Revista E - fevereiro/2025

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Revista E | fevereiro de 2025 nº 08 | ano 31

Grito de alerta

A arte de Frans Krajcberg em defesa da natureza

Economia verde O desafio de conciliar desenvolvimento e meio ambiente

Ailton Krenak Filósofo evoca educação para construir outro futuro

Antimusa

Em palcos e telas há sete décadas, Helena Ignez questiona rótulos

Espaços especialmente preparados para a prática de atividades físicas esperam por você na 30ª edição do Sesc Verão.

A programação é gratuita e traz diferentes modalidades esportivas que podem ser vivenciadas por pessoas de todas as idades.

NOS ESPAÇOS PÚBLICOS

Praia do Centro | Sesc Carmo e Sesc Florêncio Vale do Anhangabaú – até 23/2

Pista de Corrida e Caminhada | Sesc 14 Bis Na praça em frente à unidade – até 14/2

NAS UNIDADES DO SESC

Espaço Sesc Verão | Sesc Bom Retiro – até 14/2

Legados Esportivos de Transformação Social | Sesc Pinheiros – até 16/2

Vem Patinar! | Sesc Casa Verde – até 14/2

Espaço Expressão e Movimento | Sesc Pompeia – até 16/2

CAPA: Obra Sem título (1987), criada a partir de cascas de árvore e pigmento sobre painel pelo artista polonês Frans Krajcberg (1921-2017), que integra a coleção Paulo Kuczynski. Escultor, pintor, gravador e fotógrafo, Krajcberg fez da arte um manifesto contra a destruição do meio ambiente. O artista teve a sua vida e obra retratadas na biografia Frans Krajcberg: a natureza como cultura (2024), pelo escritor e ativista socioambiental João Meirelles, lançada pelas Edições Sesc São Paulo e Edusp. Saiba mais sobre o artista na seção Gráfica, desta edição, e sobre o livro em: sescsp.org.br/edicoes

Crédito: Alexandre dos Santos/Acervo Paulo Kuczynski. Divulgação Edições Sesc São Paulo

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Compromisso contínuo

APP Sesc São Paulo para tablets e celulares

Legendas Acessibilidade

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Fomentar o bem-estar dos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, além de suas famílias, é o foco principal das ações do Sesc – Serviço Social do Comércio. Criada em 1946 como uma iniciativa visionária dos empresários do setor, a entidade tem como missão promover qualidade de vida tanto para seu público prioritário quanto para toda a comunidade, por meio de uma ampla e diversificada programação nas áreas de cultura, lazer, esportes, turismo, saúde e alimentação.

Em 78 anos de atuação ininterrupta, o Sesc esteve presente e desempenhou um papel essencial nas mudanças vivenciadas pelo país, em um contexto de urbanização acelerada que promoveu o crescimento da população nas grandes cidades, sempre acolhendo e respondendo aos desafios desse cenário.

Para isso, os centros culturais e esportivos do Sesc São Paulo, espalhados por todo o estado, oferecem uma variedade de atividades, como apresentações artísticas, oficinas, cursos e outras oportunidades de aprendizado e interação, ampliando conhecimentos e redes de contato. Assim, ao se adaptar constantemente às demandas do presente, a instituição segue relevante e atuante na vida cotidiana de seus públicos.

Abram Szajman Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo

Economia pela sustentabilidade

Dados estatísticos e estudos analíticos têm mostrado o agravamento das condições ambientais, que geram danos para o planeta e para as populações em âmbito mundial. A chamada crise climática se apresenta como uma realidade e nos convida a reinventarmo-nos enquanto sociedade, em busca de soluções que respondam aos anseios e desafios do tempo presente. O momento atual nos impele a atitudes tanto no âmbito individual, a partir de nossas escolhas e hábitos, quanto no contexto coletivo, reconfigurando o projeto de nação.

Desse modo, a sustentabilidade se torna, mais do que uma urgência, uma premissa das nossas decisões em todas as esferas da vida em comunidade. É possível e necessário utilizarmos conhecimento acumulado, recursos tecnológicos e articulação social para encontrar novos caminhos. Afinal, desenvolvimento não se contrapõe aos cuidados ambientais.

Reportagem desta edição da Revista E discute as possibilidades da chamada Economia Ecológica, que tem o compromisso com o meio ambiente como alicerce para o desenvolvimento econômico, refletindo sobre modos possíveis de crescer com o devido equilíbrio e segurança, garantindo, assim, uma vida plena em bem-estar. Boa leitura!

Luiz Deoclecio Massaro Galina

Diretor do Sesc São Paulo

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor do Departamento Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos.

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz.

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga

CONSELHO EDITORIAL | Revista E Adauto Perin, Adriana de Souza Francisco, Adriano Calsone, Aguinaldo Soares da Costa, Alex Siciliani Anastacio Cruz, Aline Ribenboim, Ana Claudia Barbosa Barros, Ana Paula Neves Cabral de Vasconcellos, André Luiz Santos Silva, André Lerro Correa, Andrea de Oliveira Rodrigues, Andrea Regina Ferreira Pellario Nogueira, Andreia Pereira Lima, Barbara Caroline da Silva Ramos de Freitas, Bruna Zarnoviec Daniel, Caio Nunes Goncalves, Cinthya de Rezende Martins, Cleber de Lima Franco Tasquin, Cristiane Moreira Cobra, Cristina Berti Ribeiro, Danilo Cymrot, Davi dos Santos Ferreira, Diego Ferreira Valladares Soares, Diego Polezel Zebele, Edson da Silva Horacio, Elaine de Sousa, Felipe Veiga do Nascimento, Flavia Dziersk de Lima Silva, Flavio Aquistapace Martins, Gabriela Grande Amorim, Giulia Maria de Campos Manocchi, Glauco Gotardi, Gleiceane Conceição Nascimento, Helton Henrique Cassiano, Henrique Torres de Souza, Henrique Vizeu Winkaler, Ivan Lucas Araujo Rolfsen, Ivy Beritelli Jose de Souza, Ivy Granata Delalibera, Jacy Helena Almeida Silva, José Gonçalves da Silva Junior, Jose Mauricio Rodrigues Lima, Jucimara Serra, Juliana Neves dos Santos, Luciana Trovato, Marcelo Baradel, Marcos Afonso Schiavon Falsier, Mariana Lins Prado, Marina Borges Barroso, Marina Reis, Olga Balboni, Paulo Henrique Vilela Arid, Rafael Lima Peixoto, Rafaela Ometto Berto, Rejane Pereira da Silva, Renata Barros da Silva, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Rodrigo Eloi da Silva, Sandra Ribeiro Alves, Shirlei Torres Perez, Silvia Cristina Garcia, Sonoe Juliana Ono Fonseca, Stephany Tiveron Guerra, Talita Ferreira dos Santos, Tamara Demuner, Thais Amendola, Viviane Ferreira Alves.

Coordenação-Geral: Ricardo Gentil

Coordenação-Executiva: Ligia Moreli e Silvio Basilio

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Edição de Arte e Diagramação: Estúdio Thema (Marcio Freitas e Thea Severino) • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto, Marcel Verrumo e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Nilton Fukuda • Repórteres: Ana Cristina Pinho, Diego Olivares, Lígia Scalise, Manuela Ferreira, Marcel Verrumo, Maria Júlia Lledó • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto, Marina Pereira e Marcel Verrumo • Propaganda: Edmar Júnior, Jefferson Santanielo e Julia Parpulov • Apoio Administrativo: Juliana Neves dos Santos e Talita Ferreira dos Santos • Arte de Anúncios: Alexandre do Amaral, Cesar Albornoz, Frederico Zarnauskas e Luiz Felipe Santiago • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Criação Digital Revista E: Rodrigo Losano • Circulação e Distribuição: Vanessa Zago

Jornalista responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios

Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS).

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Filósofo, escritor e defensor dos direitos dos povos indígenas, Ailton Krenak propõe uma educação para a convivência como caminho para a vida humana na Terra Entre os destaques de fevereiro, a programação do Sesc Verão convida todas as pessoas a vivenciar atividades físicas e práticas esportivas nas unidades

De que forma a Economia Ecológica pode promover um desenvolvimento sustentável em resposta à emergência climática?

O legado poético e provocador de Antonio Cícero, filósofo, poeta e compositor de canções que atravessam o espaço e o tempo do agora A vulnerabilidade da natureza pelas mãos de Frans Krajcberg, artista polonês radicado no Brasil que fez de suas obras uma plataforma de denúncia

dossiê entrevista sustentabilidade bio gráfica cinema

Como é o novo cenário e os desafios dos artistas da dublagem brasileira por trás de produções nacionais e internacionais?

Trechos dos ensaios de Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl sobre a virtude da coragem, presentes na Coleção Mutações das Edições Sesc São Paulo

Ousadia e experimentação compõem vida e trabalho da diretora e atriz

Helena Ignez, que assina a mais recente montagem de Vestido de Noiva, obra clássica de Nelson Rodrigues

Memória, ditadura e família costuram a escrita de Marcelo Rubens Paiva em Ainda estou aqui, obra dedicada à mãe, Eunice Paiva, adaptada para os cinemas e sucesso de bilheteria

Saiba onde visitar na cidade de São Paulo estátuas em homenagem a cinco expoentes negros da cultura brasileira

Estevão Azevedo (conto) e José Lucas Queiroz (ilustrações)

em pauta encontros inéditos

Ana C. Jimenez

Escrita pelo ativista socioambiental

João Meirelles, esta biografia de Frans Krajcberg revela a trajetória de um homem que transformou a arte em sua trincheira na luta pela preservação ambiental. Por meio de fotos exclusivas e depoimentos inéditos, o livro percorre a vida e a obra do artista, desde a infância e juventude na Polônia até sua consagração como um dos grandes nomes da arte brasileira.

No monólogo Eu sou um Hamlet, o ator Rodrigo França interpreta o denso personagem shakespeariano, pensando sua humanidade enquanto homem negro no Brasil. A montagem, dirigida por Fernando Philbert, reflete sobre a violência e as segregações do nosso tempo, e fica em cartaz no Sesc Pinheiros, até 22 de fevereiro.

Renan Cantuario
em cena

Uma celebração à vida e obra de um dos maiores personagens das artes visuais do Brasil: o pintor, desenhista e escultor Luiz Sacilotto (1924–2003).

curadoria Reinaldo Botelho

Visitas mediadas

Oficinas

Performances

Até 27 de julho de 2025

Sesc Santo André terça a sexta, 10h–21h30 sábados, domingos e feriados, 10h–18h30

sescsp.org.br/ santoandre

realização
parceria

DOSSIÊ

Esporte para celebrar

30ª edição do Sesc Verão segue neste mês com mais de 400 atividades, além de ambientações e encontros com grandes atletas

Nas unidades do Sesc em São Paulo, até o dia 16/2, um público de todas as idades poderá participar da programação gratuita e diversificada, que prioriza o convívio social, a inclusão e a diversidade, na 30ª edição do Sesc Verão. Com o tema “Segue o Jogo!”, a ação incentiva a prática regular de atividades físicas e um estilo de vida mais ativo, celebra o legado do esporte e como ele pode impactar vidas de forma positiva.

Inaugurada no dia 11/1, a ambientação Praia do Centro, disponibiliza uma quadra de areia no Vale do Anhangabaú, no Centro da capital, convidando os transeuntes a experimentar esportes como vôlei de praia, beach tênis e futevôlei.

Também na região central, o Sesc 24 de Maio realiza a Ocupação Skate, com uma minirrampa numa área dedicada ao street. No Sesc Bom Retiro, a programação inclui aulas de práticas corporais, lutas, ginástica, entre outros. Uma pista de patinação é destaque do Sesc Casa Verde, onde são realizadas aulas abertas e vivências da modalidade.

O público também poderá conhecer a trajetória e participar de vivências e demonstrações ao lado de atletas consagrados como Lorrane dos Santos (ginástica artística); Caio Bonfim (marcha atlética); Carol Santiago (natação paralímpica); Vanderlei Cordeiro de Lima e Terezinha Guilhermina (atletismo).

No Vale do Anhangabaú, o Sesc Verão criou a ambientação Praia do Centro, espaço onde todas as idades podem experimentar esportes como o vôlei de praia.

Verão proporciona oportunidades para que as pessoas se reúnam e experimentem, na prática, os benefícios do esporte e da atividade física para a qualidade de vida”. Além disso, complementa, “reforça-se a importância do esporte como um meio de enriquecimento cultural e de integração social, expandindo horizontes e valorizando a saúde e o bem-estar”.

Para o diretor do Sesc São Paulo, Luiz Deoclecio Massaro Galina, “a cada ano, nas diferentes unidades, o Sesc

Confira a programação completa em sescsp.org. br/sesc-verao-2025/

O Sesc Verão reforça a importância do esporte como um meio de enriquecimento cultural e de integração social, expandindo horizontes e valorizando a saúde e o bem-estar

Luiz Deoclecio Massaro Galina, diretor do Sesc São Paulo

ESQUENTA PARA A FOLIA

Nas semanas que antecedem o Carnaval, as unidades do Sesc enchem a capital paulista de confete e serpentina em dezenas de shows, cortejos, oficinas, vivências e bate-papos que preparam o público para cair na folia. Entre os destaques, o projeto Eu Vou Botar meu Bloco na Rampa, do Sesc 24 de Maio, convida quatro blocos carnavalescos para desfilarem nas tardes de sábado, sempre às 17h: Bloco Ilú Obá de Min (1/2), Bloco do Chocolatte (8/2), Bloco Explode Coração (15/2) e Bloco Acadêmicos do Tucuruvi (22/2). Tem também o especial Fãs de Farra, que ocupa o Sesc Casa Verde com cortejos de bandas de fanfarra, nas tardes de sábado, às 16h: Bloco de Pífanos (1/2), Cornucópia Desvairada (8/2), Mzcejà Tåbëbo Orquestra (15/2) e Unidos do Swing (22/2). Oficinas e cursos ensinam o público à prática de instrumentos musicais carnavalescos, além de construir e customizar seus próprios adereços, como máscaras coloridas, ombreiras brilhantes, tiaras de bioglitter, pulseiras e colares com materiais biodegradáveis, maquiagens sustentáveis e até fantasias para bebês. Acesse a programação completa em sescsp.org.br

Nas prévias do Carnaval, a programação do Sesc São Paulo reúne oficinas, vivências e apresentações de blocos, como o Unidos do Swing, na unidade Casa Verde, dia 22/2.

DOSSIÊ

CONEXÃO COM O CONHECIMENTO

Que tal iniciar 2025 ampliando seu conhecimento sobre planejamento financeiro, adquirir noções de desenho e pintura em quadrinhos ou aprender a criar seu próprio podcast? Tudo isso é possível na plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo, EAD Sesc Digital, que disponibiliza aulas online e gratuitas sobre diversos temas.

São 22 cursos voltados para as áreas de cultura, esportes, finanças, lazer, alimentação, entre outras. Os cursos são ministrados por especialistas e divididos em módulos que podem ser feitos a qualquer hora, permitindo que você aprenda no seu ritmo e com sua disponibilidade de tempo. Saiba mais em ead.sesc.digital

Arte para todos os sentidos

Em cartaz no Sesc Santo André, a exposição Sacilotto BioGráfico revisita a produção do pintor, desenhista e escultor andreense Luiz Sacilotto (1924-2003). Com curadoria de Reinaldo Botelho, a mostra celebra o centenário de nascimento de uma figura central para a arte brasileira – Sacilotto é fundador da arte concreta, da abstração geométrica e da op art no país. Linhas, pontos, cores e formas extrapolam os limites dos suportes artísticos; tudo é movimento, o espaço em si mesmo. Organizada em quatro núcleos – “Cidade e Espaço Público”; “Vida e Obra”; “Cores-Timbres” e “Atelier” –, a mostra se debruça em obras do artista presentes em espaços conhecidos pela população de Santo André, como o calçadão da Rua Coronel Oliveira Lima e a Praça do IV Centenário. Os visitantes podem conhecer detalhes íntimos da metodologia e processo criativo do artista, seu olhar único sobre o mundo e o fazer artístico. Confira: sescsp.org.br/sacilotto-biografico

Barbara Lacerda (Unidos do Swing); Recheio Digital/Divulgação (EAD)
O desenhista Rafael Coutinho ministra o curso Noções Básicas de Desenho e Narrativas de Quadrinhos, na EAD Sesc Digital.

