QUILOMBO DA FAZENDA
LITORAL NORTE PAULISTA
E VALE DO PARAÍBA
Resistências Confluentes É da natureza humana aventurar-se por desvelar o desconhecido. Ir ao encontro do outro para reafirmar quem somos pelas similaridades, diferenças, e alçar novos dilemas, são combustíveis aparentemente voláteis, que imprimem memórias e abastecem imaginários, nutrindo repertórios de vida. Distintas vozes ecoam e são acolhidas no programa de Turismo Social do Sesc São Paulo, propiciando vivências que abarcam as trocas simbólicas, a fruição cultural e das paisagens tanto geográficas quanto humanas. O exercício democrático do turismo envolve escolhas conscientes e um permanente compromisso com a formação do público para a corresponsabilidade da experiência. Nesse contexto, insere-se o projeto Itinerários de Resistência, que apresenta parte da rede de turismo
de base comunitária paulista realizada por grupos com identidades diversificadas como as aldeias indígenas, quilombos, assentamentos, associações e coletivos urbanos. Esses movimentos voltados para a coletividade convergem para o desenvolvimento local, bem como para o fortalecimento de lutas e objetivos comuns. Ao difundir saberes e aspectos socioculturais de tais territórios, apresentando uma das faces do turismo social em ambiente digital, o Sesc amplia os meios de acesso a essa pluralidade, acendendo um farol deflagrador de suas potencialidades. Que as narrativas e o conteúdo imagético de tais iniciativas sejam portadores de estímulos à reflexão e construção de uma sociedade mais justa e equânime, com encantamentos a serem desvelados, vividos e compartilhados. Sesc São Paulo
Famosa Casa de Farinha é o coração dessa comunidade em Ubatuba, inserida no Parque Estadual da Serra do Mar e cindida pela rodovia Rio-Santos. Herdeiros dessas terras pelo uso e cuidado, quilombolas ainda lutam por titulação
Trezentos anos cultivando o ambiente Da praia, terra, rio, serra, mar e ar A liberdade é dar a mão a quem respeita cada qual Olha o degrau, olha o degrau, olha o degrau! Trecho de Olha o Degrau, canção de David Calderoni sobre o Quilombo da Fazenda
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Quilombo da Fazenda
No quilômetro 11 da BR-101, uma placa do Parque Estadual da Serra do Mar indica a estradinha curta que leva até a Praia da Fazenda. Restam no município de Ubatuba poucas praias tão selvagens quanto essa: a vegetação de restinga e manguezal emoldura os seus mais de 3 quilômetros de extensão. Há um centro de visitantes do Núcleo Picinguaba, uma das subdivisões do parque estadual, onde se pode conhecer as orientações sobre cuidados com o meio ambiente. O que os turistas que chegam aqui não sabem é que estendem suas cangas e montam suas cadeiras no quintal da Laura, da Lúcia e da Márcia.
A praia faz parte do Quilombo da Fazenda, que tem seu território cortado pela Rio-Santos, nome popular da “bê-erre”, que é como se diz por aqui. Quem conhece o litoral norte paulista sabe que essa rodovia traça uma linha divisória nos municípios da região, e tudo o que está entre ela e o paredão da Serra do Mar é chamado de sertão. Pois a maioria das cerca de 70 famílias quilombolas da Fazenda vive no sertão. Com exceção dessas três mulheres, que têm suas casas na área da praia, mas suas conexões históricas e afetivas em todo o território. Durante muito tempo, o Brasil entendeu quilombos apenas como os lugares onde se abrigavam as pes-
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Cristiano de Jesus Braga
Jatobá. Ubatuba, SP
soas negras que, durante o regime escravista, conseguiam fugir dos cativeiros. Décadas de luta dos movimentos negros conseguiram ampliar essa compreensão. A Constituição de 1988 acolheu a ideia de comunidades remanescentes de quilombos. E garantiu-lhes o direito ao reconhecimento da posse do território que ocupam historicamente também por outros motivos, como compra, doação, ou administração por abandono dos proprietários da terra. Este último é o caso do Quilombo da Fazenda. Conta-se que após uma sequência de abandonos por proprietários brancos e de passar à Caixa Econômica Federal, as terras passaram a ser administradas por
famílias negras que efetivamente viviam e trabalhavam nelas. Isso foi na década de 1950, uma época em que, como recorda a líder comunitária Laura de Jesus Braga, não havia estrada. Demorava-se 12 horas de caminhada para ir ao centro de Ubatuba, e 9 horas para ir até Paraty. A professora da escola da Fazenda, onde Laura se matriculou pela primeira vez aos 13 anos, voltava para sua própria casa, na Maranduba, na mesma cidade, mas a 65 quilômetros, só no fim do ano letivo. Em meados da década de 1970, “foi a bê-erre que separou: a praia ficou pra cá, o sertão ficou pra lá”, diz Laura.
