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PARAIBUNA

LITORAL NORTE PAULISTA

E VALE DO PARAÍBA


Resistências Confluentes É da natureza humana aventurar-se por desvelar o desconhecido. Ir ao encontro do outro para reafirmar quem somos pelas similaridades, diferenças, e alçar novos dilemas, são combustíveis aparentemente voláteis, que imprimem memórias e abastecem imaginários, nutrindo repertórios de vida. Distintas vozes ecoam e são acolhidas no programa de Turismo Social do Sesc São Paulo, propiciando vivências que abarcam as trocas simbólicas, a fruição cultural e das paisagens tanto geográficas quanto humanas. O exercício democrático do turismo envolve escolhas conscientes e um permanente compromisso com a formação do público para a corresponsabilidade da experiência. Nesse contexto, insere-se o projeto Itinerários de Resistência, que apresenta parte da rede de turismo


de base comunitária paulista realizada por grupos com identidades diversificadas como as aldeias indígenas, quilombos, assentamentos, associações e coletivos urbanos. Esses movimentos voltados para a coletividade convergem para o desenvolvimento local, bem como para o fortalecimento de lutas e objetivos comuns. Ao difundir saberes e aspectos socioculturais de tais territórios, apresentando uma das faces do turismo social em ambiente digital, o Sesc amplia os meios de acesso a essa pluralidade, acendendo um farol deflagrador de suas potencialidades. Que as narrativas e o conteúdo imagético de tais iniciativas sejam portadores de estímulos à reflexão e construção de uma sociedade mais justa e equânime, com encantamentos a serem desvelados, vividos e compartilhados. Sesc São Paulo


Para manter viva sua cultura e contar sua história aos visitantes, o pequeno município no Vale do Paraíba abraçou a identidade caipira. E a expressa em coloridas e sonoras festas religiosas, na comida farta, na prosa boa e sem pressa


Deus lhe pague, deus lhe ajude quem tratou do batalhão Há de ser bem ajudado A virgem da Conceição Improviso de Ronnie dos Santos, líder de grupo de moçambique e mestre de Folia de Reis


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Paraibuna

Inspiração é uma coisa que Ronnie dos Santos diz que não entende bem, não sabe como vem e como vai. Quando está “assim como pessoa normal”, comenta que fica até um pouco desajeitado, sem saber para onde olhar, se alguém pede uma letra ou um verso. “Mas aí, quando a gente entra no processo da dança, alguma coisa domina a gente, e a criatividade vem de acordo com o ambiente da festa”, diz. A partir daí, pode-se esperar uma hora e meia de improvisos.

Por gosto e herança de família, Ronnie é militante da cultura popular. Um dos mais conhecidos do município de Paraibuna, no Vale do Paraíba, líder do grupo de Moçambique e Dança de São Gonçalo e mestre da Folia de Reis Alferes Bento. Essas cantorias e danças ligadas à religiosidade histórica do povo local são uma importante expressão de algo que Paraibuna reivindica para si: a identidade caipira. Pessoas do campo, ligadas à terra, do interior do Sudeste até o Centro-Oeste, genericamente, e do interior paulista, mais especificamente, são amplamente retratadas nas ciências sociais e nas artes (e claro, nem sempre por pessoas que são do campo). Há o caipira folclórico de Luís


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Larissa Neli Faria

Rio Paraíba do Sul. Paraibuna, SP

da Câmara Cascudo. O caricato Jeca Tatu de Monteiro Lobato, bem como sua desconstrução ao longo de toda a carreira do ator e cineasta Amácio Mazzaropi. O caipira que sofre transformações em seus modos de vida impostas pelo capitalismo n’Os Parceiros do Rio Bonito, do indispensável sociólogo e crítico literário Antonio Candido. Em Paraibuna, caipira é é muito do que há o que há de mais característico na vida local: terra, roça, festa, dança, o Rio Paraíba do Sul, e comida. Muita comida. “Tenho comigo que uns dos motivos de nossa comida caipira estar sendo renegada é o fato de se querer deixar os pratos bonitinhos, arruma-

dinhos, como se fossem da cozinha dita francesa. A maneira de apresentar nossos sabores tem que seguir a linha do visual caipira, onde imperam os fogões a lenha, as panelas de ferro, panelas de barro e os cozidos. Assim, acreditamos que esta tem que ser a capa do livro da comida caipira. Ela como é, simplesmente, sem rodeios.” Esse é um trecho da carta do editor que abre a revista gastronômica Cumê Divagarinho, publicada em 2012. A citada “capa do livro” é a fotografia de um tacho metálico sobre um fogão a lenha. E o editor em questão é João Rural, personalidade de enorme importância para a vida social e a cultura tradicional do Vale do Paraíba.