DOSSIÊ

Se você disser que eu desafino

Neste mês, os Centros de Música do Sesc São Paulo abrem as inscrições para seus cursos regulares do primeiro semestre. Oferecidos nas unidades Consolação e Vila Mariana, na capital, além de Guarulhos, na grande São Paulo, os cursos são um estímulo à aprendizagem, à criação, ao registro e à difusão de aspectos da cultura musical. Além

disso, todas as unidades do Sesc realizam uma ação permanente, oferecendo atividades ao longo do ano, que valorizam o ensino coletivo. São formações para alunos de diferentes idades e com diversos níveis de formação – incluindo iniciantes e quem não tem conhecimento prévio. Informações e inscrições em sescsp.org.br/centrodemusica

TELONA LUSITANA

Nas sextas-feiras deste mês, o SescTV exibe a mostra Lusitanos em Cena, composta por quatro longas-metragens representantes da filmografia portuguesa contemporânea, que dialoga com temas como ancestralidade, negritude, literatura e longevidade. A seleção inclui o documentário Hálito Azul (Rodrigo Areias,

2018), que mostra o cotidiano dos pescadores da vila Ribeira Grande, nos Açores (7/2, às 22h); a animação Nayola (José Miguel Ribeiro, 2022), sobre as questões familiares de três gerações de mulheres angolanas (14/2, às 22h); o inédito Surdina (Rodrigo Areias, 2022), drama com roteiro do escritor Valter Hugo Mãe, que

acompanha um viúvo decidido a se esconder da sociedade para viver seu luto (21/2, às 22h); e Não Sou Nada (Edgar Pera, 2023), thriller psicológico, também inédito, que se passa dentro da cabeça de Fernando Pessoa (1888-1935), em alusão aos heterônimos do escritor (28/2, às 22h). Assista: sesctv.org.br/noar

Na programação Lusitanos em Cena, no SescTV, a animação Nayola (2022), de José Miguel Ribeiro, costura a história de três gerações de mulheres angolanas.

FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.

Para fazer ou renovar a Credencial

Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.

Acesse o texto

Tudo o que você precisa saber sobre

a Credencial Plena do Sesc

Sobre a Credencial Plena:

• É gratuita

• Tem validade de até dois anos

• Pode ser utilizada nas Unidades do Sesc em todo o Brasil

• Prioriza os acessos às atividades do Sesc

• Oferece descontos nas atividades e serviços pagos

Faça a sua Credencial Plena online!

Baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento. sescsp.org.br

PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
Ricardo Ferreira

Ponto de mutação

Filósofo, defensor dos direitos indígenas, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak acredita numa educação para a convivência em defesa da vida na Terra

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

FOTOS ADAUTO PERIN

Na aldeia Krenak, localizada na região do Médio Rio Doce, em Minas Gerais, nasceu, em 1953, Ailton Krenak. Protagonista das discussões em defesa do movimento socioambiental na Assembleia Constituinte, em 1987, comoveu a opinião pública. Ao discursar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas, pintou o rosto de preto, com pasta de jenipapo, em sinal de luto. Um ano depois, participou da fundação da União dos Povos Indígenas, organização que busca representar os interesses indígenas no cenário nacional. E, em 1989, ajudou a criar a Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na Amazônia.

Pela literatura, Krenak expandiu o alcance de seu discurso dentro e fora do Brasil. Seus livros Ideias para adiar o fim do mundo (2019), A vida não é útil (2020) e Futuro ancestral (2022), lançados pela Companhia das Letras, compartilham a cosmovisão dos povos originários e fazem um alerta para os resultados da exploração descontrolada dos recursos naturais e humanos. Ano passado, Krenak lançou, pelo selo Companhia das Letrinhas, seu primeiro livro infantil, Kuján e os meninos sabidos, ilustrado por Rita Carelli e inspirado na oralidade de seu povo. “Foi Avó Laurita quem ouviu de Avó Bastiana”, escreve no prefácio. Eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2024, o filósofo e escritor voltou a protagonizar um momento histórico ao tornar-se o primeiro imortal

indígena. Seu projeto? Levar à instituição mais de 300 línguas de povos que nunca tiveram reconhecida a oralidade enquanto narrativa e tradição literária.

Nesta Entrevista, Ailton Krenak costura seus pensamentos sobre as dificuldades criadas e enfrentadas pela espécie humana, fala sobre a indispensável arte de sonhar, aponta para o poder de cura da literatura e clama vigilância constante para os direitos dos povos indígenas.

Seus livros Ideias para adiar o fim do mundo e A vida não é útil alertam para o risco de a humanidade desaparecer, uma vez que a própria espécie humana inviabiliza sua existência no planeta. Como foi o desenvolvimento dessas obras? Quando eu mergulhei nesse estudo de nós mesmos, eu vi que já tínhamos experimentado, no século 20, muitas orientações pedagógicas. Afinal de contas, o Brasil teve Paulo Freire [1921-1997] e, no mundo, outros grandes educadores. Eles pensavam sempre em como preparar esse corpo humano para o trabalho, para a eficiência. Quando a gente virou o século, a gente descobriu que acabou o mundo do trabalho. A tragédia do século 21 deixou milhões de pessoas desempregadas. O que produz a fome e a miséria é a inadequação das pessoas para a sobrevivência, porque elas foram preparadas para o mundo do trabalho e o mundo do trabalho saiu debaixo dos pés de todos nós. Então, sem

Nós vamos ter que nos reeducar ou nos educar para viver um tempo de mitigação de danos, e os danos incluem o corpo da terra e nós mesmos, que somos capilaridade desse organismo

o mundo do trabalho, sem o piso para a gente pisar, eu comecei a olhar que a gente tinha caído numa espécie de abismo, onde a gente não teria no que se segurar, e que a própria ideia de esperançar, do mestre Paulo Freire, ficava sem âncora. Porque você não pode esperançar num mundo de zumbis, de gente que não tem território e que não consegue sonhar. Para esperançar, tem que sonhar. Uma outra semente que alimenta meu modo de pensar o mundo é o sonho. Como sonhar num abismo sistêmico desse?

Um dos caminhos que você aponta para adiar este possível fim do mundo caminha pelo viés de uma “educação para a convivência”. No que consiste essa ideia?

Como é que a gente vai se educar para a convivência? Não é uma idealização, e não é tolerância. Nós vamos ter que aprender com a terra a viver de novo. E a terra não dá moleza. A terra é uma mestra tão cortante que não vai dar segunda chance. E tudo indica que uma boa parte de nós não vai ficar vivo nas próximas décadas, diante dos

eventos climáticos. Então, nós vamos ter que nos educar para entender o sinal da terra, aprender com a terra. Nego Bispo [pensador e líder quilombola (1958-2023)], antes de encantar-se, dizia: “A terra dá, a terra quer”. Teve gente que até anotou: “A terra dá, a terra come”. Não é só “quer”, não. A terra dá, a terra quer; a terra dá, a terra pede. Porque o nosso querido Nego Bispo tinha uma capacidade de espraiar um pensamento que ia além de uma direção só. Então, a terra doa, mas ela também come. E eu acho que agora está na hora da terra comer a gente.

Por que esse alerta, feito há décadas por lideranças indígenas, quilombolas e ambientalistas, começa a reverberar no mundo apenas no século 21?

A própria ideia de combater a fome e a miséria no planeta ressurge depois de 40 anos do Betinho [Herbert José de Sousa, sociólogo e ativista dos direitos humanos (19351997)] ter se imolado em torno de mobilizações no país. Agora, não se trata mais de um país, mas, sim, do planeta. Quando essa campanha [Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida] foi lançada no Brasil [em 1993], o mundo inteiro falou: “Ah, esses brasileiros inventam cada uma”. Porque eles não tinham esse problema. Só que a miséria e a fome agora estão batendo na porta do Banco Mundial, da Unesco, da ONU, da FAO, e eles estão todos falidos. A governança global vai ter que reconfigurar isso. No livro Ideias para adiar o fim do mundo, eu falo de quando a gente se organizou no Brasil para reivindicar um território na Serra do Espinhaço, que atravessa Minas Gerais e vai até a Bahia, na Chapada Diamantina. A gente teve que justificar para a Unesco porque queria proteger aquele território. Justificar com argumentos de biólogos, botânicos, geólogos, e ainda tivemos que fazer lobby junto à Unesco, na França, trazer gente de lá para vir sobrevoar o lugar e ver, atestar que a gente não estava mentindo, que aquele lugar existia. Aquilo é um manancial de águas. Nós vamos ter que nos reeducar, ou nos educar, para viver um tempo de mitigação de danos, e os danos incluem o corpo da terra e de nós mesmos, que somos capilaridade desse organismo.

Outro aspecto sobre o qual você fala a respeito é o processo de dessensibilização das pessoas na era digital. Entre os resultados desse descolamento do corpo humano com o corpo terra, há quadros de sofrimento mental. Será preciso reivindicar o direito ao corpo nesse cenário de excesso de telas? Eu costumo invocar a primeira manifestação das mulheres, as Margaridas, as mulheres indígenas,

as camponesas sem-terra fazendo uma marcha em Brasília com uma faixa imensa dizendo: “Nosso corpo, nosso território”. Muito provavelmente, a mentalidade retrógrada entendeu que as mulheres estavam discutindo uma proteção da intimidade do corpo. Na verdade, estavam invocando um corpo-território. E um corpo-território é a cura possível desse abismo cognitivo e sensorial em que a gente se meteu, no qual o nosso corpo foi separado do corpo da terra de uma maneira radical e ampla. Eu escutei a professora Marilena Chauí dando um curso a distância, no qual ela disse que nós estamos passando por uma espécie de disrupção. É como se a gente estivesse passando por uma mutação, ela falou, do modo de nos conhecer e de conhecer o mundo. Ela disse que as pessoas não sabem mais o que é o seu entorno. Quer dizer, nós estamos vivendo num abismo e esse “nós” é um “nós” de todo mundo, tá? Ele não separa gregos e troianos. Ele não separa paulistas e baianos. Ele não separa ninguém.

Pode-se dizer, então, que os povos indígenas também estão sendo afetados por essa separação do corpo-território?

Alguém pode dizer: “Ah, tem um essencialismo que diz que os povos indígenas, os povos originários, os de matriz africana, o povo da diáspora, eles ainda têm essa magia de falar com a terra”. Mas, se você prestar atenção na voragem, até nossos povos estão sendo abduzidos pela fúria da mercadoria. O (Davi) Kopenawa Yanomami fala que existe uma crescente sociedade da mercadoria, que é como se um corpo fosse modificado e tudo virasse mercadoria. E os Yanomami estão dentro do território deles sofrendo uma invasão garimpeira. É como se não fosse mais uma escolha essa perda da comunhão com o território. Imagina o garimpo chegar lá na fronteira do Brasil, lá em cima, na fronteira com a Venezuela. Há 40 anos, eu li um relatório dizendo que aquele minério que estava lá, nos Yanomami, era inviável, porque não tinha logística para tirar aquilo de lá. A miséria é tanta que agora

Agora, a Academia Brasileira de Letras, além da língua portuguesa, tem também 300 e tantas línguas nativas, o que vai tornar aquele mundo muito mais complicado e muito mais divertido

entram homens desesperados lá para morrer no meio do mato caçando o ouro – uma outra Serra Pelada. Quer dizer, nós estamos ficando muito mais pobres no mundo inteiro. Combater a pobreza no mundo pode ser uma espécie de última fronteira disso que se chama governança.

Em 2024, você protagonizou um momento histórico ao ser eleito o primeiro indígena da Academia Brasileira de Letras (ABL). O que representa o título de imortal numa instituição que se restringia, até então, a ser um “espaço de lusofonia”, como você enfatizou na cerimônia de posse?

O projeto que foi comigo para a Academia Brasileira de Letras é o Língua Mãe. Como eu já tinha mencionado, inclusive na minha fala na posse: “aqui, vocês têm a função de difundir a lusofonia, promover a língua portuguesa, e eu quero trazer para cá uma sinfonia”. Eu mencionei o Mário de Andrade [1893-1945], que dizia num poema: “Eu sou trezentos”. No nosso caso, 305 línguas virão comigo. Eu fiz essa provocação, e obviamente isso grudou em mim. A minha cadeira na Academia Brasileira de Letras é uma plataforma porque eu provoquei essa situação. E com a minha querida amiga, Karen Worcman, do Museu da Pessoa, que desenvolveu tecnologias de registro, me animei a convidar o Museu da Pessoa para me ajudar a dar entrada a essa diversidade linguística numa plataforma digital. Eu também fiz um discurso corajoso na academia por evitar ler qualquer texto, e isso deixou os meus colegas da banca apavorados, estavam suando frio, mas eu consegui fazer o ritual deles de posse e concluí, digamos, meu rito de entrada, mas ficou pendurado: “o que você veio fazer aqui?” Eles me levaram para lá porque eles queriam extrair alguma coisa desse universo da oralidade. E eu acho que eles estão bem animados. Agora, a Academia Brasileira de

Letras, além da língua portuguesa, tem também 300 e tantas línguas nativas, o que vai tornar aquele mundo muito mais complicado e muito mais divertido.

O termo “ancestralidade” tornou-se um dos mais buscados na internet. Grandes laboratórios de genética da América Latina, por exemplo, registraram um aumento de mais de 1000% na busca pelo teste de ancestralidade. Essa demanda é meramente curiosidade ou uma conscientização de que a partir da sabedoria de antepassados poderemos encontrar pistas para uma mudança real no presente?

Até o final do século 20, para marcar uma linha do tempo, isso não interessava a ninguém, a não ser aqueles que queriam pedir passaporte italiano. Eu soube que os nisseis e sanseis, quando voltavam para o Japão fazendo essa busca ancestral, não eram bem-recebidos. Tem uma parte dessa comunidade de adventícios, de gente que veio para cá, tem os que vieram muito, muito antes, tem os portugueses. E outros que vieram para cá depois. A Itália só admitiu a volta dos seus filhotes recentemente, porque eles começaram a ir em tudo quanto é arquivo público para caçar onde é que estava o parente ancestral deles. Então, há uma busca pela ancestralidade que a gente deve entender que tem um sentido prático: é para eu poder dar o pé daqui do Brasil se o negócio fritar. Para os povos de matriz africana, para o povo da diáspora, tem um reclamo profundo, que é saber de onde veio. Não é para voltar para lá. As pessoas não querem voltar para o Congo. Não querem voltar para algum lugar que a Bélgica, a França, a Inglaterra, as potências europeias picaram feito uma pizza e criaram fronteiras artificiais. Quando alguém que não sabe de onde foi arrancado e jogado aqui como peça, como um escravizado, esse reclamo é da alma dele. Eles tentam achar isso em tudo quanto é lugar e agora está tendo uma busca muito mais, digamos, coletiva:

Um corpo-território é a cura possível desse abismo cognitivo e sensorial em que a gente se meteu, no qual o nosso corpo foi separado do corpo da terra de uma maneira radical e ampla

todo mundo quer saber de qual lugar foi arrancado Sabe a samaúma e aquelas raízes externas gigantescas?

Ela vira um abrigo lá dentro de tão grande que é a raiz – chata, larga e profunda – que segura a árvore. É um monumento. Essas raízes são profundas mesmo, e essa profundidade nos anima à confiança de que não vai cair. Mas essas raízes não vão ser achadas na superfície. Se não buscarem de verdade (a ancestralidade), não acharão. Ficarão vendo, apenas, as armações externas.

Ou seja, por um lado, há uma busca legítima pela ancestralidade e, por outro, uma demanda de cunho mercadológico?

As armações externas da ancestralidade são aquilo que está em voga: parece que todo mundo quer glamourizar isso. Eu cometi um daqueles erros táticos de falar, no tempo da pandemia, num encontro com Zé Miguel Wisnik, que o futuro é ancestral. Compartilhei isso e dali para cá já foram publicados 399 livros sobre o futuro ancestral, ancestralidade, e o álbum do Alok, que ganhou Grammy. Então, tem todo tipo de apropriação. Eu podia ficar chateado, pensar que deveria ter ido lá no Instituto do Patrimônio Histórico Cultural e registrado. Eu acho que por um tempo ainda vai ter um consumo muito grande disso. A carência de matéria narrativa não é brincadeira. Assim é o campo da produção, seja da literatura, das outras artes, todas ficam ansiando por alguma matéria. Aí o que acontece, alguma coisa que dá faísca no ar, vira material para filme utilizar, roteirizar etc. É uma maneira de transformar tudo o que nos acontece, de alguma maneira, em narrativa. Monetizar tudo, monetizar a ancestralidade.

