ENCONTRO
A
S
S O I D N MERÍ
S O R T N ENCO
AME
DE 31
RÍND
A 13 DE FEVERE DE JULHO DE 2021
IOS
IRO DE 2022
PELES DE IMAGENS DANILO SANTOS DE MIRANDA Diretor Regional do Sesc São Paulo
O mundo proposto pela razão ocidental apresenta trânsitos e cifras jamais concebidos anteriormente. Sob a lógica da exploração produtivista, contudo, a humanidade testemunha crises como o esgotamento de ecossistemas, a saturação da atmosfera por gases de efeito estufa e o aquecimento global; sintomas que, segundo o pensador e ativista indígena Ailton Krenak, apontam para a alienação do ser humano em relação ao organismo do qual faz parte, o planeta Terra. Segundo tal panorama sobrevém a pergunta: esse itinerário — cujo destino se anuncia como abismo — ainda faz sentido? Não podemos abandonar a marcha teimosa e buscar, em outras veredas, meios para reeducar nossa postura? Em certos territórios ao redor do globo ainda se verificam grupos capazes de viver segundo suas próprias cosmogonias. Num ato de resistência distendido por séculos, tais experiências mostram formas distintas de considerar a realidade, em certos casos colocando o ser humano não em oposição à natureza, mas como mais um ser dentre outros, dotados, cada um deles, de humanidade. Para além do estudo antropológico, outra estratégia para se aprender com essas referências consiste em considerar suas manifestações culturais segundo critérios estéticos, não somente como objetos etnográficos. Com essa mudança de enquadramento, essas produções artísticas passam a compor o horizonte da democracia cultural, participando também de seus espaços de circulação.
De acordo com sua premissa de promover a diversidade, o Sesc realiza a exposição Encontros Ameríndios. A mostra se detém na produção de artistas provenientes de cinco povos indígenas. As cosmovisões dos Haida, Tahltan, Guna, Shipibo Konibo e Huni Kuin são postas em diálogo, segundo suas especificidades formais e conceituais. A partir da observação dessas obras, talvez possamos conhecer modos de ser e pensar preciosos para a efetivação de uma consciência cidadã tão rica quanto as práticas artísticas encontradas nos arquipélagos San Blas e Haida Gwaii, nos arredores do rio Stilkine ou na Amazônia brasileira e peruana.
ENCONTROS AMERÍNDIOS ARISTOTELES BARCELOS NETO Curador
As artes indígenas contemporâneas estão em extraordinária expansão e renovação por todo o continente americano. Esta exposição é o encontro das artes de cinco povos indígenas das Américas: Guna (Arquipélago de San Blas, Panamá), Haida (Arquipélago de Haida Gwaii, Colúmbia Britânica, Canadá), Huni Kuin (Acre, Amazônia Ocidental, Brasil), Shipibo-Konibo (Lima e Amazônia Peruana) e Tahltan (Telegraph Creek e Vancouver, Colúmbia Britânica, Canadá). Encontros são meios para forjar relações de entendimento, troca, aliança e amizade. A ideia de encontro de alteridades é fundante dos mundos sociocosmológicos ameríndios. Encontros interculturais e intercomunitários são amplamente valorizados pelos índios tanto da Amazônia quanto da Colúmbia Britânica que, com seus famosos Potlatch, se reúnem para celebrar sua ancestralidade e riqueza cultural e material. Os artistas reunidos nesta exposição são os protagonistas de novas possibilidades dialógicas entre as estéticas, técnicas artísticas e criatividades ameríndias. Fortemente inspirados por conhecimentos ancestrais, esses artistas produzem visualidades singulares sobre relações cosmológicas, ecológicas e mitológicas. Embora os povos indígenas acima mencionados tenham origem em diferentes regiões do continente americano e produzam estilos artísticos muito diversos entre si, eles compartilham semelhantes experiências históricas de dominação e opressão colonial, e também de resistência comunitária e étnica.
O que hoje se considera obra de arte indígena foi outrora considerado objeto etnográfico ou simplesmente artesanato. Essa mudança sobre o reconhecimento e valorização das produções artísticas indígenas nas últimas décadas permitiu expandir uma extraordinária energia criativa e, na sua sequência, conquistar novos públicos e espaços. Tal energia criativa tem proporcionado uma importante renovação do panorama das artes globais. Esse fenômeno tem ocorrido de maneira muito expressiva na Oceania e na América do Norte. Na América do Sul, por sua vez, inicia-se, a partir da década de 1990, um reconhecimento, lento e gradual, de pintores indígenas como criadores de um campo específico de produção de obras de arte, marcado por traduções visuais a partir de apropriações competentes de materiais e processos técnicos não indígenas. Esse campo de produção artística se expressa por meio de estilos e temas que são reconhecidos como sendo propriamente indígenas por colecionadores, acadêmicos, curadores e artistas indígenas e não indígenas. Entre esses temas, há um que destacamos nesta exposição: a representação das transformações. Mais que simplesmente um tema, a representação das transformações é uma das principais questões filosóficas das artes indígenas ameríndias, que se expressa a partir da aplicação de motivos geométricos e figurativos na superfície de corpos e coisas, como podemos ver, por exemplo, nas obras de Olinda Silvano, Wilma Maynas, silvia Ricopa, Ronin Koshi Arias Inuma e Dora Inuma Ramírez, Gwaai e Jaalen Edenshaw, Alano Edzerza, Briseida Iglesias, Flor Fernández e do coletivo MAHKU.
