Catalogo mirantes registro2019

Page 1

Stela Barbieri


Corpo mirante Ficar em pé nos possibilita enxergar mais longe. Ao engatinhar, a criança já busca erguer o tronco a fim de mirar o que se passa ao seu redor, girando a cabeça em direção aos mínimos estímulos do entorno, para não perder a chance de percebê-los. A transição à posição vertical, conquistada após longa fase de tentativas e quedas, permite a ela alcançar uma condição inédita: fazer do seu corpo um mirante. Se, desde que começa a engatinhar, o desejo da criança é “ir para a rua”, como afirma o cronista João do Rio, que dirá quando ela passa a caminhar! Um mirante ambulante, é nisso que se transforma o infante recém-firmado sobre suas pernas inquietas. Daí que as primeiras excursões pelas calçadas da cidade, experimentadas na companhia dos mais velhos, se afigurem como ritos de iniciação. Visto a quase um metro de altura do chão, é o mundo que se abre em tal passagem. Um “estado de arte” advém dessa experiência, que propicia descobertas, surpresas e contatos com o imponderável. O que representa para um pequerrucho, por exemplo, avistar um gato saltando do muro para a árvore, no encalço de um passarinho? Tentar dimensionar as impressões geradas por situações como essa corresponde, para os adultos, à procura por recobrar a predisposição infantil de se admirar com aquilo que povoa nossas paisagens e percursos cotidianos. Mirantes combina elementos favoráveis a exercícios dessa natureza, através de construtos imaginados para alavancar múltiplas “mirações”. Voltada às diferentes faixas etárias, a ação sociocultural desenvolvida pelo Sesc procura compreender as particularidades de seus públicos, com o fito de lhes proporcionar momentos significativos de fruição e (auto)formação, o que inclui fomentar a capacidade de cada um de perceber-se como observador e participante ativo da realidade. Sesc São Paulo


Mirantes: existe uma obra de arte para crianças? A pergunta suscitada pela obra Mirantes, de Stela Barbieri, remete ao título do artigo de Michel Tournier (1973): “Existe uma literatura infantil?”. As perguntas ressoam, sendo Stela Barbieri artista plástica e escritora, pois esses dois eixos do seu trabalho têm a potência de acolher, interessar e envolver as crianças. Tournier problematiza a separação da literatura infantil como uma categoria a parte. A literatura infantil não cabe na categoria de livros infantis. Muitas vezes ela é recusada pelas editoras, mais interessadas em livros infantis que seguem um modelo e visam um público padrão, definido por idade, gênero e condições sociais, podendo excluir por completo a criação literária. Em seu artigo, Tournier lembra que os contos de Perrault, as fábulas de La Fontaine, a Alice de Lewis Carroll e as lendas orientais não visavam o público infantil. No entanto, eram livros tão bem escritos, com tanta limpidez e concisão, que qualquer um podia lê-los – até mesmo as crianças. Nesta mesma direção, podemos dizer que Mirantes é uma obra de arte que pode ser fruída e experimentada também por crianças. Ela acolhe, interessa e engaja crianças não porque pode ser tocada ou por um suposto caráter “interativo”. Uma de suas qualidades é o convite à atenção e à experiência com os materiais, criando condições para uma habitação do território que ela configura. Com generosidade, o convite é extensivo à criança investigadora, que conhece com seu corpo multissensorial. A entrada e a experimentação da obra é mais uma questão de atenção do que de “fazeção”. Os mirantes são lugares de ver do alto, ver de cima, ver de longe, ver de través. Para produzir experiências de suspensão e deslocamentos no modo mais banal de se ver, são propostas diferentes passagens: mudanças de escala, de distância, de velocidade e de ponto de vista. A proposição artística envolve a disposição de objetos e materialidades que incitam tais deslocamentos. Cadeiras de balanço e binóculos colocados próximos das janelas são dispositivos que convidam a mirar o exterior de um modo incomum. Cortinas de fitas e de contas embaralham a visão, tocam o rosto e envolvem o corpo dos visitantes. Os deslocamentos da visão convocam um corpo atento.


A miração envolve também o olhar para dentro, olhar para si, uma atenção a si. Esta atenção que se dobra do exterior para o interior surge com os deslocamentos e com a experiência de suspensão, podendo encontrar ideias e imagens, pensamentos e memórias que ativam a invenção. A disposição dos materiais no espaço é cuidadosa e faz parte da proposição desta obra-oficina. Mirantes não é apenas um lugar de brincar. Embora também acolha brincadeiras, não é um espaço do lúdico. Ela busca envolver os visitantes – sejam crianças ou adultos – em processos de criação. Para isso, os materiais são dispostos de modo a criar tensionamentos e condições de investigação e conhecimento. Placas e cabos de madeira, tecidos e almofadas, com suas materialidades singulares, podem se atualizar na criação de pequenos territórios, que poderão ser ocupados pelos corpos, proporcionando uma atmosfera de abrigo e refúgio. A areia, matéria potente, estranha, enigmática e plena de virtualidades, suscita infindáveis experiências e é ocupada pelas mãos, que compõem com mirantes em pequena escala e também com funis, colheres e outros materais de diferentes pesos, texturas e possibilidades. A areia desacelera o tempo com seu encantamento e mistério. Sua magia atrai a atenção, ao mesmo tempo que a atenção se dobra e se volta para si.