Voltando à importância de sonhar e de imaginar outras formas de ser e estar no planeta, de se conectar com os seres da floresta e com os rios, seu primeiro livro para crianças, Kuján e os meninos sabidos, foi uma forma de compartilhar suas ideias com essa nova geração? Felizmente, muito antes de publicar esse livrinho, bons autores já abordaram temáticas tão relevantes para sua geração ler. Eu acho que a literatura com esse compromisso funciona como uma espécie de curativo diante de tanta violência de narrativas que as crianças sofrem. As crianças sofrem bullying de uma literatura ordinária e de uma mídia digital indecente. Esse acesso a esses conteúdos digitais é uma distopia total. É raro uma animação ou alguma coisa a que assistam que seja boa para elas, boa para o espírito delas. Então, essa literatura funciona como uma espécie de primeiros-socorros. Mas ela ainda tem uma capacidade reduzida. A infância está sendo exposta a uma violência tão grande que o máximo que a gente pode fazer é distribuir band-aids. Há na literatura uma experiência de imersão, mas eu não posso deixar de relativizar o poder da literatura porque senão a gente vai achar que alguns desses livros vão se interpor entre o dragão da maldade que existe no mundo digital e em narrativas violentas. Por isso é muito importante essas experiências de imersão na literatura, que é aprender com a Terra.

Assista a trechos dessa entrevista com Ailton Krenak, realizada em novembro de 2024, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo

Assista .gratuitamente a dezenas de filmes, documentários, produções originais e shows na nova plataforma de streaming do Sesc São Paulo.

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Amazônia – Arqueologia da Floresta: Viver na Floresta
Interactions - When Cinema Looks to Nature
Trajetórias do Ambientalismo Brasileiro

VOOS PARA A mudança

Urgências climáticas provocam a adoção de estratégias para um desenvolvimento economicamente viável, ambientalmente sustentável e socialmente justos

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

IMAGENS EXTRAÍDAS DO LIVRO PANTANAL, DE JOÃO FARKAS (EDIÇÕES SESC SÃO PAULO, 2020)

mudança

sustentabilidade

Ao sobrevoar o Pantanal, a ave-símbolo do bioma, Tuiuiú, encontra um cenário devastado pelas queimadas que em 2024 representaram o maior registro em focos desde 1998. Essa que é uma das maiores planícies alagadas do mundo, localizada nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, também é a segunda casa de João Farkas. O fotógrafo já publicou livros como Pantanal (Edições Sesc São Paulo, 2020), em que registrou as mudanças na fauna e flora dessa região ameaçada por uma crise ecológica provocada pela ação humana. De Norte a Sul do Brasil, de uma ponta à outra do planeta, esse quadro se repete. Tragédias como as enchentes que inundaram Porto Alegre (RS) entre abril e maio do ano passado, longos períodos de estiagem e seca, rompimentos de barragens, desmatamento da Amazônia e outros graves cenários apertam, mais uma vez, o botão de emergência.

Segundo dados do observatório Copernicus, da União Europeia, divulgados também em janeiro, 2024 foi o ano mais quente da história desde o início das medições e o primeiro a superar a temperatura média do planeta em 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais. Enquanto pesquisas científicas, relatórios e propostas avançam, a expectativa para a próxima Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30), que será realizada em novembro, em Belém (PA), é de que a economia mundial se comprometa com uma era de mudanças. Mas será que é possível adotar um modelo econômico que permita o desenvolvimento tendo a sustentabilidade como premissa?

Foi a partir de 1972, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, na Suécia – a primeira conferência internacional sobre meio ambiente – que se alastrou o debate a

respeito dos limites do crescimento econômico. Ou seja, o modelo de consumo de recursos naturais e a consequente poluição ambiental passaria a exigir transformações em larga escala. A pesquisadora Layza da Rocha Soares, doutora em economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), explica que, naquele contexto, entre as décadas de 1960 e 1970, surgiram duas correntes de pensamento antagônicas: a Economia Ambiental e a Economia Ecológica. Cada qual aborda uma perspectiva de crescimento econômico e meio ambiente, compreendendo o conceito de sustentabilidade de maneiras diferentes.

“A Economia Ambiental não considera que os recursos naturais sejam fatores limitantes ao crescimento econômico, pois partem do pressuposto de que existe uma substitutibilidade quase perfeita entre os fatores de produção (capital, trabalho e recursos naturais) em razão da possibilidade de o progresso tecnológico e científico superar a indisponibilidade do recurso natural”, descreve. Por sua vez, explica a pesquisadora, a Economia Ecológica argumenta ser necessária a manutenção dos recursos naturais, além de defender um crescimento econômico responsável, que considera o limite biofísico do meio ambiente. “A Economia Ecológica aplica métodos e conceitos tanto da economia quanto da ecologia para compreender os diversos desafios que envolvem um desenvolvimento sustentável”, complementa.

ACORDOS X PRÁTICAS

Um marco para a discussão sobre desenvolvimento sustentável e degradação do meio ambiente foi a ECO-92, como ficou conhecida a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro (RJ), em 1992. Mais de uma década depois, em 2000,

Reflexos, João Farkas. Parque Nacional do Pantanal mato-grossense.
João Farkas

sustentabilidade

líderes de 189 países assinaram, na sede das Nações Unidas, em Nova York, Estados Unidos, a Declaração do Milênio que estabeleceu oito metas a serem atingidas até 2015, conhecidas como Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). A partir da Declaração do Milênio, os países signatários da ONU, incluindo o Brasil, definiriam os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que abarcam 169 metas, em 2015. A Agenda 2030, como ficou conhecida, demarcou uma urgente mudança de foco e discurso internacional sobre a maneira como as economias deveriam buscar o crescimento.

“O desafio, tal como está colocado em termos internacionais, e que basicamente assegura um certo consenso, é que nós temos que ter uma sociedade que seja economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Esse é o tripé básico”, defende o economista Ladislau Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e consultor de diversas agências da Organização das Nações Unidas (ONU).

No entanto, dez anos depois da assinatura da Agenda 2030, a previsão é de que, no fim desta década, apenas 17% das 169 metas sejam atingidas, segundo Dowbor. “Nós temos recursos, temos as tecnologias, sabemos o que deve ser feito e as coisas não acontecem. Temos que falar sobre um problema de governança, que difere de governo ou de administração pública. Significa fazer funcionar o conjunto. Ou seja, é importante entender que a crise ecológica está ligada a um processo decisório extrativo, que não permite que as medidas de longo prazo sejam tomadas porque interessa mais a extração de dividendos. É a dominação financeira sobre o processo”, adverte.

Em resposta, iniciativas mostram ser possível uma economia norteada pelo uso sustentável de recursos naturais visando produtos ou serviços, focada na

Paiaguás: área de assoreamento avançado no Pantanal.

biodiversidade e no bem-estar das comunidades. “Todos os biomas brasileiros juntos produzem mais de cinco mil frutas comestíveis. Quantas frutas da nossa biodiversidade encontramos no supermercado? Pouquíssimas. Isso que estou falando é apenas em relação a frutas. Temos todo o potencial de desenvolver uma bioeconomia de floresta em pé em todos os biomas. O açaí é uma indústria de bilhões de dólares no mundo”, ressaltou o cientista Carlos Nobre, um dos mais renomados estudiosos brasileiros do clima, em entrevista à Revista E, em 2021.

Nobre é um dos conselheiros e proponente do Amazônia 4.0, projeto que busca demonstrar a viabilidade de uma nova bioeconomia de floresta em pé e rios fluindo para a Amazônia em atividades que somam conhecimento científico e inovações tecnológicas a conhecimentos de povos indígenas e comunidades locais. “Projeções da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) indicam que, em uma década, a bioeconomia deverá representar 2,7% do PIB dos países mais ricos. Já o estudo global macroeconômico Changes in the Global

Value of Ecosystem Services atesta que a floresta amazônica de pé pode render até R$ 7 trilhões por ano ao Brasil”, destaca a página oficial do Amazônia 4.0.

Nesse caminho, tecnologias ancestrais preservadas por povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais conhecedoras da terra, de frutos, sementes, raízes e outros elementos naturais, poderiam ser adotadas economicamente. “Eles trazem alguns exemplos e formas de conviver com a natureza, mantendo a Floresta Amazônica em pé,

sustentabilidade

mantendo o Pantanal em pé, a Mata Atlântica em pé, sem que isso afete de forma negativa a economia. Ou seja, são outras formas de viver. Nós, que vivemos nas grandes cidades, e que já estamos mergulhadas nessa dinâmica que não é nada natural, podemos aprender com essas diferentes comunidades”, defende a pesquisadora e economista Layza Soares.

PLANETA FELIZ

Alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), os negócios de impacto socioambiental são exemplos de como saberes e fazeres ancestrais são ferramentas valiosas para impulsionar a economia sem gerar impactos negativos ao meio ambiente. A compostagem – tecnologia milenar de biodegradação de resíduos orgânicos que

são transformados em adubo – reduz a quantidade de resíduos enviados para aterros sanitários, diminuindo as emissões de gases de efeito estufa, além de gerar outros impactos positivos. Nas últimas décadas, a compostagem vem sendo adotada como uma oportunidade por empreendedores brasileiros, que constataram uma grande demanda – o país produz 77,1 milhões de toneladas de resíduos urbanos por ano, dos quais 45,3% são resíduos orgânicos, e menos de 1% é reciclado, de acordo com o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2023, elaborado pela Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema).

Foi o caso da empresa Planta Feliz, criada pelo casal Adriano Sgarbi e Marina Sierra de Camargo, no extremo sul da cidade de São Paulo (SP). A iniciativa surgiu despretensiosamente, entre 2010 e 2016, quando Marina reunia os resíduos orgânicos domésticos e aqueles que

Baía na região da Nhecolândia.
João Farkas

TEMOS QUE TER UMA SOCIEDADE

TAMBÉM SOCIALMENTE JUSTA E

AMBIENTALMENTE SUSTENTÁVEL.

ESSE É O TRIPÉ BÁSICO.

Ladislau Dowbor, economista professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Lagoa Vermelha, antes da tempestade.
João Farkas

sustentabilidade

Rio Perdido, Serra da Bodoquena.

coletava na residência de amigos e colegas de trabalho para colocar no minhocário que tinha em casa. Da compostagem, passou à venda do adubo que produzia. Mas foi a partir de 2019 que a empresa amadureceu e começou a ganhar ramificações: em 2020, lançaram o serviço de assinatura de coleta e compostagem e, no ano seguinte, começaram a atender grandes geradores de resíduos, como comércios, restaurantes e mercados.

No ano passado, a Planta Feliz recebeu a licença ambiental da Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), tornando-se oficialmente o primeiro pátio privado de compostagem da cidade de São Paulo, com capacidade para processar até dez toneladas de resíduos orgânicos por dia. A empresa também apoia a agricultura orgânica, fomenta o turismo de base comunitária e contribui para a geração de renda.

“Economicamente, esse modelo fortalece a economia

local ao gerar oportunidades de trabalho, capacitar moradores da região e promover o consumo consciente. Também cria um impacto positivo para os pequenos agricultores e produtores, que têm acesso ao adubo para enriquecer suas plantações de forma natural. Além disso, o pátio atrai pessoas e organizações interessadas em práticas sustentáveis, contribuindo para o fortalecimento do Polo de Ecoturismo e da economia circular”, celebra a sócia-fundadora.

Até o momento, a empresa já compostou mais de 250 toneladas de resíduos orgânicos. “Ser um negócio de impacto socioambiental significa estar alinhado com princípios que vão além do lucro, buscando gerar benefícios sociais e ambientais em todas as nossas ações. Queremos deixar um legado positivo, mostrando que é possível empreender com impacto socioambiental e criar um futuro mais justo e regenerativo”, conclui.

EDUCAR PARA O AMANHÃ

Atividades educativas, publicações e produções audiovisuais voltadas à discussão sobre sustentabilidade compõem a programação do Sesc São Paulo, convidando o público à reflexão

Há décadas, o Sesc São Paulo abraça a sustentabilidade como diretriz estratégica, por isso, tem o compromisso de realizar um trabalho de conservação e recuperação de áreas verdes; promover ações para redução e destinação adequada dos resíduos; adequar suas edificações para diminuir o consumo de água e energia; bem como projetar soluções arquitetônicas passíveis de certificação ambiental. Além da prática permanente, as 43 unidades da instituição, na capital, interior e litoral, realizam ações educativas, vivências, cursos e oficinas que buscam fomentar debates e propostas sobre como a sociedade pode viver em harmonia com o meio ambiente.

O Sesc mantém duas unidades com características de parques urbanos em Interlagos e Itaquera, os Centros de Educação Ambiental nas unidades de Guarulhos e Mogi das Cruzes, na grande São Paulo, e Bertioga, no litoral, como espaços de referência para conhecer a fauna e a flora brasileiras e refletir sobre questões socioambientais. Localizada na Baixada Santista, a Reserva Natural Sesc Bertioga protege uma área de 600 mil metros quadrados de floresta, em que os visitantes podem apreciar a paisagem e conhecer o Domo Geodésico, a Trilha do Sentir, a Trilha Tucum e o Jardim das Brincadeiras. O local dispõe de recursos de acessibilidade.

para ver no sesc / esporte

Na programação regular das unidades, atividades aproximam o público de iniciativas que respondem ao atual desafio planetário. Documentários e séries dedicados à imersão em temas como Amazônia, povos originários, sustentabilidade, entre outros, fazem parte da programação do SescTV. Além disso, publicações focadas em diferentes análises em diferentes áreas como filosofia, política, educação, compõem o acervo das Edições Sesc São Paulo.

Confira alguns destaques da programação:

INTERLAGOS E PINHEIROS

Compostagem termofílica – Como fazer?

A oficina apresenta aspectos teóricos e práticos desse processo que gera um adubo rico e nutritivo a partir da reciclagem de variados tipos de materiais orgânicos. Com os criadores da Planta Feliz, Adriano Sgarbi e Marina Sierra de Camargo. Dia 9/2. Domingo, das 10h30 às 14h30 (Pinheiros). Dia 23/2. Domingo, das 10h às 13h (Interlagos).

CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO

Interdependência: outro olhar sobre a água e as mudanças climáticas

O curso aborda temas científicos, filosóficos e saberes ancestrais, explorando as características, os ciclos e os comportamentos da água. Com Caio Silva Ferraz, Moacir Lacerda, Anderson Santos, Renato Tagnin e José Carlos Perdigão.

Dias 11, 12, 13, 18 e 19/3. Terças, quartas e quinta, das 19h às 21h30. Inscrições online.

Na Reserva Natural Sesc Bertioga, os visitantes podem contemplar a fauna e flora de uma área florestal preservada.

FILÓSOFO do instante

O legado atemporal de Antonio Cicero, autor de canções, versos e reflexões que superam o agora

POR MANUELA FERREIRA

Em 1969, aos 24 anos e recém-chegado a Londres, o poeta, ensaísta, crítico literário e filósofo Antonio Cicero (1945-2024) conheceu aquele que seria seu melhor amigo até o fim da vida, além de figura limiar em sua produção criativa. Embora soubesse que o cantor e compositor Caetano Veloso vivia exilado na cidade, os mundos de ambos, até ali, nunca haviam se entrelaçado.

Caetano, preso em dezembro de 1968, deixou o Brasil sob acusação de insulto à pátria, dias após a promulgação do Ato Institucional número 5 (AI-5), que marcou o endurecimento da ditadura civil-militar instaurada em 1964. Cicero, oriundo da faculdade de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ), era filho do economista Ewaldo Correia Lima (1945-1996), um dos fundadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e executivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Para acalmar as preocupações dos pais, se mudou para a metrópole londrina após ser levado de casa para depor, duas vezes, em função de sua militância estudantil na organização clandestina Ação Popular. Sua intenção, no entanto, era seguir para Paris, França, que vivia uma onda de manifestações, greves gerais e ocupações de universidades e fábricas. “Bati na porta de Caetano numa manhã, para levar uma encomenda. Demoraram a atender. Quando abriram, era o seu empresário Guilherme Araújo (1936-2007). Caetano, Gilberto Gil e Jorge Mautner, que moravam lá também, estavam todos dormindo. Entreguei as encomendas, deixei um bilhete e fui embora”, recordou o poeta, em entrevista à série Em Primeira Pessoa, realizada no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, em 9 de agosto de 2019.

ARTE E AFETO

Um dia, caminhando pela feira da rua Portobello Road, ponto de encontro de imigrantes caribenhos na cidade inglesa, reencontrou Guilherme Araújo – que, desta vez, foi categórico: Cicero estava sendo convidado para uma reunião no endereço londrino dos tropicalistas. “Fiquei encantado com todo o grupo. Mas uma das coisas mais importantes da minha vida foi ter conhecido Caetano Veloso”, afirmou o filósofo. “Eu era muito influenciado pelos amigos intelectuais de meu pai, como [o sociólogo] Hélio Jaguaribe (1923-2018), [o advogado] Cândido Mendes (1928-2022) e [o economista] Celso Furtado (1920-2004). Ficava de ouvinte daquelas elaboradas conversas. Mas eles tinham uma ideia, comum ao intelectual brasileiro da época, que era a de desprezar a cultura popular, de modo que ninguém dava muito valor à música popular; achavam interessante, às vezes, mas não davam muito valor. E eu entrei nessa onda. Quando conheci Caetano, mudei completamente meu ponto de vista”, refletiu Cicero no depoimento.