DIVERSIDADE E PROTAGONISMO SYLVIA CAIUBY NOVAES Coordenadora
É uma enorme satisfação ver inaugurada a exposição Encontros Ameríndios, que eu havia idealizado em 2015 e só agora, com o apoio do Sesc, pode ser realizada. Em 2015, eu era diretora do Centro Universitário Maria Antonia, um centro de arte e cultura da Universidade de São Paulo. Como antropóloga, um de meus objetivos como diretora era levar ao público que frequenta o Maria Antonia a arte dos povos ameríndios, ainda pouco conhecida pelo público mais amplo. A arte dos povos não ocidentais foi, ao longo de nossa história, diferentemente apreendida e apreciada. Nas duas primeiras décadas do século XX, as vanguardas artísticas europeias começam a se interessar pela cultura de povos não ocidentais, principalmente na África e na Oceania, mas também nas Américas que, como num jogo de espelhos, poderia fazer a crítica do Ocidente no período entreguerras. É nessas sociedades que artistas europeus buscam novas fontes para a renovação de sua própria arte. Animados com esculturas, objetos e artefatos, levados aos museus etnográficos recém-inaugurados na Europa, os artistas encantavam-se com a expressividade no tratamento das formas da arte não europeia, até então muito marcada pelo naturalismo e o realismo. Fovistas, cubistas, surrealistas, dadaístas apropriam-se de temas e características da arte desses povos em seu proveito. Por outro lado, é no final do século XX que as pesquisas etnográficas são apropriadas por artistas ocidentais que, em seus trabalhos, passam a incorporar uma nova alteridade. No século XXI, o que vemos no Brasil é a entrada em cena dos próprios artistas ameríndios nos vários campos de
expressão estética: são exímios cineastas, vários se destacam na fotografia, muitos são os artistas indígenas dedicados às artes plásticas, muitos são escultores, ceramistas, há também escritores com destaque na literatura. O que suas obras demonstram é a capacidade de resiliência desses povos indígenas. Sua arte é também resultado dessa tenacidade para superar as inúmeras opressões do processo histórico de esbulho e tentativas de dominação que sofreram ao longo da história – e ainda sofrem –, sua capacidade de superar adversidades, sua autodeterminação. É uma arte que evidencia liberdade com processos de tradição e renovação, em que cantos, sonhos, mitos, imagens e visões têm um papel fundamental, uma arte em que o domínio de técnicas visuais e materiais é, em certo sentido, o domínio do tempo e da história. Nas sociedades ameríndias, a troca está sempre presente de modo muito evidente. Nosso objetivo com esta exposição foi o de reunir obras de artistas contemporâneos das três Américas, muito diversos entre si, mas que têm sua história marcada por esse processo de dominação colonial. Aproximálos para o encontro presencial e a troca ampliada era nosso objetivo. A pandemia atravessou nossos desejos e impôs a impossibilidade da presença desses artistas na exposição. A despeito dessas dificuldades, as obras desses artistas indígenas contemporâneos presentes nestes Encontros ameríndios demonstram que a dimensão estética é uma clara evidência de sua rica diversidade cultural. Esta exposição procura igualmente anunciar quanto os povos ameríndios são hoje protagonistas de sua própria história, mesmo num contexto social e político que insiste em usurpar seus direitos.
N A T L H TA
Alano Edzerza foto: cortesia Stonington Gallery
Tahltan
13
CANADÁ
OS TAHLTAN E SUA HISTÓRIA ARISTOTELES BARCELOS NETO Os Tahltan são uma Primeira Nação Indígena (“First Nation”)
Curador
do Canadá. Seu território situa-se, desde tempos imemoriais, ao redor do rio Stikine, no noroeste da Colúmbia Britânica. Seu território oficialmente demarcado abrange uma área de 93.500 km², ou seja, ligeiramente maior que Portugal. No início do século XX, a população tahltan foi devastada por epidemias de varíola, sarampo, gripe e tuberculose; doenças introduzidas por exploradores europeus contra as quais os Tahltan não tinham imunidade. Em consequência disso, a população tahltan chegou a menos de trezentas pessoas. Essa acentuada queda demográfica, juntamente com a aplicação de políticas anti-indígenas pelo Estado canadense, forçou o povo Tahltan a abandonar suas aldeias históricas e a se mudar para o médio rio Stikine. Um século antes, a descoberta de ouro no território de Yukon, ao norte da Colúmbia Britânica, já tinha causado alterações dramáticas na dinâmica territorial tahltan. No início do século XIX, mais de 5 mil garimpeiros chegaram a viver no território tahltan, usando suas aldeias como pontos estratégicos para acesso às minas de ouro em Yukon. Como ocorre com muitos outros povos indígenas das Américas, o relacionamento entre os Tahltan e a terra é marcado por seu profundo respeito por ela como provedora da vida. Por essa razão, os Tahltan têm uma forte convicção de seu papel como guardiães da terra, da qual buscam seu sustento tanto material quanto espiritual. A governança política tradicional tahltan está organizada em torno do sistema da família/clã, no caso, dividido em dois clãs: o do Corvo (Tsesk’iya) e o do Lobo (Ch’ioyone). Cada clã se subdivide em vários grupos familiares. Os mitos sobre o Corvo ancestral continuam a guiar o povo Tahltan sobre a melhor maneira de
Localização do território do povo Tahltan na América do Norte.
14
Tahltan
CANADÁ
conduzir a vida, orientando princípios de autodeterminação, generosidade e cuidado comunitário. Todas as decisões que os afetam são tomadas por meio de reuniões e conselhos, e todos os Tahltan têm a liberdade de expressar suas opiniões e preocupações. Desde tempos imemoriais, esse sistema fornece a base da organização política e legal tahltan. O sistema clânico tahltan é matrilinear, o que significa que heranças e direitos são transmitidos através da linha materna. Apesar das imposições políticas, econômicas e jurídicas do Estado canadense, o sistema matrilinear e a estrutura tradicional de governança do povo Tahltan mantêm-se ativos até os dias de hoje.
Alano Edzerza foto: cortesia Edzerza Gallery
Tahltan
15
CANADÁ
ALANO EDZERZA Nascido em 1981, Alano Edzerza pertence ao clã do Corvo da Nação Tahltan. Artista multimídia, sediado em West Vancouver, Colúmbia Britânica, ele é um dos protagonistas
CRISTIANE FERRARI Sesc São Paulo
da cena artística contemporânea da costa noroeste. Proprietário e diretor da Edzerza Gallery, Edzerza Sports
SARA CENTOFANTE
e Edzerza Artworks, administra seu próprio negócio desde
Sesc São Paulo
2007. O artista colabora com as organizações juvenis KAYA (Associação de Jovens Aborígenes), Escola Freies Design de Arte Nativa da Costa Noroeste e a NYAC (Coletivo de Artes da Juventude Nativa). Recebeu da Victoria School Board seu primeiro prêmio de escultura, aos treze anos de idade, e, em 2009, recebeu o prêmio empreendedor do ano. Alano é autodidata e aprendeu muito do que sabe a partir da observação. Pesquisou em vídeos na internet trabalhos inspiradores de outros artistas escultores e desenvolveu sua arte a partir da junção de técnicas mais tradicionais mescladas à arte urbana e ao design. Em suas obras, Alano capta o movimento e as particularidades de animais que são símbolos sagrados para seu povo, como, por exemplo, a águia, o urso, o salmão, o sapo, entre outros. Com sua criatividade inquieta e seu olhar, Alano desenvolve um trabalho artístico bastante contemporâneo. Ao congelar em seus grafismos o movimento de uma águia passando pelo olhar do espectador, o artista apresenta uma visão bastante peculiar sobre esse animal sagrado, unindo a forma estática tradicional ao movimento energizante do mundo contemporâneo. Alano também se inspira nas cores e em materiais diversos, como um cobertor, por exemplo, para pensar nos traços e formas presentes em seu trabalho. Uma máscara étnica característica dos povos tradicionais da Colúmbia Britânica ganha um tom metálico e bastante moderno ao receber cores em tons de azul, roxo, lilás; um cobertor velho com suas marcas de uso inspira traços e
16
Tahltan
CANADÁ
linhas em uma imagem de uma águia em vermelho e preto. A obra artística de Alano certamente traz muita criatividade e uma renovação naquilo que se entende como arte indígena. O mundo urbano no qual vive está presente em cada trabalho desse artista que se deixa ser atingido pelos elementos que o cercam. Aqui, tradição e renovação não estão em paralelo, mas sim em relação e trânsito.