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Reunido pelo turismo
Rio que forma uma das cachoeiras da região. Ubatuba, SP
Vinte minutos de caminhada pela Trilha do Jatobá, subindo rente ao curso do Rio Fazenda, são suficientes para chegar ao primeiro conjunto de poços para banho. A água desce pura, deliciosa para beber, fria de gelar os pensamentos. Cristiano de Jesus Braga
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Essa trilha parte da Casa de Farinha, atrativo turístico famoso em Ubatuba, com direito a placa na Rio-Santos indicando o acesso a ela. Da placa para cima há sertão, serra, mata e cachoeiras; dela para baixo, ainda mata, areia e mar. Tudo visitável, tudo desfrutável. O território do Quilombo da Fazenda cindido pela rodovia, e reunido pelo turismo. Outra trilha, a do Corisco, faz um remendo similar. Essa pede acompanhamento de um guia — os quilombolas da Fazenda estão habilitados para essa tarefa — porque é extensa, coisa de 20 quilômetros, e demanda acampamento na mata. Era o antigo caminho para Paraty e vai dar lá no entorno do Quilombo do Campinho, origem de parte dos moradores da Fazenda, inclusive da própria Laura. Entre os dois quilombos passa a linha imaginária que divide os estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
Uma das Casas de Farinha do local. Ubatuba, SP
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Um parque sobre a cabeça Laura estava estendendo roupa lavada no quintal de casa quando um bando de homens armados com armas de fogo e facões apareceu para avisar que ela não poderia mais morar aqui com os cinco filhos — mais um na barriga. Em 1979, o Parque Estadual da Serra do Mar, criado dois anos antes, incorporou a Fazenda. De uma hora para outra, moradores se viram transformados em ilegais por cultivar alimentos e criar animais para subsistência. Cristiano de Jesus Braga
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“Sobrevoaram, viram essa Mata Atlântica linda e preservada, resolveram fazer um parque. É linda mesmo, porque a gente preserva. Os quilombolas, indígenas, caiçaras, é a gente que preserva aqui. Mas fomos expulsos”, pondera a líder comunitária. A voz de Laura embarga de verdade, como em nenhum outro momento da prosa. A roça que ela tinha cultivado, carregando banana na cabeça e menino no ventre, era seu sustento e orgulho. “Picaram a minha roça no facão”, diz, e repete. “Picaram a minha roça.” Ela tinha pouco mais de 30 anos. O que veio depois foi ameaça caso voltasse a cultivar alimentos no solo que agora era área de proteção ambiental. E a demolição da casa. “Eu me senti uma bandida.”
“Sobrevoaram, viram essa Mata Atlântica linda e preservada, resolveram fazer um parque. É linda mesmo, porque a gente preserva. Os quilombolas, indígenas, caiçaras, é a gente que preserva aqui. Mas fomos expulsos” Laura de Jesus Braga
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Pé de cacau. Ubatuba, SP
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O parque proibiu quase tudo do modo de vida tradicional. A picaré, rede de arrasto para pesca artesanal à beira-mar, também foi colocada na ilegalidade. Famílias tiveram de deixar o território. Aos poucos, com apoio também de parcerias externas, a comunidade foi se entendendo como remanescente de quilombo. Veio a luta, a formação da Associação Comunitária de Remanescentes de Quilombo da Fazenda
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e, em 2005, o parecer favorável ao reconhecimento da Fundação Palmares. Mas a titulação ainda é uma batalha em andamento. “O parque caiu de pára-quedas na cabeça das comunidades”, declarou o seu Zé Pedro em entrevista que consta no documentário Invenções Democráticas do Quilombo, de 2010.
Bolinho de taioba, uma receita tradicional local. Ubatuba, SP
“O parque caiu de pára-quedas na cabeça das comunidades” Seu Zé Pedro em entrevista no documentário Invenções Democráticas do Quilombo
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Roda d’água
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Feliciano da Conceição Braga, na Colheita de Mandioca: cultivo tradicional. Ubatuba, SP
A Casa de Farinha é onde pulsa o coração do Quilombo da Fazenda, distribuindo tarefas, conhecimento, renda e força em todas as direções. A roda d’água do fim do século 19 ainda hoje é colocada em funcionamento aproximadamente uma vez por semana para a farinhada, o dia de fazer farinha de mandioca. Desde que o Parque Estadual proibiu a coivara, técnica quilombola de cultivo que envolve pequenas queimadas e garante a boa safra para espécies que não se desenvolvem bem na sombra, a mandioca precisa ser comprada fora.
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A famosa Casa de Farinha. Ubatuba, SP
Até pouco tempo atrás, era o seu Zé Pedro que fazia a farinhada. Ele passava boa parte do dia sentado na Casa de Farinha observando o vaivém de pessoas rumo às trilhas, o movimento na loja de artesanato, logo ao lado, onde são vendidas as cestarias, bolsas, balaios, chapéus de palha de taboa e cipó, canoas de madeira decorativas, tudo criação da comunidade. Fazia parte do programa turístico escutar suas histórias e reflexões, suas lembranças sobre a cultura, a congada e a ciranda nas festas de antigamente na Fazenda, os tamancos de caixeta que as moças usavam para dançar a chiba, suas lucidez política e consciência sobre os direitos de seu povo. Seu Zé Pedro às vezes falava no degrau. “A filosofia do degrau é a filosofia da vida, da continuação do tempo da vida”, dizia.