A partir das discussões propostas pelo amigo baiano, Cicero se convenceu de que era possível emergir uma obra-prima tanto de uma vertente artística mais popular, como a música ou o cinema, quanto de uma referência mais erudita – e que não há contradição nisso. As afinidades e inquietudes nascidas da amizade logo ecoaram nos versos e ensaios produzidos por Cicero.

“Uma vez, a gente assistiu junto, na televisão, ao filme Cantando na chuva (1952), que eu já tinha visto antes (...). Mas Caetano me chamava atenção para cada aspecto, e via de uma maneira extremamente inteligente cada detalhe. Fui percebendo que eu é que estava errado por não prestar atenção a essas coisas. Essa [minha] atitude elitista, de superior intelectual, era completamente equivocada”, analisou na série Em Primeira Pessoa

CASA DA PALAVRA

O pensamento crítico e a formação cultural e artística do poeta deram sinais desde muito cedo. A família chegou ao bairro do Leblon, zona Sul do Rio de Janeiro (RJ), nos anos 1950, vinda do Piauí. Apesar da proximidade com o Atlântico, Cicero não gostava de praia – faria as pazes com o mar já adulto. Também não gostava de ir à escola. Preferia estar em casa, lendo,

a fazer qualquer outro programa com as crianças vizinhas. Foi assim, por exemplo, que descobriu os livros infantis do escritor Monteiro Lobato (1882-1948) e as enciclopédias da coleção Tesouros da Juventude , publicadas entre as décadas de 1920 e 1950.

É nesse período que Cicero passa a se interessar, também, por filosofia, e se encanta pela poesia, a partir do primeiro contato com a obra I-Juca-Pirama (1851), de Gonçalves Dias (1823-1864). Ficou fascinado, inicialmente, com o ritmo da obra, ao perceber a sonoridade das sílabas átonas e tônicas presentes nos versos. Em 1960, quando toda a família se mudou para Washington D.C., nos Estados Unidos, em decorrência da carreira do patriarca, o agora adolescente se tornaria um devoto, em especial, das tragédias escritas pelo poeta e dramaturgo William Shakespeare (1564-1616), que lia no colégio. Uma de suas passagens preferidas é um dos mais famosos solilóquios de Macbeth (1606).

No dia de sua posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2018, o filósofo, poeta e escritor Antonio Cícero exaltou a poesia e a literatura nacional em seu discurso, além de homenagear o primeiro ocupante da cadeira 27, o abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910).

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.

Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro

Do que um pássaro sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema:

Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

Guarde o que quer que guarda um poema:

Por isso o lance do poema:

Por guardar-se o que se quer guardar.

Do livro Guardar (Record, 1996)

TEMPOS E ESPAÇOS

Era comum ver Cicero recitar Macbeth, com paixão, em perfeita entonação e na versão original, seja em conferências, palestras ou entrevistas – a exemplo do depoimento para a série Em Primeira Pessoa Dizem os versos do Ato 5, cena 1: E todos os nossos ontens não fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado.

Cicero faria, ainda, uma segunda estadia em território estadunidense. Era 1976 quando deu início à pós-graduação na Georgetown University. Dedicou-se aos estudos de grego e latim e, ao retornar ao Brasil, passou a lecionar filosofia, lógica, estética e teoria da arte em universidades e centros de ensino. Mas o nome do filósofo se tornaria conhecido do grande público no fim da década de 1970, quando sua irmã caçula, a cantora e compositora Marina Lima, musicou o poema “Alma caiada”, de autoria de Cicero, gravado por Maria Bethânia para o álbum Pássaro proibido (1976), mas excluído do disco devido à censura da ditadura militar. A música só foi lançada em 1979, no álbum Pedaço de Mim, de Zizi Possi. Em seu álbum de estreia, Simples como Fogo (1979), Marina deu voz a cinco poemas do irmão. A partir de então, o poeta colaborou com diversos parceiros da música,, como Waly Salomão (1943-2003), João Bosco, Orlando Morais, Adriana Calcanhotto e Lulu Santos.

MÚSICA, LETRA E DANÇA

Em 1984, veio a canção “Fullgás”, que consolidou a carreira de Marina Lima e se tornou um clássico da MPB. “Os riffs dos sintetizadores no início da música são uma espécie de chamado à celebração do amor e de uma ideia de nação. Quando aquelas linhas de baixo balançam o ar na pista de dança, as pessoas em volta param de lutar por cerveja no bar, cancelam os pedidos de Uber e abandonam até a fila do banheiro. Não dá para ouvir ‘Fullgás’ parado. A canção de Marina Lima e Antonio Cicero, irmãos gênios nascidos com uma década de diferença, continua sendo um hino

infalível do pop nacional, 40 anos depois de lançada no disco de mesmo nome, em meio ao fim da ditadura militar e à esperança de um Brasil novo que surgia”, escreveu o jornalista William Helal Filho para o Blog do Acervo , do jornal O Globo , em outubro de 2024.

A parceria dos irmãos rendeu sucessos como "Charme do mundo" (1981), "Pra começar" (1986), "Acontecimentos" (1991), entre outros. Cicero trouxe à música popular uma densidade poética que raramente se encontrava em outros letristas. “Nunca pensei em ser compositor, em escrever letra de música, porque eu não tocava nenhum instrumento (...) eu não escrevo uma coisa para ser letra de música, eu escrevo quando já há uma melodia determinada, que se transforma numa canção (...) quando eu faço um poema, puramente, ele pode vir de onde for; uma palavra que eu ouvi, um romance que eu me lembro de ter lido muito tempo atrás; alguma frase que eu li em algum lugar”, revelou, em entrevista ao diretor teatral Aderbal Freire Filho (1941-2023), no programa Arte do Artista , da TV Brasil, em dezembro de 2012.

FINITUDE SEM FIM

Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2018, o escritor publicou sete livros: quatro dedicados à poesia e três a ensaios filosóficos. Um dos conceitos mais examinados por sua obra filosófica é o da “agoralidade”, tema do artigo assinado por Cicero e publicado no jornal Folha de S.Paulo de 24 de julho de 2010. “Entre os séculos 16 e 18, estabeleceu-se o esquema tríplice de periodização que persiste até hoje. Tem-se a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade. Ora, ‘moderno’, etimologicamente, significa referente a agora ou, se quisermos, ‘agoral’. Modernidade, portanto, é a “agoralidade’”, definiu.

O apego ao hoje, à coerência, ao brilhantismo e à elegância foi exaltado pelos amigos do filósofo como algumas de suas mais firmes características quando da confirmação de sua morte, aos 79 anos, no dia 23 de outubro de 2024. Antonio Cicero estava de mãos dadas com o marido, Marcelo Pies, quando foi submetido a um procedimento de suicídio assistido na cidade de Zurique, na Suíça, país onde a prática é legalizada. Após ser diagnosticado com Alzheimer e antes de experimentar uma maior progressão da doença, escolheu a morte assistida como forma digna e consciente de preservar a lucidez com a qual habitou o mundo.

para ver no sesc / bio

Em três volumes da coleção Mutações, o pensamento do filósofo e escritor alcança uma diversidade de leitores.

TERRITÓRIOS DO PENSAR

Coleção Mutações, das Edições Sesc São Paulo, reúne ensaios sobre arte e progresso assinados por Antonio Cicero

Como filósofo, Antonio Cicero foi um dos participantes convidados da coleção Mutações , das Edições Sesc São Paulo, coletânea de ensaios que examinam diferentes

temáticas a cada edição. No 11º livro, Dissonâncias do progresso (2019), a série aborda como o desenvolvimento tecnológico gerou inúmeros benefícios

para a humanidade, a exemplo dos avanços na medicina e na comunicação – mas, por outro lado, reflete se a velocidade e superficialidade podem ser danosas para as relações humanas. No ensaio “Caminhos da razão e do progresso”, Cicero provoca nas primeiras linhas: “Parece-me que em nossa época, em todo o mundo, trava-se uma ocasionalmente violenta guerra entre, por um lado, os inimigos do Iluminismo e, por outro, os seus defensores. Logo de saída, quero deixar claro que me incluo entre esses últimos”.

Na edição intitulada Entre dois mundos (2017), escreve o artigo “Homero e a essência da poesia”. Já no volume Ainda sob a tempestade (2020), Antonio Cicero versa sobre “Os direitos humanos vs. o neofascismo”. Didático, o filósofo norteia o leitor: “Preciso, em primeiro lugar, dizer em que consiste o neofascismo. Ora, evidentemente não é possível dizer em que consiste o neofascismo sem antes ter dito em que consiste o próprio fascismo. Pois bem, penso que o fascismo consiste, em primeiro lugar, em uma espécie de neobarbárie – agora é preciso explicar em que consiste a neobarbárie, e, naturalmente, não é possível fazê-lo sem, antes, esclarecer em que consiste a barbárie”.

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO

Coleção Mutações

Organização: Adauto Novaes

Entre dois mundos (2017)

Dissonâncias do progresso (2019) Ainda sob a tempestade (2020). sescsp.org.br/edicoes

SOMOS NATUREZA

Sobrevivente do Holocausto, artista polonês Frans Krajcberg imigrou para o Brasil após o genocídio nazista e se deparou com outra guerra: a do ser humano contra o meio ambiente

POR MARCEL VERRUMO

Em uma casa na árvore, no Sítio Natura, localizado na cidade litorânea de Nova Viçosa (BA), o escultor, pintor, gravador e fotógrafo Frans Krajcberg (1921-2017) morou por anos, contemplando, pelas janelas, o verde. Em meio às copas de plantas nativas e de espécies presenteadas por amigos, viveu ao som dos pássaros, enquanto construía sua existência semeando uma obra amalgamada com o próprio meio ambiente.

Mas a paisagem vislumbrada por Krajcberg nem sempre foi marcada pelo verde da natureza. Tampouco o seu silêncio foi sempre somado à sinfonia dos pássaros. Houve um tempo em que seu campo de visão era o campo de batalha. Um tempo em que o horizonte era marcado por secas, estiagens e incêndios; em que o verde das árvores era queimado pelo vermelho do fogo e o canto dos pássaros era silenciado por bombas, pelo poder da pólvora.

Frans Krajcberg cresceu em meio à destruição. Nasceu no seio de uma comunidade polonesa e, aos 18 anos, viu as tropas nazistas invadirem seu país, em um episódio que marcou o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Foi escravizado em um campo de trabalho forçado, conseguiu fugir e lutar ao lado do Exército Popular da Polônia (ligado à União Soviética). Terminada a guerra, imigrou para o Brasil, território que se tornaria seu endereço e onde faria seu ateliê – em um local também atingido pela violência, dessa vez de florestas queimando, biomas desertificando-se, rios secando.

“Krajcberg sobreviveu no epicentro da Segunda Guerra durante anos. Quando chegou ao Brasil, se viu no epicentro de outra guerra, a da destruição do solo no Paraná, a da queimada na Amazônia. Ele nunca saiu da guerra, esteve em um combate permanente durante a vida, em uma luta constante.

Alexandre dos Santos/Acervo Paulo Kuczynski

As primeiras esculturas do artista são lisas e lixadas ao extremo para mostrar a beleza do pau-de-óleo.

Sem título (1970). Escultura em madeira.

Composição em vermelho (1965). Flores de madeira e pigmentos sobre painel de madeira.

Edições Sesc

Não havia uma conversa que não voltasse a esse assunto”, conta o escritor João Meirelles, amigo do artista e autor da biografia Frans Krajcberg: a natureza como cultura (2025), recém-lançada em coedição pelas Edições Sesc São Paulo e pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp).

As inquietações da humanidade transformaram a obra do artista, fazendo com que ele se afastasse de uma “arte pela arte” e se aproximasse de uma estética com forte ativismo, ligada sobretudo ao ambientalismo – em uma época em que as discussões sobre ecologia não eram tão intensas como na contemporaneidade. “Em sua guerra em prol do meio ambiente, Krajcberg fez da máquina fotográfica a sua arma de combate”, descreve Meirelles.

Arte e natureza fundiram-se, tornando-se uma a continuação da outra. Em um ateliê construído in loco em todo o território brasileiro, o artista usou como matéria-prima árvores queimadas e solos devastados. Entre os exemplos, estão as criações feitas durante viagens à Amazônia

e ao Mato Grosso, fotografando cenas de desmatamentos e queimadas; suas esculturas a partir de troncos e raízes calcificadas pelo fogo.

Ao longo de décadas, o polonês participou de mais de 200 exposições coletivas e 92 individuais, teve sua obra incorporada ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), foi laureado com centenas de prêmios nacionais e internacionais, inspirou e afetou artistas, estudiosos e pessoas que, em diferentes regiões do mundo, tiveram contato com sua arte. Em 2003, centenas de suas obras foram reunidas no Instituto Frans Krajcberg, em Curitiba (PR).

Em uma de suas viagens pelo Brasil, com o amigo e biógrafo Meirelles, Frans Krajcberg revelou o que talvez seja o ponto central de sua estética, o reconhecimento de que é parte de onde vivia e de tudo o que criava: “Nós somos a natureza”. Em um país onde reconhecia a destruição ambiental há séculos, sintetizou ser feito da mesma tragédia que resultou em tantas de suas obras, da devastação que ainda assola o Brasil: “Eu sou um homem queimado”, sentenciava.

Escultura a partir do trançado de cipós de Juruena (MT), na praia de Nova Viçosa (BA).
Sem Título (1970).
Sombra projetada (1968). Madeiras retorcidas sobre painel laminado.

Obras do artista em exposição permanente no Espace Frans Krajcberg, em Paris (França).

Sombra das cabaças (1991), uma das obras doadas pelo artista à Prefeitura de Paris, em 2003, sob os cuidados da Associação dos Amigos de Frans Krajcberg.

Relevo em papel (1969). Série “Folhas e flores”. Gravura de decalque sobre papel japonês.

João Meirelles

Fotografia feita utilizando lentes macro: registro da explosão do barro ressecado, fenômeno que exigia horas de espera do artista.

Sem Título (1964). Diapositivo.

Frans
Krajcberg/Acervo
Marcia
Barrozo do Amaral
Sem título (1995). Série "Samambaia". Óleo sobre tela.

Com as crescentes limitações físicas nos últimos anos de vida, o artista realizava expedições fotográficas pelo jardim do sítio Natura, em Nova Viçosa (BA), como essa, em 2011.

João Meirelles

Registro do escritório do artista, em 2012, na Casa de Pirâmide, em Nova Viçosa (BA): projeto arquitetônico de Zanine Caldas (1919-2001).

O artista e suas esculturas de barro nos anos 1960

Sem Título (1986). Cipó sobre painel e pigmentos

Umas das maiores obras do artista, criada com cipós que coletou em Juruena (MT).
Mônica Martins/Acervo Citi de Obras de Arte

para ver no sesc / gráfica

ARTE COMO DENÚNCIA

Biografia conta a história de Krajcberg a partir de depoimentos, diários de campo e documentos históricos

Após o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) considerar 2024 como o mais quente já registrado da história do país e às vésperas de o Brasil sediar a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30), em Belém (PA), as Edições

Sesc São Paulo e a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) apresentam a biografia Frans Krajcberg: a natureza como cultura , escrita pelo escritor e ativista socioambiental João Meirelles.

O livro nasce da amizade de Meirelles e Krajcberg, que se conheceram no sítio do artista, em 1985. Na época, o polonês pediu ao escritor que escrevesse a obra. Em quase quatro décadas, o biógrafo amadureceu a solicitação, reunindo registros documentais, diários de campos e entrevistas com pessoas próximas a Krajcberg, resultando no mosaico que compõe a biografia.

“Lançar esta obra hoje é algo bem emblemático. O Frans foi

quem me despertou para a vida de ambientalista. Foi quem descobriu a queimada como arte e a apresentou de uma forma veemente. Foi também um artista que usou cores fortes, algo simbólico em um momento em que passamos por emoções e sensações fortes, sejam elas de frio ou de calor”, destaca o autor.

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO

Frans Krajcberg: a natureza como cultura (2024)

João Meirelles

Em parceria com a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp). sescsp.org.br/edicoes

As queimadas no norte de Mato Grosso impactaram o artista: registro fotográfico de 1984.