Tahltan
CANADÁ
ALANO EDZERZA, VANCOUVER / CANADÁ
HUMMINGBIRD, 2007 (Beija-flor) Impressão sobre papel, 30 × 61 cm
17
18
Tahltan
CANADÁ
ALANO EDZERZA, VANCOUVER / CANADÁ
SMOKE HOLE, 2007 (Buraco de fumaça) Impressão sobre papel, 51 × 36 cm
Tahltan
ALANO EDZERZA, VANCOUVER / CANADÁ
MOVING FORWARD, 2008 (Avançando) Impressão sobre papel, 51 × 51 cm
CANADÁ
19
20
Tahltan
CANADÁ
ALANO EDZERZA, VANCOUVER / CANADÁ
MAKING WAVES, 2010 (Fazendo ondas) Impressão sobre papel, 76 × 110 cm
ALANO EDZERZA, VANCOUVER / CANADÁ
WISE FROG, 2008 (Sapo sábio) Impressão sobre papel, 46 × 47 cm
Tahltan
ALANO EDZERZA, VANCOUVER / CANADÁ
IN OR OUT, 2010 (Dentro ou fora) Impressão sobre papel, 55 × 55 cm
CANADÁ
23
24
Tahltan
ALANO EDZERZA, VANCOUVER / CANADÁ
ALPHA CHEONA, 2008 Impressão sobre papel, 47 × 66 cm
CANADÁ
Tahltan
CANADÁ
25
26 NOME OBRA, ANO
ALANO EDZERZA, ONDE VIVE
Técnica, dimensões
Tahltan
CANADÁ
Tahltan
CANADÁ
ALANO EDZERZA, VANCOUVER / CANADÁ
HUNTING, 2012 (Caçando) Impressão sobre papel, 69 × 112 cm
27
HAID
A
Gwaai Edenshaw e Jaalen Edenshaw foto: Mike Peckett
HAIDA
31
CANADÁ
OS HAIDA E SUA HISTÓRIA Os Haida são um povo indígena originário (Primeira Nação), que vive na costa norte da Colúmbia Britânica (Canadá) e na costa sul do Alasca (Estados Unidos). Os Haida do Alasca
ARISTOTELES BARCELOS NETO Curador
são chamados de Kaigani. O território ancestral dos Haida compreende o arquipélago de Haida Gwaii, na Colúmbia Britânica, onde eles vivem permanentemente há pelo menos 6 mil anos. A população haida é de aproximadamente 4500 pessoas, 3500 das quais vivem no Canadá. As epidemias trazidas pela invasão europeia da costa noroeste da América do Norte, a partir de meados do século XVIII, causaram grandes perdas populacionais entre os povos indígenas. Contabilizados em dezenas de milhares de pessoas no início do século XIX, a população haida foi reduzida a apenas 588 pessoas em 1915. Os Haida, assim como muitos outros povos ameríndios, foram tragicamente afetados pelo sistema colonial europeu. Na década de 1870, o governo canadense criou o sistema de escolas residenciais, que retirou milhares de crianças indígenas da custódia de seus pais, e, em 1885, as cerimônias religiosas indígenas foram banidas por lei. Milhares de objetos sagrados foram confiscados pelo Estado canadense ou foram comprados por colecionadores em transações desfavoráveis aos Haida. Apesar dos efeitos devastadores que essas políticas de assimilação forçada tiveram sobre os Haida e demais Primeiras Nações, o espírito de resistência prevaleceu e, a partir da década de 1950, iniciou-se um reavivamento das culturas indígenas da Colúmbia Britânica, tendo no artista haida Bill Reid um de seus principais personagens. Os artistas das Primeiras Nações tiveram, e continuam tendo, um papel fundamental para manter ativo esse espírito de resistência e também para se juntar às demais vozes que demandavam reconhecimento oficial e reparações pelos impactos destrutivos do colonialismo. A persistente
Localização do território do povo Haida na América do Norte
32
Haida
CANADÁ
luta por justiça culminou na criação da Comissão para a Verdade e Reconciliação, que trabalhou de 2008 e 2015. A Comissão determinou que o sistema de escolas residenciais, criado pelo Estado canadense e administrado por diversas denominações cristãs, equivaleu a um genocídio cultural. Os Haida estão hoje organizados politicamente pelo Conselho da Nação Haida. Criado em 1973, o Conselho tem como uma de suas principais atribuições o cuidado e manejo dos recursos e patrimônios naturais do território haida. Já o Centro para o Patrimônio Haida atua, juntamente com o Museu Haida Gwaii, criado em 1976, na proteção, promoção, ensino e difusão das artes e cultura haida, e trabalha ativamente, com vários parceiros, para o estabelecimento de políticas efetivas de repatriação de seus objetos sagrados e dos restos mortais de seus ancestrais.