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Quando a represa encheu

Mayra Vergotti

Mayra Vergotti

Mercado Municipal de Paraibuna, ponto turístico. Paraibuna, SP

Durante 40 anos, João Evangelista de Faria atuou como pesquisador na região. Reuniu um acervo de 300 horas de vídeo, 70 mil fotografias e estimadas 7 mil páginas de jornais, revistas e livros. Colaborou com diversos programas de televisão. Desta forma, ajudou a salvaguardar e organizar o patrimônio, inclusive o imaterial, do Vale do Paraíba ao longo da segunda metade do século 20 e começo do século 21.


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Larissa Neli Faria

A Represa de Paraibuna, com sua barragem que foi inaugurada no ano de 1970, é capítulo decisivo dessa história. Ronnie dos Santos aprendeu moçambique, uma dança em que se usam guizos nos pés para acompanhar os instrumentos musicais na marcação do compasso, e Folia de Reis com o bisavô. Desse ancestral, a família guarda a bandeira, o estandarte bordado à mão de quando o bisavô era mestre, e que tem 122 anos. “Mas quando a represa encheu, ele teve de parar tudo e ir procurar lugar para morar”, conta Ronnie. A construção do reservatório inundou casas, sítios, terras produtivas, belezas naturais e lembranças. A quituteira Irene Neves tem guardadas fotos com amigos em uma cachoeira que existia na fazenda onde sua família vivia, e que desapareceu sob as águas. “Tiraram da gente terras excelentes para plantar”, lembra Irene. “Começaram as medições e foram avisando para o povo sair, mas muitos não acreditaram que a água ia subir. Na última hora teve muito desespero, gente que teve de ir embora com a roupa do corpo porque não tinha se preparado para mudar. Foi um impacto muito complicado na nossa vida”, conta.

Instrumentos de Moçambique do Mestre Ronnie: caixa e bastões. Paraibuna, SP

“Na última hora teve muito desespero, gente que teve de ir embora com a roupa do corpo porque não tinha se preparado para mudar” Irene Neves

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Dois institutos, um projeto turístico

Mayra Vergotti

Os grãos do café que Irene serve em seu Café Chão Caipira são, para a alegria de quem o bebe, “ de fundo de quintal”, diz. Ela compra dos pequenos produtores locais e, quase diariamente, faz o processo de descascar os grãos, colocá-los para torrar em um equipamento

redondo que chama de torrador de bola, acrescentar açúcar para caramelizar e levar tudo ao pilão para moer. Boa parte desse pó de café é vendida a turistas a caminho do litoral, que fazem um desvio da Rodovia dos Tamoios ao centro de Paraibuna.


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Café Chão Caipira, casa de Dona Irene e Seu Bernardo. Paraibuna, SP

No salão de Irene, um espaço decorado com objetos antigos e uma grande mesa de madeira no centro, encontram outros sabores: bolinho de chuva salgado e doce, bolo de fubá com queijo, tortas salgadas, pão de queijo de forma. “Engraçado é que quando a minha mãe passava essas receitas a gente nem se interessava tanto. Aí fomos resgatando e, hoje, o pessoal gosta demais”, conta. João Rural morreu em 2015. Bem antes, em 2010, doou todo o seu acervo para que fosse criado o Ins-

tituto Chão Caipira, uma organização não governamental sob gestão da família dele, dedicado à preservação e difusão da cultura. A ONG é parceira frequente de outra iniciativa familiar na cidade de Paraibuna, o Instituto H&H Fauser, criado, segundo sua dirigente, Susane Fauser, para devolver à cidade de Paraibuna o acolhimento que a família recebeu quando migrou da Alemanha para o Brasil, na década de 1960. O trabalho é voltado para impulsionar o trabalho dos pequenos pro-


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Mayra Vergotti

Produtos para venda, nos roteiros turísticos: cachaças e rapaduras, entre outros. Paraibuna, SP

dutores rurais e o debate ambiental. O primeiro programa colocado em prática estava voltado para os jovens e, nesse contexto, incluía oficinas de turismo. Assim, esses jovens criaram roteiros comunitários que incluem as áreas rurais e o pequeno centro urbano do município. Para o biólogo Lucas Campos, de 27 anos, um dos colaboradores do Instituto H&H Fauser, o trabalho das duas organizações ajudou a mudar a perspectiva da juventude de Paraibuna. “Antes eu não conhecia, não me sentia ligado a essas tradições, apesar de ter família na roça. Foi a partir dos institutos que deixei de

olhar para minha cidade como um lugar que não tem nada para fazer”, comenta. O programa turístico foi batizado de Chão Caipira, e vale aqui explicar de onde veio essa expressão que nomeia tanta coisa em Paraibuna: ela é o slogan oficial do município, criado no final dos anos de 1990. José Vicente Faria, atual presidente do Instituto Chão Caipira, estava lá, e conta que empresários, poder público e a sociedade civil participaram de oficinas para encontrar coletivamente a vocação turística de sua cidade. Não apenas encontraram, como abraçaram a ideia.