VOZ Operários da

Como funciona o trabalho e a formação de novos talentos da dublagem brasileira que emprestam as cordas vocais para personagens do cinema e da TV

POR DIEGO OLIVARES

A atriz brasileira
Myra Ruiz como a bruxa Elphaba, na montagem brasileira do musical Wicked, também dublou a personagem no longa-metragem homônimo, lançado em 2024.

Quem vê o dublador Celso

Vasconcellos em um de seus passeios pela região serrana do Rio de Janeiro, local em que passa boa parte do seu tempo quando está no Brasil, não imagina que aquele senhor alto e grisalho carrega centenas de vozes em seu currículo. O tom grave e pronunciado de sua voz, além da dicção apurada, proporcionou ao público brasileiro a interpretação de falas de astros internacionais, como Elvis Presley (1935-1977), Sidney Poitier (1927-2022), Warren Beatty e Peter Falk (1927-2011).

Vasconcellos é um dos dubladores mais longevos do país, tendo emprestado sua voz para filmes, seriados e desenhos animados entre 1969 e 2001, período em que atuou em estúdios como Herbert Richers, Rio Som e AIC São Paulo. A dublagem surgiu por acaso na vida dele, em uma época em que a profissão ganhou força no cenário nacional por conta de um decreto do então presidente Jânio Quadros (1917-1992), que determinou, em 1962, que todas as produções estrangeiras exibidas nos canais de TV nacionais fossem faladas em português. A decisão criou um hábito que permanece até hoje na preferência do público, como aponta uma pesquisa do site Ingresso.com divulgada em 2021, mostrando que 73% dos ingressos de cinema comprados no portal foram para filmes dublados.

Seis décadas atrás, quando esse mercado começou a se consolidar por aqui, os dubladores costumavam vir das radionovelas. Vasconcellos não foi exceção. “Um dia o Sérgio Cardoso [ator de teatro, cinema e TV (1925-1972)] estava dublando um

filme e faltou um ator. Então, ele foi me buscar, os diretores gostaram de mim e meio que me adotaram”. Começava ali uma carreira que, de forma indireta, se cruzou com a de estrelas de Hollywood, além de passar pela produção japonesa Ultraseven (1967-1968), a animação Aquaman (2018) e a franquia de cinema Transformers (2007-2024) – que confessa não serem seus trabalhos favoritos. “Eu sempre preferi dublar gente”, afirma, acrescentando que muito da sua técnica vinha de estudar o ator original, desde a pronúncia até os trejeitos físicos, para então chegar ao timbre mais parecido possível.

Celso Vasconcellos é de uma geração cujo trabalho de dublagem era feito em grupo, como numa peça de teatro interpretada pelos dubladores que contracenavam entre si enquanto refaziam os diálogos da versão original. Hoje em dia, o mercado não apenas ficou mais profissionalizado, como ganhou um componente solitário, em que cada ator dubla separadamente a parte que lhe cabe. Em muitas ocasiões, uma fala mais longa pode ser dividida em partes menores, e mesmo assim tem de soar fluida aos ouvidos do espectador. Para quem estava acostumado com o calor da troca com os colegas de cena, foi preciso certa adaptação.

DO PALCO AO ESTÚDIO

Recentemente, a atriz de musicais Myra Ruiz viveu a experiência da dublagem na pele (e na voz). Responsável pelo papel principal da versão brasileira para os palcos da produção estadunidense Wicked (que ganhou montagens em 2016,

2023 e 2025), ela foi escalada para repetir sua participação como a bruxa Elphaba na dublagem do filme, que chegou aos cinemas em novembro do ano passado. “A troca que eu normalmente tenho com os outros atores e com o público, eu busquei na interpretação das atrizes do original”, compara.

Na versão de Hollywood, Elphaba foi interpretada por Cynthia Erivo, que vem ganhando destaque na temporada 2025 de premiações do cinema. E, como se trata de uma produção musical, o trabalho da atriz brasileira foi além do ato de replicar as falas da personagem nos diálogos, exigindo também uma adequação às canções. “Dentro do alcance da minha voz, tive que mudar um pouco meu timbre para chegar mais próximo ao dela, e eu tentei trazer isso para a minha interpretação, não no sentido de imitar, mas para honrar o que a Cynthia fez”, conta Ruiz.

A tarefa fez a atriz voltar à essência de uma personagem com quem já convive há quase uma década nos palcos. “Depois de tantos anos, foi interessante colocar emoção na Elphaba só com a voz, sem usar os movimentos do corpo ou o figurino que o teatro proporciona. Foi um exercício de poder focar no que há de mais essencial na personagem”, revela.

TRABALHO DE FORMIGUINHA

Acompanhar de perto e deixar sua marca em produções da cultura pop é certamente um grande atrativo para os interessados em iniciar uma carreira no mundo da dublagem. Mas quem trabalha na área há

muito tempo adverte: os momentos de glamour são raros. “É um ofício em que a pessoa precisa ralar muito, um trabalho de formiguinha”, define Lino Reis, professor do curso de dublagem no Senac São Paulo. “Nós somos operários da arte, estamos aqui para servi-la”, acrescenta.

Segundo Márcia De Mônaco, dubladora há 32 anos, 15 deles também atuando como professora, trata-se de uma área em franca ascensão. “Quando comecei, o mercado brasileiro se resumia a 280 dubladores, todos concentrados no Rio e em São Paulo”, lembra. “Hoje estimamos dubladores nos 27 estados do país, totalizando entre 6 mil e 6,5 mil profissionais.”

Márcia e Lino são responsáveis por formar cerca de 100 dubladores por ano na unidade Lapa Scipião do Senac, na capital paulista. A

carga horária é intensa: aulas de quatro horas, três vezes por semana, durante três meses. Para participar, o aluno precisa ter DRT, o registro profissional de ator, documento obrigatório para exercer a dublagem profissionalmente. Os encontros começam com a introdução à teoria e aos termos técnicos do ofício, passando por exercícios de interpretação até colocar a voz em cena nos mais variados gêneros.

No meio do caminho, os pupilos aprendem uma diversidade de macetes, incluindo adaptações que podem ser feitas num texto para abrasileirar a fala. O professor Lino não se esquece de quando, durante uma cena, viu um de seus colegas substituir “it’s amazing!”, da fala original, por “amei isso”. O leitor que fizer o teste em frente ao espelho vai comprovar que a exclamação,

de fato, soa melhor do que a tradução literal da expressão em inglês (algo como: “é maravilhoso”).

A cena, por sinal, fazia parte de um reality show, formato responsável por boa parte da demanda por dubladores atualmente. Fazer a voz de uma pessoa real, e não de um personagem ou animação, requer uma abordagem ainda mais minuciosa, de acordo com os professores do Senac. “A matéria-prima de um reality são cenas do cotidiano, e por isso você tem que colocar palavras na boca dessas pessoas de forma natural”, explica De Mônaco. “Aí está a maior dificuldade: atuar sobre a fala de alguém que não está atuando.” É necessário ajustar o ritmo da fala, e até mesmo eventuais gaguejadas e hesitações. Tudo para fazer com que a voz daquele cidadão estrangeiro soe bem em português.

Nilton Fukuda
Professor do curso de dublagem do Senac São Paulo, Lino Reis adverte que os momentos de glamour no ofício são raros.

“Quando as pessoas esquecem que aquele programa é dublado, é porque o trabalho foi bem-feito. Nosso intuito é ser o mais invisível possível”, complementa Reis.

O crescimento dos reality shows também ajudou a equilibrar um pouco mais a balança entre os gêneros dos profissionais atuantes nos últimos anos. Até pouco tempo, contava-se nos dedos a presença feminina nas dublagens. A saída para elas, que costumavam ficar restritas a menos de 30% do número de personagens, foi desenvolver timbres que pudessem se encaixar na voz de crianças e adolescentes do sexo masculino.

“A gente foi adquirindo muito mais técnicas para conseguir entrar num universo no qual, eventualmente, não poderiam identificar se a minha voz é feminina ou não”, relata De Mônaco, citando desenhos como Naruto (2002-2017), herói dublado por Úrsula Bezerra [que também faz o Goku, da série Dragon Ball Z (19891996)], e A Turma da Mônica (19762022), em que a voz do Cebolinha foi feita por Angélica Santos.

VOZ ORIGINAL

Quando o trabalho parte de uma criação brasileira, como é o caso da turminha inventada por Maurício de Sousa, não se trata de uma dublagem, já que não há uma voz original a ser traduzida e adaptada. É necessária a criação de uma voz original por parte dos atores: primeiro vem a concepção do roteiro, depois a gravação dos diálogos e, somente aí, os animadores finalizam a criação, fazendo com que os movimentos das bocas das personagens se encaixem nas falas, e não o contrário.

É assim que acontece, por exemplo, em Irmão do Jorel (2015-2024), a mais bem-sucedida animação feita no Brasil neste século 21. Premiada com o Emmy, a atração, atualmente em sua quinta temporada, é famosa pelo humor irônico e as histórias fantásticas, muitas vezes criadas a partir de improvisos durante a escrita dos episódios. Com o elenco reunido para essas leituras, resgata-se o clima de grupo que caracterizava a rotina dos profissionais da voz de décadas atrás.

Foi justamente com esse espírito aberto a qualquer coisa que fuja do script que Juliano Enrico, idealizador e autor da série, encontrou a voz de seu protagonista. Andrei Duarte

trabalhava como ilustrador de cenários para as animações do Copa Studio (berço de Irmão do Jorel) e costumava tirar sarro do toque de celular de um dos colegas, imitando o timbre agudo e repetitivo que vinha várias vezes por dia do aparelho. Aquele som entrou de maneira insistente na mente de Enrico, que decidiu experimentar a voz de Duarte como guia enquanto trabalhava no episódio piloto da animação. Ele conduziu testes com uma porção de atores mais experientes, mas já era tarde. Ninguém lhe tirou a convicção de que o mais indicado para o papel era o ilustrador, cuja vida profissional ganharia um novo rumo a partir dali, com direito ao registro oficial de ator para poder trabalhar legalmente na área.

Nilton Fukuda
Dubladora há mais de três décadas e professora, Márcia De Mônaco acredita que hoje a profissão está em ascensão.

“No começo, eu não tinha certeza do que eu estava fazendo, mas eu sabia que tinha condições de fazer”, disse Duarte, hoje com a bagagem de dez anos da série nas costas. O sucesso de Irmão do Jorel atravessou fronteiras, e atualmente a animação é exibida em outros países da América Latina, onde, aí sim, acontece o processo de dublagem tradicional. “Fico feliz pra caramba de ver que a minha voz, de certa forma, está inspirando um ator mexicano a tentar fazer algo parecido para o personagem”, orgulha-se Andrei Duarte.

IA NA DUBLAGEM

Com o avanço das tecnologias de inteligência artificial, o intercâmbio de vozes e referências culturais na prática da dublagem pode enfrentar uma ameaça no futuro. Em junho do ano passado, uma empresa do mercado financeiro lançou uma propaganda em que o ator Will Smith falava em português, graças a um programa capaz de imitar sua voz e traduzila para o nosso idioma. Em resposta, a campanha Dublagem Viva, lançada por diversos profissionais da área, busca colocar limites ao uso desse recurso.

“Nosso interesse não é proibir nenhuma evolução tecnológica, queremos apenas garantir que o que é apenas uma ferramenta de criação não passe a ser entendida como criadora”, diz o manifesto publicado no site da iniciativa. “Os profissionais precisam ter seus espaços garantidos”, defende Juliano Enrico. “Nós sabemos o valor que esse trabalho tem, o trabalho que dá e o quanto isso faz diferença na hora de assistir a uma obra. Não dá nem para

por acaso por Juliano Enrico, criador de Irmão do Jorel, o ilustrador Andrei Duarte não imaginou que dublaria um dos personagens mais populares da animação brasileira.

imaginar um desenho como Irmão do Jorel dublado por uma inteligência artificial”, argumenta.

A professora Márcia Del Mônaco defende uma regulamentação mais rígida frente ao assunto, inclusive para defender os direitos autorais do dublador. “Eu não sei até que ponto a IA vai alcançar o que a dublagem brasileira alcança, de trazer essas sutilezas para a nossa linguagem, para o nosso cotidiano, para o nosso jeitinho, com as nossas emoções, com o nosso calor humano. Nós temos uma coisa que é a naturalidade, e não acredito que a inteligência artificial consiga, por mais que evolua, chegar neste patamar”, finaliza.

Descoberto

para ver no sesc / cinema

Dubladores marcam presença nas telas de filmes infantojuvenis exibidos pelo Cine Clubinho, no CineSesc.

VERSÃO BRASILEIRA

Filmes dublados e produções brasileiras são exibidos no projeto Cine Clubinho, no CineSesc, enquanto Centro de Pesquisa e Formação realiza oficina de introdução ao ofício de dublador

O CineSesc exibe uma diversificada programação de filmes infantojuvenis em cópias dubladas, nas tardes de domingo. As sessões garantem a diversão de crianças e adultos, e ainda contam com apresentações artísticas e lúdicas antes de cada exibição, num espaço com brinquedos educativos.

E para quem ficou com vontade de testar seus talentos como dublador, o Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc oferece, no próximo mês de abril, uma oficina de introdução ao ofício. Comandados pelo premiado músico Beto Strada, compositor de trilhas sonoras para 34 filmes brasileiros, os encontros trabalham

as técnicas e o uso da voz para construir a sonoridade de uma obra.

CINESESC

Cine Clubinho

Todos os domingos, às 15h. Informações sobre venda ou retirada de ingressos: sescsp.org.br/cinesesc

CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO

Oficina de introdução à arte da dublagem

Com o compositor, maestro e professor de cinema Beto Strada. Dias 8, 9, 10 e 11/4, das 14h às 18h. Inscrições: sescsp.org.br/cpf

SOBRE A coragem

Qual a origem da palavra coragem? E como as reflexões sobre essa virtude podem transformar a vida em sociedade? Na obra Mutações: sobre a coragem e outras virtudes (Edições Sesc São Paulo, 2024), intelectuais de diferentes áreas do saber se debruçam sobre o assunto, considerando os desafios da convivência contemporânea. Resultado de um ciclo de conferências realizado pelo Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, essa coletânea de ensaios é organizada por Adauto Novaes e joga luz sobre diferentes olhares para esse sentimento que só existe em ação, e que pode transformar o ser e seu lugar no mundo.

Para a psicanalista Maria Rita Kehl, “a coragem só existe porque existe o medo”. Essa primeira experiência é sentida pelo recém-nascido, que passa do conforto do ventre da mãe para o mundo extrauterino, completamente distinto de tudo que conhecera. O temor, no entanto, logo é sanado pelos cuidados maternos: o colo, o leite, o calor do corpo da mãe. Esse acolhimento gera confiança no bebê, e

precisará ser reforçada ao longo de seu crescimento. Os pais também precisam se armar de coragem para deixar seus filhos correrem alguns riscos –riscos que não ameacem suas vidas, evidentemente, mas que lhes possibilitem crescer e enfrentar a vida com alguma coragem, descreve Kehl.

Se o nascedouro da coragem está na experiência corpórea de todo indivíduo, é na sua ausência, em multidões virtuais capazes de difamar e espalhar fake news, por exemplo, que a covardia ganha forma, como defende e jornalista e pesquisador Eugênio Bucci. “Os discursos de ódio que se alastram no bojo das notícias fraudulentas vão se espalhando por meio de milícias virtuais clandestinas e dispersas, acobertadas por numerosos véus de camuflagem. Caluniadores não se deixam ver. Não dão a cara a tapa. E então? Se o corpo não está mais aí, estará a coragem?”, reflete Bucci.

Neste Em Pauta, trechos dos ensaios escritos por Bucci e Kehl para o livro Mutações: sobre a coragem e outras virtudes traçam cartografias rumo ao sentido dessa virtude.

O vazio da coragem

O adjetivo “presencial” consta dos dicionários, eu bem sei, mas ando implicando com ele. De tanto bater na pedra da prosa do idioma, o trambolhão vem se infiltrando em tudo, fominha, pervasivo, epidêmico e por demais espaçoso, pesado. “Presencial” vem da forma latina presentialis e está conosco desde muito tempo. Nunca incomodou. Agora, porém, ele e o respectivo advérbio, “presencialmente”, entraram na moda, para minha tormentosa infelicidade. Dou um exemplo: dizem que este ciclo do Mutações é um ciclo “presencial”, ou seja, estamos aqui “presencialmente”.