Detalhe de gravação da obra “Child of the Great Box” foto: Mike Peckett
Haida
33
CANADÁ
A GRANDE CAIXA HAIDA (cerca de 1870 e 2013) Filha da grande caixa, obra dos irmãos Gwaai e Jaalen Edenshaw, é uma réplica da caixa original, levada do arquipélago Haida Gwaii, no fim do século XIX, para o Museu
ARISTOTELES BARCELOS NETO Curador
Pitt Rivers, da Universidade de Oxford. Considerada uma obra-prima da arte haida e importante fonte de inspiração para novas gerações de artistas haida, a Caixa jamais retornou ao seu local de origem. Leis britânicas impedem seu repatriamento ao povo Haida. A produção de sua réplica foi, portanto, a solução encontrada nas negociações entre o Museu Pitt Rivers e os Haida. Os desenhos entalhados representam o rosto do Chefe do Mundo Submarino (Konankada) e, logo abaixo dele, a Mulher Camundongo (Kuugin Jaad). Filha da grande caixa é um objeto de suma importância nas Potlatch, cerimônias que as Primeiras Nações realizam para a redistribuição de riquezas e de direitos sobre territórios de caça e pesca, a confirmação do status social, a transmissão de nomes e a demonstração ritualizada de generosidade e prestígio.
foto: Mike Peckett
GWAAI EDENSHAW E JAALEN EDENSHAW, ST. MASSET / HAIDA GWAII / CANADÁ
CHILD OF THE GREAT BOX, 2014
(Filha da grande caixa) Escultura em madeira, 69 × 122 × 76 cm
Detalhe de gravação da obra “Child of the Great Box” foto: Mike Peckett
A N U G
Edita López Morales foto: Marina Herrero
guna
39
Panamá e colômbia
QUEM SOMOS NÓS? “Somos Dule, somos Guna, Olodule e Gungidule” são
ATILIO MARTÍNEZ
designações dos Guna. Sabemos que somos Guna, porque
Historiador do povo Guna, do Panamá
viemos da planície. No tempo dos espanhóis, perguntavam aos nossos avós: “Quem és? De onde vens?” Com muito orgulho, os Guna respondiam: “An gunadola” (“sou homem de planície, venho da planície”).
DE ONDE VIEMOS? Nossos antepassados nos cantam que “somos um povo que vem dos sopés das montanhas colombianas, explicitamente pelas planícies regadas pelo Amuggadiwar” (atualmente rio Atrato, no Departamento Chocó, Colômbia). Nessas planícies, nossos avôs e nossas avós deixaram seus primeiros vestígios. Portanto, “não somos desta pequena ilha. Somos de grandes rios… Forças inimigas nos oprimiram e nos levaram a migrar. Nossas terras estão lá, detrás das fronteiras”, diz Horacio Méndez, guia espiritual de Gunayala. Pelas planícies do rio Atrato viemos caminhando, padecendo de doenças, tecendo histórias, amando a Mãe Terra, atravessando os grandes rios. Seguimos caminhando, cantando e construindo nossa história; praticando os ensinamentos de Ibeorgun, que foi o primeiro profeta guna, e consolidando a solidariedade. Em certo momento, nós nos dispersamos, alguns se foram para outras montanhas, outros saíram em direção à costa do mar do Caribe. E muitos ficaram no arquipélago que hoje se denomina Gunayala.
Localização do território do povo Guna na América do Sul e Central
40
guna
Panamá e colômbia
A MOLA ATILIO MARTÍNEZ Historiador do povo Guna, do Panamá
Nossas avós usavam a mola como bata até o joelho. Era uma peça de algodão, nas cores azul e branca, a parte superior mais larga e a inferior mais estreita, com desenhos geométricos de linhas quebradas, sinuosas, em espiral, paralelas e mistas. As avós guna nomeavam-nas de acordo com o desenho, como aramola (penas de maritaca), dabumola, disggemola, abgimola, ubsanmola. São molas que se referem ao tempo em que se utilizavam as penas de diversas aves. Atualmente, em algumas comunidades guna ainda se conservam as molas antigas, tais como goleigamola, yanbinamola, gwimola, suemola, aidimola, usyoggormola e outras. Contam os antigos que Nele Olonagegiryai encontrou, em Galu Dugbis e em sabbimolanarmaggaled galu, as árvores pintadas em cores vibrantes, seus galhos, suas folhas desenhados com finas figuras coloridas. Cada vez que chegava a esse lugar sagrado, ela aprendia novos desenhos da mola. Logo aplicou a pintura corporal, desenhando nos corpos das mulheres jovens. Nossas avós extraíam cores de urucum, de jenipapo e de outras substâncias das árvores. E, ainda, “nana” Giggadiryai utilizou caroços de abacate, o abgi, o gobirgwa e raízes dos mangues para tingir os tecidos e dar cores às suas roupas e às suas redes.
guna
LEA AMELTA TEJADA, ILHA NURDUB / KUNA YALA / PANAMÁ
NAASIS MOLA, 2018 (Maracas) Mola — aplique reverso, 28 × 38 cm, blusa
Panamá e colômbia
41
42
guna
BRISEIDA IGLESIAS, COMARCA DE KUNA YALA / PANAMÁ
AMMANOO MOLA, 1985 (Rãs) Mola — aplique reverso, 35 × 46 cm
Panamá e colômbia
guna
Panamá e colômbia
43
Verso da obra
44
guna
ROSALIA TEJADA, ILHA NURDUB / KUNA YALA / PANAMÁ
NAASIS MOLA, 2014 (Maracas) Mola — aplique reverso, 24 × 35 cm
Panamá e colômbia
guna
45
Panamá e colômbia
BRISEIDA IGLESIAS, COMARCA DE KUNA YALA / PANAMÁ
SABBI ANA MOLA, 2008 (Rama das Árvores) Mola — aplique reverso, 34 × 44 cm
46
guna
Panamá e colômbia
BUNA BIPI, ILHA GARDI SUGDUB / KUNA YALA / PANAMÁ
AGGEBANDUR MOLA, 2020
(Planta Medicinal)
Mola — aplique reverso, 36 × 44 cm
BRISEIDA IGLESIAS, COMARCA DE KUNA YALA / PANAMÁ