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Comer demais José Joaquim de Almeida, o Jota, é bisneto de um migrante que se mudou de Minas Gerais para o Vale do Paraíba. Segue produzindo no sítio às margens do Rio Fartura, que deságua no Paraíba do Sul: melado de cana, açúcar mascavo, rapadurinha. A propriedade integra o roteiro turístico e, ali, os visitantes têm a oportunidade de se familiarizar com os objetos envolvidos na produção desses itens: o engenho, onde se mói a cana, o fogão de 12 metros de comprimento sobre o qual borbulham os tachos no preparo do melado e do açúcar, e o alambique, onde se destila cachaça.

Feitura do Melado de cana no Sítio do JJ. Paraibuna, SP

Larissa Neli Faria


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Centro histórico e comercial da cidade. Paraibuna, SP

A cachaça quem faz é a “marvada” Neide. No começo, a cachaça de Maria Neide de Souza não tinha nome. Numa festa de São Sebastião, “a meninada já estava meio alta” e um deles, ao ver Neide vendendo suas garrafas, cumprimentou-a com um “oi, marvada”. A amiga que estava com ela ajudou a criar a bonequinha do rótulo e pronto, nascia um sucesso local. Neste sentido, Jota e Neide são são um casal, “que a cachaça uniu, em vez de separar”, brincam. O roteiro de turismo comunitário começa na parte urbana de Paraibuna, e inclui uma incursão pelo Mercadão, com um objetivo primeiro: os pastéis do Manezinho, feitos de farinha de milho a partir de uma receita de família e fritos na hora. No Mercadão está ainda o estabelecimento de Ronnie dos Santos, que além de mestre da cultura popular, é também paçoqueiro. As paçocas que vende são feitas com rapadura, farinha de milho e amendoim, e essa também é uma receita de família.


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Larissa Neli Faria

O almoço — caipira, como não? — gira em torno de opções como frango, linguiça caseira, o fogado, caudaloso prato de carne bovina cozida, e a típica carne de porco na lata. Os pedaços pré-fritos de carne de porco são conservados na gordura e, para comer, deve-se aquecer a carne e adicionar farinha de mandioca.

Comida típica caipira. no fogão à lenha. Paraibuna, SP

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A pandemia, claro, interrompeu a atividade turística e, segundo Larissa Faria, bióloga e colaboradora dos institutos H&H Fauser e Chão Caipira, as visitações passarão por alguns pequenos ajustes, sem alterar o essencial. E isso inclui, entre outras possibilidades, a visita a uma propriedade que cultiva frutas nativas em sistema de agrofloresta. O Sítio do Belo é pioneiro nesse assunto. Na propriedade, o que era pasto virou um extenso pomar onde se colhe cambuci, uvaia, grumixama, cabeludiAcervo Instituto H&H Fauser

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nha, araçá-boi, cambucá, feijoa, cereja-do-Rio-Grande, jaracatiá, baru, jerivá, guabiroba, cajá, jenipapo, juçara. Em que outra lista seria possível encontrar tantos nomes bonitos? Se ler tudo isso deu fome, saiba que, para essas situações, Ronnie e seu grupo de moçambique têm um verso, que é dirigido ao dono do evento e da casa quando este, recebendo artistas e convidados, demora a servir algo para matar a fome: “Oh, seu festeiro, a barriga me dói”.

“Oh, seu festeiro, a barriga me dói” Ronnie e seu grupo de moçambique

Frutas nativas no Sítio do Bello. Paraibuna, SP

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MINAS GERAIS CAMPINAS

SÃO JOS DOS CAMP

FRANCO DA ROCHA

SP 300

SP

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Institutos H&H Fauser e Chão Caipira

0

SP 2 70

SÃO PAULO SANTOS CUBATÃO BERTIOGA

SP

05

5


TAUBATÉ

SÉ POS

BR

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RIO DE JANEIRO PARAIBUNA

BR

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UBATUBA

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10 BR

Quilombo e Comunidade Caiçara da Fazenda Picinguaba

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Praia de Castelhanos

Oceano Atlântico

Comunidades retratadas Águas Áreas de Proteção Ambiental Municípios em destaque Rodovias


PARAIBUNA @InstitutoHHFauser @institutohhfauser Informações sobre agendamento de visitas e roteiros disponíveis em — Whatsapp: (12) 99110 6465; email: institutohhfauser@gmail.com www.chaocaipira.org.br


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