

Como diz Lucinha: o tempo passa, a música não.

Em 1980, Lucinha gravou seu primeiro e único disco solo, batizado de Aroma, com uma música homônima composta por Gil especialmente para o álbum.

focado em produção fonográfica, desenvolvimento de artistas, projetos musicais e conteúdo.

MENU


Fotos capa e verso: Pixabay

Sesc Belenzinho Rua Padre Adelino, 1.000 Tel.: (11) 2076-9700 / sescbelenzinho sescsp.org.br/belenzinho


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.