USGWIN MOLA, 2003 (Esquilos) Mola — aplique reverso, 30 × 49 cm
guna
LONILDA GONZALEZ, ILHA NALUNEGA / SAN BLAS / PANAMÁ
NAGBE MOLA, 2019 (Cobra)
Mola — aplique reverso, 62 × 42 cm
Panamá e colômbia
47
48
guna
EDITA LOPEZ, ILHA GARDI SUGDUB / KUNA YALA / PANAMÁ
MANGO MOLA, 2015 (Manga) Mola — aplique reverso, 33 × 43 cm
Panamá e colômbia
guna
LEA AMELTA TEJADA, ILHA NURDUB / KUNA YALA / PANAMÁ
NISGWA MOLA, 2018 (A Estrela) Mola — aplique reverso, 34 × 43 cm
GILDA TEJADA, ILHA NURDUB / KUNA YALA / PANAMÁ
AGGWA BISGI MOLA, 2016 (Coral) Mola — aplique reverso, 34 × 44 cm
Panamá e colômbia
49
50
guna
EDITA LOPEZ, ILHA GARDI SUGDUB / KUNA YALA / PANAMÁ
NII MOLA, 2014 (A Lua) Mola — aplique reverso, 34 × 44 cm
Panamá e colômbia
guna
51
Panamá e colômbia
DILMA GARDEL, CIDADE DO PANAMÁ
NAGGULEQED MOLA, 2019 (A Cruz) Mola — aplique reverso, 32 × 45 cm
Verso da obra
52
guna
Panamá e colômbia
LUCRECIA PLACES, ILHA GARDI DUBBIR / KUNA YALA / PANAMÁ
SEGAR MOLA, 2015 (Rótulo da caixa de fósforos Gavillan) Mola — aplique reverso, 32 × 53 cm
guna
Panamá e colômbia
53
ANGELMIRA OWENS PEREZ, ILHA NALUNEGA / SAN BLAS / PANAMÁ
SIGGUI MOLA, 2019 (A Flecha) Mola — aplique reverso, 30 × 40 cm
54
LONILDA GONZALEZ, ILHA NALUNEGA / SAN BLAS / PANAMÁ
SUGGUI MOLA, 2019 (A Flecha) Mola — aplique reverso, 32 × 40 cm, blusa
guna
Panamá e colômbia
guna
55
Panamá e colômbia
ANGELMIRA OWENS PEREZ, ILHA NALUNEGA / SAN BLAS / PANAMÁ
GWALU MOLA, 2019 (Lâmpada) Mola — aplique reverso, 27 × 37 cm
O B I N O K SHIPIBO
Silvia Ricopa foto: El Ambulante Audiovisual
Shipibo-Konibo
59
PERU
OS SHIPIBO-KONIBO DA AMAZÔNIA PERUANA Os Shipibo-Konibo são uma das etnias indígenas mais
VINÍCIUS DINO
populosas da Amazônia Peruana, com cerca de 30 mil
Antropólogo e doutorando em história da arte na University of East Anglia
pessoas. São um povo ribeirinho que habita sobretudo as margens do rio Ucayali, um importante afluente do Amazonas. Vivem distribuídos em mais de 150 aldeias de diferentes escalas, que podem reunir desde algumas famílias até 2 mil habitantes. Além disso, vêm se fazendo cada vez mais presentes em ambientes urbanos, contando com comunidades em cidades como Pucallpa e Lima, a capital do Peru. Seus meios de vida são principalmente a pesca e a agricultura, mas também praticam a caça, a coleta e atividades econômicas dirigidas ao mercado, como a venda de artesanato. Sua formação atual é resultado da fusão, por meio de migrações e casamentos, de diferentes povos anteriormente separados: os Shipibo, os Konibo e os Xetebo. Os Shipibo-Konibo são parte da mesma família linguística de outros povos ameríndios situados nos estados brasileiros do Acre e Amazonas, como os Huni Kuin e os Marubo. Essas etnias possuem muitas semelhanças culturais entre si, principalmente em suas línguas e cosmologias. Apesar disso, também apresentam especificidades que as diferenciam entre si. Um dos aspectos centrais da cultura dos Shipibo-Konibo é seu xamanismo sofisticado, marcado pelo uso medicinal de uma extensa variedade de plantas, entre as quais se destacam o cipó da ayahuasca, o tabaco e o toé. Nessa cultura, a busca do bem-viver passa por curar-se com a ajuda desses vegetais e de seus espíritos, que têm o poder de afastar doenças e outros perigos. Esses poderes das plantas são controlados especialmente pelos xamãs e médicos tradicionais, especialistas que conseguem se comunicar com os mundos sobrenaturais, que normalmente são invisíveis à maioria das pessoas.
Localização do território do povo Shipibo-Konibo na América do Sul
60
Shipibo-Konibo
PERU
Ao longo de sua história, os Shipibo-Konibo estiveram em intenso contato com diversos outros povos, amazônicos, andinos e europeus. No período pré-colonial, realizaram importantes trocas e empréstimos culturais com os Incas, que até hoje são figuras centrais em sua mitologia. Durante o processo de invasão e colonização do continente americano pelos europeus, tiveram que resistir a aldeamentos forçados conduzidos por missionários cristãos (católicos e evangélicos) e à destruição causada pela indústria da borracha na Amazônia ocidental. Com alguns de seus vizinhos da região do Ucayali, compartilham não só a prática do xamanismo da ayahuasca e de outras plantas, mas também uma tradição de arte gráfica que está entre as mais significativas da região amazônica. Nas últimas três décadas, intensificou-se um fluxo migratório que levou milhares de homens e mulheres shipibo-konibo a se transferirem para Lima, onde construíram a comunidade de Cantagallo. A partir dela, os Shipibo-Konibo habitam a metrópole, estabelecendo diversas relações e diálogos com o mundo citadino. Povoado de artistas que produzem obras abstratas e figurativas, pinturas murais e sobre tela, padrões geométricos que cobrem tecidos bordados e pulseiras, o Cantagallo é hoje um espaço de grande efervescência cultural. Nesse cenário, as artes visuais ocupam posição central: constituem, acima de tudo, um potente meio de comunicação entre os Shipibo-Konibo e a sociedade não indígena.