Soa estranho. À primeira escuta, parece uma prosa redundante: afinal, se estamos aqui, de fato, é lógico que só pode ser “presencialmente”. Mas acontece que não. Também poderíamos estar aqui na nossa “atividade cultural” – outra expressão em voga –, mas não “presencialmente”. Isso é um dado novíssimo. Graças aos padrões recentes da telemática, há palestras que não são “presenciais”, daí ser necessário avisar com antecedência quando um compromisso vai ser mesmo “presencial”. Ser presencial ou não: isso muda tudo. Mudou tudo. (...)

Aqui chegamos ao meu ponto: o corpo não precisa estar lá. Considerando o tema do Ciclo neste ano, “A coragem e outras virtudes”, eu me vejo na obrigação de indagar: pode haver um ato de coragem se o corpo não está lá? Existe coragem “não presencial”?

Se nossa mísera existência foi tragada pelo “não presencial”, mas “não presencial” mesmo, “não presencial” como jamais houve, de que maneira a gente pode pensar essa virtude aqui e agora?

Na sinopse de sua conferência neste ciclo, Jorge Coli conta que, no Laques, de Platão (428/427 a.C.348/347 a.C.), a coragem aparece como “a virtude

do soldado”. Boa síntese. De fato, nas primeiras falas do célebre diálogo, os interlocutores buscam entender o valor do combatente que enfrenta o inimigo e não foge. A virtude se apresenta, ao menos no início, como um trunfo vinculado não à razão, mas ao caráter resoluto de quem não vacila quando chega a hora de matar e morrer. No princípio, é o corpo

E não só no princípio. A palavra que dá título ao nosso ciclo deste ano tem seus parentescos etimológicos, como bem se sabe, com a palavra “coração”, donde dizermos que o indivíduo destemido “tem peito”. Coração e peito constituem nada menos que o centro do corpo. Estamos aqui tratando de uma virtude que exige do cidadão que se apresente em ato.

Mas como se apresentar em ato se o corpo caiu em desprestígio e perdeu relevância? Onde foi morar a velha virtude depois que o presencial se esvaneceu? Tudo aconteceu muito rápido, quase que sem registro. Essas alterações não eram sequer perceptíveis antes da segunda metade do século 20, mas que o corpo perdeu relevância é fato. Primeiro, as presenças físicas deram lugar às telepresenças de que tanto nos falou Paul Virilio (1932-2018).

Em seguida, as telepresenças se esfumaçaram em semipresenças difusas ou, mais ainda, em tramas diferidas nas quais as identidades pessoais, além dos corpos, ficaram mais aéreas.

A sistemática ausência física dos sujeitos nos enredou em tramas de indefinição e invisibilidade: já não dá para ver com nitidez quem faz o quê, de que modo e com quais instrumentos. Estamos atados a bestialidades cujos autores não conseguimos divisar. Agentes sem nome e sem origem dominam as arenas públicas em conflagração. Horrores nos chegam de muitas partes, perpetrados por atos que não são presenciais nem mesmo telepresenciais.

Até assassinatos ganharam variantes remotas. Robôs voadores que disparam mísseis, com pontaria milimétrica, substituem com inúmeros ganhos mecânicos o soldado mais diligente. Os drones matam e não temem ser alvejados pelo inimigo – nem se quisessem poderiam temer coi -

A coragem, tornada virtude, é virtude política. O que ela quer de nós é pensamento.

sa alguma, pois drones não têm coração, não têm peito, não sentem nada. Drones tornam mais desumanos os atos desumanos.

Nas redes sociais, as campanhas massivas de desinformação contam com o engajamento de milhões de seres supostamente racionais e providencialmente anônimos. Desde o advento das grandes cidades modernas, as multidões têm servido para diluir os indivíduos, rebaixando seus travos morais. Misturados nas turbas, cidadãos bem-educados se sentem autorizados a agir como bichos. Pois agora as multidões virtuais parecem ser ainda mais potentes em matéria de borrar identidades: onde ninguém se sente identificável, onde ninguém se sente tangível, ninguém é responsável.

Os discursos de ódio que se alastram no bojo das notícias fraudulentas vão se espalhando por meio de milícias virtuais clandestinas e dispersas, acobertadas por numerosos véus de camuflagem. Caluniadores não se deixam ver. Não dão a cara a tapa. E então? Se o corpo não está mais aí, estará a coragem?

É claro que nem toda forma de anonimato é pusilânime. O filósofo inglês John Locke (1632-1704), considerado um dos pais do liberalismo, escreveu ao menos duas de suas Cartas sobre a tolerância sob pseudônimo. Os inconfidentes da Conjuração Mineira, em Vila Rica, no século 18, agiam na surdina. Os membros da Resistência Francesa que desafiaram a ocupação nazista na Segunda Guerra não se apresentavam publicamente. Os militantes da luta armada contra a ditadura militar no Brasil, durante as décadas de 1960 e 1970, atacavam às escondidas e usavam codinomes. Em tais circunstâncias,

a clandestinidade é virtuosa: o sujeito assume riscos para partir ao ato político em defesa da liberdade. Como alguém já disse: sob uma ditadura, quem tem peito mente.

O anonimato da desinformação nas redes sociais é o oposto. Em primeiro lugar, não traz riscos; ajuda a reduzi-los. Em segundo lugar, não serve para conduzir à ação política, mas para sabotar todo o tecido da política. O anonimato da desinformação instaura o banditismo no simbólico, mina as instituições da democracia, conspira contra a liberdade dos demais, confunde a opinião pública, viola direitos e alimenta projetos autoritários. O anonimato ilegítimo, que semeia a ignorância e idolatra líderes violentos para vitimar os mais desprotegidos, é filho da covardia. Como alguém já disse, também: na democracia, quem esconde a verdade é covarde. (...)

A onda reacionária que varre o planeta, com o propósito de nos arrancar ainda mais o domínio do corpo, veio como extensão da mesma covardia. A coragem é o oposto: rende seus préstimos à vida coletiva e ao direito ao corpo. É verdade que ela é, sim, “um jeito de corpo”, não de caraminholagens, mas seu sentido ético só se consuma na razão e na firmeza de espírito. A coragem, tornada virtude, é virtude política. O que ela quer de nós é pensamento.

No ser pensante, a coragem honra o desejo porque não profana a justiça: imprime honra ao desejo e não o trai jamais. Somente por ela o espírito nos devolve o corpo livre. Somente por ela o corpo nos conduz ao espírito livre. Sem isso, não vale a vida. Ainda que a tenham esvaziado, é ela a virtude mais íntegra, ela mesma, aquela que a gente sempre acha que tem de menos e nunca tem coragem de admitir.

Eugênio Bucci é jornalista, professor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e integrante do conselho curador da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura de São Paulo). É autor de diversos livros, como Brasil em tempo de TV (Boitempo, 1996), Sobre ética e imprensa (Companhia das Letras, 2000), e Em Brasília, 19 horas (Record, 2008).

em pauta

Medo e coragem

Estamos habituados a considerar a coragem a ausência de medo. “Fulano é corajoso, não tem medo de nada!” Bem, uma pessoa assim pode ser admirável, mas não penso que a palavra coragem seja a mais adequada para qualificar um temerário. Sim: aquele que não teme nada é chamado temerário. Pode cometer loucuras, colocar-se em grandes riscos, não porque saiba enfrentar seus medos, e sim porque os ignora.

Não devemos, por isso, desqualificar a impetuosidade dessas pessoas. Há muita pulsão de vida, muita vontade de não ficar à margem dos acontecimentos – e também uma boa dose de generosidade – nesses que pulam no abismo para tentar salvar alguém que está caindo. Morrerá, certamente, junto com aquele que tentou resgatar. Se o temerário não pode ser confundido com o corajoso, várias vezes age por impulsos cegos de generosidade.

Mas a coragem, a meu ver, exige uma volta a mais no parafuso da impetuosidade. Não se trata de ignorar o perigo, e sim de enfrentá-lo. Enfrentar perigos com cuidado, com astúcia, lançando mão de todos os recursos possíveis diante de uma situação ameaçadora – a isso quero chamar de coragem. A vida exige isso de nós praticamente todos os dias, ou mais de uma vez por dia. Durante a pandemia, muitos nem se deram conta da coragem necessária para entrar no transporte público de manhã e enfrentar um dia de trabalho numa fábrica ou num escritório cheio.

O uso de máscaras, que algumas pessoas desprezavam, não é sinal de medo, e sim de bom senso. Não chamemos os que desprezaram máscaras de corajosos: foram, no mínimo, temerários, quando não

simplesmente idiotas. O mesmo vale para os que se postaram contra as vacinas. Mas, mesmo entre mascarados, os riscos existiram. Os trabalhadores e as trabalhadoras do Brasil que não tiveram a opção de ficar em casa certamente precisaram acionar boas doses de coragem para tocar suas vidas, entrar em ônibus cheios, tirar a máscara na hora do almoço num refeitório lotado. Com ou sem pandemia, a coragem nos convoca diariamente. (...)

A coragem só existe porque existe o medo. Nascemos no medo. Sugiro considerarmos que a primeira sensação do recém-nascido seja o medo. O bebê passa do conforto intrauterino para o amplo espaço do mundo (na verdade, do colo materno), do escurinho para a claridade, da plenitude do corpo constantemente alimentado pelo líquido placentário para a estranha sensação de fome. A experiência do desamparo é rapidamente compensada pelos cuidados maternos: o colo, o leite, o calor do corpo da mãe. Tais cuidados se transformam em rotina, e a partir dessa rotina a criança adquire alguma confiança na vida. Só que essa confiança ainda não pode ser chamada de coragem: a criança confia porque as razões do medo inicial foram superadas pelos cuidados maternos.

Então, de onde vem a coragem? Penso que esta advém (em primeiro lugar) da curiosidade movida pelas pulsões de vida. O recém-nascido parece querer “sugar o mundo”. O prazer da boca e do palato inaugurado na amamentação prolonga-se no sugar do dedinho, da ponta do lençol ou de qualquer outro objeto ao alcance da boca – daí a necessidade de atenção permanente por parte dos pais para evitar que a criança se engasgue. Em seguida a criança passa a testar as pequenas potências de seu próprio corpo. Virar-se sozinha no berço, alcançar o pezinho, gritar para chamar a mãe – e o regozijo de constatar que esta atende ao chamado!

A partir de um ano de vida, mais ou menos, trata-se da locomoção: engatinhar, apoiar-se em algo para alcançar a posição vertical e... andar! “Se cai, levanta, continua, a porta da rua fechada, criança não deixo sair...”. Assim canta Maria Rita, filha de Elis Regina (1945-1982), para saudar os progressos de seu bebê. A criança talvez não tenha noção

da coragem necessária a tudo o que vem conquistando. Mas mãe e pai precisam ser corajosos para deixar a criança se arriscar. Um risco calculado, claro. Pais corajosos. Não se trata de abandonar a criança à própria sorte, mas de deixá-la experimentar. Aprender, inclusive, a ter cautela. Mas não se deve desencorajá-la de tentar. Na criança, a coragem é movida pela curiosidade, mãe de todas as pulsões de vida. (...)

Quais são as condições necessárias para nos encorajarmos diante de um desafio, uma aposta, uma investida no desejo? A primeira não é, necessariamente, a autoconfiança. Essa decorre do amor que os pais nos dedicaram e, também, das apostas que fizeram relativas a nós. Não é bom que os pais considerem seus filhos perfeitos – os narcisistas tendem a não se arriscar para não perder a imagem ideal. Mas é importante que, ao mesmo tempo, acompanhem o desenvolvimento das capacidades infantis e permitam que eles corram pequenos riscos – como o de cair e arranhar o joelho – para adquirir autoconfiança.

Mas penso que a primeira condição para a aquisição de coragem seja a curiosidade, essa filha do desejo com a fantasia. Por que os pais ensinam suas crianças a temer tantas aventuras que o mundo oferece a estes que recém-inauguram sua posse da vida? É claro que é preciso estar presente para evitar grandes acidentes, mas é preciso deixar a criança correr pequenos riscos – e cada vez mais vezes, na medida em que ela cresce.

A criança é um ser intensamente desejante. Os pais precisam estar presentes para balizar essa intensidade, mas não para impedi-la de desejar, nem para forçá-la a só querer aquilo que eles querem para ela. Sem a imaginação – e quanta imaginação tem uma criança, quando não a condenamos a uma vida diante da televisão! –, a vida não tem graça. De onde se deduz que os pais também precisam se armar de coragem para deixar seus filhos correrem alguns riscos – riscos que não ameacem suas vidas, evidentemente, mas que lhes possibilitem crescer e enfrentar a vida com alguma coragem. Para nós, adultos, a coragem implica saber, como Fernando Pessoa (1888-1935):

“Não sou nada Nunca serei nada não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

Coragem é não trair esses sonhos, mesmo sabendo que pelo menos a maior parte deles não se realizará. Mas eles nos movem: a correr riscos e a conquistar, vez por outra, aquilo com que sonhamos. “Somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos”, escreveu Shakespeare (1564-1616). Matéria tão inefável... tão frágil, diante da voracidade das conquistas – estas, sim, materiais – impulsionadas pelo capitalismo, e diante dos objetos/das coisas que tal sistema põe à nossa disposição.

Cada um de nós é um território a ser permanentemente conquistado, até o fim da vida. Essa é uma tarefa que requer coragem.

Mas não desprezemos a matéria das fantasias (agora fui de Shakespeare a Freud [1856-1939]) que nos constitui. Nós não vamos alcançá-las, como as imaginamos desde a infância. Mas o compromisso com as fantasias nos move, permanentemente, na direção de quem somos. Pode parecer solipsismo, mas não é: cada um de nós é um território a ser permanentemente conquistado, até o fim da vida. Essa é uma tarefa que requer coragem.

Maria Rita Kehl é psicanalista, doutora em psicanálise e escritora. É autora de diversos livros, como O tempo e o cão (Boitempo, 2009), Ressentimento (Casa do Psicólogo, 2004), e Sobre ética e psicanálise (Companhia das Letras, 2001). em pauta

MULHER

de si

Com uma trajetória de quase sete décadas marcada pela

luta por protagonismo, atriz e cineasta Helena Ignez aposta em experimentações criativas nos palcos e telas

Quem olha para a obra artística de Helena Ignez, que atravessa décadas de atuação no teatro e cinema brasileiros, não enxerga apenas uma atriz e diretora. Encontra uma mulher movida pela ousadia ao desafiar convenções, sacudir estruturas e erguer a voz em um cenário marcado pelo machismo e conservadorismo.

Nascida em Salvador (BA), em 1939, Helena rompeu com o destino que lhe fora desenhado. Abandonou a faculdade de direito para estudar artes cênicas, e foi no pátio da faculdade que conheceu um rapaz de ideias mirabolantes e geniais, chamado Glauber Rocha (1939-1981). “Era uma admiração enorme por aquela criatura louca, muito jovem e já com tanta coisa feita. Eu me apaixonei pelo frescor, no meio daquela sociedade que era tão sufocante e hipócrita”, relembra. O encantamento mútuo foi apadrinhado pelo escritor Jorge Amado (1912-2001) e resultou em casamento e em uma filha, a cineasta Paloma Rocha.

A estreia de Helena como atriz foi também a première de Glauber Rocha como diretor, com o curta-metragem experimental O Pátio (1959). Foi a partir daí que Helena passou a ser conhecida publicamente como “musa do Cinema Novo” e “mulher de Glauber Rocha”, rótulos que sempre rejeitou. Aliás, a antimusa nunca quis ser sombra de ninguém.

Anos depois da separação de Glauber e Helena, em 1961, a Bahia ficou pequena para a liberdade visceral de Helena Ignez. Foi aí que ela se mudou para o Rio de Janeiro, onde continuou fazendo sucesso em longas-metragens como A Grande Feira (1961), Assalto ao Trem Pagador (1962) e O Padre e a Moça (1966).

Em 1968, foi chamada para participar de O Bandido da Luz Vermelha, na pele da prostituta Janete Jane. E foi no set que conheceu o diretor Rogério Sganzerla (1946-2004), com quem se casou e teve duas filhas, Sinai e Djin, além de uma frutífera parceria na arte. Foi ao lado de Sganzerla

que Helena fundou a Belair Filmes, também em sociedade com o cineasta Júlio Bressane.

A atriz se tornou um dos nomes mais importantes do então chamado Cinema Marginal –movimento que rompeu com o Cinema Novo – e chamou atenção em obras fundamentais dos anos 1970, como Sem Essa, Aranha (1970) e Copacabana Mon Amour (1970), ambas dirigidas por Sganzerla, além de filmes assinados.

Helena e Sganzerla viveram juntos por 35 anos, até 2004. Ao morrer, Sganzerla deixou um “baú cheio de roteiros”, ela conta. Desde então, ela trabalha como diretora e atriz.