capacidade é muitas vezes perdida pelos adultos, cuja atenção é constantemente interrompida pela ação, pelo reconhecimento imediato e pelo apelo à funcionalidade da percepção. Acolher crianças é acompanhar seus processos por meio da atenção conjunta a corpos e materiais, buscando com elas uma sintonia afetiva com abertura para a reciprocidade e para a improvisação. Aqui a atenção conjunta inclui uma cuidadosa gestão do tempo e o desafio de atualizar, a cada vez, o que a obra traz como virtualidade. Neste aspecto, acompanhar processos pode ser mais interessante que desenvolver projetos. Mas nada está garantido. Enfim, as crianças são visitantes imprevisíveis e nunca se sabe como serão suas experiências com a obra de arte. Tournier afirma em seu texto que a força e o valor de uma obra literária residem no fato dela “criar uma necessidade irresistível de ser reescrita, contendo uma espécie de contágio do processo de criação, estimulando a inventividade dos leitores”. Lembrando Montaigne, educar uma criança não é como encher um vaso, é como acender uma fogueira. Com a proposição de Mirantes como uma obra-oficina, Stela Barbieri aposta nesta ideia e experimenta precisamente essa dimensão pedagógica da arte. Virgínia Kastrup

Como trabalhar com crianças que visitam a exposição, individualmente ou em grupos? O que fazer com elas naquela obra-oficina, por uma hora ou por uma manhã ou tarde inteira? Após uma conversa e uma exploração inicial da exposição, pode-se propor a criação de novas atualizações e de diferentes formas à ideia de mirantes, a partir da lida com as materialidades disponíveis. Mirantes podem ser desenhados e em seguida transpostos da condição bidimensional à condição tridimensional, transformando-se em maquetes, em mirantes pequenos e maiores, que podem ser olhados, tocados com as mãos e ocupados com os corpos. Seria um projeto a ser desenvolvido. Todavia, a conversa inicial e proposta do trabalho só poderão ser avaliados com a experimentação corpo a corpo com a obra, acompanhando os processos que daí advém. As crianças são especialmente capazes de uma entrega aos materiais, investigando-os repetidas vezes e buscando conhecê-los em suas múltiplas possibilidades, atentamente, vagarosamente. Tal

Doutora em Psicologia e professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Referência bibliográfica TOURNIER, M. Existe uma literatura infantil?. O Correio da Unesco. Ed. Brasileira. Ano 1, jan. 1973, p.33-34. Nota: Michel Tournier é um escritor francês de renome internacional. Publicou vários ensaios e romances, dentre eles “Sexta-feira ou os limbos do Pacífico”, traduzido para o português, que retoma o tema do livro “Robinson Crusoé”, (1719) de Daniel Defoe.



Mirante Construir um mirante, um lugar de onde se pode ver. Inventar vários mirantes: de pedras, palitos, galhos, aramados e placas. Mirantes faróis, mirantes cavernas, mirantes expostos ao vento, elevados de propósito, desenhados, encontrados prontos. Escavar uma caverna, um buraco, um oco. Ser oco, sentir o oco. Lugar para encaixar o corpo, o tornozelo, só o pé, deixar a cabeça para fora, aquecer, passar calor. Fazer mirantes, se esconder na caverna embaixo da mesa, entre panos, nas caixas de areia. Perceber-se em miração, à deriva para o olhar, conhecer seu próprio modo de estar, em paisagem aberta, olhando o que não foi visto. Mirante de formiga, mirante de elefante, mirante de girafa; mirante para o precipício dentro de si. Stela Barbieri Artista, educadora, autora e Diretora do Bináh Espaço de Arte





SESC – SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL Abram Szajman DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL Danilo Santos de Miranda SUPERINTENDENTES Técnico-social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Giannini Administração Luiz Deoclécio M. Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sérgio José Battistelli GERENTES Artes Visuais e Tecnologia Juliana Braga de Mattos Estudos e Desenvolvimento Marta Colabone Artes Gráficas Hélcio Magalhães Difusão e Promoção Marcos Ribeiro de Carvalho Sesc Registro Debora Rodrigues Teixeira MIRANTES Artista e Curadoria Educativa Stela Barbieri Equipe Sesc Camila Pereira Chagas, Eduardo Mastrodi, Everaldo Zator, Fernando Fialho, João Doescher, Juliana Okuda Campaneli, Karina Musumeci, Ilona Hertel, Leonardo Borges, Ney Martins, Nilva Luz, Ricardo Silvestre, Ruan Carlos, Willy Santos. Produção Executiva Nu Projetos de Arte (Nathalia Ungarelli e Heloisa Leite) Produção de Arte ARTEBR e Bináh Espaço de Arte (Carina Tiyoda, Renata Miyuki, Clara Bernardes Rocca, Flora Pappalardo, Nadia Bosquê e Roselane Maria da Silva Costa) Projeto Gráfico Fernando Vilela Projeto Expográfico Marcus Vinicius Santos Cenografia Cenografia Sustentável Fotografia Fernando Vilela, Nadia Bosquê e Amanajé Fotografia (Rafael Stedile) Vídeo Amanajé Fotografia (Valdir Gonçalves), Estudio B Texto Virginia Kastrupp Confecção de Esculturas Davi Pereira de Oliveira Coordenação do Educativo Ka Gestão em Cultura, Arte e Educação S/C Ltda. (Eri Alves, Bianca Zechinato e Carolina Velazques) Educadoras Fabiane Rodrigues Ribeiro (Coordenadora).


EXPOSIÇÃO de 31 de agosto de 2019 a 9 de fevereiro de 2020. Terça a sexta, 9h às 21h30.

Sábados, domingos e feriados, 10h às 18h30. Espaço Expositivo do Sesc Registro.

Sesc Registro Av. Pref. Jonas Banks Leite, 57 CEP: 11900-000 TEL.: (13) 3828.4950 /sescregistro

sescsp.org.br/registro


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.