Shipibo-Konibo
61
PERU
KENÉ, OS DESENHOS GEOMÉTRICOS SHIPIBO-KONIBO No conjunto das expressões artísticas dos Shipibo-Konibo,
VINÍCIUS DINO
toma destaque sua tradição de desenhos formados
Antropólogo e doutorando em história da arte na University of East Anglia
por complexos padrões geométricos. Esses grafismos abstratos, chamados de kené, atualmente se desenham principalmente sobre as superfícies de cerâmicas e tecidos, mas, nos tempos antigos, apareciam com frequência também na forma de pintura corporal. Sua função é bem mais que decorativa: os desenhos kené, e a experiência visual proporcionada por eles, possuem especial importância cosmológica. Além de captarem o olhar e a atenção de quem os observa, bordados sobre roupas e tecidos ou pintados sobre vasos de cerâmica, os caminhos labirínticos do kené também apontam para outras imagens e visões. Eles são concebidos pelos Shipibo-Konibo em associação com dois outros seres amazônicos de grande poder: a anaconda e a ayahuasca. Assim como a onça-pintada em outras partes da Amazônia, a anaconda é associada às artes gráficas, por conta de sua pele estampada: seu próprio corpo já se encontra coberto de desenhos. Também a ayahuasca proporciona experiências visuais próximas aos grafismos kené: os xamãs contam que, durante as visões provocadas pelo chá da planta, as imagens e espíritos vêm acompanhados de padrões geométricos mais abstratos. Assim, esses desenhos podem assumir também uma forma intangível, ao aparecerem nas visões sobrenaturais dadas pela ayahuasca. Se essas visões de desenhos são dadas a xamãs que, em sua maioria, são homens, a feitura do kené material, desenhado
62
Shipibo-Konibo
PERU
por mãos humanas, é uma atividade protagonizada pelas mulheres. De acordo com a tradição dos Shipibo-Konibo, o kené é, por excelência, uma arte feminina. Os conhecimentos técnicos e estéticos necessários à sua feitura são transmitidos entre parentes, de mãe para filha, de avó para neta, de tia para sobrinha. Quando jovens, muitas meninas também têm a ajuda das plantas para se tornarem boas desenhistas: suas mães ou avós aplicam em seus olhos, como colírio, uma erva chamada piripiri, que tem o poder de povoar seu pensamento com desenhos. Assim como os olhos dos homens podem ser curados para que eles enxerguem bem durante a pesca, os olhos das mulheres são curados para que elas possam ver, pintar e tecer grafismos. As artistas do kené pensam em seus desenhos acordadas, mas também dormindo: à noite, os padrões geométricos aparecem para elas em sonho. Alguns dos principais suportes dessa rede labiríntica são os bordados. Com uma proposta inventiva, que revela a vitalidade e o poder de transformação da arte dos Shipibo-Konibo, Olinda Silvano, Wilma Maynas, Silvia Ricopa, Ronin Koshi Arias Inuma e Dora Inuma Ramírez transpõem para esses tecidos os padrões gráficos do kené. Com isso, também expandem o próprio poder de captura desses sedutores grafismos, que agora passam a atrair cada vez mais olhares, incluindo os de museus, galerias e instituições de arte. No enredamento de seus vértices, fractais, cruzes e linhas, a complexa geometria do kené ganha agora mais esses espaços; através desses bordados, aumenta-se significativamente sua visibilidade, alternando as lentes com que a vemos e convidando nossos olhos a percorrer as linhas dessa intrincada trama.
Olinda Silvano foto: El Ambulante Audiovisual
64
Shipibo-Konibo
PERU
WILMA MAYNAS INUMA, LIMA / PERU
BENXOTI, 2019 (“Cura” Desenho milenar. Antigamente as mães curadoras saravam com plantas medicinais puras, por meio de visões) Bordado — 139 × 150 cm
DORA INUMA RAMÍREZ, LIMA / PERU
KOSHI KENÉ, 2017 (“O poder do Kené” – Pela visão da ayahuasca você vê os animais e as plantas com flores, e segue caminhando e cantando) Bordado — 143 × 138 cm
Shipibo-Konibo
SILVIA RICOPA, LIMA / PERU
CHOSKO KENÉ, 2017
(“Quatro desenhos do Kené do amor”- Este trabalho representa o amor e o sapo traz sorte) Bordado — 147 × 191 cm
RONIN KOSHI ARIAS SILVANO, LIMA / PERU
BEYOSAMA KENÉ, 2020
(“Desenho Himpnotizador”- Yacumama tem muito poder, é a mãe da água, da terra e dos peixes. Puxa e hipnotiza com seu desenho. Brilha forte. Sem Anaconda, seca-se o rio) Bordado — 153 × 146 cm
PERU
65
66
Shipibo-Konibo
OLINDA SILVANO INUMA, LIMA / PERU
JAKON NETE, 2019 (“O mundo maravilhoso” – a visão da ayahuasca primeiro passa por uma luta difícil. Depois enxerga-se muito amarelo brilhante com amor, livre de preocupação, desfrutando, gozando, sentindo-se são, livrando-se do mal) Bordado — 152×129 cm
PERU
Detalhes da obra “Jakon Nete” foto: Everton Ballardin
Detalhes da obra “Beyosama Kené” foto: Everton Ballardin
Detalhes da obra “Benxoti” foto: Everton Ballardin
Detalhes da obra “Koshi Kené” foto: Everton Ballardin
Detalhes da obra “Shosko Kené” foto: Everton Ballardin
Detalhes da obra “Benxoti” foto: Everton Ballardin
N I U K I N HU
Coletivo Mahku foto: Maurício Azzolini
Huni Kuin
77
Brasil
O ESPÍRITO DA FLORESTA: MÚSICA DO NIXI PAE “1”
IBÃ HUNI KUIN Coletivo MAHKU
Os Huni Kuin são um povo da floresta amazônica de aproximadamente 12 mil pessoas, que moram de ambos
ELS LAGROU
os lados da fronteira entre o Peru e o Brasil. No Acre, os
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Huni Kuin habitam as margens dos rios Purus, Jordão, Tarauacá, Envira, Muru e Humaitá. Os artistas do MAHKU – Movimento dos artistas Huni Kuin, vêm do rio Jordão. Diferentemente de parte de seus parentes que, depois de conflitos, fugiram para as cabeceiras dos rios Curanja e Purus, no Peru, no início do século XX, os Huni Kuin do rio Jordão ficaram no Brasil, onde trabalhavam na seringa. Esse trabalho os forçou a deixar suas aldeias para morar em colocações perto das seringueiras, a serem cortadas diariamente. O trabalho para o patrão e a distância que separava as famílias dificultavam a organização das festas tradicionais e a transmissão da língua, das artes, dos conhecimentos rituais. Essa situação mudou com a demarcação das terras e a expulsão dos patrões da borracha nos anos 1970, e com a organização de cooperativas para o fortalecimento de uma economia independente. É nesses tempos, em que os direitos já tinham sido reconquistados, que uma nova geração de professores huni kuin, como Ibã Sales e Joaquim Maná, começou o trabalho de resgate da cultura e da língua, em estreito diálogo com os parentes do Peru e do Purus. O pai de Ibã era um seringueiro huni kuin que nunca esqueceu os conhecimentos dos antigos nem deixou de praticar seus rituais de nixi pae. É com seu pai que Ibã começará a aprender os cantos, expandindo sua pesquisa,
Localização do território do povo Huni Kuin na América do Sul
78
Huni Kuin
Brasil
posteriormente, para outros especialistas: Miguel Macário Iskenti, Agostinho Manduca Muru e João Pereiro, seu avô. Hoje em dia, os Huni Kuin ocupam um lugar de destaque na visibilização e divulgação nacional e internacional da vitalidade e força dos povos da floresta, de sua língua, seus cantos, sua cultura, suas imagens. “2” “Nossa sabedoria, nosso espírito é do espírito da floresta; a gente tem espírito da floresta traduzido pelo nixi pae; é tudo vivo, tudo fica olhando, tudo escutando”1, explica Ibã, coordenador do MAHKU, do rio Jordão, e renomado pesquisador dos cantos do nixi pae. O nixi pae, ou cipó, é uma poderosa bebida visionária, feita da cocção do cipó com a folha chacrona, chamada kawa. A bebida é conhecida há tempos imemoriais por um grande número de povos indígenas da região do noroeste amazônico, onde, sob o nome de yagé ou ayahuasca, conecta extensas redes de xamãs de povos amazônicos aos xamãs das terras altas nos Andes. É na revelação das conexões invisíveis a olho nu que reside sua agência cosmopolítica. Ibã desenvolve pesquisa sobre os cantos de nixi pae desde os anos 1980. A pesquisa começou na Comissão Pró-Índio do Acre, quando gravou e pesquisou os cantos com seu pai e outros conhecedores antigos e publicou o livro Nixi pae: O espírito da floresta (2006). A partir de 2006, Ibã começou a traduzir as palavras dos cantos em imagens, numa pesquisa colaborativa com seu filho Bane Sales, o primeiro pintor, seus alunos e sobrinhos, e Amilton Mattos, na escola indígena e no campus da floresta da Universidade 1. Ibã Huni Kuin e Amilton Pelegrino de Mattos. “Por que canta o MAHKU?”. Gis, São Paulo, vol. 2, nº 1, 2017, p. 74.