Recentemente, levou ao palco do Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, sua versão da montagem de Vestido de Noiva, obra de Nelson Rodrigues (1912-1980). Aos 86 anos de uma vida dedicada às artes, Helena Ignez compartilha, neste Encontros, recortes de uma trajetória de uma existência que nunca se acomodou em espaços pré-definidos.

Aos 85 anos, a diretora e atriz Helena Ignez segue desafiando convenções pela liberdade de criação no palco e no cinema.

OUTRO TEMPO

Se tivéssemos tido um relacionamento aberto, acho que teríamos ficado mais tempo juntos. Mas Glauber era machista – e qual homem não era? – e logo quis que eu mudasse a cor dos cabelos para chamar menos atenção. Imediatamente virei “a mulher do Glauber Rocha”. As pessoas queriam olhar para mim e ouvir o que ele pensava. Sempre lutei pela minha expressão, mas, estar ao lado de um cara como Glauber era ainda mais intimidador. Quando o nosso casamento acabou e perdi a guarda da nossa filha, sofri horrores. Se hoje já é delicado viver uma situação como essa, imagine naquela época?

ROGÉRIO PRESENTE

Não achei que fosse ter forças para lidar com a perda do meu único grande amor (o cineasta Rogério Sganzerla), mas hoje parece que eu trazia em mim essa despedida. Não com ele indo, porque eu sempre achei que eu morreria antes, mas com ele promovendo, outra vez, uma transformação enorme na minha vida. Depois de sua morte, assumi o texto, a produção e a parte da direção, que dividi com o diretor Ícaro Martins, e coloquei no mundo Filho do Bandido (2012), com Djin Sganzerla, nossa filha, tendo o ator André Guerreiro Lopes e o cantor Ney Matogrosso

no elenco. Foi um luxo espiritual tocar a saga sganzerliana em família e trabalhar juntas na preservação e difusão do legado artístico de Rogério.

SER MÍSTICO

Já casada com Rogério, e com nossas duas filhas entrando na adolescência, decidi ir em busca da minha espiritualidade e trabalhar melhor a minha mediunidade. Tinha muitas angústias existenciais, interrogações sobre a eternidade, e vi que várias culturas religiosas clássicas se debruçam sobre esses temas. Fui estudá-las e acabei conhecendo melhor o hinduísmo e Ale Catan

Montagem e direção de Helena Ignez para Vestido de Noiva, obra de Nelson Rodrigues, teve no palco sua filha e atriz Djin Sganzerla (ao centro), Lucélia Santos (à esquerda), Simone Spoladore e grande elenco no Sesc Consolação, em 2024.

o taoismo, mas também entendo bastante a mente budista. Acho que tenho muitas religiões. Trouxe para a minha vida a prática do tai chi chuan, arte marcial chinesa, e isso é essencial para minha saúde e rotina. Acredito que é por isso que ainda tenho tanta energia com mais de 80 anos. No tai chi, a gente aprende a ter uma cabeça paralela ao céu e uma coluna reta e relaxada, mas isso leva tempo. Eu pude cometer essa loucura de me dedicar ao meu ser místico.

VANGUARDA SEM IDADE

Em 2009, levei a Gramado (RS) e a festivais independentes fora do país o filme com o qual estreei como diretora, Canção de Baal (2008), uma adaptação do texto de Bertolt Brecht (1898-1956). Recebi aplausos pela mistura autoral de elementos do teatro à narrativa do cinema e ganhei um prêmio na Itália pela contribuição à linguagem. O que mais gostei foi de ler a manchete de um jornal da cidade italiana de Trieste, que dizia que a vanguarda brasileira estava nas mãos de uma “ragazzina settant anni”, ou seja, de uma garota de 70 anos. Isso me mostrou que a vanguarda não tem idade e o cinema que a gente faz é instável e independente. Para mim, o Cinema Marginal é apenas um título. Faço um cinema de bons filmes, premiados, elogiados pela crítica e de alcance internacional.

CHAMA RODRIGUEANA

Assim como Nelson Rodrigues tinha obsessão pelo nome duplo Helena Ignez, eu sou uma obcecada pela arte e pela genialidade de Nelson. Eu o conheci aos 23 anos, em

A VANGUARDA NÃO TEM IDADE E O CINEMA QUE A GENTE FAZ É INSTÁVEL E INDEPENDENTE

1963, quando trabalhava na TV Rio [uma precursora da TV Globo] e apresentava um programa em que ele constantemente participava. O convite para que, seis décadas depois, eu remontasse e dirigisse Vestido de Noiva no teatro foi sugestão de Lucélia Santos, por meio de Djin, minha filha, com quem Lucélia trabalhou no filme Mulher Oceano (2020). Achei incrível essa sugestão e pensei que, em comum com Lucélia, nós amávamos Nelson Rodrigues. Fiquei um ano dedicada a essa peça, e não parava de achar graça da ironia dele. Nelson é atual, e eu quis fazer uma leitura nova também. Quis repensar as rubricas rodriguianas, sobretudo as que enquadram as mulheres em certas convenções sociais e morais datadas.

UMA ANTIMUSA

Era detestável ser chamada de “musa do Cinema Novo” numa época em que estávamos lutando pelos nossos direitos como mulher. Ser musa significava ser linda, mas silenciada. Uma musa ficava sentada junto ao seu marido, e só. As atrizes do Cinema Novo foram extremamente condicionadas; não havia outro jeito. Por isso, eu me neguei a ser chamada assim. Era um ambiente muito machista. Eles

não percebiam que essa adoração às musas e as homenagens que faziam à beleza feminina matavam as mulheres (de maneira simbólica).

SÓ AGRADECIMENTOS

Ninguém imagina o que foi viver uma ditadura, sem estar nela. Foi uma experiência fortíssima que marcou a todos nós. Me lembro de sempre me deparar com dois homens vigiando a minha casa. Eu morava num apartamento no primeiro andar, numa esquina do Leblon [bairro na zona Sul da capital fluminense], e tinha muito medo de acabar na prisão pelos livros que eu tinha em casa. Em um determinado momento, escondi tudo. Vivemos um momento tenebroso e corríamos muitos riscos por conta da Belair Filmes. O filme Copacabana Mon Amour por exemplo, tinha cenas políticas muito corajosas. Hoje, me sinto feliz por ver as salas de cinema lotadas com fãs de novas gerações assistindo aos filmes que fizemos nessa época. Isso me emociona.

A atriz e diretora Helena Ignez participou da reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 12 de dezembro de 2024. A mediação do bate-papo foi do jornalista Rodrigo Eloi, que integra a equipe de programação do Sesc Consolação.

inéditos

OS RESULTADOS DA POESIA ESTADUAL

POR ESTEVÃO AZEVEDO ILUSTRAÇÕES JOSÉ LUCAS QUEIROZ

Diante da casa em que vivia no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, o cientista social Carlos Gimenez estava intrigado: a van contratada pela empresa tinha copinhos de água gelada, snacks e era luxuosa demais para alguém a caminho de mais um trabalho de campo no interior. A vez nem era sua, era de seu colega João Paulo Paiva, que ficara doente. O tom do chefe ao telefone na convocação de última hora não permitia perguntas, então ele não ficou a par do destino: esperava se inteirar ao ser recebido onde quer que fosse. Nem em seus melhores sonhos, porém, imaginara a pequena cidade histórica toda enfeitada e o quarto com ar-condicionado na melhor pousada de lá. Nos próximos dias, enquanto aguardava a chegada das orientações para o estudo de infraestrutura, foi convidado a assistir palestras sobre poesia negra, literatura de povos originários, autoficção e outros temas com os quais não tinha tanta familiaridade, mas que no fim o agradaram bastante. *

Nesse mesmo dia, num apartamento em Belo Horizonte vizinho à casa da cena acima, a jovem poeta Ana Martins Marques se preparava para sua estreia em residências literárias, que teria lugar numa cidadezinha do interior do Estado, onde imaginava dispor do ócio e do tédio necessários para desencalacrar a escrita dos poemas que iriam compor — ela torcia — seu primeiro livro. O carro que veio buscá-la tinha na lataria o nome burocrático de uma empresa de consultoria. Ela estranhou, mas embarcou. Depois de dias tranquilos quase sem interação e sem nenhuma demanda específica no vilarejo de menos de quinhentos habitantes, os

poemas começaram a brotar, e quando um homem de cara emburrada tocou a campainha e disse “Bom dia, já tem material para enviar?”, ela enfiou as folhas num envelope e o entregou, contente por estar cumprindo sua obrigação artística. Nos dias posteriores e até o fim da residência, a poeta entregou ao portador mais dezenas de folhas com as cópias de seus novos poemas.

*

Desfeito o mal-entendido, Carlos Gimenez partiu contente para o próximo campo, intuindo que seu trabalho nas comunidades ameaçadas pelas grandes obras de infraestrutura ou qualquer outra forma do progresso tinha algum parentesco torto com a poesia. Ana Martins Marques voltou para casa satisfeita com os poemas de seu primeiro livro, que seria publicado alguns anos depois, em 2009.

*

Quando o primeiro relatório chegou ao escritório da capital, foi parar na mesa de Enzo David, um recém-concursado de nível técnico. Os servidores com tempo de carreira tinham atribuições maiores — ou formas eficientes de evitar até as menores — do que determinar e fazer executar os investimentos em infraestrutura numa comunidade tradicional de cerca de quinhentos habitantes. Como é da natureza das coisas públicas tardar sem consequências, Enzo ficou dias e dias com o relatório diante de si, receoso de pedir apoio logo na primeira tarefa digna de nota que lhe foi confiada e demonstrar alguma inaptidão para o posto. Dava até saudade dos áridos textos jurídicos que decorava no cursinho. O que lia no relatório era muito mais bonito, porém tão difícil quanto de interpretar:

inéditos

Os animais existem durante a noite ou durante o dia eles têm modos próprios de existir

E agora? Insistiu no texto que era diferente até na forma como ocupava as páginas:

o dia depois da chuva a distância: entre uma árvore e outra árvore, entre cidades com o mesmo nome

E ainda:

talvez seja preciso aprender sobre morar com aqueles que frequentam a madrugada ou o mar

Enzo matutou, matutou e matutou: que praças, pontilhões, conjuntos habitacionais e outras construções dariam conta de um diagnóstico como aquele?

Por incrível que pareça, durante o tempo necessário para executar as obras solicitadas pela área responsável, o poder público cumpriu sua função sem liminares, sobrepreços, pedidos de esclarecimento ou desvios de verba, não sabemos se por falta de interesse ou de atenção ou se pelo receio de mexer no que é dos outros.

Agora, os poucos visitantes que enfrentam os quarenta e três quilômetros de estradas de terra que cortam os vales ou se equilibram nas encostas das serras, aqueles que superam os frequentes atoleiros ou saltam sobre os grossos troncos das árvores que por velhice ou relâmpago às vezes se deitam no caminho dos viajantes, esses raros visitantes, ao alcançar o cume a partir do qual enfim se avista Lapinha da Serra, deparam primeiro com uma infinidade de esculturas em madeira, barro, pedra, bronze, mármore e até em entulho, representando entidades conhecidas e desconhecidas de diversas matrizes, personagens folclóricos ou da literatura e outras estátuas de devoção mais corriqueira, como a de um gigantesco chaveiro de moto, a de um chup chup de limão, a de uma mesa ou de um pente de tirar piolhos, algumas tão monumentais que o visitante, se de carro, engata a ré a fim de tentar fazê-las caber inteiras no para-brisa, e outras tão ínfimas que ao seu lado alguém gentilmente abandonou uma lupa para a apreciação da absurda riqueza de detalhes, e em seguida observam de longe, esses visitantes, um labirinto de pontes suspensas, cujo brilho faz crê-las trançadas em capim dourado ou outra palha reluzente ou até mesmo desconfiar que são finíssimos fios de led ou outra tecnologia ainda por ser disseminada, pontes instaladas entre as árvores e das árvores até o topo da imponente serra de acordo com os cálculos insondáveis de alguma ciência certamente não

matemática e em tão maior número que o de estradas ou de trilhas no solo que quem as vê pensa estar diante do habitat de alguma espécie que evoluiu a ponto de precisar urbanizar o céu, céu que durante o dia desaparece por detrás de uma abóboda escura e retrátil, em cujo forro escuro há milhares de lâmpadas multicor reproduzindo à perfeição as estrelas da via láctea no hemisfério Sul, de modo que os animais noturnos podem passear, caçar e encontrar seus pares ou suas presas mesmo quando o sol está a pino acima da larguíssima abóbada que à noite, graças a um mecanismo engenhoso de engrenagens produtoras de uma música um pouco hipnótica do naipe dos metais, se abre para nos permitir avistar a torre de mais de um quilômetro de altura, na ponta da qual está pendurado um majestoso globo dourado emissor de luz e calor tão fortes a ponto de transformar as noites de Lapinha da Serra em uma espécie de dia, fazendo a alegria das crianças livres de ir para a cama dormir e para continuar indefinidamente em suas brincadeiras, entre elas o mergulho nas águas do lago repleto de construções flutuantes e de túneis de vidro que avançam por suas profundezas em busca de algum mistério até hoje não desvendado ou desvendado de maneira secreta por cada um que permaneceu calado ao tentar decifrá-lo.

Estevão Azevedo é escritor, nascido em Natal (RN), publicou narrativas curtas em antologias e revistas internacionais, além das obras O som de nada acontecendo (Edições K, 2005) e o Tempo de espalhar pedras (Cosac Naify, 2014).

José Lucas Queiroz é artista visual, ilustrador e diretor de arte mineiro. Conta histórias por meio do desenho em cartazes, capas de livro, capas de álbuns, publicações impressas e projetos de design gráfico.

TUDO SOBRE MINHA MÃE

Autor de Ainda estou aqui, livro que inspirou o filme brasileiro indicado ao Oscar 2025, Marcelo Rubens Paiva se serve da literatura para honrar a coragem da matriarca

Uma das poucas especialistas em direito indígena no Brasil, advogada de ilustres e desconhecidos, consultora da Organização das Nações Unidas (ONU) e símbolo da luta pelos direitos humanos dos desaparecidos na ditadura militar no Brasil, Eunice Paiva (1929-2018) sempre sorria nas fotos.

Desdenhava qualquer intenção da imprensa de capturar um rastro de tristeza para estampar os jornais com a manchete “a família vítima da ditadura”. Resiliente, Eunice foi até o fim da vida guardiã da memória de seu marido, o engenheiro e político Rubens Paiva (1929-1971), e protetora de seus cinco filhos, Vera Sílvia, Maria Eliana, Ana Lúcia, Maria Beatriz e Marcelo.

É sobre sua mãe e as feridas abertas pela ditadura que o escritor Marcelo Rubens Paiva escreveu Ainda estou aqui (Companhia das Letras, 2015). Adaptado para o cinema e dirigido por Walter Salles, a obra traz Eunice Paiva em primeiro plano. Interpretada pela atriz Fernanda Torres, vencedora do prêmio de melhor

atriz no Globo de Ouro, a luta de Eunice por justiça já capturou a atenção de mais de 3 milhões de espectadores mundo afora.

“A gente sempre fala dos homens, dos heróis, dos combatentes, mas nunca fala da mãe, daquela que fica na retaguarda ou, às vezes, no front de batalha. No caso da minha mãe, ela ficou na retaguarda e no front”, ressalta o escritor. Neste Depoimento, Marcelo Rubens Paiva compartilha as motivações que o levaram a criar essa obra, fala sobre a missão da literatura de contar o outro lado da história oficial e dá um spoiler sobre seu novo livro, cujo tema é paternidade, e que será lançado neste ano pela Companhia das Letras.

ela

Lembro que na Flip [Festa Literária Internacional de Paraty] de 2014, enquanto conversava com a [historiadora e escritora] Lilia Schwarcz sobre o que estava acontecendo naquele momento político do Brasil, nos perguntamos: “Será que as pessoas não leram na escola sobre o que foi a ditadura? Por que querem voltar a esse

período?”. E aí concluímos: “A gente precisa, sempre, escrever sobre isso. Não podemos parar”. Então, eu senti a missão de contar aquela história novamente, a história que eu tinha contado superficialmente em Feliz Ano Velho (1982). Queria me aprofundar no que aconteceu, não só dentro da minha casa, mas fora de casa, dentro dos quarteis. Surgiu essa oportunidade e, em 2015, publiquei Ainda estou aqui, focando na minha mãe, que descobri, naquele caos todo em que nós vivemos, que foi realmente a grande líder, guerreira e heroína da família. Porque, além de todas as suas lutas, ela tinha cinco crianças para cuidar. Passei a dar um valor em dobro à minha mãe. A gente sempre fala dos homens, dos heróis, dos combatentes, mas nunca fala da mãe, daquela que fica na retaguarda ou às vezes no front de batalha. No caso da minha mãe, ela ficou na retaguarda e no front.

interrompida

Como o filme [Ainda estou aqui] retrata, a gente sofreu a interrupção de um projeto familiar, de um projeto de vida, de maneira brusca e inexplicável.