“A filosofia do degrau é a filosofia da vida, da continuação do tempo da vida” Seu Zé Pedro
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Estrogonofe de lula e acompanhamentos. Ubatuba, SP
Ícone do Quilombo da Fazenda, biblioteca viva da comunidade, amigo e parceiro de Laura na luta pelo reconhecimento e pelos direitos quilombolas, seu Zé Pedro seguiu o tempo da vida e mudou de degrau. Morreu em maio de 2021. Morreu lamentando não poder fazer farinha de sua própria mandioca. Hoje, só está autorizada a agrofloresta. Cambuci, pupunha, abacate, araçá-boi, banana, juçara para colheita dos frutos, e não do palmito, são algumas das espécies que crescem e se desenvolvem em um emaranhado, uma aparente bagunça. São duas para visitar: a do Feliciano, no sertão, com 12 anos, e a da Laura, na praia, em estágio inicial, apenas dois anos.
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É Laura quem conduz agora as rodas de conversa, enquanto treina alguns dos jovens para assumirem, no futuro, o lugar de griô deixado pelo seu Zé Pedro. A cozinha é outra habilidade da multitalentosa Laura, e um destaque no turismo comunitário do Quilombo da Fazenda. As mulheres estão muito focadas em resgatar receitas tradicionais para serem servidas no café da manhã, no coquetel, no almoço. Vem desse movimento a salada quilombola, feita com o coração da bananeira; o estrogonofe de lula; a moqueca de peixe com juçara; o peixe com molho de cambuci. Bolinhos de taioba, mandioca e abóbora acompanhados de suco dos frutinhos da juçara.
Laura de Jesus Braga. Ubatuba, SP
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Artesanatos da comunidade, disponíveis para venda aos visitates. Ubatuba, SP
A historiadora e guia Solange Barbosa chama o turismo que se faz aqui de regenerativo. Sol é a criadora da Rota da Liberdade, mapeamento de comunidades negras no Vale do Paraíba e no litoral norte paulista para visitação e resgate da memória e da cultura. Um de seus grupos antes da pandemia de Covid-19, depois de caminhar pelas trilhas e agroflorestas, sentou para o bate-papo com o seu Zé Pedro e, nisso, descobriu-se que o griô era também benzedor. Solange lembra, entre risos, que todo mundo quis ser benzido. Depois, o grupo almoçou a comida de Laura e desceu para a praia, onde a maioria se acomodou na areia e dormiu. “Ali eu entendi o quanto aquele grupo estava precisando e nós todos, no geral, estamos precisando de turismo regenerativo, de um dia no quilombo”, conta. Como diz a canção, liberdade é dar a mão a quem respeita cada qual.
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QUILOMBO DO CAMPINHO Vizinho do Quilombo da Fazenda, mas já no município de Paraty, o Quilombo do Campinho da Independência foi a primeira comunidade quilombola do Estado do Rio de Janeiro a ter suas terras tituladas, o que ocorreu no ano de 1999. Tem origem no século 19, quando o regime escravista foi abolido no Brasil e três irmãs escravizadas na então Fazenda Independência receberam terras doadas pelo senhor. Quase todos os moradores atuais do Campinho são descendentes dessas três mulheres: Marcelina, Antonica e Luiza.
TURISMO COMO AGENTE REGENERATIVO
Cristiano de Jesus Braga
O conceito pensa o turismo como uma atividade de interação humana com potencial para promover melhorias efetivas - ambientais, sociais - para todos os envolvidos, dos anfitriões aos visitantes.
Ouça aqui o CD Quilombo Canta, um inventário das canções registradas e/ou compostas junto com a comunidade.
Assista aqui ao vídeo feito pela comunidade em 2020. Passeio de barco. Ilhabela, SP
MINAS GERAIS SP
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CAMPINAS
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SÃO JOS DOS CAMP
FRANCO DA ROCHA
SP 300
SP
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Institutos H&H Fauser e Chão Caipira
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SP 2 70
SÃO PAULO SANTOS CUBATÃO BERTIOGA
SP
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TAUBATÉ
SÉ POS
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RIO DE JANEIRO PARAIBUNA
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UBATUBA
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Quilombo e Comunidade Caiçara da Fazenda Picinguaba
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Praia de Castelhanos
Oceano Atlântico
Comunidades retratadas Águas Áreas de Proteção Ambiental Municípios em destaque Rodovias
QUILOMBO DA FAZENDA @quilombo.fazenda Informações sobre agendamento de visitas e roteiros disponíveis em — Tel: (12) 99749-5020, falar com Laura de Jesus Braga; email: contato. quilombofazenda@gmail.com