Federal do Acre. Nas palavras de Ibã: “Não é tradução, eu estou botando no sentido para os estudantes e meu povo sentir e acompanhar esses desenhos”. Cada imagem na
Huni Kuin
Brasil
79
tela se refere a uma fórmula, uma frase do canto. Muitas pinturas podem ser feitas a partir de um só canto, porque o significado dos nomes, das palavras, é denso, requer exegese e a narração de muitas histórias. O canto é uma obra aberta, um caminho de entrada num mundo visível para poucos. Os cantos do nixi pae falam da participação do espírito da gente humana desse espírito maior da floresta que “emenda”, conecta todos os seres, plantas e animais, da terra-floresta, do céu e das águas. A fala de nixi pae vem de longe, é antiga, explica Ibã, do tempo em que chamávamos os animais de txain, cunhado. É a fala antiga desses seres da floresta. Txai é a palavra huni kuin, por excelência, para fazer aliança com outros povos: povos de animais que eram gente e povos estrangeiros que eram inimigos. Por isso, os Huni Kuin ensinam o povo da cidade com quem têm amizade a chamá-los de txai(n).
Coletivo Mahku foto: Mauricio Azzolini
80
Huni Kuin
Brasil
NAI MÃPU YUBEKÃ & YUBE NAWA AINBU IBÃ HUNI KUIN Coletivo MAHKU
A tela apresenta dois cantos “para chamar a força, as cores da miração”: pae txanima. O primeiro canto, do lado esquerdo da tela, chama-se nai mãpu yubeka: “o pombo
ELS LAGROU Universidade Federal do Rio de Janeiro
cantador que vem de longe, lá do céu, já virou jiboia”. O sentido desta imagem é que esse pombo encantado vem de lá de cima e vai se transformando em luz, cores e imagens. É um canto forte que traz visões. Este foi o primeiro canto que Ibã aprendeu do seu pai, Tuin, que o aprendeu do seu pai, Tene. O segundo canto de chamar a força, do lado direito, chama-se Yube nawa ainbu, a mulher do povo jiboia. Este canto está ligado ao mito de origem do nixi pae. O primeiro homem que conheceu o nixi pae se encantou pela mulher do povo jiboia ao vê-la saindo do lago na forma de uma bela mulher, toda pintada com os desenhos kené. Yube Inu segue a mulher para com ela viver no lago. O povo jiboia ensina o conhecimento do cipó ao homem, que o ensinará a seu povo quando voltar de sua morada no mundo das águas.
Huni Kuin
Brasil
81
COLETIVO MAHKU, ALDEIA CHICO CURUMIM/ ALTO RIO JORDÃO/ACRE/BRASIL
NAI MÃPU YUBEKÃ, 2018
(“o pombo cantador que vem de longe, lá do céu, já virou jiboia” — canto de chamar a força) Tinta acrílica sobre tecido, 241 × 238 cm Artistas participantes: Ibã Huni Kuin (Isaías Sales); Bane Huni Kuin (Cleber Pinheiro Sales); Mana Huni Kuin (Pedro Macário); Tuin Huni Kuin (Acelino Sales); Bane Huni Kuin (Iran Pinheiro); Tuin Huni Kuin (Romão Sales); Kixtin Huni Kuin (João Sereno)
foto: Everton Ballardin
Detalhes da obra “Nai Mãpu Yubekã” foto: Everton Ballardin
Detalhes da obra “Nai Mãpu Yubekã” foto: Everton Ballardin
86
Huni Kuin
Brasil
TXAIN PUNKE DUAKEN & YAME AWA KAWANAI IBÃ HUNI KUIN Coletivo MAHKU
Depois da chamada da força, apresentada na tela anterior, temos, nesta tela, a evocação de dois cantos que representam cada um uma fase diferente da experiência com
ELS LAGROU
o nixi pae. O primeiro, do lado esquerdo, é um canto que traz a
UFRJ
miração, um dauti buya. O nome do canto, txain punke duaken, é como se chama o macho do quati na linguagem do nixi pae: “o cunhado listrado e luminoso”. Este canto traz a imagem do listrado do pelo do quati que faz um movimento de ondas, linhas que vão conectando o céu e a terra, plantas de cura e seus animais e peixes. O canto mostra ainda como o espírito do nixi pae entra pela ponta do pé, pinta os dedos de vermelho e vai subindo dentro do corpo da pessoa até ir embora. O segundo canto, do lado direito da tela, chama-se Yame awa kawanai, “a anta andando de noite”. Este é um canto de cura, um kayatibu. O canto é cantado para diminuir a força e mandar o cipó embora. O canto fala dos animais que são caçados de noite, a anta, o veado, a queixada, o tatu. Ouvimos os sons que fazem. ‘A anta vai te comer’, diz o canto, ‘não’, responde, ‘sou eu que vou te comer’. Desse modo, o canto manda embora o medo de ser devorado pelo duplo dos animais caçados que vêm se vingar.