Pela literatura, Marcelo Rubens Paiva dá continuidade à preservação da memória dos efeitos da ditadura, período histórico que enfrenta tentativas de apagamento.

A partir daí, você passa a duvidar do sentido da vida, duvidar até da religião, da existência de Deus, da justiça. Nós fomos, de certa maneira, discriminados, porque as pessoas tinham muito medo de se aproximar ou de se associar à gente, pois éramos pessoas muito visadas. Tivemos que nos adaptar a uma situação econômica desfavorável. A gente não tinha roupa, mas a gente tinha educação porque conseguiu bolsas para ir a boas escolas. Perdemos totalmente o conforto da família burguesa de antes, apesar de conviver, ainda, com parte dos amigos dos meus pais, que eram de família rica. Isso também nos amadureceu. Passamos a ter que, cada um à sua maneira, lidar com o luto, com a dor, com as adversidades da vida. E, especialmente, lidar com uma mãe que tinha cinco crianças e tínhamos que ser muito solidários a ela. Acho que tivemos que ser adultos muito cedo. Foi uma espécie de infância interrompida.

revelação

A minha família, desde sempre, se deu conta de que não podia falar do nosso lado da história, porque não tínhamos informações completas. Primeiro, quem mantinha as informações completas eram as Forças Armadas. Segundo, porque era ditadura, então havia censura, controle da informação. A literatura foi a forma que eu encontrei de contar para as pessoas o que aconteceu. Fiz isso em Feliz Ano Velho, e depois em Ainda estou aqui, dessa vez com mais elementos, porque já havia terminado a ditadura e estávamos na fase da Comissão da Verdade, quando muitas coisas foram reveladas. Aí sim, eu pude narrar. As pessoas têm reagido

descobrindo o que aconteceu: muita gente já sabia, mas nem todo mundo. Agora sim, as pessoas têm a informação em detalhes de tudo o que aconteceu, e este é um papel da literatura e do cinema. lutos

Feliz Ano Velho e Ainda estou aqui são dois livros que contam como passei por um luto pessoal. O primeiro foi um luto pelo meu corpo, por ter me abandonado. Eu estava bem e, de uma hora para outra, estava numa UTI sem me mexer [devido a um acidente de mergulho numa lagoa, que o deixou tetraplégico]. E o segundo livro, sobre a situação da minha família, o fato de meu pai ter sido levado sem nenhuma explicação e até hoje não sabemos ao certo o que aconteceu com ele. No primeiro livro, eu focava no meu corpo, no meu acidente, como se eu estivesse conversando comigo sobre quem eu me tornaria e como seria aceito. Um garoto de

20 anos, no auge da sua sexualidade e que, de repente, teve que ressignificar seu corpo, seu projeto de desejo, de relacionamento, de casamento, de amor, de autoestima. Então, eu tinha que elaborar comigo mesmo o que estava acontecendo.

versões

Um grande crítico de literatura, Nicolau Sevcenko (1952-2014), já disse que a literatura é a versão dos vencidos. E a história oficial é a versão dos vencedores. Ele fez essa afirmação depois de ter feito uma pesquisa sobre Os Sertões (1902) e sobre como Euclides da Cunha (1866-1909) retratou a história de duas formas diferentes: primeiro, como repórter do jornal O Estado de São Paulo, e depois como escritor, com anos de dedicação para ele ir até lá, repensar e deglutir o que aconteceu. Na literatura, ele mostrou, de fato, o que aconteceu. Como foi a vida do Antônio Conselheiro (1830-1897),

como foram as várias tentativas do Exército de debelar aquela “rebelião” (quando, na verdade, tudo que eles queriam era montar uma comunidade independente). Foi aí que ele chegou à reflexão de que houve um massacre. Então, Nicolau percebeu que Euclides da Cunha mudou de opinião quando ele transformou aquela experiência em literatura.

autenticidade

Acho que, às vezes, falo de mim através de outros personagens. Como nos livros Blecaute (1986) e Malu de bicicleta (2003) e nas peças de teatro E aí, comeu? (2014), e No retrovisor (2003). Nessas obras, não sou o personagem principal. Na verdade, sou um observador das coisas ao redor.

Evidentemente, me coloco como testemunha. Acredito que quando você fala com profundidade sobre temas que estão incomodando as pessoas, quando escrevo sobre o que as pessoas querem falar, aí sim posso atingir o público. Não acredito que você seja obrigado a falar de si [em seus livros], mas você precisa falar com verdade.

paternidade

Na verdade, [o tema do próximo livro] foi sugestão do meu editor, Luiz Schwarcz [da Companhia das Letras]. Assim como foi com Feliz Ano Velho, cujo tema foi sugestão do meu editor da época, Caio Graco (1932-1992), da editora Brasiliense. Caio virou para mim e falou: “por que que você não escreve sobre o que está

acontecendo contigo?”. Era a minha reabilitação física. E agora, quando Luiz também sugeriu o novo tema, eu achei perfeito, porque a paternidade me fez enxergar a minha mãe de uma forma diferente. Quando me tornei pai, vi como é difícil. Quantas opções você tem que pensar sobre o futuro do seu filho, como você tem que pisar em ovos, como você fica inseguro em relação à vida. Por dois anos, me dediquei a escrever esse livro, pedi permissão à mãe [dos dois filhos], e ele será lançado agora em 2025. Vai se chamar O novo agora. Eu tenho um filho de oito e outro de 11 anos e eles já sabem, desde pequenos, tudo sobre o vovô Rubens. Assim como meu pai me contava, quando eu tinha seis anos, o que era ditadura.

Os atores Selton Mello e Fernanda Torres, como Rubens e Eunice Paiva, ao lado de Guilherme Silveira (Marcelo) e Cora Mora (Maria Beatriz) no premiado filme Ainda estou aqui (2024).

ALMANAQUE

Gigantes pela cidade

Arte e história se encontram em cinco estátuas que celebram a vida de importantes expoentes negros da cultura brasileira

POR ANA CRISTINA PINHO

FOTOS NILTON FUKUDA

Monumentos desempenham um papel central para a versão da história que se deseja contar. A presença desses ícones em praças, parques e outros espaços públicos influencia a memória coletiva, por meio da celebração de personalidades, datas comemorativas e figuras religiosas, refletindo narrativas que moldam a identidade cultural de um povo ao longo do tempo.

Levantamento do Instituto Pólis contabilizou 367 monumentos oficiais instalados no município de São Paulo, sendo que apenas cinco obras representam pessoas negras. Para mudar esse cenário, mais cinco personalidades foram recentemente homenageadas, incluindo escritoras, compositores, atletas e líderes comunitários que contribuíram de forma significativa para o resgate e a valorização da cultura e tradições afro-brasileiras. Itamar Assumpção (1949-2003), Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Geraldo Filme (1927-1995), Ademar Ferreira da Silva (1927-2001) e Deolinda Madre [Madrinha Eunice (1909-1995)] formam esse grupo de pessoas notáveis cujas histórias ajudaram a moldar a consciência social e cultural da cidade, e que agora estão imortalizadas em estátuas que ajudam a inspirar futuras gerações a conhecer e valorizar seus legados.

A seguir, conheça um pouco mais sobre esses protagonistas da nossa história e onde apreciar suas esculturas.

Ícone do esporte, o medalhista olímpico Adhemar Ferreira da Silva tem sua homenagem cravada no canteiro central da Avenida Braz Leme, em Santana, bairro da zona Norte de São Paulo.

ITAMAR ASSUMPÇÃO

zona sul

CAROLINA MARIA DE JESUS

A escritora ganhou notoriedade no Brasil quando seu diário foi transformado no livro Quarto de despejo: Diário de uma favelada (1960), uma dimensão sociológica e literária da dura realidade das comunidades paulistanas nos anos 1950. A obra transmuta o imaginário social de uma mulher negra que descreveu, em forma de testemunho, a marginalização, o preconceito, a miséria e a fome cotidianos. “(...) Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondiam-me: É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a minha

pele negra, e o meu cabelo rústico. (...) Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.” A estátua de Carolina, em tamanho menor (1,29m) que o natural, foi instalada em Parelheiros, em 2022, bairro onde a escritora morou. Criada pela artista Néia Ferreira Martins, a escultura em bronze representa a autora sentada em uma base de granito com sua cabeça altiva e pensativa, munida de uma caneta e um livro na mão.

Praça Júlio César de Campos, Parque Tamari, São Paulo (SP).

Associado a uma linhagem de artistas vanguardistas que revolucionaram a música brasileira, Itamar utilizou a experimentação e a irreverência em sua criação musical, de forma independente e descolada da homogeneização do mercado fonográfico. Foi formado pelo som dos tambores dos terreiros de candomblé que vinham do quintal de sua casa, pelos festejos dos batuques de umbigada e pelas histórias da escravização. Autodidata, o compositor, cantor, instrumentista, arranjador, performer e produtor musical ajudou a formar a cena musical independente das décadas de 1980 e 1990. Nascido na cidade de Tietê (SP), em 1949, Itamar viveu durante mais de 20 anos no bairro da Penha, zona Leste de São Paulo, onde desenvolveu sua carreira. Sua estátua, produzida pelo artista plástico Leandro Junior de Souza, o representa em tamanho natural (1,80m), com os inseparáveis óculos escuros, na mão, o microfone e o gesto da performance tão presentes em suas apresentações.

Largo do Rosário, número 20, Penha, São Paulo (SP).

A estátua da escritora Carolina Maria de Jesus parece convidar os passantes da Praça Júlio César de Campos, no Parque Tamari, para a leitura de suas obras.
zona leste

ALMANAQUE

No bairro da Liberdade, a fundadora da escola de samba mais antiga ainda em atividade da cidade de São Paulo, Madrinha Eunice, dança com o público que conhece mais de perto sua história.

centro

DEOLINDA MADRE

Contar a história do samba paulista sem falar de Deolinda Madre, mais conhecida como Madrinha Eunice, é, no mínimo, um equívoco. Nascida em Piracicaba (SP), por volta de 1911, estudou até o 4º ano primário e chegou à capital aos 12 anos, em busca de trabalho. Já instalada no bairro da Liberdade, formou-se como uma importante liderança feminina, comandando rodas de samba, trabalhando na organização de blocos carnavalescos, cuidando de fantasias e buscando recursos para a promoção do Carnaval. Após assistir a um cortejo carnavalesco na Praça Onze, no Rio de Janeiro, resolveu criar a Escola de

Samba Lavapés, que desfilou pela primeira vez em 1937, com cerca de 30 pessoas. A escola teve como fundadores a própria Madrinha Eunice, José Madre, seu irmão, Francisco Papa, seu marido, e Maria Rosa, que saía como porta-bandeira nos blocos de rua paulistanos. Dançando com saia rodada, turbante, colares e pulseiras, a estátua (1,70m) da fundadora da escola de samba mais antiga de São Paulo em atividade até hoje foi esculpida pela artista Lídia Lisboa e inaugurada em abril de 2022.

Praça da Liberdade, Liberdade, São Paulo (SP).

ADHEMAR FERREIRA DA SILVA

Na gíria popular, a expressão “subir o sarrafo” adquiriu o sentido figurado de elevar o nível de exigência, estabelecer padrões mais altos ou definir metas mais desafiadoras. Adhemar Ferreira da Silva, ícone do esporte, gostava de música, cantava e dedilhava sambas ao violão, mas o que tocava seu coração era mesmo o atletismo, ou melhor, o salto triplo. Formado em direito, educação física, escultura e relações públicas, foi adido cultural do Brasil na Nigéria e era poliglota. Em 1952, nos Jogos Olímpicos de Helsinque, na Finlândia, Adhemar bateu, por quatro vezes, o recorde olímpico mundial. A cada salto, ele melhorava a própria marca e trouxe para casa a primeira medalha de ouro do atletismo brasileiro. Em 1956, nos Jogos de Melbourne, na Austrália, ele ganhou o ouro pela segunda vez, com outro recorde olímpico, e tornou-se o primeiro brasileiro bicampeão no salto triplo. Sua trajetória está imortalizada por uma estátua de bronze de 1,80m, criada pelo artista plástico Alex Hornest.

Canteiro central da Avenida Braz Leme, 1000, Santana, São Paulo (SP).

Um dos bambas e

GERALDO FILME

“Quem nunca viu o samba amanhecer/Vai no Bexiga pra ver, vai no Bexiga pra ver”. Os versos de um dos mais importantes compositores e sambistas do país ajudam a resgatar e valorizar a cultura negra, bem como produzir um samba de São Paulo, com características culturais específicas da cidade e seus moradores. Para Geraldo Filme, o samba paulista era resultado das festas rurais que celebravam uma boa colheita, do batuque de umbigada, do samba-de-bumbo. Por isso, ele criticava a transformação do Carnaval em espetáculo comercial e a tentativa de padronização. Feita pelo artista Newton Santanna, a obra de bronze (1,80m), com pátina verde, retrata o sambista de pé, olhando para o horizonte, com a mão direita no bolso da calça e a esquerda segurando um microfone, prestes a cantar um samba recém-composto para a cidade.

Praça David Raw, Barra Funda, São Paulo (SP).

pioneiros do samba paulista, Geraldo Filme foi homenageado com obra de bronze assinada pelo artista Newton Santanna.
zona norte

Quanto vale comer uma fruta colhida no pé?

É indiscutível a importância dos estudos que englobam a economia verde. Em todo o planeta, o avanço das pesquisas evidencia os impactos que a humanidade vem causando em larga escala ao meio ambiente. Também são notáveis os esforços de pesquisadores para desenvolver técnicas e tecnologias que reduzam danos ambientais, preservem recursos naturais e teçam uma relação mais justa entre os seres. Já sabemos que uma floresta nativa em pé presta uma série de serviços ecossistêmicos: produção de água e alimentos, sequestro de carbono, regulação do clima etc.

No entanto, nem mesmo todos os estudos científicos, agendas e tratados internacionais se mostraram capazes de reverter os danos e preservar o que ainda nos resta. Nem mesmo ações como o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) ou o ESG (Environmental, Social and Governance) são capazes de mudar o cenário a que estamos submetidos. Enfrentamos o aumento médio da temperatura do planeta, eventos climáticos extremos, escassez de água e de alimentos, sem previsões otimistas sobre o que está por vir.

Povos indígenas e quilombolas vêm dando esse alerta há muito tempo. Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Nego Bispo nos falam sobre as feridas na terra, sobre o peito do céu queimando, sobre trocar desenvolvimento por envolvimento. Em suas cosmovisões, nem a maior fortuna do planeta é capaz de pagar o valor da vida.

Como educadora, questiono constantemente se a educação ambiental vale a pena. O que mais nos falta para despertar? Por que a gente não muda? Há seis anos trabalhando em um viveiro de plantas do Sesc Interlagos, observo

a reação do público ao se deparar com a exuberância das plantas e dos animais silvestres. Pressa e euforia se transformam em passos calmos e contemplação. Olhos e pescoço já habituados à mesma posição de mirar o celular dão chance a novos movimentos. Pessoas olham para o céu, para o chão, experimentam diferentes cores, cheiros e texturas. Sentem o peito expandir com um suspiro.

Atender crianças trouxe experiências ainda mais formidáveis. O gramado convida as pequenas perninhas a correr e ganhar logo a imensidão do espaço, ultimamente tão emparedado e verticalizado. Da horta surgem as caretas mais bonitas quando as crianças comem a Azedinha. O pé de ingá atrai a molecada para escalar, sem experiência prévia. O ingazeiro sabe o que faz.

Por mais que a desesperança dê o ar da graça de vez em quando, hoje não me vejo mais como agente de educação ambiental apenas. Meus colegas e eu somos também facilitadores do reencontro ser humano-natureza. Memória, afeto, pertencimento, reconhecimento são algumas das sementes que a gente cultiva sem saber onde, como e quando vão germinar.

E por mais esforços que a ciência faça para valorar os serviços ambientais, há uma subjetividade na íntima relação daquilo que é a vida e que dificilmente será mensurada, calculada e precificada. Mas que pode ser sentida e cultivada de graça. Nosso trabalho está apenas começando.

Ana C. Jimenez é geógrafa e atua como agente de Educação Ambiental no Sesc Interlagos.

ilustração Estúdio Thema
FEVEREIRO

sescsp.org.br

Marcelo Friggi (foto); Estúdio Thema (colagem)

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