Huni Kuin
87
Brasil
COLETIVO MAHKU, ALDEIA CHICO CURUMIM / ACRE / BRASIL
1. YUBE NAWA AĪNBU, 2018 (“A mulher do povo gibóia” — Canto de chamar a força)
2. TXÃĪ PŪKE RUAKĒ, 2018 (“O cunhado listrado e luminoso” — Música de limpeza nas mirações)
3. YAME AWA KAWANAI, 2018 (“A anta andando de noite”— Música de cura nas mirações)
Tríptico, Tinta acrílica sobre tecido, 241 × 592 cm Artistas participantes: Ibã Huni Kuin (Isaías Sales); Bane Huni Kuin (Cleber Pinheiro Sales); Mana Huni Kuin (Pedro Macário); Tuin Huni Kuin (Acelino Sales); Bane Huni Kuin (Iran Pinheiro); Tuin Huni Kuin (Romão Sales); Kixtin Huni Kuin (João Sereno)
foto: Everton Ballardin
Detalhes da obra “Yube Nawa Aīnbu” foto: Everton Ballardin
Detalhes da obra “Txãī Pūke Ruakē” foto: Everton Ballardin
Detalhes da obra “Txãī Pūke Ruakē” foto: Everton Ballardin
Detalhes da obra “Yame Awa Kawanai” foto: Everton Ballardin
SESC – SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
ENCONTROS AMERÍNDIOS
Administração Regional no Estado de São Paulo
COORDENAÇÃO Sylvia Caiuby Novaes (CEstA – Centro de
PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL Abram Szajman DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL Danilo Santos de Miranda SUPERINTENDENTES TÉCNICO-SOCIAL Joel Naimayer Padula COMUNICAÇÃO SOCIAL Ivan Paulo Giannini ADMINISTRAÇÃO Luiz Deoclécio M. Galina ASSESSORIA TÉCNICA E DE PLANEJAMENTO Sérgio José Battistelli
GERENTES ARTES VISUAIS E TECNOLOGIA Juliana Braga de Mattos ESTUDOS E PROGRAMAS SOCIAIS Cristina Madi ESTUDOS E DESENVOLVIMENTO Marta Raquel Colabone ARTES GRÁFICAS Hélcio Magalhães DIFUSÃO E PROMOÇÃO Marcos Ribeiro de Carvalho SESC DIGITAL Fernando Amodeo Tuacek SESC VILA MARIANA Érika Mourão Trindade Dutra
EQUIPE SESC Adriano Alves, Alexandre Tremanti, Aline Moreira Tafner, Ana Carla de Assis Ribeiro, Camila Paes, Carlos Curado, Carolina Barmell, Carolina Rios, Célia Tucunduva, Claudia Souza, Cristiane Ferrari, Danny Abensur, Elisangela Silva Santana, Elmo Sellitti Rangel, Estevão Denis Silveira, Fernando Hugo C. Fialho, Karina Musumeci, Kelly Teixeira, Kleber Araújo, Jefferson Pereira, João Paulo Leite Guadanucci, Leonardo Borges, Maurício Rodrigues da Silva, Mayra Claudia Gregorio, Natália dos Reis, Nilva Luz, Patricia Dini, Priscila Lourenção, Rachel Sciré, Rafael Duarte, Ricardo Herculano, Sandra Leibovici, Sara Centofante, Suellen Barbosa, Tatiana Amaral, Tatiane Pellegrino de Souza e Thais Franco
Estudos Ameríndios, USP) e Marina Marcela Herrero CURADORIA Aristoteles Barcelos Neto (Professor associado na University of East Anglia) ETNIAS E ARTISTAS TAHLTAN – Alano Edzerza, HAIDA – Gwaai Edenshaw e Jaalen Edenshaw, GUNA – Ana Bella Fernandez, Angelmira Owens Perez, Benilda Mores, Briseida Iglesias, Buna Bipi, Conciencia Grace Rodriguez, Dilma Gardel, Edita Lopez, Emilsy Fernandez, Flor Fernandez, Gilda Tejada, Lea Amelta Tejada, Lonilda Gonzalez, Lucrecia Places, Rosalia Tejada e Victoria Gonzalez, SHIPIBO KONIBO – Olinda Silvano, Wilma Maynas, Silvia Ricopa, Ronin Koshi Arias Inuma e Dora Inuma Ramírez, HUNI KUIN – Coletivo Mahku PRODUÇÃO EXECUTIVA Prata Produções – Valeria Prata PRODUÇÃO Fabiana Farias PRODUÇÃO VIDEOGRÁFICA Marina Marcela Herrero, El Ambulante Audiovisual, Jefferson de Souza Vasconcellos EXPOGRAFIA Estúdio Marcio Medina ASSISTÊNCIA DE EXPOGRAFIA Maira Takiy e Sofia Villela PROJETO GRÁFICO E COMUNICAÇÃO VISUAL Estúdio Daó PRODUÇÃO DE COMUNICAÇÃO VISUAL Insign FOTOGRAFIAS Everton Ballardin, Maurício Azzolini e Mike Peckett ASSISTENTE Tiago Baccarin PROJETO DE ILUMINAÇÃO André Boll PROJETO ELÉTRICO E ENGENHARIA Jarreta Projetos AÇÃO EDUCATIVA Carolina Velasquez MONTAGEM FINA Manuseio LAUDOS DE CONSERVAÇÃO Angela Freitas REVISÃO DE TEXTOS Regina Stocklen SEGURO Pro Affinitè Consultoria e Corretagem de Seguros Ltda. ACESSIBILIDADE Mais Diferenças, Musea CENOGRAFIA Mercio Dias ME PRODUÇÃO EXECUTIVA – PESQUISA DE CAMPO Uato Artes Cênicas - Ulysses Fernandes PESQUISA DE CAMPO ACRE/BRASIL Els Lagrou e Hamilton Pelegrino de Mattos (Universidade Federal do Rio de Janeiro) VANCOUVER/CANADÁ Max Carocci (Chelsea College of Art, University of the Arts, Londres) GUNA YALA E CIDADE DO PANAMÁ (PANAMÁ) Atilio Martínez (historiador do povo Guna, Panamá)
Foram feitos todos os esforços para identificar e contactar os detentores dos direitos autorais das imagens reproduzidas nesta publicação. Os editores se dispõem a fazer todas as correções necessárias em eventuais edições posteriores. Este catálogo foi composto com a família tipográfica Chivo, da Omnibus-Type.
SESC VILA MARIANA Rua Pelotas, 141 - CEP 04012-000 Tel. +55 11 5080 3000 /sescpompeia sescsp.org.br
PREFIRA O TRANSPORTE PÚBLICO Ana Rosa 750m Paraíso 1000m